Cidades Mortas (3ª edição)/De como quebrei a cabeça á mulher do Mello

De como quebrei a cabeça á
mulher do Mello



— Olha, esperam-te hoje em casa, para jantar.

— Impossivel. Não janto fóra.

— Abre uma excepção e vaé.

— Impossivel, já disse. Não insistas,

— Põe de lado a exquisitice e vae.

— Não é exquisitice, meu caro, é sybaritismo e prudencia. Tenho para mim que comer é uma das boas coisas da vida. Mas comer o que se quer, como se quer, quando se quer. Gósto, por exemplo, de lombo de porco, mas a meu modo, assado cá d'um geito que sei. Si o cômo fóra de casa nunca o tenho ao sabor do meu paladar.

Gósto ainda de comer quando tenho fome. Detesto o horario forçado, almoço ás onze, jantar ás seis, haja ou não appetite. Ora, a não ser em minha casa, onde não tenho horario, raramente o appetite coincidirá com o momento do brodio. Essa circumstancia alliada ao facto de ser forçado a comer o que está na mesa e não o que me pede a veneta, leva-me a recusar systematicamente convites para jantar.

— Mas, homem de Deus, para tudo ha remedio. Farás tu mesmo o cardapio, darás as receitas e sé se porá a mesa á voz do teu appetite.

— Não. Em tua casa são todos de taí modo amaveis que receio, jantando lá, não chegar á sobremesa sem commetter um homicidio.

— !!!

— Nunca te contei o meu rompimento com a familia do Mello? Eramos amicissimos de longos annos, e sel-o-iamos até hoje si não fôra a minha imprudencia acceitando um convite para lá jantar, em dia de annos de d. Vidóca. Mas commetti-a, e fui. Havia á mesa umas dez pessoas, todas intimas, e as filhas, os genros — um povaréo. D. Vidóca, como saves, é uma creatura excessivamente amavel e nesse dia excedeu-se. Serviu-me sôpa, ella propria, mas carregando a mão como si eu fôra um frade bôrra, Arrepiou-me aquele pantagruelismo brutal mas calei a exasperação, e ingeri com paciencia aquella maranha de fios amarellos boiantes num caldo unctuoso. Mal absorvera a ultima colherada a bôa senhora, sem consulta prévia, atucha feijão num prato e passa-m'o.

— Não, minha senhora, muito obrigado!

— Ora, coma! Deixe-se de historias. Coma feijão que isto dá sustancia.

Não houve escapatoria possivel, e tive que acceitar o truculento prato de caroços pretos, coisa que detesto. Olhei para aquella rodela escura, côr de chocolate, que se me esparramava pelo prato inteiro sem deixar transparecer uma nesga siquer da louça branca, enchi-me de resignação e emprehendi o trabalho de Hercules que era trasladar aquillo para o estomago. Mas o meu sangue começou a esquentar e o nó das coleras surdas subiu-me á garganta. Estava em meio da empreitada quando vi a excellente senhora dirigir para o meu prato um enorme naco de carne fisgado no garfo.

— Doutor, um pedacinho de carne assada?

Gaguejei, mal firme nas estribeiras:

— Mas, minha senhora, eu...

— Sempre com cerimonias! Olhe que aqui não se usa disso! Coma lá!

E soltou-me no prato o boi... Senti bagas de suor frio borbulharem-me da testa. O nó da garganta engrossou. Baixei a cabeça, resignado, e encetei silenciosamente a mastigação, matutando sobre o modo de dar cabo d'aquillo. Comer tudo era impossivel; deixar no prato, impolidez...

— Ágora um pouco de arroz!

Lancei um olhar facinoroso á santa creatura, que o interpretou erroneamente como de assentimento.

— Eu bem vi que estava querendo arroz.

— Impossivel, d. Vidóca! Peço-lhe perdão, mas estou satisfeito. Cômo pouco e o que tenho no prato janta-me por tres dias.

— Luxento! Coma lá!

E zás, uma, duas, tres colheradas d'uma vez! Escureceu-me a vista uma onda de sangue. Tive impetos de saltar pela janella. Contive-me, porém, e com a resignação d'um verdadeiro martyr recomecei a mastigar.

— Um pastelzinho, agora?

Era demais! A virtuosa criatura abusava da minha situação. Recuseilh'o desabridamente, aspero.

— Já sei porque não quer... E' que foram feitos por mim... Mas deixe estar...

— Dona Vidóca! Pelo amor de Deus! — gaguegei.

— Umzinho só! Para me dar opinião sobre o tempero da massa, sim? Apare lá estezinho, tostadinho, sim?

Conheces o meu genio, sabes com que facilidade saio fóra de mim e commetto as maiores loucuras. Esse estado de superexcitação nervosa preludia por um tremor na voz e um calor excessivo nas faces. Nauelle momento, sentindo os pródromos da erupção, entreguei-me a esforços sobre-humanos para conter a féra que móra em mim, e contive-a. Curvei de novo a cabeça e levei á bocca mais umas garfadas.

Aqui o Mello principia a trinchar um leitão.

Reflecti: se m'o offerecem, estouro.

E fiquei de sobreaviso, engatilhado para a revide.

Não tardou muito que d. Vidóca espetasse no garfo uma alentada costella e fizesse pontaria para o meu lado.

Ah! Perdi a cabeça!

Agarrei numa garrafa e abri a cabeça da santa criatura com uma mócada horrivel!

Nada mais me lembra. Ouvi um berro, um clamor. Senti o panico em redor de mim e corri para a rua como um ebrio. Foi quando...

Não concluiu o caso. O amigo abalára...






Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.