Cidades Mortas (3ª edição)/O caso do tombo

O caso do tombo



Não é meu este caso, mas d'um tio, juiz numa Itaóca beira mar. Homem sessentão, cheio de rabugens, pigarros e mais macacôas da velhice, nem por isso deixa de ser amigo da pulha, como diria mestre Machado. Gosta de contar pilherias e casos pandegos que descambam a meio em caretas rheumaticas muito de apiedar corações sobrinhos.

Os seus dominios juridicos são o reino da propria Pacatez. Os annos al'i fluem para o Esquecimento no deslizar preguiçoso dos ribeirões espraiados, sem cascatas nem corredeiras encrespadoras do espelho das aguas — disturbio, facada ou escandalo passional.

O povo, escasso como pennas de frango impubere, vive de apanhar tainhas e ameijoas. Feito o que, come-as. Feito o que, digere-as. Em seguida, «da capo» ás tainhas. E assim, annos e annos a fio até á derradeira conta do rosario da vida.

E' extrema a penuria de emoções. Vidas ha que ardem té ao berro final sem o tremelique duma commoção forte. Só a Morte pinga, a espaços, no cofre vazio dos acontecimentos, o vintem azinavrado d'um velho mariscador morto de pigarro senil ou o tostão d'uma pessoa grada, collector de rendas, fiscal, agente do correio. Em tempos deu «nota», um barão da Jamanta, ultimo varão conspicuo de que ficou memoria no logar.

Fóra disso nada mais bole com a sensibilidade em perpetua coma do excellente povo — nem dramas de amor, nem rixas eleitoraes, nem coisa nenhuma destoante dos mandamentos do Pasmado Viver.

A taramelagem das más linguas vê-se forçada, nos serões familiares, na venda do José Inchado (club da ralé), ou na Botica do Cação de Ouro (aqui o escól), a esgravatar as castanhas chochas do assumpto sovado ou frivolo. Sempre conversinhas que não vão nem vêm.

A grande preoccupação local é matar o tempo, que em vez de dinheiro é em Itaóca uma grande maçada. Matam-no, os homens, pitando cigarrões de palha, e as mulheres, gestando a prole enfermiça. E assim escorregam para o Nirvana os dias, os mezes, os annos, feitos lesmas de Chronos, deixando nas memorias um rastilho dubio, breve extincto.

Nessa lagoa urbana rebentou um dia, com estardalhaço, a noticia d'uma sessão do jury. O povo rejubilou. Vinte annos havia que o realejo da justiça popular empoava num desvão do Forum, mudo á falta d'um capadocio que lhe mettesse no bojo o nickel de modesto ferimento leve. Fizera-o agora o Chico Bahiano, ave d'arribação despejada alli por um navio da Costeira. Que regalo! Ia o promotor cantar a aria tremenda da Accusação; o Zézéca Esteves, solicitador, recitaria a Douda de Albano disfarçada em Defeza. Sua Excellencia, o Meritissimo, faria de ponto e contra-regra. Delicias da vida!

Ao pé do fogo, em casebre humilde, o pae explicava ao filho:

— Aquillo é que é, Manequinho! Você vae ver uma estrumela de gosto, que até parece missa cantada de Taubaté. O juiz, feito um gavião pato, senta no meio da mesa num estrado deste porte; á mão direita fica o doutor promotor com uma maçaroca de papeis na frente. Em baixo, na sala, uma mesa comprida com os jurados em roda E a coisa 'garra num falatorio té noite alta: o Chico lê que lê; o promotor fala e refala; o Zézéca rebate, e tal e tal. Uma lindeza!

No José Inchado:

— Lembra-se, compadre, daquelle jury, deve fazer vinte annos, que «absorveu» o Pedro Intanha? Eh, jury macota! O dr. Gusmão veiu de Pinda especialmente, e falou que nem um vigario. Era só: o nobre «orgo» do ministerio p'r'aqui, o«meritricio» doutor juiz p'r'alli. Sabia dizer as coisas, o ladrão! Tambem comeu milho grosso, p'ra mais de quinhentos bagos, dizem. Mas valia. Isso lá valia!

Na Botica do Cação de Ouro:

— Não, não, você está enganado, não foi desse geito, não! Ora, ora! Pois se eu até servi de testemunha!... Não teime, homem de Deos!... Sabe como foi? Eu lhe conto: o Pedro Intanha teve um bate-bocca com o major Vaz, perdeu a cabeça e lhe chamou «estupor», bem alli defronte da Nha Vica; e vae o major e diz: «estupor é a avó». Foi então o Pedro, e...

Só não gostou da noticia o meu tio juiz. Maçada. Incommodar-se por causa d'um crimezinho que não valia a pena....

E tinha razão. O delicto do mulato não valia uma casca d'ostra.

Chico Bahiano costumava, todas as noites, «soverter» um martelo da legitima no botequim do Bento Ventania. Ficava alegrete, chasqueador, mas não passava disso. Certa vez, porém, errou a dóse, e em vez do martelo costumeiro, chamou para o papo tres. O restilo era de primeira e lhe subiu logo á torre das idéas. A principio Bahiano destabocou. Deu grandes punhadas no balcão, berrou que o Sul era uma jossa, que o Norte é que é, que bahiano é alli no duro, que quem fosse homem que pulasse para fóra, etc., etc. O botequim estava deserto, não havia quem lhe apanhasse a luva a não ser o Ventania; mas este accendeu o cigarro, pachorrentamente, trancou as portas na cara do bebedo e foi dormir.

Chico Bahiano, na rua, continuou a desafiar o mundo — que rachava, partia caras, arrancava figados.

Infelizmente, tambem a rua estava deserta, e nem siquer a lua, a pino, lhe dava sombras com que esgrimisse.

Foi quando saltou do corredor da casă dos Mouras o Joli, cachorrinho de estimação da Sinharinha Moura, bicho de collo, metade pellado, metade pelludo, e deu de ladrar feito um bobo em frente ao insolito perturbador do silencio.

O Bahiano sorriu-se. Tinha contendor, afinal.

— 'guenta lixo! — disse, e, cambeteando, descreveu umas letras de capoeiragem, cujo remate foi um valente ponta pé que projectou o tótó a cinco metros de distancia. Joli rompeu num ganir de cortar a alma, e o offensor, perdido o equilibrio, veiu de lombo ao chão.

A Mourisma despertou de sobresalto, surgindo logo á porta o rotundo Maneco Moura, intendente da Camara, de camisola, carapuça de dormir e uma vela na mão. Estrouvinhado, o homem não enxergava coisa nenhuma desta vida a não ser o clarão da luz.

— Que é lá isso ahi? berrou para a rua.

— E' pimenta malagueta! roncou o mulato já a prumo; e emquanto o Moura, esfregando os olhos, perguntava a si proprio si não era aquillo pesadelo, o facinora desenha no ar um rabo d'arraia, do qual resulta desmoronar-se o vereador na calçada, fragorosamente, esborrachando o nariz.

Era esse o facto sobre cuja talagarça ia a Justiça bordar as scenas serio-comicas do intermezo inglez que traduzimos em calão.

Fale o tio: foi uma séca sem nome o tal jury. O promotor, sequioso por falar, com a eloquencia ingurgitada por vinte annos de chôco, atuchou no auditorio cinco horas massiças d'uma rhetorica do tempo do onça, que foram cinco horas de pigarros e caroços de encher balaios. Principiou historiando o direito criminal desde o Pithecanthropo Erecto, com estações em Lycurgo, Vêdas, Moysés e Zend-Avesta, Analysou todas as theorias philosophicas que vêm do Confucio a Farias Brito; anniquilou Lombroso e mais as «lerias» de Garófalo (que dizia Garofálo); provou que o livre arbitrio é a maior das verdades absolutas e os deterministas uns cavallos, inimigos da religião de nossos paes; arrazou Comte, Spencer e Haeckel, como os representantes do Anti-Christo na terra.

Contou depois a sua vida, a sua nobre ascendencia entroncada na alta prosapia d'uns Esteves do Rio Cávado, em Portugal; o heroismo de um tio morto na guerra do Paraguay e o não menos heroico ferimento de um primo, hoje escripturario do Ministerio da Guerra, que teve offendida por bayoneta em Cerro Corá a «face lateral do lóbo da orelha sinistra».

Provou, em seguida, a immaculabilidade da sua vida; releu o cabeçalho da accusação feita no julgamento-Intanha; citou periodos de Bossuet — a aguia de Meaux, de Ruy — a aguia de Haya, e de outras aves menores; leu paginas de Balmes e Donoso Cortez sobre a resignação christã; adduziu todos os argumentos do Doutor Subtil a respeito da Santissima Trindade; e concluíu, finalmente, pedindo a condemnação daquella fera humana que «cynica me olha como para um palacío» a galés perpetuas por 30 annos, mais a multa da lei.

Aqui o tio parou acabrunhado. Correu a mão livida pela testa suada. Negrejaram-se-lhe as olheiras. Depois, continuou:

— Sinto um cançaço d'alma ao recordar esse dia.... Como é fertil em recursos a imbecilidade humana!

Houve replica. Houve treplica. O Zézéca bateu o promotor em asnice. Engalfinharam-se, disputando, acirrados, o cinturão de ouro do Ornejo. Horror......

O borbotão de asneiras era uma caudal sem fim. O conselho já dava continuos signaes de cansaço. A tantas levantou-se um jurado e pediu permissão para ficar de cócoras no banco porque estava, «com perdão da palavra, com escande-scencia». Veja você!......

— Afinal.....

— Afinal foram os jurados para a sala secreta. A noite já ia alta. Os candieiros de petroleo, com os vidros fumados, modorravam funereamente. O Forum, deserto de curiosos, estava quasi ás escuras. O destacamento policial (duas praças e o cabo) cabeceava, dormindo em pé. Tres horas haviam corrido de somnolenta espectação quando da sala secreta saem os jurados com o papelorio. Entregam-m'o. Corro os olhos, e esfrio. Tudo errado! Era impossivel julgar com base na salada de batata e ovos que me fizeram elles dos quesitos. Era forçoso reenvial-os ao curral do conselho.

Expliquei-lhes novamente, com infinita paciencia, como deveriam proceder. Façam isto, assim, assado, entenderam?

— Entendemos, sim, senhor, respondeu o presidente, mas por via das duvidas era bom que o seu doutor mandasse cá dentro o João Carapina, a nos ajudar.

Abri a minha maior bocca, e olhei assombrado para o escrivão: E esta, amigo Chico?

O escrivão cochichou-me que era sempre assim. Em não sahindo sorteado o João Carapina não havia meio de vir coisa decente da sala secreta. E citou varios antecedentes comprobatorios.

Não me contive — berrei, chamei-lhes azemolas, asnos de Minerva, onagros de Themis, e fil-os trancafiar de novo na saleta.

— Ou a coisa vem conforme o formulario, ou vocês, cambada, ficam ahi a vida inteira!

Decorreu mais outra hora, e nada. Nenhum ruido promissor na sala secreta. Perdi a esperança e acabei perdendo a paciencia. Chamei o official de justiça e disse-lhe: — Vá me desentocar esse Carapina, e ponha-m'o cá, debaixo de vara, dormindo ou acordado, vivo ou morto! Depressa!....

O official muscou-se, lépido, e meia hora depois voltava com o carpinteiro dos nós gordios, a bocejar, estremunhado, de chinellas e cobertor vermelho no pescoço.

— Senhor João, metta-se na sala setreta, e amadrinhe-me esse lote de cavalgaduras. Com seiscentos milhões de réos, é preciso acabar com isto!

O carpinteiro foi introduzido na sala. Mas não demorou dois minutos — toc, toc, toc — bateu. O official de justiça abre. Surge-me o Carapina com cara idiota.

— Que ha? perguntei, escamado.

— O que ha, senhor doutor, é que não ha ninguem na sala: os jurados fugiram pela janella!....

— E deixaram em cima da mesa este bilhetinho para Vossa Excellencia.

Li-o. «Sr. Doutor Juiz, nos desculpe, mas nós condemnamos o bicho no gráo maximo.» Maximo foi a palavra que decifrei pelo sentido: estava escripto «máquecimo».

Levantei-me, possesso.

— Está suspensa a sessão! Senhor commandante, recolha o réo á..... Que é do réo?

Firmei a vista: não vi sombra de réo no banquinho. O commandante, que estava a dormir, despertou, sobresaltado, esfregando o olho.

— Senhor commandante, que é do réo?

O cabo (coitadol) e as praças mal acordadas deram busca em baixo da mesa, pelos cantos, no mictorio, em baixo das escarradeiras. Como nada encontrassem, perfilou-se o commandante e disse com respeitosa indignação:

— Saberá Vossa Excellencia que o safado escafedeu....

O relogio da matriz badalava tres horas — tres horas da madrugadal..... Era demais. Perdi a compostura e explodi:

— Sabem duma coisa? Vão todos a..... e berrei a plenos pulmões o grande palavrão da lingua portugueza.

— E?....

— E..... fui dormir.



Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.