Um avô
Tive um avô, não sei bem si o bis ou o tatara, formidavelmente patusco. Tinha bastante ampla a bossa da originalidade e, talvez porisso, querendo enxertar novidades no velho tronco da rotina, se viu em Portugal de galfarros ás costas como conspirador perigoso. Logrou, porém, deitar cinzas nos olhos de Pina Manique e fugir para o Brazil disfarçado de jesuita, com ares de frade ambicioso por conquistar a palma do martyrio em troca da vida corporea offerecida aos tacapaços do gentio. Cá chegado, achou singularmente commodo o habito fradesco e entendeu de contraditar o velho adagio; ficou-se nelle, a dizer missinhas pela roça, a confessar e a baptisar, de tudo o que ia colhendo aureos patacões que encofrava num pé de meia. E viveria assim até á morte se um par d'olhos crioulos não o fizessem trocar a negrura da sotaina pelo estridente escarlate de um surtum profano, que meio caminho fosse na conquista de olhos tão seductores. E casou com a dona delles, montou lojinha de reliquias, vendeu muito rosario, muito bentinho, muito crucifixo de latão e até — dizem — qual precursor do Theodomiro Raposo, alguns espinhos da coroa do Christo, taboinhas aplainadas por S. José e bicos da mamadeira divinizados pela divina boquinha do menino Jesus. Encheu dest'arte o pé de meia numero dois.
Não contente, atirou-se a commercio mais vasto, e tão bem se aveiu nelle, que enricou a ponto de dar dinheiro a premio. Vieram então calotes e inimizades. Ora, o avô não era homem de não tirar das experiencias pessoaes atiladissimas conclusões. Tirou-as, lá de si comsigo. E tinha-as tiradas todas quando lhe surgiu em casa um badameco a pedir d'emprestimo um cento de patacos. O velho sorriu-se por dentro, e, muito amavel, respondeu que pois não, que estava ás ordens do amiguinho (tinha o vezo de chamar amiguinho a meio mundo) e que o amiguinho fosse garatujando a obrigação. O méco escreveu o «Devo que pagarei», longamente, com letra caprichada, em termos bem claros, incluindo os esclarecimentos que o astuto avô dictava — «porque as boas contas fazem os bons amigos». Emquanto isto, ia o velho empilhando, risonhamente, sobre a mesa de cabiuna, tirados dum amplo gavetão, a preciosa centena de patacos que saiam a ganhar a vida.
Arrumadas as pilhas e assignado o papel, pediu ao amiguinho que as recontasse.
— Oh major!
— Não, senhor, negocio é negocio, conte-as.
O freguez, insistido, recontou-as, emquanto o velho, de oculos erguidos para a testa, examinava com cuidado os dizeres obrigacionaes.
— Está certo? Muito que bem. Agora peço ao amiguinho que diga: o major é um ladrão!
O méco abriu a bocca.
— Vamos, diga! insistiu o velho.
— Mas é um desproposito, major! Como posso eu...
— Diga, amiguinho, diga, si quer levar o dinheiro; é condição...
O outro não teve remedio sinão ceder, e, muito desconchavado:
— Já que o major exige — disse — vá lá: o major é um... um...
— Vamos!
... ladrão.
— Não serve assim, não serve n'esse tom. Diga com raiva, gritando, com gestos de colera: o major é um ladrããão!!
— Ora, major, que exquisitice a sua...
— Não diz? Então paciencia...
E armou gesto de reencafuar os patacos na gaveta.
Vexadissimo, o parceiro berrou afinal que o major era um ladrão.
— Perfeitamente bem, disse o velho esfregando as mãos, perfeitissimamente bem, eh! eh! Agora vae o amiguinho dizer: o major arranca a camisa do pobre! Vamos! vamos!
O postulante protestou, estorceu-se, que não, que isso era demais; forçado, porém, fingiu colera e lá espirrou um desenxabidissimo: o major tira a camisa do pobre!
O avô applaudiu de novo, que muito bem, que perfeitamente, e continuou no jogo, num crescendo, té o derradeiro insulto, grave sobre todos: o major é um mação, é um hereje! As mãos do velhote esfregavam-se uma na outra, revelando a alegria intima do malvado, e sua bocca era um borbotar incessante de «muito-bens».
Nesse ponto fez uma pausa, severizou o semblante e, gravemente, disse:
— Si eu der emprestado o meu dinheiro ao amiguinho, o amiguinho, por occasião do vencimento, quando eu mandar cobral-o, irá dizer tudo isto ahi pelas esquinas, ou na botica, de modo que todo o mundo o ouça. Consequencia: eu fico sem o meu lindo cobre e o amiguinho transforma-se no meu maior inimigo. Pois si será assim, remediemos coisa tão feia: o amiguinho fica-se com a sua obrigação e eu com as minhas patacas.
E, dizendo-o, arrazou gostosamente para o gavetão entreaberto as pilhas sonantes da preciosa moeda.
— Desta fórma continuaremos amigos como sempre e tudo será um mar de rosas, não acha? Ora muito bem! Mudando de assumpto... o amiguinho acha que o capitão-mór colhe este anno as seis mil arrobas?
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.