Cidades Mortas (3ª edição)/«Gens ennuyeux»

« Gens ennuyeux »



— Queres ir? disse-me Lino espichando ante meus olhos um convite. Li: A Sociedade Minervina, ahn, ahn... convida, ahn.... a conferencia versará sobre a Historia da Terra.

— E'; a these é catita; vaes?

— Está-me appetecendo conhecel-os, aos nossos sabios....

— Sabios, rosnei, gens ennuyeux...

— Nem sempre, contraveiu Lino. O assumpto é magnifico, e depois, que diabo! uma penitenciazinha de vez em quando, por amor á sciencia...

— Pois vamos, resolvi com intrepidez.

— A's oito, rua tal.

— Lá estarei, adeus!

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Ao assomarmos á porta já as cadeiras do grande salão pintalgavam-se de austeras sobrecasacas scientificas, encimadas por carecas luzidias em cujo espelho punha gangrenas de luz (perdão, Apollo!) a luz violacea do arco voltaico.

Entramos, com religiosa compostura, pisando com passos humilimos o assoalho augusto do Pagode da Sciencia.

Vi no rosto do meu amigo uma leve expressão de terror sagrado. Os quichuas quando davam de chofre com o Eldorado haviam de ficar assim.... Commovia-se devéras o rapaz, e foi balbuciante que cochichou:

— Sabios, hein?

Sentamo-nos de vagarinho e puzemo-nos a olhar. Novas sobrecasacas chegavam, aos magotes de tres e quatro, compenetradas e pensabundas. Eram novos sabios. Havia-os de variegado estylo. O estylo-fiambre: gente vermelha com o sangue á flor da pelle, em permanente congestão. O typo-mellado: genero de importação norte-americana ou allemã. O estylo-ball: queijos de Palmyra com o vermelho substituido por um pallor circular de cabellugens ralas. O estylo-chlorose: rapazelhos de peito cavo e barba a espontar ingenuamente, macilentos de tez, olhos de bezerro desynterico em cujas meninas — meninas dos olhos — pareciam passear hypothenusas de braços dados a binomios de Newton.

A' nossa dextra suava uma rubra apoplexia allemã, enchouriçada em sobrecasaca de debrum contemporanea do iguanodonte, com costuras que cediam á pressão das enxundias comprimidas; a sua mão gordita, recoberta de doirada séara de pellinhos, alizava a grenha côr de fogo como quem aliza um gato amigo.

Mais adeante, amplo burguez, barbaçudo, verrugoso e bexiguento, fungava a suar. A' sua frente, sorrindo com bondade em meio dum grupinho amigo, uma especie de mulher de sexo neutro, acondicionada em alpaca, sem um atavio, e cujos cabellos grisalhantes se alizavam em rispido pericote sob a copa acartolada dum chapéo masculino. Discutia Cuvier.

— E' a doutora X... sussurrou-me o Lino. Uma sabia sapientissima!...

Logo adeante, um occulista de nomeada; mais além, um pomologo; em seguida, um philologo, uma parteira, um charlata, um lente de geometria, um physio-psychopathologista.

Nós, miserandos intrusos, vexados da nossa espessa ignorancia a dois, commentavamos baixinho, com respeitosa deferencia, as effigies hirsutas daquelles paredros que davam tu a Minerva. Lino nem falava: ciciava, tatibitate. Aquella face da sociedade era-nos de todo ignorada. Tudo alli cheirava a novidade. O proprio ar nada tinha do ar commum das ruas: pairava nelle um cheirinho subtil a raizes cubicas.

A' frente do salão havia uma comprida mesa em cujo centro opresidente da Sociedade — um rolete d'homem côr de salame — cofiava os bigodinhos ruivos, bamboleando no ar uns pés que não alcançavam o assoalho.

Ladeavam-no dois bonitos secretarios remexendo actas. Sobre a mesa, enfileirada, uma récua de bichos prehistoricos, em miniatura — estegosauros, plesiosauros, iguanodontes, e um mamutezinho que escancarava a goela vermelha num urro mudo.

Dlin, dlin, dlin!... Está aberta a sessão, rosnou o presidencial salame. O secretario mascou a acta — tá, tá, tá...

— Tem a palavra o conferencista.

Corre pela sala um bisbilho de curiosidade.

Galga a tribuna o homem. Roliço e pipote, tem a calva resplendente, traz casaca, oculos e convicção profunda. Prepara os papeis, tósse.

Novo psst desliza pela sala. Cae nella o silencio curioso da expectativa.

— Minhas senhoras e meus senhores! Me parece que a outro e não a mim, que sou o mais modesto membro da Sociedade....

Estava encetada a conferencia.

Entreolhamo-nos ao me, com piscadelas grammaticaes, e entregamos nossos quatro ouvidos ás palavras do Sabio. O orador, após o exordio da praxe, veste o escaphandro da observação, apoia-se no páo ferrado da critica, encavalga na penca os nasoculos da analyse e, sem tir-te, cae de mergulho no fundo sombrio das edades. Vae aos periodos eos, examinar gneiss e micaschistos; mostra exemplares ao auditorio e descreve-os com minucia.

Narra como vieram os primeiros vegetaes — samambaiussús enormes e mollengos — e como á sombra delles foram surgindo bichinhos tontos, sem experiencia da vida, admiradissimos de verem casa tão grande posta a seres tão pequenos. Fala com segurança de um feto arborescente, testemunha ocular daquillo, transfeito em sabio moderno. Diz e rediz. Vae e volta — porque o gneiss p'ra aqui, porque o gneiss p'ra lá, porque o gneiss, o gneiss, o gneiss....

Depois agarra os trilobitas, os amonitas, e móe, remóe, tremóe, pulverisa os pobres bichinhos, digressiona, gesticula, súa: o trilobita, o amonita.... porque o trilobita... não obstante o amonita... bita.... nita... e nita e bita e pá, pá, pá, borbota sciencia pura, hispida, hirsuta, inexoravel, num fluxo que berrava por tampões de perchloreto de ferro.

O tempo corre e da torneira aberta deflue caudaloso o jorro hermaphrodita do palavreado greco-latino. O espelho da sua careca tremeluz de inspiração. O seu dedo pontificial colleia riscos explicatorios. E a lympha scientifica a jorrar, a jorrar... durante quinze, trinta minutos, uma hora, hora e meia...

O esgoelado urro do mamutezinho já não é mais um urro e sim bocejo formidoloso. E não o unico. Pela sala innumeros se escancaram, incoerciveis. Algumas sobrecasacas cochilam. A doutora reprime numa careta um bocejo traiçoeiro; o burguez das verrugas resfolga com maior estrepito e mais bagas de suor na testa.

E na tribuna a sciencia a correr, a correr... E a coisada fossil a desfilar inexgotavel numa sarabanda sem fim: — porque o gneiss, o micaschisto... não obstante o bita, o nita... os conglomerados da Westphalia, as superposições devonianas, a sedimentação evolutiva, tatátátá, tá, tá.

Nesse ponto penetrou na sala um delicioso casal, pisando de leve os pássinhos de la preventivos dos pssts. Elle, alto e elegante; ella, mimosa e feminina, tom exotico de tetéa cara. Sentam-se. Elle abre os ouvidos. Ella espevita o lorgnon e corre os olhos vivos de malicia ironica pela assembléa inteira: pousa-os por fim na figura salpiconesca do orador. Lino os segue.

— Vê que graciosos! diz furando-me as costellas a cotoveladas — repara na ironia daquelles diamantes negros. Pousam na caréca do homem... alizam-na com bonhomia malandra... agora descem, examinam o nariz... riem-se, os marotos — é da verruga talvez... tentam arrancal-a... irritam-se... fogem da penca... examinam o feitio da sobrecasaca. Bom, deixaram em paz b homem... passeiam pela sala... dão com o chapéo da doutora... olha como se riem perdidamente, os moleques !...

Emquanto os olhos do meu amigo estudavam os maliciosos olhos da graciosa criatura, barafustavam-se os meus goela a dentro do mamute que o dedo do sabio apontava naquelle momento:

—... e appareceu então um animal de pellos duros e pretos, de prezas recurvadas, cujo foi encontrado na emboccadura do lena e se chamou mamute...

Lino arrancou-me de golpe ás goelas do monstro e ao cassange do sabio.

— Larga esse pato chôco e vê como ella boceja engraçado!...

De facto, a petulante boquinha da moça escondia no leque um bocejo saciado; saciado e contagioso, porque o sociologo logo em seguida escancarou o seu, o pomologo lá ao fundo abriu mais um, e o allemão da nossa direita reprimiu outro que promettia levar as lampas ao do mamute.

— Dez horas já! espantou-se o meu amigo consultando o relogio. Ha esperanças de fim?

— Qual! gemi. Ainda estamos em pleno megatherio...

— E é comprido o megatherio?

— Enorme. E tem parentela accyolina... Só depois de descriptos os glyptodontes, os megacers, os rhinoceros e as hyenas é que ha esperanças de entrarmos em terras do nosso avô pithecanthropo. Coragem, ó feto arborescente!

Dez e meia, e o corrimento paleontologico continuava copioso, sem symptomas de exhaustão. Systemas sobre systemas amontoavam-se, inducções, hypotheses sobre hypotheses; num mascar monotono de realejo electrico. Nossas nadegas a arder protestavam. Bocejos insolentes amiudavam exigencias: queriam sair, já e já, queriam passagem franca, boccas bem escaricaradas — e nés luctavamos por conter-lhes a mácriação.

E o chafariz scientifico a despejar...

— Ha esperanças, reanimei o Lino, entramos no homem.

— Bemdito sejas, ó rei da criação!

Era verdade. O sabio penetrára no homem, afinal. Mais cincoenta minutos de séca e pingava o ponto, convidando a assistencia a examinar de perto os fosseis amontoados sobre a mesa.

Estrepitaram palmas e, após um uff! de resurreição, encheu a sala o sussurro do «á vontade», das cadeiras recuadas, do frufrutar surdo dos capotes enfiados, dos espreguiçamentos risonhos.

— Que gostosura, um fim de séca!!


A assistencia afflue aos magotes para junto da mesa afim de examinar os bichos. Fomos na onda. Todos commentavam, queriam pegar, apalpar os fosseis, cheiral-os, proval-os.

O sociologo, com um estegosauro seguro pelo cangote, explicava ao pomologo «de como restauração de Cuvier se tinha alli um elo da yasta cadeia da evolução que Darwin descobrira».

Ao centro da mesa o conferencista desfazia-se em amabilidades de caixeiro, fragmentando sua sciencia e distribuindo-a em pilulas.

— Olhe, doutor, dizia ao philologo, a baculite de transição de que falei.

E para outro sujeito:

— Já viu, doutor, o magnifico exemplar de hippurite que nos veiu de Berlim?

Nisto ouvi ao meu lado um resfolego adiposo; voltei-me: era o burguaz das verrugas, com a toucinhosa consorte pelo braço a examinar uma lasca de pedra azulega que de mão em mão viera ter ás suas.

O bicharoco olhava para a pedra como quem olha para um talisman. Não resisti e atireillhe a esmo:

— E o gneiss.

O burguez encarou-me com o respeito devido a Quem Sabe, e, virando-se para a mulher, disse, gravemente;

— Este é o gneiss, Maricota.

D. Maricota tomou-o nos dedos, examinou-o sob todas as faces e em seguida o passou a uma amiga, gaguejando de geologica emoção:

— O gneiss, Nhanhã!...

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Na rua esfumada pela garôa, um friozinho de tiritar. De golas erguidas, estugamos o passo, emquanto nossos labios extrahiam a moralidade da festa.

Sciencia e Arte nasceram para viver juntas, porque Arte é harmonia e Sciencia é verdade. Quando se divorciam, a verdade fica desharmonica e a harmonia falsa. Este senhor sabio, se trouxesse pela mão direita a Sciencia e pela esquerda a Arte, para fundil-as no momento de falar, que coisa esplendida não faria! Trouxe uma só e por isso maçou-nos, empanturrou-nos a alma de coisas duras, indigeriveis, de mistura com mil pronomes fóra dos mancaes. Além disso...

Foi-nos impossivel proseguir na philosophia. Um carro passava estalando fragorosamente as pedras da rua. Dentro vinha a nossa diva.

— Ella.....

— À Verdade e a Harmonia....

Nossas boccas emmudeceram, porque a imaginação, tomando redeas nos dentes, levava-nos de galopada no encalço da tetéa de olhos negros.....



Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.