Cidades Mortas (3ª edição)/A poesia e o poeta

A poesia e o poeta

(Ricardo Gonçalves)


Na lama da estrada, ao pé da porteira, uma orla de pétalas côr de ouro — flores de ipê? — engrinaldam as pocinhas d'agua côr de telha.

Mas ao chape-chape do cavallo que se approxima, ó linda revoada de borboletas amarellas dentro de cujo arabescar eu passo!

Tontinhas!...

Como me veem afastar socegam, e uma a uma pousam de novo, asas a prumo, immoveis, como flores de ipê dispostas em grinalda.

A saudade commenta dentro em mim:

— Um soneto de Ricardo...

***

De bruços no remanso de um pôço, á sombra de ingazeiros por cuja galhaça pendem bainhas retorcidas — pelludos escrinios duma polpa que furtou á neve a côr e ao velludo o macio — contemplo um grupo de guarús que gyram resabiados em torno d'uma «vaquinha» de elytros verde gaio, que cahiu na agua e bóia pernejando.

Um João-bôbo espia-me de perto, inclinando a cabecita.

Rumoreja longe o rio, na corredeira.

Bisbilhos, cicios, tentativas de som grypham o silencio sombrio da grota.

E a saudade «pensa» dentro em mim:

— Versos de Ricardo...

***

Bordejando a ilha das Palmes desliza a canôa no berylo liquido da costeira.

Manuel rema á popa, Juvenal á prôa.

Como é loquaz o Manuel!

Não tem fim a historia da tintureira que embicheirou um dia lá pelas alturas da Moéla.

Afla o mar como um seio de menina agitado dos primeiros sustos de amor.

Está calmo, está macio.

Sopram brisas de sudoeste.

Duas gaivotas, immoveis, na lage do Major, longe, descansam juntinhas, como pombas...

Só uma nuvem no céo... e a diluir-se... estirada em frouxel de paina...

— As tainhas!

Vólto o rosto.

A boreste linguas de prata ás dezenas emergem do liquido, scintillam instantaneas á luz do sol, num salto, e caem de chapa na agua azul.

— Que lindo!

Não tarda muito, rebóla um bôto na esteira do peixe.

E outro bôto.

E outro!...

Somem-se as tainhas.

Somem-se os bôtos.

O mar fecha aos nossos olhos a chacina sangrenta que lhe vae no bojo.

Fementido!

Todo o plagios do céo por fóra, todo dramas de carnagem por dento...

— Manuel, Manuel, diz a minha saudade, está faltando aqui um companheiro, o Ricardo...

— O Ricardo Pequeno, da praia do Góes?

— Não, o outro, o grande — o Ricardito...

***

A casa onde móra aquella
Menina côr de açucena
E´ uma cazinha pequena,
Casa de porta e janella.

Ricardo mede versos na mezinha em desordem.

As janellas enquadram a paineira florescida do Minarete.

A espaços, uma flôr se destáca e cae, gyrante. Godofredo Rangel, ás voltas com a machina de café, resmunga contra o Antonio Nogueira. Não é que o patife passára a noite a lêr um Zola á luz azul da chamma do alcool, depois de consumido o ultimo côto de vela?

A-cá-son-de-mó-ra-qué...

— Não ha combustivel, senhor poeta!

— Accende estes «Dez Contos».

— Pegarão fogo?

— Experimenta. A-cá-son-de-mó..

E as flores, uma a uma, cahiam, gyrantes...

E as rimas, uma a uma, ageitavam-se no verso... E os contos, um a um, ardiam sob a cafeteira...

Passos na escada. Um grito:

— Ricardo! Rangel!

— Vé, Bompard! respondem de cimá.

Era o Candido que chegava, e o Raul, e o Arthur. A cainçalha integrava-se e a uma voz estrugia, num desafio á Pascacia, o nosso hymno de guerra:

Dé brin o dê bran
Cabussaran...

Mal agonizavam as ultimas notas do «hymno do Minarete», da mezinha em desordem evelou-se um novo:

A-cá-son-de-mó-ra-qué...

***

Porque nunca mais deixaram de se associar em meu espirito e em minha saudade, a Poesia e o Poeta, tal os conheci um dia, no Minarete — elle medindo versos na mezinha em desordem; ella a revelar-se nas flôres côr de rosa que aos beijos da brisa, cahiam, gyrantes, da nossa grande paíneira florescida...


Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.