Cidades Mortas (3ª edição)/Cabellos compridos

Cabellos compridos



— Coitada da Das Dores, tão boazinha...

Das Dores é isso, só isso bôazinha. Não possue outra qualidade. E' feia, é desengraçada, é inelegante, é magerrima, não tem seios, nem cadeiras, nem nenhuma rotundidade posterior; é pobre de dinheiro e de espirito; e é filha daquelle Joaquim da Venda, ilhéo de burrice eburnea — isto é, dura como o marfim. Moça que não tem por onde se lhe pegue fica sendo bôazinha.

— Coitada da Das Dores, tão boazinha...

Só tem uma coisa a mais que as outras — cabello. A fita da sua trança toca-lhe a barra da saia. Em compensação suas idéas medem-se por fracções de millimetro, tão curtinhas são. Cabellos compridos, idéas curtas, lá o disse Schopenhauer...

A natureza poz-lhe na cabeça um tabloide homopathico de intelligencia, um granulo de memoria, uma pitada de raciocinio — e plantou a cabelleira por cima.

Essa mesquinhez por dentro. Por fóra, ornou-lhe a asa do nariz com um grão de ervilha, que ella modestamente denominava verruga, arrebitou-lhe as ventas, rasgou-lhe uma bocca de dimensões compromettedoras e deu-lhe uns pés... Nossa Senhora, que pés! E outras taes pirraças lhe fez a madrasta que, ao vel-a, todos dizem commiserados:

— Coitada da Das Dores, tão bôazinha...

Das Dores só faz o que as outras fazem e porque as outras o fazem. Vae á egreja aos domingos, de livrinho na mão, ouve a missa, ouve a prédica, réza. Nunca falhou um dia. Si lhe perguntarem o porque daquelles actos responderá muito admirada da pergunta:

— Mas si todas vão!

O grande argumento de Das Dores é esse: as outras. Ouve o sermão do padre e chora nos lances tragicos, não porque comprehenda algo daquella rhetorica, nem porque sinta vontade de chorar — mas porque as outras choram.

Toma tudo quanto ouve ao pé da letra, incapaz que é de galgar do concreto ao abstracto. Si ouve falar em «fazer pé de alferes», fica-se a pensar em pés e mãos de alferes e tenentes.

— Tão bôazinha, a Das Dores...

Uma vez foi ouvir a prédica de um padre em missão pela zona, orador famoso pelas muitas almas que desatolára do chafurdeiro da perdição. Ouviu-lhe muita coisa que não entendeu, mas entendeu um pedacinho que terminava assim: «Meditae, meus irmãos, reflecti em cada uma das palavras das vossas orações quotidianas, pois do contrario não terão valor as vossas orações».

Das Dores sahiu da egreja impressionada com o extranho conselho e se foi em consulta á tia Vicencia, velha sabidissima em mezinhas e theologias.

— Tia Vicencia «viu» o que o seu conego disse? Para pensar em cada palavra, sinão a reza não vale...

A tia mastigou um «pois é» que dava toda a razão ao padre.

— Que coisa, não? foi o commentario final de Das Dores, que não deixava de achar exquisitissima aquella idéa.

A' noite era costume seu rezar uma tantas orações preventivas dos mil males possiveis do dia seguinte.

Mas até alli rezára-as como um phonographo, psi, psi, psi, amen. Tinha que pensar nas palavras, agora... Diabol Havia de ficar engraçada a reza...

Caiu a noite. Das Dores metteu-se na cama, cobriu a cabeça com o lençol e deu inicio á novidade. Abriu com o Padre Nosso.

— «Padre nosso que estaes no céo»; padre; padre; os padres; padre Pereira; padre vigario... Padre Luiz... Coitado, já morreu, e que morte feia — estuporado !... Padre... Que idéa do seu conego mandar a gente pensar nas palavras! Nem se póde rezar direito...

— «... nosso»; nosso é o que é da gente; nossa casa; nossa vida; nosso pae... P'ra quem seria que foi o Nosso Pae hontem? Para a nhá véva não é, que ella já melhorou. Seria para o major Lesbão? Coitado! Quem sabe se a estas horas já não está no outro mundo? Bom homem, aquelle... Tão caridoso... O' diabo! Não é que me ia distrahindo? «Nosso»; «nosso»... Em certas palavras não se tem geito de pensar....

— ...« que estaes no céo»; estar no céo, que lindeza não será! Os anjos voando, as estrellinhas, Nossa Senhora tão bonita, com o Menino no braço, os santos passeando de lá para cá.. O céo; céo; céo da bocca; céo azul. Porque será que se diz céo da bocca?

— «... santificado; san-ti-fi-ca-do; que é santo; dia santificado; dia santo...

— « ... seja vosso nome»; nome, nome bonito... Nome feio... Quantos tapas levei na bocca por dizer nomes feios! Quem me ensinava era aquella bruxa da Cesaria. Peste de negrinha! Onde andará ella? «Nome»; «Nome de gente»; «nome de cachorro». Gustavo, bonito nome. Está alli um que si quizesse... Mas nem me enxerga, o máozinho; é só a Loló p'r'aqui, a Loló p'ralli, aquella caraça de brôa... Gustavo é o nome de homem mais bonito para mim. De mulher é... Rozinha? Não. Merencia? Não... Home' a falar verdade, nenhum. Gustavo, Gustavinho... Ahn! que somno!

— «O pão nosso»; pão; pão; pão... Porque será que quando a gente repete muitas vezes uma palavra ella perde o geito e fica assim exquisita? Pão; pão; pã-o... Por fa- lar em pão, como anda minguado o pão do Zéca Padeiro! E que pão ruim! Azedo... Pão sovado; pão de cará; pão de Petropolis...

— «... de cada dia»; dia; dia; marido da noite; dia de sol; dia de chuva; dia das almas; dia de annos; dia bonito... E que dia bonito fez hontem! Vae ver que domingo chove. E' sempre assim. Havendo uma festinha chove mesmo. Amanhã si fizer bom dia vou á casa da Ignez. Coitada da Ignez! Acontece cada coisa nesta vida...

— «... dae-nos hoje»; hoje; hoje... Que é que eu fiz hoje? Ahn! Que somneira!

— «...e livre-nos, Senhor»; senhor; illustrissimo senhor Gustavo da Silva. Bonito nome! Senhor amado; Senhor morto; senhor, se-nhor, nhor-se, nhor-sim....

— ... de todo o mal»; mal; mal... mal... al...

Os olhos de Das Dores fecharam-se, o corpo molleou e o seu somno foi um só até ao romper do dia. Acordando, lembrou-se logo do caso da vespera. Sorriu. Achou que a idéa do conego — um padre de tanta fama! — não passava de uma grossa asneira. E pela primeira vez na vida, duvidou.

— Ora, titia — foi dizer á tia Vicencia, — aquillo é asneira. Si a gente fôr pensar em cada palavra, não póde rezar direito. O sêo conego que me perdôe, mas elle disse uma grande bobagem...

Não se sabe si a tia lhe deu razão ou não; mas o facto é que Das Dores continuou a rezar pelo systema antigo, mais rapido, mais correntio, e com certeza mais agradavel a Deus. Quem se sahiu mal do incidente foi o pobre do missionario. Cada vez que se referiam a elle perto de Das Dores ella floria a cara de uma risadinha ironica.

— Está ahi um que póde estar dizendo as coisas, que eu...

E concluia a phrase com inexprimivel muxoxo de pouco caso.....



Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.