Cidades Mortas (3ª edição)/Grammatica viva

Grammatica viva



Itaóca é uma grande familia com presumpção a cidade, espremida entre montanhas, lá nos confins do Judas, precisamente no logar onde o demo perdeu as botas. Tão isolada vive do resto do mundo, que escapam á comprehensão dos forasteiros recem-chegados muitas palavras e locuções de uso regional, não só corrente como diario. Entre ellas esta, que seriamente impressionou um grammatico em transito por alli: Maria, dá cá o pito!

Usada em sentido pejorativo, para expressar decepção ou pouco caso, e applicada ao proprio grammatico mal descobriram que elle era apenas isso e não influencia politica como o suppunham, descreve-se aqui o facto que lhe deu origem. E pede-se perdão aos grammaticões de má morte pelo crime de introduzir a anecdota na tão sisuda quão circumspecta sciencia de torturar crianças e ensandecer adultos.

***

O reverendo tomou do estojo os velhos oculos de ouro, encavalgou-os no batatão nasal, e leu pausadamente a carta do compadre, que dava noticias, pedia-as, e communicava a proxima «ida para ahi do doutor Emmerencio do Val, nosso ex-ministro em Vienna d'Austria, homem de muito saber e distincção de maneiras, um desses diplomatas á antiga, como já os não ha nesta republica que etc. etc.» em viagem de recreio pelo interior a matar saudades do paiz.

O reverendo coçou o toitiço com dedos sornas, e releu a carta demorando o pensamento nas palavras que pintavam o alto figurão itinerante em via de honrar-lhe casa com sua nobre presença.

Verdade é que dispensava tal honraria, boa sécca á pacatez do seu viver abbacial, repartido entre missinhas de cinco mil réis (mais um frango), cachimbadas de muito bom fumo de corda e os pitéos (sinão ainda a ternura, como propalavam más linguas) da sua optima caseira e afilhada, a Maria Prequeté. Culpa toda sua, aliás. Quem the mandára a elle possuir a melhor casa de Itaóca e ser, modestia á parte, um homem de luzes notorias, autor de varios acrosticos em latim?

Já d'outra feita hospedára um eloquente inspector agricola e, logo depois, o tal sabio que colleccionava pedrinhas — grande falta de serviço! Um diplomata agora... Ahn! A coisa variava ...

Que viesse, respondeu ao compadre, mas que não esperasse encontrar na roça desses «confortos e excellencias de vida que é d'habito nas grandes terras».

Escripta a resposta, foi o reverendo á cozinha conferenciar com a caseira ácerca da hospedagem, e longamente confabularam sobre que pato seria sacrificado (si o patão de peito branco ou aquelle mais novo, com que a viuva do João da Bichas lhe pagára a missa, a gatuna!); sobre a toalha de mesa e a roupa de cama; sobre o tratamento a dispensar — V. Excia., V. Senhoria ou V. Diplomacia... Após longo bate-bocca, salpicado de injurias em calão e algum latim, assentaram no pato da missa, na toalha de renda e no V. Excia.

Combinadas estas preliminares, uma nuvem de nostalgia ensombrou a cara nedia do reverendo. Os olhos penduraram-se-lhe no vago, saudosos, donde só desciam para envolver, com ternura viciosa, o velho pito de barro que lhe fumegava na mão.

Notou a Prequeté aquellas sombras, e:

— Acórda, boi sonso! A mó' que está hervado?...

O reverendo abriu-se. Era o pito. Eram já saudades do velho pito... Pois não ia privar-se desse amigo de tantos annos durante a estadia do «empata»? Era educado. Não queria impressionar mal um homem de rara distincção de maneiras. E o pito, si é bom, é tambem plebeu, e mais que plebeu, chulo.

Reconhecia-o, reconhecia-o...

Entretanto, tres, quatro dias — sabia lá a quantos iria a sécca? — de abstenção forçada, sem que a bocca sentisse o contacto bemaventurado do saboroso canudo amarello de sarro?... Doloroso....

E o reverendo sorveu com delicia uma baforada massiça. Tragou-a. Depois, recostada a cabeça no espaldar, semicerrados os olhos, semi-aberta a bocca, deixou-se fumegar gososamente como uma piúca de queimada. Coisas boas da vida!....

Mas que remedio? O homem fôra diplomata e em Vienna d'Austria! Confabulára com archiduques e cardeaes.... Homem de requintes!.. Era forçoso transigir com o pito, o rico pito, aquelle amor de pito... Sim, porque a dignidade do clero antes de tudo! Lá isso...

***

Dias depois nova carta annunciava que «o tal das Europas» em tal data repontaria por alli.

Grande alvoroço de saia e batina. A Prequeté arregaçou as mangas — braços a Machado de Assis tinha a morena! — e poz de pernas para o ar a casa. Varreu, esfregou, escovou tudo, demoliu teias de aranha, limpou o vidro do lampião, matou o pato e desfez com decoada cincoenta pingos de gemma d'ovo que constellavam a batina nova do padrinho.

— Arre! que até parece uma gemmada! reguingou, entre reprehensiva e caçoista. Depois, relanceando-lhe o olhar pelo alto da cabeça:

— Chi... A corôa está que é uma tapéra! — exclamou. E, expedita, zás, zás, dá-lhe uma alimpa de tesoura.

— E o breviario? — interpella de subito o padre.

Andava sumido ha tempos o raio do livro; procura que procura, descobrem-no, afinal, no quarto dos badulaques, feito calço d'uma commoda capenga. A Prequeté — maravilhosa caseira! — com uma dedada de unto põe-no escorreito e envernizadinho, a fingir com tanta perfeição uso diario que nem Deus desconfiaria da marosca.

— Que mais? — disse ao cabo, plantando-se á distancia para uma vista de conjuncto ao seu restaurado padrinho. E como d'alto abaixo tudo estivesse a contento:

— Está mesmo pshutt! concluiu, brejeira, borrifando-lhe por cima um chuvilho d'agua Florida para disfarçar o ranço...

Ficou o padre um amor de reverendo, liso e bem amanhado como um conego de oleographia. Elle proprio o reconheceu ao espelho, e, nadando nas delicias daquelle carinho sem par — e muito agradavel a Deus, pois não! — sorriu-se, babosamente, com a cara inteira:

— Esta diabinha!

***

A arrumação conclusa, da corôa do padre á cozinha, postou-se a Prequeté de vigia á janella, indagando os extremos da rua emquanto o reverendo, lindo como no dia da sua primeira missa, passeava pela saleta chupando as derradeiras cachimbadas do dia. Subito,

— «Evem» vindo o reis! — exclamou a atalaia.

O reverendo metteu o pito na gaveta, passou a mão no breviario e rumou para a porta da rua. Instantes depois defrontava com elle um cavalleiro. O padre correu a segurar-lhe a redea e o estribo.

— Queira apear-se V. Excia., que esta choupana é de V. Excia.. Sou o padre vigario de Itaóca, humilde servo de V. Excia.

O diplomata, como que resabiado com tão respeitosa acolhida, deixou-se descavalgar. Mas sem garbo, esquerdão e reles, como ahi um pulha qualquer. Entrou. Trocaram-se rapapés, palacianos da parte do reverendo, mal achavascados — quem o diria! — da parte do cortezão que conversára com archiduques e cardeaes. Houve etiquetas revividas, sempre claudicantes do lado diplomatico. Houve cerimonia.

Mas o doutor não era positivamente o que se esperava. Já no physico desilludia. Em vez d'uma figura fina, de mundano, sahira-lhes um magrella, de barba recrescida, roupa surrada, chambão e alvar. Emfim — pensou lá comsigo o reverendo — o habito não faz o monje. Quem sabe, sob estas apparencias vulgares, e talvez rebuscadas, não luz o espirito de um Talleyrand? ou as manhas d'um Metternich?

Foram para a mesa e no decurso do jantar accentuou-se a desillusão. O homem comia com a faca, baforava no copo, chupava os dentes... Um puro alarve!

O reverendo, observando-o por cima dos oculos, piscava para a caseira que, pela fresta da porta, torcia o nariz á pifia excellencia excursionista.

Ao trincar do pato, desastre. O doutor deixou cahir no chão um osso, que apanhou logo, muito encalistrado. Depois, ás voltas com uma asa do palmipede, falseou-lhe a faca, resultando espirrar-lhe á cara um chuvisco de arroz. A Prequeté por sua vez espirrou lá dentro uma risadinha de mófa, acompanhada de um mortificante — ché!...

O reverendo entrou-se de duvidas. Era lá possivel que o dr. Emmerencio do Val fosse um estupor daquelles?

A' sobremesa caiu a conversa sobre a politica e o doutor desmanchou-se em sandices graúdas. Emquanto asneava, o padre matutava lá comsigo:

— E eu com cerimonias, e eu com bobices, e eu querendo até privar-me do pito por amor dum Zé-faz-fôrmas destes! Fumo-lhes nas ventas, e já!

Nisto veiu o café. Emquanto o ingerem o doutor entra a discorrer de remedios, pharmacias e projectos de estabelecimento.

O reverendo, decifrando o enigma, deteve a chicara no ar.

— Mas, então, o senhor...

— Sou pharmaceutico, e venho estudar a localidade a ver se é possivel montar aqui uma botica. Portei em sua casa porque...

O padre mudou de cara.

— Então não é o dr. Emmerencio, o diplomata?

— Não tenho diploma, não, senhor, sou pratico...

O padre sorveu d'um trago o café e refloriu a cara num sorriso de beatitude; depois, desabotoando a batina, atirou com os pés para cima da mesa, expelliu um succulento arroto de bemaventurança e berrou para dentro:

— Maria, dá cá o pito!



Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.