Cidades Mortas (3ª edição)/Coisas do meu diario

Coisas do meu diario

OBLIVION

A cidadezinha onde moro lembra um soldado que fraqueasse em caminho e, não podendo acompanhar o batalhão, à beira da estrada se deixasse ficar, exhausto e só, com olhos saudosos postos na nuvem de poeira erguida além.

A civilização desviou-se della. O telegrapho não a põe à fala com o resto do mundo, nem as estradas de ferro se lembram de unil-a á rêde por modesto ramalzinho. Subsiste unicamente o débil cordão umbilical do correio. Um estafeta, bifurcado em paciente matungo, todos os dias sóbe e desce o morros, rompe varzeas e corta areaes com a mala postal á garupa, tão magra, porém, que melhor iria sob lombilho, á guisa de pellego.

O mundo esqueceu Oblivion, que já foi rica e lepida, como os homens esqueceram a actriz famosa, logo que lhe desbota a mocidade.

E a sua vida de vovó entrevada sem netos, sem esperança, é humilde e quieta como a do urupê escondido no sombrio dos grotôes.

Trazem-lhe os jornaes o rumor do mundo, e Oblivion comenta-o com discreto parecer... Mas como os jornaes vêm para somente uma dúzia de pessoas, constituem estas a aristocracia mental da cidade. São «Os Que Sabem». Lembra o primado dos Dez de Veneza, a sabedoria dos Dose de Oblivion.

Attrahidos pelas terras novas, de feracidade seductora, abandonaram-na seus filhos; só permaneceram ali os que o solo prendia por fundas raízes, os de vontade anemiada, debeis, fakirianos. Esse todos os dias fazem as mesmas cousas, dormem o mesmo somno, sonham os mesmo sonhos, comem as mesmas comidas, comentam os mesmos assumptos, esperam o mesmo correio, gabam a passada prosperidade, lamuriam do presente e pitam — pitam longos cigarrões de palha, matadores do tempo

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Entre as originalidades de Oblivion uma pede narrativa: o como da sua educação literária. Promovem-na três livros veneraveis, encardidos pelo uso, com as capas sujas, constelladas de pingos de vella — lidos e relidos que foram em longos serões familiares por gerações sucessivas. São elles: La mare de Autueil, de Paulo Kock, ad usum dos conhecedores do francez; uns volumes truncados do Rocambole, para enlevo das imaginações femininas; e a Ilha Maldicta de Bernado Guimarães, para deleite dos paladares nacionalistas. O dono primitivo seria, talvez, algum padre, finado sem herdeiros.

Depois, à força de girarem de déo em déo, forraram-se á propriedade individual.

Quem, por exemplo, deseja ler o Rocambole, diz na rodinha da pharmacia:

— Onde andará o Rocambole?

Informam-no logo, e o candidato toma-o das mãos do detentor ultimo, ficando desde esse momento como seu novo depositario. Processo summarissimo e intelligente...

Quando se exgottou minha provisão de livros, e deliberei recorrer ao stock local, ignorante ainda da riqueza litearia da terra, dirigi-me a um dos Doze.

O homem enfunou-se de de legitimo orgulho ao dar os informes pedidos.

— Temos obras de folego, poucas mas boas — disse — para todos os paladares, Genero pandego, para divertir, temos, «por exemplo», La mare d'Auteuil, de Paulo de Kock. Impagavel!

— Obrigado. De Kock, nem a tuberculina.

— Temos o celebre Rocambole,«genero imaginoso»; infelizmente está incompleto, faltam «uns» dezessete volumes.

— Não me serve o resto.

—E temos uma obra prima nacional, a Ilha Maldicta, do «nosso» Bernado Guimarães.

Parando ahi o catalogo era forçoso escolher.

No concerto dos nossos romancistas, onde Alencar pé o piano querido das moças e Macedo a semsaboria relamboria d'um flautim piegas, Bernardo é a sanfona.

Lel-o é ir pro mato, para a roça — mas um roça adjectivada por menina de Sião, onde os prado são amenos, os vergeis floridos, os rios caudalosos, as matas viridentes, os pincaros altissimos, os sabiás sonorosos, as rolinhas meigas. Bernardo descreve a natureza como um cego que ouvisse contar e reproduzisse as paizagens com qualificativos surrados do máo contador. Não existe nelle o vinco energico de impressão pessoal. Vinte vergeis que descreva são vinte perfeitas amenidades. Nossas desageitadissimas caipiras são sempre lindas morenas côr de jambo.

Bernardo falsifica o nosso mato. Onde toda a gente vê carrapatos, pernilongos, espinheiros, Bernardo aponta doçuras , insectos maviosos, flores olentes. Bernardo mente.

Mas como mente menos que o Kock ou o truculento Terrai, escolhi-o.

Veiu o livro. Era um volume velho como um monumento egípcio e, como elle, coberto de inscripções. Cada leitor que passava ia alli deixando o rastro gravado a lapis.

«Li e gostei", dizia um; «Li e apreciei», dizia uma senhorita. Uma inscripção quasi em cuneiforme rezava: «Fulano leu e apreciou o talento do grande escriptor brasileiro.» Outro versificava: «Já foi lido - Pelo Walfrido». Certa moça dizia parcimonialmente: «Li», e assinava. Um amigo da ordem inversa pôs: «Li e muito gostei. Houve um que discordou: «Li e não gostei.»

O patriotismo literario dum anonymo saiu a campo em pról do auctor: «Os porcos preferem milho a perolas».

Um monograma complicado subscrevia: «O Romcambole diverte mais».

E assim por quanto espaço em branco tinha o livro, margens ou fins de capitulo, as apreciações se alastravam com levíssimas variantes aos sobrio «Li e gostei inicial». Havia nomes bem antigos, de pessoas fallecidas, e nomes das meninas casadeiras da epoca.

A mentalidade de Oblivion bebia á farta naquella veneranda fonte. Abeberavam-se naquelle Bernardo de «estylo e boa linguagem», conforme affirmou um; No Rocambole truncado exercitavama os músculos da imaginativa; e no Paulo de Kock os eleitos, os Summos (os que sabiam francez!) fartavam-se da leve grivotserie permitida a espíritos superiores.

Essa trindade impressa bastava á educação literária da cidade.

Feliz cidade!

Si é de temer o homem que conhece um livro, a cidade que conhece tres é de venerar. Veneração entrentanto que não virá, porque o mundo desconhece a pobrezinha Oblivion. Mas, por não paga, uma dívida deixa de ser menos devida?

OS PERTURBADORES DO SILENCIO

O silencio em Oblivion é como o frio nas regiões arcticas; uma permanente. Não se comprehende a segunda sem o primeiro. Elle a completa; ela o define.

Durante a noite aquelle silencio é inteiriço como a escuridão. Os ouvidos, por mais que as apurem, nada ouvem a não ser um ressoar vago e remoto, lembrando myriada de grilos microscopicos chiando em surdina. Não seria isso aquellla harmonia das espheras, que refere o philoshopo grego?

Mas durante o dia a integridade do silêncio em Oblivion sofre lesões. Uns tantos rumores, sempre os mesmos, e periodicamente repetidos, constellam-no de soluções de continuidade. O seu velho inimigo, o Som, dentro delle berra, a espaços, um grito sedicioso, tal o relâmpago que destroe momentaneamente o imperio das trevas. Mas o silencio logo subjuga, destroe e absorve o intruso.

A' frente desse grupo de Irreverencias está o Sino da egreja. Repicando missa aos domingos, ou chorando a defuncto, alegre ou funebre — é o Sino o mais violento perturbador do Silencio de Oblivion.

Outro é a capina trimensal das ruas — o raspar das enxadas perturba-o com insistência d'um coaxar sapo-ferreiro.

Outro é o fim das aulas; quando soam as quatro horas o portão do Grupo Escolar borbota um fluxo de meninos, rompidos em algazarra, berrando, cantando.

Outro, e este deveras notável, é o carrinho da Camara.

O carrinho da Camara é o vehiculo mais importante de Oblivion — que além delle só conta mais um, o Zé Burro, um solido preto mina empregado no transporte de cousas pesadas. E é o principal por varias razões ponderosas, entre as quaes merece destaque o ser elle todo de ferro ao passo que o outro é de carne. Verdade seja que o carro só tem uma roda e o preto tem duas pernas... Mas como a roda do carrinho é bem centrada e bem redonda, e as pernas do Zé são cambaias, aquella superioridade desapparece e o carrinho intalla-se de vez no primado.

Esta questão de primazias não vem ao caso, entretanto. Porque o caso é a perturbação do Silencio, determinada pelo carrinho.

Esse facto se dá da seguinte maneira: como o carrinho tem pouco serviço e passa a mór parte do tempo a cochilar no deposito, a ferrugem, insidiosa inimiga da inacção, vem subrepticiamente pintar de vermelho o eixo das rodas, de modo que, mal sae á rua o vehiculo, o pobrezinho do eixo grita e ringe — atroando os ares, perturbando lamentavelmente o Silencio de Oblivion.

Quando o Isaac-Fac-Totum — um mulato retaco, grosso e curto como uma tatorana — recebe ordem da Camara para ir a tal parte formicidar um olheiro de saúva, o rolete d'homem mette uma garrafa de capanema, uma enxada e uma caixa de phosphoros dentro do carrinho e, imagem da Compenetração, symbolo da Convicção Inabalavel, parte, nhem, nhim, nhem, nhim, através das rias principaes da cidade em busca do mal aventurado olheiro.

Isaac, de sobrecenho carregado, leva o olhar attentamente fito no caminho — para evitar algum desastre.

Nas ruas desertas um ou outro cachorrinho estira-se ao sol. Isaac, a vinte passos, divisando-lhe o vulto, pára, leva a mão á viseira, firma os olhos.

— Diabo! A' mó' que é o Joli do Pedro Surdo? — e com uma pedra o espanta:

— Sae, «porquêra»! Não ouve o carro? Não tem medo de «morrê masgaiado?»

E convencido de que salvou a vida a um christão, Isaac-Garrafa-de-Licor-de-Cacáo retoma os varaes e lá segue, nhem, nhim, nhem, nhim, por Oblivion afóra, com a solemnidade de um sacerdote.

A's janellas acode gente. Crianças repimpadas no peitoril gritam para dentro:

— Mamãe, o carrinho « evem » vindo!

Muita mocinha nervosa deixa a costura e tapa os ouvidos, exclamando:

— Que inferneira! Não se póde com esta barulhada!

Não obstante, o terrivel vehiculo passa, indiferente á admiração como á censura, garboso, todo de ferro e ferrugem, nhem, nhim, nhem, nhim, empurrando pela dignidade infinita de Isaac-Toco-de-Vela-Clichy.

E emquanto não torna ao deposito, o silencio não reentra na posse dos seus dominios...

O DEDO DE DEUS

O Pinto é porteiro do theatro á noite, é remendão de guarda-chuvas e dia, e é de noite e de dia um portuguez retaco, de um metro e sessenta de altitude acima da sola dos pés.

Muito teso, conserva sempre um aprumo de quem enguliu sem mastigar um bom cabo de vassoura.

No mento traz cavanhaque, e bigodes pontudos entre a bocca e o nariz.

O papel importante da sua vida é, nos dias de dramalhão, ao fim do Epilogo, concretizar de modo palpavel o dedo de Deus interventor em prol da virtude conspurcada.

E' muito de ver nesse lance o magnifico Pinto trancar as portas do theatro, envergar a farda de commissario de policia francez, com faixa vermelha a tiracolo, e: pan! pan! pan!

Abram em nome da lei!

Abrem, não ha remedio sinão abrir. E Pinto entra, marcialmente, severizando o rosto, teso e rijo como a propria Justiça; entra e ferra o mão, o barão, o rico, levando-o aos trancos deante de si. Embalde o actor a figurar de máo o adverte em voz baixa: «Calma, sr. Pinto, olhe que me magôa!» Pinto inflexivel, Pinto surdo, Pinto imagem viva do mata-piolhos divino em funcção disciplinar na terra, sacode o monstro pela góla, a ringir os dentes.

O publico, ao ver o máo victorioso em seis actos cair nas unhas do Pinto no setimo, respira alliviado, dá palmas em barda e bravos á energia justiceira do homenzinho providencial.

Somente lá no fundo dos bastidores é que Pinto cae em si, vê que a prisão fôra de mentira e larga o pobre Máo.

Despe então a farda, ás carreiras, para correr ao seu posto de porteiro, onde, á sahida do povo, recebe cumprimentos dos amigos.

— O Barão viu fogo hoje, hein, Pinto?

— Cá commigo é alli no duro! «Tanho» escola!

APOLOGO

O velho Torquato dá relevo ao que conta á força de imagens engraçadas, ou apologos. Hontem explicava que o mal da nossa raça é a preguiça de pensar. E, restringindo o asserto á classe agricola, disse:

— Si o governo agarrasse um cento de fazendeiros dos mais illustres e os trancasse nesta sala, com cem machados naquelle canto e uma floresta virgem alli adeante; e si naquelle quarto puzesse uma secretaria com papel, penna e tinta; e lhes dissesse: «ou vocês pensam meia hora naquelle papel ou botam abaixo aquelta mata», d'ahi a cinco minutos cem machados pipocavam nas perobas!...

AS CRIANÇAS

As crianças desadoram os brinquedos que dizem tudo, preferindo os toscos onde a imaginação collabora. Entre um polichinello e um sabugo acabam conservando o sabugo. E' que este ora é um homem, ora uma mulher, ora é carro, ora é boi — e o polichinello é sempre um raio de polichinello.

O BEIJO DAS MOÇAS

As moças entre-beijam-se porque não podem morder-se umas ás outras. O beijo d'ellas é a evolução da dentada da pre-avó nmacaca.

A MESMIICE

Um coronel inglez suicidou-se, «tired of buttoning and unbuttoning» — cançado de abotoar e desabotoar a farda.

A vida em Oblivion é um perpetuo «buttoning and unbuttoning».

Mas não desfecha no suicidio.

Salvam-na a botica e o jogo. A botica porque nella ha uma sessão permanente de mexerico e o mexerico é a ambrosia dos logarejos pobres. O jogo porque quem perdeu não pode suicidar-se antes da desforra e quem ganhou vae alegre, a cantarolar que afinal de contas a vida é boa. E dessa forma escapam todos ao cansaço da mesmice.

A FOLHINHA

A folhinha inventou-a algum boticario do «interior» para uso da sua cidadezinha, onde correm dias tão eguaes e parecidos uns com outros, que só por meio della distinguimos uma segunda duma quarta-feira. Um só dia tem feição propria: o domingo. Assignala-ó a roupa limpa, a roupa nova, a roupa preta que toma sol pelas ruas no corpo de toda a gente. Redobram de movimento as praças. Caras novas de gente extra-muros dão os ares da sua graça. Ha mercado cedo, missas até ás II; depois continuam a assignalar o dia do Senhor, pelo resto da tarde, caboclos e negros encachaçados, agglomerados pelas vendas. Vendem os negocios mais pinga nesse dia do que đurante a semana inteira. Todos voltam para as casas mais ou menos bebedos. Os de cair dormem na cidade. Os de vinho exaltado, no xadrez. E assim transcorre o bello domingo sem necessidade de se ir á folhinha para saber que é domingo.

VIAGENS DE D'ANTES

O general Couto de Magalhães tem razão. Ha um abysmo entre as víagens de S. Paulo ao Rio de hoje e as d'antanho. Entre a viajada de quatorze dias a cavallo, com ar puro para os pulmões e bello panorama para os olhos, com pousadas nos ranchos, viola e cantigas de tropeiros, café coado na hora, á moda mineira, incidentes imprevistos, encontros de toda a especie, tudo rematado por um somno de pedra á noite — e as doze horas do trem de hoje, sem ar para respirar, sem paizagem para a vista (as janellinhas dos carros picam as grandes telas lateraes em quadradinhos sem encanto), cheiros desagradaveis para o nariz — das pontas de cigarros aos «micos destripados», o mulato de boné na orelha a berrar estações, recortando confettis nos bilhetes, um caldo negro nos réstaurantes, baptisado, ó irrisão! com o nome de café — vae um abysmo, o mesmo que separa o ovo fresco da pilula inventada pelo chimico, com força nutritiva egual á d'aquelle, muito boa, etc. e tal mas... pilula.

TOURADAS

Transformaram o antigo velodromo em circo de touros; metade das archibancadas virou Sombra, a mil réis, e a outra metade Sol, a quinhentos. Num camarote enfeitado de metim amarello e verde puzeram um «intelligente» pegado a laço e immensamente bronco. Ao seu lado um «clarim» tuberculoso. Cada vez que soprava na corneta faltava-lhe folego para um som completo, e o povo ria-se. Toureiro de verdade havia um, o Antonio Corajoso, empresário, bilheteiro e assessor do «intelligente». Mais dois açougueiros vestidos de toreros, com o competente rabicho, completavam a cuadrilha. A cada passinho Corajoso berrava para o «intelligente»: dê ordem de recolhida, faça isto, faça aquillo. E o pobre «intelligente» via-se tonto para conciliar uma burrice innata com os deveres do cargo. O povo vaiava ou applaudia, num tom amolecado que era toda a graça da festa. Réles, mas divertido. «Feche a bocca, negro! Está com fome? (isto para um toureiro mulato), «Recolham esse canivete aleijado! (para um zebuzinho preto, muito magro). Hu! hu! Tira leite dessa vacca, ó canudo de pito!»

Uma farpa feriu um boi na veia e o sangue começou a escorrer. Enternecimento geral. Parou a tourada para se remendar o boi. Laçaram-no, coseram a ferida — operação demorada que consumiu vinte minutos. O povo, tomado de piedade, não consentiu que farpeassem os demais.

Havia palhaço, e este palhaço fazia jus ao cinturão de ouro do Desenxabimento e da Molleza. Tinha preguiça até de andar, preferindo apanhar marradas a apressar o passo.

Lá quando a banda de musica atacou a «Amoureuse», o ladrão atravessou a arena, dançando. Mas valsava com tamanha preguiça que o povo rompeu num berreiro encolerizado. «Lyncha o cynico!» «Mata!» E choveram-lhe em cima desaforos e cascas de pinhão.

Rematou a festa a «pantomina», como rezava o programma.

Appareceu o Pançudo, figura de um comico prodigioso.

Tinha tanto de largo como de alto. Perfeita esphera, encimada por uma cabeça e «embaixada» por dois pés. Era um homem acolchoado. Mal appareceu, em passinhos miudos e lentos, uma voz o denunciou: «E' o Zé de Mamã! Ahi, negro safado!». E toda a gente morreu de rir ao ver o pobre preto, muito sério, a suar em bicas dentro da couraça de colchões. O boi investiu, e remessou-o longe. Vieram erguel-o os toureiros. Nova investida. Novo rebolar. Nova erguida. E a bola approximava-se do touro, já desconfiado, em passinhos miudos de quem traz as pernas presas, offerecendo o trazeiro á marrada, um trazeiro onde havia um sol pintado de vermelhão. O povo torcia-se de goso. Por fim, todo esfuracado, com a palhaça espipada, recolheram-no a pulso, rolando-o pelo chão qual uma pipa...

O REI

Mette dó, nas touradas, o papel do boi, animal bronco — mas cheio da nobreza respeitavel de toda a bronquidão honrada e séria — posto a luctar com uns macacos enfeitados, que ora fogem para aqui, ora se escondem alli, ora se esgueiram aos bótes, bobeando o pobre animal com uma capa vermelha. Não ha lucta. O boi, tomado de colera, investe contra o inimigo para se bater á moda heroica de habito entre os seus. Mas só encontra vultos fugidios, miragens de homens que se somem ante suas marradas. Por fim o touro, comprehendendo o papel grotesco a que o obrigam, embezerra, baixa a cabeça com lagrimas de vergonha e dôr nos olhos bondosos, e não mais se presta ás sortes.

O papel do boi será idiota, mas o do toureiro é vil. No emtanto o homem é que é o rei dos animaes....

SALTO ALTO

A Maria Benedicta, cozinheira do João Saracura, passou annos de vida a sonhar com um par de sapatos de salto alto. Um dia encheu-se de coragem e applicou as economia num delles. Inaugurou-o numa tarde de procissão. Mas torceu o pé e está ha dois mezes no hospital. Moralidade: o melhor da festa ainda é esperar por ella.

A ENXADA E O PARAFUSO

Cada terra com seu uso. O nosso theatrinho sempre usou campainha para as chamadas. Campainha é um euphemismo. Havia la dentro uma enxada velha pendurada de um arame e um parafuso de cama, cabeçudo, ao lado. Os signaes eram repicados ali.

Veiu um mambembe pernostico e calou a enxada, substituindo seus sonidos por tres pancadas de páo, batidas no assoalho. No primeiro dia o povo da platéa entreolhou-se ao ouvir aquillo e lá pelo poleiro houve risadas e assobios. O delegado quiz intervir.

— Estes diabos parece que estão mangando comnosco!

Explicações. O emprezario provou que aquelle systema era a ultima moda de Paris. Os espectadores remexeram-se, desconfiados. Estavam nessa indecisão quando o Major dirimiu a pandega com o peso de seu vozeirão.

— Mas isto aqui não é Paris!...

— Bravos! Bravos!

E a velha enxada sonorosa voltou a ser tangida com o parafuso de cabeça.

RABULICES

Nos dias de Jury reunem-se os advogados e rabulas na ante-sala do tribunal, os primeiros a vir, os ultimos a sair, como gente que procura gosar, bem gosado, um ambiente poucas vezes proporcionado pelas circumstancias. E alli, como peixes n'agua, á vontade, dão trela a comichão mexeriqueira da rabulice, esquecendo-se em interminaveis palestras sobre processos, actos judiciarios, movimento forense, nomeações, negocios profissioniaes, pilherias juridicas. Ás cabeças estão abarrotadas de leis, regulamentos, decretos e factos juridicos, a modo de só tomarem conhecimento das relações entre o facto e a lei escripta e nunca entre o facto e a lei natural — o que é proprio de philosopho. Na natureza só veem coisas fungiveis, infungiveis, moveis, immoveis, semoventes, bens, res nullius, artigos de emphytheuse — a carne e o osso, emfim, da propriedade. Essa janellinha que o artista e o philosopho trazem aberta para a natureza bruta ou para a humanidade, vistas, uma como turbilhão de forças em perenne esfervilhar, e outra como oceano de paixões onde se debate o homo — animal filho da natureza, todo elle vegetação viçosa de instinctos violentos — o homem de leis abre-a para a rede de fios só para elle bem palpaveis, fios que elles tramam e destramam, fios que atam os homens entre si e depois á Natureza convertida em propriedade.

E toda a maranha velhaca que isso é engloba-se dentro da mais bella concepção do idealismo — a Justiça...

TALENTO DE CARANGUEJO

Um «servidor da patria» custa-nos seiscentos mil réis por mez. Em trinta annos de serviço comeu duzentos e dezeseis contos. Em vinte annos de aposentado digeriu mais cem. A viuva roe de montepio mais uns cincoenta. Total: trezentos e tantos contos para gatafunhar papel com —Expeça-se, Remetta-se, Confere, etc.

Sem elles os negocios do Estado marchariam na mesma, sinão melhor.

Um kilometro de estrada de rodagem custa ao governo trinta mil réis por anno, de conservação. O conservador conserva para si o cobre e conserva na estrada os buracos, de modo que nunca as temos transitaveis.

Com o preço de um «servidor da patria» — estafermo hemorrhoidario de inutilidade comprovada, construia-se uma estrada inteira de macadam ou de pedra, á romana, e o paiz daria uma passada larga para a frente. Não obstante a simpleza deste calculo, contiuamos a não ter estradas para termos «servidores da patria».

Que animal de talento é o caranguejo!

OS PIOS

Ha na casa do Octacilio uma collecção de pios de inambú. Mais de cincoenta. O irmão explicou-nos o caso. Octacilio é umn genio em materia de pios. Afeiçoa-os com tal mestria, que ave nenhuma, piada por elles, vacilla um segundo. E como é assim, recebe sempre encommendas de pios, por parte de amigos caçadores. Octacilio não se furta a fabrical-os. Mas si saem perfeitos Octacilio não tem animo de se desfazer das obras primas e guarda-as. Ora, como Octacilio é um artista perfeito, os pios nunca saem imperfeitos. Vem d'ahi possuir Octacilio um arsenal de pios e os seus amigos morrerem de velhos sempre á espera de obter um pio marca Octacilio.

PE' NO CHÃO

Fica no extremo da rua o Grupo Escolar, de modo que a meninada passa e repassa defronte á nossa janella. Notei que muitas crianças soffriam dos pés, pois traziam um no chão e outro calçado. Perguntei a uma dellas:

— Que doença de pés é essa? Bicho arruinado?

O pequeno baixou a cabeça, vexado; depois confessou:

— E' «inconomia».

Comprehendi o caso. Como nos Grupos não se admittem crianças de pés no chão, inventaram as mães pobres aquella pia fraude. Um pé vae calçado; o outro, doente de um imaginario mal chronico, vae descalço. Assim, um par de botinas dura por dois. Quando o pé de botina em uso fica estragado, transfere-se a doença de um pé para outro, e o pé de botina de reserva entra em funcções.

Des'arte, guardadas as conveniencias, fica o dispendio reduzido á metade. Acata-se a lei e guarda-se o cobre.

Bemditas sejam as mães engenhosas!

A RELIGIAO

A Nonoca e as mais usam a religião como um chale de familia. As mães já o traziam, como o trouxeram as avós, as bisavós, as tataravós. Ensinaram-lhes em pequenas como se penteia o cabello e como se enleia a alma na religião — mas sem falar em alma. E a religião das mocinhas transforma-se em puro entraje externo: a missa, a novena, o padre, a communhão. E como o figurino não varia, o chale é o mesmo que uşaram as avós, as mesmas ramagens, o mesmo o geito de trançar. O espirito não entra alli por um escrupulo siquer. E' um traste caseiro de uso farçado e machinal.

CABECINHA DE BONECA

Uma dellas viu numa revista a micro-photographia duma pulga. E contava o caso ao irmão menor, na sua linguazinha pittoresca.

— E' cheia de ossinhos por dentro! Tal qual a gente...

O outro ouviu, dubitativo, e resolveu tirar a prova. Apanhou uma pulga do Joli, estalou-a entre as unhas e examinou-a minuciosamente. Depois concluiu:

— E mentira! Pulga não tem osso. O que tem dentro é um estalinho!...

BARQUINHA DE PAPEL

Quando chove, logo que passa a carga d'agua e o enxurro transforma a rua num systema potamographico de rios e riachos vermelhos, começam a derivar barquinhas de papel. A casa do Joaquim, o moleque chefe da rua, vira estaleiro. Saem de lá as grandes, com bandeirolas. A mocinha da esquina tambem deita a sua. E quem a seguir com os olhos verá o rapaz moreno que mora na outra esquina, e está á janella, correr á rua, apanhal-a, e ler, risonho, a mensagem a lapis da sua namorada...

O HEREJE

Os filhos do capitão Zarico brincam todos os dias debaixo da minha janella. E' a ciranda, é o pegador, é a senhora pastora. A preta Esmeria fica o tempo todo, com o caçula ao collo, vigiando-os. Hoje estava lá ella ás voltas com o pequerrucho:

— Quem tirou o toucinho d'aqui?

— Foi o gato.

— Que é do gato?

— O fogo queimou.

— Que é do fogo?

— O boi bebeu.

— Que é do boi?

— Está dizendo missa...

Resmunga a preta:

— Crédo! Tão pequenino e já hereje como o pae...

JUQUITA

O Juquita é o terror da bicharia miuda.

Cães e gatos conhecem-no de longe. Esta manhã estava a brincar com um sanhaço semi-morto que, de repente, não se sabe como, sumiu. O menino procurava-o quando passei.

— Não viu o meu sanhaço?

— O gato o pegou, de certo — suggeri.

— O gato? — e Juquita riu-se com um ar apiedado da minha asneira. O gato não tem coragem de chegar perto de mim!

A IDADE FELIZ

Sempre que me vê sentado, a escrever, trepa-me ao collo o Guilherme e fica muito attento a seguir os movimentos da penna sobre o papel.

— E' trem? pergunta.

— Não, filhinho, estou a escrever.

— E' carta?

— E'.

Satisfeita a curiosidade, fica a olhar, fungando.:. De repente acode-lhe uma idéasita e pede que «escreva um trem». Não ha remedio sinão interromper a carta e pintar um comprido trem de ferro, com innumeros vagões de muitas janellinhas.

Si esqueço a fumaça da locomotiva, reclama-a logo, como reclama rodas e janellas nalgum carro onde as haja de menos.

— Agora escreva um corvo sentado aqui — e o dedinho gordo aponta a chaminé.

— E um boi aqui. E um gatinho aqui. E um porco....

E o trem vae virando poleiro de bicharia. No melhor da festa, porém, o seu corpinho molleia, descaem-lhe os braços e todo elle se mergulha num somno de anjo...

CARNAVAL

Terça-feira de entrudo. Está cheio o cinema. Vaporiza-se o ar de ether perfumado. Vae lucta accesa pelos camarotes. Mocinhos sorridentes afrontam com esguichos de bisnaga as mocinhas empilhadas dentro, as quaes repellem o assalto, escondendo os olhos, retorcidas em momices e requebros. Sacodem os lança-perfumes á altura dos olhos dos assaltantes e põem-nos afinal em desbarato. Victoriosas e afogueadas, commentam a lucta, examinando as bisnagas num rapido balanço da munição consumida. Os paes, a um canto, aconselham economia — que um tubinho daquelles vale o preço duma arroba de café! Mas a peleja cresce de vulto, ganha o theatro inteiro. Onde está um magote de moças, está a escaramuça. Ha guerrilhas pelos corredores, pégas tremendos na platéa. Veem-se marmanjos abandonar de subito a refrega e fugir, de mãos nos olhos em braza, cuspilhando os confettis que lhes atafulharam na bocca.

Todo o mundo está pintalgado de rodelinhas polychromicas, que ás caras suadas se grudam como obreias.

Subito, a luz se extingue. Cessa a guerra, resfriada a meio pelo armisticio da treva. Vae começar o espectaculo. Abre-o uma sornice desenxabida de Pathé. Desdobram-se na tela umas scenas sempre as mesmas, demonstrativas da pieguice do francez que, decididamente, em materia de cinematographia é um Deus nos acuda de chateza. Não faltam os celebres beijos compridos — que já o povo chama beijo de cinema — beijos que arrancam suspiros ás meninas frangotas fazendo-os pousarem o pensamento nos Chiquinhos, Žézinhos, Lulús e Totós dos seus anhelos, áquell'hora perdidos no escuro da platéa. Já Escrich — unico romancista lido com prazer pelas nossas meninas — lhes havia ensinado o como, porque e quando de taes beijos de metro e meio. As fitas vieram completar o curso com a exemplificação visual. Haja occasião e os Chiquinhos e Zézinhos colherão os fructos do ensinamento precioso. Escandalizam-se os velhos com isso, mas é inveja pura, pois que taes beijos são a maior delicia da vida...

Após a «pathesada», entra a Cines a maçar o povo com um trabuco historico da época romana. Para o diabo os romanos!

Ao cabo, reaccende-se a luz — e referve de novo a batalha. Rebentam estouros de bisnagas vazias remessadas ao chão. O calor suffoca. Explodem gritinhos, risadas. O èxercicio carmina as faces das moças, pondo-lhes em alta a belleza. Ficam lindas as bonitas, apaga-se a feiura ás feias.

Carnaval! Carnaval! Tró-ló-ló!

Numa frisa de meninas vestidas de papel de seda, um pequerrucho de tres annos cabeceia de somno. Está empapelado de carmezim, com um grave nariz de homem a recobrir o narizito que Deus lhe deu. A cabecinha pende-lhe sobre o hombro. Dorme — dorme o somno dos anjos...

O JESUINO

Quando os juizes de facto se fecham (ou são fechados) na sala secreta, ficam de guarda á porta os officiaes de justiça. O juiz vae fumar e a prosa se generaliza dividida em grupos. O grupo donde saem coisas mais interessantes é o dos officiaes de justiça. Jesuino, porém, é o unico interessante. Os mais, uns songamongas. Jesuino é o decano da clan. Mulato velhusco e grandalhão, tem um falar pausado, lento como carro de boi serra acima. As historias que desfia são sempre as mesmas — aventuras onde o meirinho trunfa ás avessas. Já absorveu muita pancada, e até cargas de chumbo.

Como é homem da lei, não reage sinão por meio da lei. E' comezinho ir citar um caboclo na roça e ser hospedado a guatambú. Mas volta glorioso. Cada vergão no corpo, cada gallo na testa elle o traz como estigma do martyrio que vive padecendo em prol da Justiça. Exhibe-o ao juiz e exhibe-o sobretudo á parte que promoveu a citação. Esta commove-se e paga-lhe o gallo. D'ahi a calumnia dum seu collega de officio:

— O Jesuino ganha mais com os gallos da testa do que com as custas. Para mim aquillo é embroma. Elle cita o homem e de volta vem dando cabeçadas nas porteiras para pegar a gorgeta...



Cavallinhos

(FRAGMEMTO DE UM ROMANCE GORADO)


Saleta em casa de D, Didi.
Lauro, seu sobrinho, está só,
fumando, na cadeira de balanço.
E' dia de procissão. Noitinha.
Elza é a filha casada de D.
Didi, Juquinha é o filho de
Elza. O mais o leitor entenderá,
se ler e não fôr pêco.


Elza entrou da rua como uma papoulà suada, e repuxando com o dedo a gola da sua blusa de seda carmezim, refrescava o pescoço afogueado com abanos freneticos de leque. Falou da procissão, que estivera linda — um povaréo, muitas palmas. Disse que nunca vira tanta gente na egreja; que nem se podia respirar, que estava assim! (e apinhava os dedos). Que a filha de Nha Vica fez um berreiro dos demonios, que não sabia porque levavam crianças á egreja. Depois, interpellou o primo:

— Porque não foi, Lauro?

— Eu... ganiu o primo, derreado na cadeira de balanço.

Não concluiu. Entrava dos fundos dona Didi. Elza beijou-lhe as mãos, abraçou-a.

— Porque não foi, Didi, aos cavallinhos, hontem? Esperei-a lá. Não imagina o que perdeu! A companhia é optima!

— Não pude, passei mal o dia — dôr de cabeça, visitas...

— Pois perdeu! Ha lá um menino que é um prodigio — pouco maior que o Juquinha, completamente desengonçado. Faz trabalhos pasmosos, que contando não se acredita! Pega nas duas perninhas, cruza-as na cabeça aqui na nuca e com as mãos pula como um sapo. Depois desengonça a cabeça e gyra com ella como se a tivesse presa por um barbante. Uma coisa extraordinaria! O sujeito do trapezio não trabalha mal. Achei muita graça no Juquinha — era a primeira vez que elle ia ao circo: «de que é que você gostou mais, meu filho?» perguntei.

— «Eu gostei mais do homem que se balança na rede e cae na peneira». A rede é o trapezio e a peneira é a rede de malhas...

Todos riram, a vóvó com delicias, Lauro complacente, e Juquinha, que estava á janella, cuspilhando nos transeuntes, recebeu olhares cheios de admiração amorosa. Elza parolou inda um bocado. Depois, voltando-se para o primo:

— Que horas são, Lauro?

— Sete e meia, expectorou o moço, com um pigarro que foi cuspir á rua.

— Quasi horas!... Começa ás oito. Não vae, mamãe? Vá, a senhora precisa de distracções. E' por causa desse aferrolhamento em casa que anda assim, magra e amarella. Saia, espaneje-se!

Nisto espoucaram foguetes. Elza contou-os, de dedo para o ar.

— Tres! E' o signal. E você, Lauro, vae ou?...

— Pode ser que sim, pode ser que não, gemeu o philosopho.

— Diabo de rapaz este! «Pode ser»!... O' velho de cem annos! O' caramujo! Desate isso, vá!

— Fazer? Ver trapézios? Meninos desossados? Palhaços?... Iria, si não houvesse lá nenhuma dessas cousas, nem a moça que corre no cavallo, nem o homem do arame, nem...

— Mas que é então que havia de haver?

— Nada. Gente nas prateleiras, cochilando, e na arena um gato morto, a cheirar...

— Só? Ai que já é mania d'originalidade! Pois vou eu. Não tanto pelos trabalhos como pela troça, o farrancho. Bole-se com um, atira-se uma casca de pinhão noutro, e assim corre a noite alegremente. E quem não fizer isto, neste cynismo de terra, morre encarangado, cria orelha de páo!

Ageitou sobre o penteado o fichú de seainha vermelha, deu uns retoques á cara deante do espelho e, com um «até logo, corujas!», sahiu com o Juquinha pela mão.

D. Didi recolheu. Lauro ficou outra vez só na saleta, uma perna sobre o braço da cadeira, fumando pensativamente. Zoava-lhe ainda no ouvido a parolice viva da prima. Consultou o relogio: quasi oito! Ergueu-se, tomou do chapéo e saiu.

Noite clara. No alto a lua cheia apascentava um rabanho de nuvenzinhas acarneiradas.
Lauro deambulou a esmo, de mãos cruzadas ás costas, batendo o calcanhar com a ponta da bengala.

Familias deslizavam pelas ruas com rumo ao circo; deslizavam como sombras, á luz baça do kerozene. Magotes de pretas passavam, taralhando, num rufo de saias engommadas. Iam com pressa, numa açodada ancia pelas molecagens do palhaço.

E Lauro rememorou os tempos em que tambem elle se tomava d'aquella sofreguidão, nos dias magnificos em que o pae annunciava ao jantar: «Apromptem-se, que hoje vamos aos cavalinhos.» Com longa antecedencia já elle e os irmãozinhos estavam vestidos com a roupa nova, gorro de marinheiro, bengalinha de junco, sentados á porta da rua esperando o anoitecer. No bolsinho tiniam tostões para as empadas. Lauro reviu nitidamente o Laurinho de outrora, trotando para o circo á frente do farrancho, e, depois, sentado na terceira fila das archibancadas, com olhadelas gulosas para a ultima, rente ao panno, onde se repimpavam os moleques. Lá é que era a pandega!

Soava a sineta. O povo pedia o «paiaáço». Vinha um «casaca de ferro» espevitar os lampeões. Era um berreiro: «Aráral Arára! O' caradura!» O homem, impassivel, ia graduando a luz dos belgas, um a um, sem pressa; depois pegava da corda e içava aquella coroa de lampeões accesos, aos goles, até meio mastro.

Rompia a musica. Bem maçante a musica. Dava somno... Afinal, começava a funcção, e o palhaço entrava como uma bola, rolando em cambalhotas. Tão engraçado!... Um relogio nos fundilhos do calção marcava meio dia. Na cabeça, inclinado para a orelha, o chaspelinho de funil, microscopico. Bastava-lhe ver o palhaço e desandava a expremer risos sem fim. A cara caiada, as enormes sobrancelhas vermelhas, os modos, a roupa, tudo tinha tanta graça...

Mas 'o melhor eram as micagens e as historias. «Venha cá, seu cara de burro. Quem de vinte tira dois quanto fica?» O casaca de ferro respondia: «Dezoito, naturavelmente». «O' burro. Fica zero» O povo estourava de riso, e Lauro com elle...

Depois vinham os trabalhos. Não gostava. O arame, que caceteação! O trapezio, maçante... Mas gostava dos cavallos porque reappareciam com elles o palhaço e o Tony. Oh! Como era bom quando havia Tony! A gente estava distrahida e de repente plaf! Que foi? O Tony que cahiu! E cada tombo...

No melhor da festa apparecia um idiota com uma taboleta: INTERVALLO. Era o desmancha prazeres da festa, e porisso tinha-lhe odio.

Todos saiam. Ficava só a mulherada. Lauro cochilava então e ás vezes dormia, recostado na taboa dura. Ao termo d'um quarto d'hora voltavam todos, e o papae trazia embrulho de doces, empadas, pasteis...

A pantomima! Era o melhor. «Salteadores da Calabria», a «Estatua de carne...»

E a «Maria Borralheira»? Vira-a duas vezes, e nunca havia de esquecer aquelle desfile de figurões historicos, Garibaldi de muletas, o general Deodoro, Napoleão...

Nisto chegou Lauro á praça onde zumbia o circo. Lá estava a classica barraca, illuminada por dentro, deixando vêr desenhada no panno a silhueta dos espectadores repimpados nos bancos de cima.

Em redor, taboleiros com lanternas dubias a allumiarem as cocadas queimadas, os pés de moleque, as talhadinhas; e mulatas gordas, ao pé, vendendo; e bahús com pasteis, cestas de amendoim torrado, balaios de pinhão cozido. E, grulhando em torno, os pés-rapados de bolso vazio que namoram as cocadas engulindo em secco, e admiram com respeito os peitudos que chegam á bilheteria e malham na taboa um punhado de nickeis, pedindo com entono: Uma geral!

O encanto de tudo aquillo, porém, estava morto. Tanto é certo que a belleza das coisas não reside nellas, sinão na gente...


Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.