Aventuras de Hans Staden (6ª edição)/Capítulo 19

XIX

A GUERRA


QUATRO dias depois reuniram-se em Ubatuba as canoas destinadas á guerra.

Cunhambebe compareceu com a sua hoste de guerreiros. Conferenciou com Ipirú e determinou que Hans tomaria parte na expedição. Esta decisão vinha transtornar todos os seus planos de fuga. Hans, no entanto, soube esconder a sua contrariedade e fingir que iria de bom grado, na esperança de que durante o percurso não o guardassem muito de perto e ele pudesse desertar em terra tupiniquim.

A expedição compunha-se de quarenta e tres canoas, tripuladas por vinte e tres homens cada uma.

— Não era uma brincadeira, exclamou Pedrinho. Quarenta e tres multiplicado por vinte e tres dão — esperem um pouco — dão novecentos e oitenta e nove homens. Irra! Quasi mil!...

— A intenção de Cunhambebe era dirigir-se á Bertioga pelo ponto onde haviam capturado o artilheiro; ali se ocultaria nas matas, para o ataque no momento oportuno.

Partiram a 14 de agosto de 1554, mês da piracema das tainhas.

Essa expedição devia encontrar-se com a que os tupiniquins andavam organizando e fora marcada para a mesma ocasião, como Hans soube pela fala de João Sanchez.

Durante a viagem os indios perguntaram-lhe o que pensava da expedição e se seriam felizes.

Hans, está claro, respondeu o que podia responder, mas teve a habilidade de acrescentar :

— "Meu parecer é que os tupiniquins vêm vindo ao nosso encontro".

Como era quasi certo que assim fosse, queria arriscar uma afirmação que o fizesse passar como profeta.

As canoas iam sem pressa, parando sempre que topavam cardumes de tainhas. Os indios pescavam-nas em grande numero, preparavam o piracui e prosseguiam na marcha.

Quando se viram a um dia de viagem da Bertioga, arrancharam-se na ilha de Maembipe, que os portugueses diziam de São Sebastião. A' noite Cunhambebe passeou pelo acampamento e fez uma fala aos guerreiros. Disse-lhes que eram chegados ás fronteiras do inimigo, e que, portanto, procurassem ter sonhos felizes, por meio dos quais guiarem-se.

Concluida a fala, houve dansa em torno dos maracás até tarde da noite.

Ao raiar do dia seguinte os chefes reuniram-se em torno duma panela de peixe frito, e enquanto comiam contaram uns aos outros os seus sonhos.

Foi depois resolvido que se entrasse nesse mesmo dia em terra inimiga, por um lugar chamado Boissucanga, onde aguardariam a noite.

Ao deixarem Maembipe perguntaram novamente a Hans o que pensava da guerra, ao que Hans respondeu, ao acaso, que em Boissucanga iriam encontrar o inimigo.

Era intenção de Hans fugir nesse ponto, distante apenas seis leguas do sitio onde o haviam capturado.

As canoas puseram-se em movimento, remadas com vigor.

Perto de Boissucanga avistaram-se entre duas ilhas as primeiras canoas contrarias.

— "Lá estão os inimigos tupiniquins ! exclamaram os tupinambás. Bem o disse o nosso francês !"

Aquelas canoas, porém, logo que perceberam as dos tupinambás, trataram de fugir. Os tupinambás deram força aos remos e perseguiram-nas durante quatro horas, até alcançá-las.

Eram apenas cinco, todas da Bertioga. Hans reconheceu-as. Numa estavam seis mamelucos, entre os quais dois irmãos Braga Domingos e Diogo. Estes homens resistiram heroicamente, um manejando o arco, outro a zarabatana.

— Que é zarabatana, vóvó? indagou Pedrinho.

— E' uma arma muito interessante, de uso na caça de animais pequenos. Consiste num tubo dentro do qual se oculta uma seta muito fina, de ponta envenenada. O atirador lança tal seta por meio de um sopro forte. A seta fere de leve e mata pelo veneno.

— Interessante ! exclamou Pedrinho. Vou fazer uma.

— E onde arranja o sopro forte? objetou a menina. Para isso é preciso folego de indio...

Dona Benta deu-lhe razão e continuou:

— Domingos, Diogo e seus companheiros resistiram com extrema bravura durante duas horas. Resistiram a trinta canoas ! Afinal as suas flechas esgotaram-se ! Os tupinambás, então, deram-lhes em cima, capturando a uns e matando a outros.

Os irmãos Braga tiveram a sorte de não receber nenhum ferimento.

Finda a luta os tupinambás cuidaram de regressar a Maembipe, onde os prisioneiros foram levados para as cabanas dos seus respectivos apresadores.

Os feridos receberam morte imediata, sendo espostejados e assados ali mesmo. Entre estes havia dois mamelucos cristãos, um de nome Jeronimo e outro chamado Jorge Ferreira, filho de um capitão português.

O corpo de Jeronimo coube ao indio Paraguá, que era companheiro de cabana de Ipirú-guassú.

Paraguá assou-lhe a carne essa noite mesma, a dois passos de distancia do ponto em que Hans se deitara para dormir.

— Está claro que o nosso Hans não pôde conciliar o sono. O cheiro do assado fê-lo erguer-se e sair. Andou então pelo acampamento em busca dos irmãos Braga, seus conhecidos da Bertioga.

Conseguiu encontrá-los e falar-lhes. A primeira pergunta que os infelizes fizeram foi se iam ser devorados.

Hans respondeu-lhes que tivessem fé na providencia divina, pois, como estavam vendo, ali se achava ele entre os selvagens, vivo, após oito meses de cativeiro.

Isto consolou-os um bocado. Em seguida perguntaram-lhe do Jeronimo.

— "Já está assado, respondeu Hans; e o filho do capitão Ferreira, esse já está comido"...

Ao ouvirem tão tristes novas os dois irmãos não puderam reter as lagrimas. Hans procurou animá-los, contando-lhes toda a sua historia e recomendando-lhes paciencia.

— "O que Deus fez por mim, concluiu ele, tambem fará por vós. Entregai-vos, pois, á vontade divina, certos de que este mundo é mesmo um vale de lagrimas".

— "Nunca o verificamos tanto como agora", responderam os moços — e foram estas as ultimas palavras que Hans lhes ouviu.


Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.