Cidades Mortas (3ª edição)/O Resto de Onça

O «Resto de Onça»


— Leram o conto do Arthur Pecegueiro?

— O immortal?

— Sim.

— Perdemos alguma coisa?

— Não perderam coisa nenhuma; aquillo é maçador. Confesso que bocejei de preguiça ao primeiros periodos e, consoante um velho habito, passei-o á minha cozinheira, velha mulata sabidissima, parenta da cozinheira de Molière.

— Josepha, lê-me isto e bota opinião.

A excellente creatura lavou as munhecas, diminuiu o gaz do fogão, acavallou no nariz os oculos através de cujos vidros costuma coar-se-lhe para o cerebro todo o rodapé dos jornaes, e empecegueirou-se durante meia hora. Ao cabo veiu ter commigo.

— Prompto, sinhozinho, está lido.

— E que tal? Bom?

Josepha tem um maravilhoso paladar quituteiro. Seus tútús com torresmo, o picadinho que ella faz, as muquecas!... São purissimas obras de arte capazes de re-matar de inveja ao proprio Vatel si elle acaso resuscitasse. Pois bem: o mesmo genio que a Zepha demonstra na confeição de uma obra prima culinaria, demonstra-o no julgamento das coisas de literatura. Tem o faro que não falha do rato, o qual, entre cem queijos, róe sempre o melhor. Por essa razão, quando eu duvido de mim proprio, appello para o seu juizo instinctivo, e acato a sentença como emanada do cerebro da propria Minerva.

— Então, Zepha? — insisti.

Ella refranziu os labios num muxoxo.

— Não féde, nem cheira, disse, é virado de feijão velho mexido com farinha mal torrada. Falta sal, tem gordura demais — parece comida feita pelas alumnas de cozinha da Escola Normal, concluiu num sorriso de «grognard» da velha guarda ao ouvir falar em proesas de conscripto.

— Mas, Zepha, que diz o homem afinal de contas?

— Não diz nada, engrola, engrola, vae p'ra lá, vem p'ra cá, e a gente fica na mesma. E' dos taes perobinhas que outro dia mecê chamou... como é?... pici... pici

— ... cologos, Psychologos. Os homens dos estados d'alma. Como elles tem alma postiça, importada de França «ad usum» Binoculopolis, os estados por que passam taes almas, postos em letra de fôrma, são coisa pulha e maçadora até mais não poder. Penso como você, Josepha. Quero conto que conte coisas; conto de onde eu saia podendo contar a um amigo o que aconteceu, como o fulano morreu, si a menina casou, si o máo foi enforcado ou não. Contos, em summa, como os de Maupassant ou Kipling...

— Ou de seu Cornelio Pires...

— Perfeitamente, do Cornelio, do Arthur Azevedo, contos onde haja drama, comedia ou pelo menos uma anecdota original. Mas estas pretenciosas aguas panadas, este phantasiar por paginas a fio sem lance que arrepie o cabello ou repuxe musculos faciaes, esta gelatina insossa da Academia de Letras de Itaóca...

Josepha, quando lhe falam na Academia de Itaóca, regala-se toda, e toda se expande em risos. Ficou assim desde que leu a Condessa Felisberta e varias immortalices quejandas.

— E então, este sêo Arthur tambem é immortal, dos que escrevem homem sem h?

— E', Zepha, é immortal vitalicio, com patente e direito de podar os h h da lingua e comer os da sciencia — e — o que é peior — com privilegio de maçar a humanidade com sornices pacovias que só não engolem criaturas sãs como tu, toda paladar e sinceridade. Ahi fóra a turba, em vendo emanação de immortal, é como se chovessem perolas do céo — lambem beiços e unhas, esquecidas de que ha receitas para entrar nas Academias além de que tambem nellas se entra por baixo do panno...

***

E a conversa recaiu sobre contos. Disse um da roda:

— Contos andam ahi aos pontapés, a questão é saber apanhal-os. Não ha sujeito que não tenha na memoria uma duzia de arcabouços magnificos, aos quaes, para virarem obra d'arte, só falta o vestuario de fórma, bem cortado, bem cosido, com pronomes bem collocadinhos. Querem vocês a prova? Vou arrancar um ao primeiro conhecido que entrar.

E puzemo-nos de tocaia.

Não tardou muito, surge o Cesar.

— Viva! Fazia-te ainda no sertão, homem!

— Pois estou cá. Cheguei hontem, refeito, oxygenado, reverdecido de alma e corpo. Que delicia é o sertão!

— Muita caçada?

— Dez queixadas, tres antas... E, por falar, já ouviram vocês a historia do «Resto de Onça»?

— «Resto de Onça»?! exclamamos todos aparvalhados.

Cesar gosou o nosso espanto. Depois, narrou.

— Estavamos organizando uma batida ás antas. Quem dirigia a caçada era lá o meu capataz, Quim da Peroba, o mais terrivel caçador das redondezas. Quando é elle quem dirige o serviço a bicharia soffre destroço pela certa, tão habil é na escolha dos companheiros, dos cães e das disposições estrategicas.

— «Vae, dizia o Quim contando nos dedos, vae o Nico, vae o Peva, vae o «Resto de Onça»...

— «Resto de Onça»? exclamei eu, tão aparvalhado como vocês inda agora. — Que diabo de bicho é esse?

Quim sorriu e disse:

— «E' um pedaço de homem; um homem a quem a onça comeu uma parte e que continúa a viver com o resto do corpo. Pois assim mesmo ainda é um cuéra que eu não troco por tres sujeitos inteiros da cidade. Mecê vae ver.

De facto, vi. Organizado tudo, na vespera da caçada á tarde o primeiro a apresentar-se-me foi o «Resto de Onça».

— «Stardes».

Era um caboclo chupado, sem o braço direito, sem um olho, sem um pedaço de cara. Horrivel! Uma bochecha fôra lanhada e despegára com parte dos labios e o olho, de modo que aquillo por alli era uma só e pavorosa cicatriz repuxada em varias direcções. Entreabriu a camisa: no peito, a mamma esquerda arrancada a unhaços era outra horrivel cicatriz de arrepiar.

Pedi-lhe que me contasse a sua historia, e elle: «— Não vê que — foi dizendo — lá na fazenda do coronel Eusebio, na beira do sertão, havia onça que era um castigo. Foi preciso bater nellas de cachorrada e chumbo um anno inteiro para livrar o gado. O coronel, tanto lidou que venceu. As malhadas não mortas á bala afundaram para longe. Mas ficou uma. Era uma bella onça pintada, matreira como cachorro do mato. Tinha manhas de negro fujão. Nem mundéo, nem cachorro mestre, nem o Leopoldino Onceiro, que é um cabra macho para desilfudir uma bicha mesquinha, nunca puderam atinar com ella de geito a barrear a volta do apá com um lote de paula souza. Escapava sempre e de birra vinha pegar os porcos no chiqueiro.

Um dia — o coronel estava na mesa almoçando — rebentou um tumulto no chiqueirão de trás da casa. Corremos todos: estava a onça ferrada na mais bonita porca da fazenda, esbodegada com um munhecaço. Corre que corre, grita, atira: — ella escapuliu. O coronel virou bicho e jurou que era a ultima vez.

— «Ella volta, disse eu, ella não «deseste» da porca. O melhor é ficar um bom atirador de plantão, dia e noite.

— «Pois fica você.

Fiquei na tocaia, escondido de geito que a onça não pudesse desconfiar.

Varei a noite de olho acceso: nada.

Rompeu a manhã: nada.

Eu disse commigo:

— «Agora dou um pulo lá dentro, bebo o café e volto.

Fúi, enguli um cafézinho com mistura, depressa, depressa, mas quando voltei... «quedelle» a porca? A onça tinha-me logrado!...

O coronel quando soube bufou como queixada no mundéo.

— «Quim, disse elle, vá juntar gente e cachorrada. Bote um exercito aqui p'ra domingo e vamos picar de bala esta malvada. Quero ver o couro della aqui no chão, com seiscentos bilhões de diabos!

Eu sahi, corri a vizinhança e apalavrei para domingo tudo quanto era espingarda, foice e cachorro de cinco leguas de roda.

Chegado o dia, começou uma batida na ordem.

Tudo corria bem quando, de repente, du! áu! o meu Brinquinho — Conheci a voz — acuou primeiro de todos. E logo a cachorrada inteira, uns cincoenta — áu! áu! áu! — musica de arrepiar a gente. Ah, moço, que festa foi esse dia! A bicha de cada tapa moia um cão...

Ia parando na carreira, de tocaia atrás dos troncos e, mal o cachorro da frente a fronteava, baf! tripas de fóra! Um castigo!

Já levára um tiro, mas nem conta fez; e assim, fugindo, ia arrazando os onceiros.

Eu corria na frente, secco por ganhar a gloria da caçada, e por via disso me distanciei dos companheiros. De repente, sem ver nada, paf! um manotaço de unha na cara me pinchou de costas no chão, e senti um corpo cahir sentado em cima de mim. Ah, mundo! Que luta aquella! Eu c'os braços só defendia a cara, que se a onça me abocca, era o fim, e como a espingarda me ficasse debaixo do corpo, minha porfia era passar a unha n'ella.

O que me salvou foi a coragem do Brinquinho. Como os caçadores e os outros cães ainda não tivessem chegado, só elle me ajudava, latindo com desespero e ferrando o dente nos trazeiros da fera. Esta, a cada dentada, voltava-se para estapear o cachorro, que fugia — que fugia para atacar de novo logo que a onça virava a cara para mim.

Tudo isto que eu levo agora um tempão contando se passou num corisco de minuto. Lá em certo momento pude alcançar a faca — faquinha atôa de matar porco. Saquei a faca e casquei no pescoço da bicha. Quem disse enterrar? Vergou, a porquêra, como se fosse de lata, sem calar nem a pontinha! Vi-me perdido. «Férra, Brinquinho!» Aquella pessoa de quatro pés, com uma coragem louca, zás, outra dentada. A onça me folgou, e eu vi romper do mato o primeiro caçador. Era justamente o meu sogro.

— «Atira, nho Vadô!

Que atirar nada! O raio do maleiteiro ficou tão estuporado de me vêr na goela da onça, que estarreceu no logar.

— «Atira, nho Vadô!

Que, nada!...

Nisto houve geito de eu desentalar a espingarda e entrouxar o cano na goela do tigre. Estrondei o tiro e o bicho molleou de banda!...

Eu estava em pedaços, mas não sentia dôr nenhuma.

Só me lembro que, ainda no chão, puxei a espingarda de dentro da bocca da onça, virei o cano para o lado do meu sogro e sapequei nelle o segundo tiro, junto com um nome offensivo á defunta avó da minha mulher, Deus que me perdôe! De «reiva»... Depois veiu a dôr, e perdi os sentidos.

«O Resto de Onça» tomou folego.

— «E fiquei assim. O braço direito, sem carne, sem osso inteiro, foi preciso o medico cortar co'a serra; a cara e o peito foram sarando e fiquei assim, resto de onça, caco de gente, mas homem ainda para escorar o diabo!

***

— Então, que vos dizia eu? commentou, voltando-se para os companheiros, o que promettera extrahir um conto do primeiro conhecido á mão.

— Sim — retrucou um delles, ranzinza — mas não é bem um conto isso, é um caso, uma anecdota venatoria.

— Estás enganado, tem todas as qualidades de um conto e tem a principal: poder ser contado adeante de modo a interessar por um momento o auditorio.

Dê ao facto forma literaria, umas pitadas de descriptivo, pronomes p'r'alli, uns enfeites pimpões e prompto, vira conto dos authenticos, dos que não séccam a paciencia da humanidade com a archimaçadora psychologia do sr. Arthur Pecegueiro.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.