Cidades Mortas (3ª edição)/O espião allemão

O espião allemão



Abre a historia. Escuta. Só ouvirás rumores de guerra. Aquelle tropel desapoderado? E' a avalanche tartara. Tamerlão, o tigre coxo, derrama sobre a Persia legiões de féras — e leva a chacina a proporções inauditas. Seu capricho exige, em Ispahan, setenta mil cabeças humanas. Cada secção do exercito lhe ha de fornecer uma quota. Fartos, cançados de cortal-as, os soldados entram a adquiril-as, pagando a moeda de ouro cada uma. Era bom negocio: a offerta cresceu e o preço baixou meia moeda. Reunidas as setenta mil, Timur construiu torres de craneos em redor da cidade...

Ruge a sangueira além. E' em Dehli. Timur, tigre precavido, antes de bater-se com Mahomet IV delibera alliviar o exercito de cem mil prisioneiros incommodos. Solução magistral: degola-os...

A vaga prosegue, chega a Ancyra, esmaga Bajazeto, o grande sultão, e passa...

E acolá? Assyria. De Ninive, antro de leões famintos, descem para a carniçaria os reis flexeiros. Assurnizrhapal canta os proprios feitos em inscripções chegadas até nós: «Construí um muro diante das portas da cidade e forrei-o com a pelle dos chefes. A outros emparedei vivos, a outros empalei ao longo das muralhas. Fiz arrancar o couro, em minha presença, a innumeros e revesti paredes com esse couro semi-vivo. Reuni cabeças em fórma de corôas e os corpos entrelacei como guirlandas.»

A vida da Assyria é toda ella essa primorosa carnificina. Tuklatabazar, Assurbanipal, Nabuco, Sargão — todos os magarefes reaes viram a sua pericia em arrancar o couro a creaturas vivas cantada pelos poetas, commemorada pela architectura, admirada pelos posteros.

Timur passou. Passou a Assyria. Homens e coisas passam, mas a guerra fica.

E' a guerra uma permanente. O homem tem a vocação do morticinio. A arte apotheósa a carniça. Os poetas só ascendem ao epico si o bafio do sangue lhes fumega a inspiração. A belleza suprema é Achilles fendendo craneos, do frontal á nuca e a historia da humanidade é um systema potamographico de enxurros vermelhos, musicado pelos gemidos de dôr dos vencidos.

A guerra sempre!

Sempre guerras!

A guerra dos Sete Chefes, a guerra de Troia, as guerras punicas, as guerras de Roma — escravos, Numancia, mercenarios, Jugurtha, Mithridates, civil....

Depois, as guerras da invasão. As cruzadas, depois. E as guerras de religião. E as guerras dynasticas. A dos Cem Annos, a dos Trinta Annos, a guerra das Duas Rosas, a da suecessão da Hespanha. A guerra americana de Secessão. As napoleonicas, a russo-turca, a hispano-americana, a sino-japoneza, a franco-prussiana, a anglo-boer...

Depois, depois a Guerra Geral, a guerra do mundo contra a Allemanha. O rosario pára aqui. Mas como não pára o Ódio, e como a estupidez humana é irreductivel, o futuro verá tantas guerras quantas viu o passado.

Os grandes conductores de povos, Bismarck, Tisza, Clémenceau, Lloyd George: simples vontades de aço despidas de intelligencia, incapazes d'outra philosophia que não a das maxillas da hyena. Porque elles perpetúam a guerra, a humanidade os erige em semi-deuses. E com elles, poetas, pensadores, generaes, a industria, o commercio, a imprensa, a humanidade inteira — fóra as mães — zelam, como vestaes, para que se não extinga o fogo sagrado do Odio. Já para os deuses, de Jupiter a Jehovah, era a vingança o prazer suprema. Si sabe ella assim a paladares divinos, que admira saber tanto a paladares humanos, tão proximos ainda da pithecanthropia erecta donde sahiu o macaco glabro que se classificou as i proprio homo sapiens, ignorante de como o classificarão os cavallos?

Tambem nós por aqui temos tido nossas guerras. A grande, do Paraguay, onde chacinamos os selvagens do Chaco e as pequenas, internas — intestinaes. Temos a Guerra dos Mascates, onde torceu o pé um reinol e, consta, se arranhou um nativo. Temos a do Alecrim e da Mangerona, que não arranhou ninguem. Mas a guerra grande, a guerra-guerra, a guerra de encher o olho a Marte e berrar por poetas que a botem em Iliadas parnasianas com o retrato de Bellona no frontespicio, ah! temol-a em a nossa guerra contra a Allemanha. Essa nação formidavel, Assyria encouraçada de aço, machina monstruosa que apavorou o mundo, Golias de tremenda catadura temperado nas forjas de Krupp, viu saltar-lhe á frente David de iverapema em punho. E o caso foi que mais uma vez venceu David ao gigante!... Quem duvidar do milagre leia o «Lyrio» de Itaóca, semanario «literario, recreativo e commercial», numero extra, de oito paginas, commemorativo da assignatura do armisticio.

«Vencemos! O gigante jaz por terra, exangue. A esquadra dispersa, os exercitos rotos, a arrogancia abatida — a invencível Allemanha dobra os joelhos e entrega-nos a espada sangrenta! Honra aos gloriosos estadistas que nos impulsaram á lucta! Honra ao Exmo Dr w. B. Pereira Gomes, dignissimo Presidente da Republica, e honra sobretudo, ao inclito coronel José Pedro Teixeira Marcondes, honradissimo presidente do directorio pohitico de Itaóca e chefe honorario da heroica linha de tiro «Frei Gaspar da Madre de Deus!» Avê! Avê! Evohe!»

***

E' força que os novellistas fixem estes aspectos heroicos do paiz já que descuram delles Pombos e Capistranos sisudos.

A acção de Itaóca durante a guerra foi devéras notavel; mas como Itaóca não passa de humilde logarejo perdido no espinhaço da serra, sem bons correspondentes junto aos jornaes do Rio, toda a sua agitação mavortica permanecerá sem noticia si lhe não acode chronista fiel.

Itaóca tem, officialmente, cinco mil habitantes — estatistica feita a olho. O chefe da terra mandou carregar vinte por cento de «crescima» sobre o calculo do vigario, em virtude da velha rivalidade com Itapúca, cidade vizinha onde o olhometro municipal accusára quatro mil e quinhentas almas, afóra as penadas. Itaóca não se abaixa! Já sua philarmonica era a melhor, o jornal tinha mais estylo e o mercado mais verdura. Ficou mais populosa, tambem, depois do patriotico rescenceamento.

Itaóca é regida, politicamente, pelo coronel José Pedro, e intellectualmente pelo vigario, monsenhor Acacio da Silva, um homem que sabe tudo, desde latim até astronomia. Além deste luzeiro, ha outras possantes candeias em Itaóca: o juiz, velho bacharel pelo Pedro II, o Leão Lobo, mulatinho disfarçado, emerito em versos, charadas, enigmas e logogriphos. Ha ainda o Pimenta, secretario da Camara, major Ventania, veterano de Itararé, e outros, que leram o Rocambole a fio e assignam as folhas governistas.

Quando rebentou a guerra foi grande a emoção de Itaóca. Sensação de estupor. Mas o coronel expedito que era, sem vacillar um minuto convocou o directorio. Reunidos que foram os seus oito membros, o presidente expôz com palavras solemnissimas a gravidade do momento, e pediu alvitres. Pimenta tomou a palavra e propôz ficar-se o directorio em sessão permanente até o fim da guerra. Leão Lobo aventou a ídéa d'um comité de Salvação Publica, bem como a de um vereador sem pasta. Outros alvitres de primeirissima foram lembrados, mas só logrou approvação a idéa sensata do presidente: não fizerem coisa' nenhuma antes das outras municipalidades se manifestarem. Aguardariam os acontecimentos de olho ferrado nos jornaes e no patriotico presidente da Republica, a quem officiariam no mais alevantado estylo. Quanto á sessão permanente, achava isso uma gradde maçada.

Assim se fez e Itaóca, não podendo revelar genio criador, portou-se durante a guerra como a mais direitinha das Maria-vae-com-as-outras.

A primeira resultante da guerra foi, no paiz inteiro, o incremento das linhas de tiro. Itaóca não ficou atrás e deitou; tambem, o seu tirozinho. Que revolução não foi aquillo! Veiu instructor de fóra,e a coisa se fez por musica, com duzentos homens de effectivo — no papel. Effectivos, na realidade, eram apenas vinte. Os mais, homens de oitenta kilos, negociantes, fazendeiros, «gente grada», constituiam o «enchimento». Cooperavam com dinheiro e boa vontade, mas isso de exercicios, e gymnastiça, e tiro ao alvo: — «coisa de meninada». Apesar de apenas vinte, os rapagotes de perneira e chapeu á americana transformaram Itaóca em praça de guerra e varreram do coração das meninas todos os rivaes civis. Era de vel-os passar, garbosos, em marcha cadenciada, sob o corisco dos olhares languidos das Sinházinhas e Mariquitas janelleiras... Da pobre ralé de paletó sacco e palheta salvou-se um ou outro, de rubi no dedo. Venus sempre doidinha por Marte...

O armamento requisitado ao Ministerio da Guerra para o «Frei Gaspar», apesar de promettido, nunca chegou a Itaóca. Não obstante, exercitavam-se os voluntarios com uma Flaubert passarinheira do Pimenta. Aos sabbados, na séde da linha, compareciam os vinte heroicos atiradores e cada um dava seu tirozinho na lata de marmelada posta como alvo a vinte passos de distancia. A munição, porém, encareceu. As balas chegaram ao preço absurdo de cem réis por cabeça. Era um desperdicio gastar vinte cada semana para transformar lata velha em crivo. D'ahi veiu a grande idéa do major Ventania, commandante superior do «Frei Gaspar». Ponderou elle: alvo por alvo, tanto faz uma lata como um passarinho ora, mirando passarinhos, o atirador exercita-se da mesma maneira e sempre apanha um ou outro, com proveito duplo — do treino e do jantar. Sendo assim, não é mais logico aproveitarem-se as vinte balas semanaes no pomar, em caçada ás rolinhas, sabiás e sanhaços? Sensata que era a idéa, foi lógo posta em pratica, eo exercicio de tiro ficou reorganizado deste modo: cada domingo a Flaubert e vinte bajas eram entregues a dois voluntarios para caçarem onde lhes aprouvesse, sob a condição de repartirem a caça abatida com Ventania, pae da idéa mãe e muito guloso de arroz com passarinho. O major deu-lhes ainda um conselho de alta estrategia culinaria:

— Deem preferencia ás rolinhas: são mais carnudas que os sanhaços. Quanto aos sabiás, não me parece patriotico atirar nos rouxinóes de Gonçalves Dias — além de que a came não vale nada...

Este mirifico systema deu resultado triplice: desbaste nas laranjas e passarinhos pomareiros, muita precisão nos tiros dos rapazes e engorda do major. Dois não caberão, mas tres proveitos cabem nos saccos de Itaóca.

Apurado o seu apparelho de defeza, Itaóca dormiu socegada, á espera do inimigo. Viessem os barbaros germanicos e cairiam ceifados como rolinhas!

Não foram tolos. Não vieram. Não veiu um ublano siquer. Mas que a Allemanha pôz o seu olho de aguia em Itaóca não resta a menor duvida. Aqui muito á puridade o confessamos hoje: andaram espiões por lá!

— ???!!!!

— Sim, espiões, e dos peores. Andaram rondando a cidade, tomando plantas, tirando desenhos... Agora que se acabou a guerra, é permittido confessar o facto. Antes, não: porisso foi o segredo guardado religiosamente pelas autoridades locaes, pelo Leão Lobo e até pelas mulheres, tão palreiras. Nobilissimo povo de Itaóca! Quantos males não poupou ao paiz a tua sevéra discreção!...

Foi assim o caso. Leão Lobo safa da chimbica do costume em casa do Pimenta, ás onze da noite, quando, no largo da matriz, cruzou com um vulto desconhecido, ruivo de cabellos, maltrapilho, ar suspeitissimo e trouxa mais suspeita ainda sobraçada. Um prophetico relâmpago lucilou-lhe no cerebro: espião!. Sobresteve a alma aos pinotes, meditou três segundos e, como flecha do patriotismo despedida do arco da salvação publica, voou á casa do coronel José Pedro, já na paz dos lençóis áquell'hora. Leão Lobo bateu na vidraça freneticamente, três, quatro, cinco vezes. O coronel apareceu de chambre, gorro de lã e vela na mão — assustadíssimo.

— Que é lá?

— Espiões na terra, coronel!...

O pobre homem, mal acordado, estremeceu da base ao topo num dos maiores abalos de sua vida. Engasgou. Tartamudeou. E ao termo de uns segundos de tonteira pôde apenas murmurar em voz débil um imperceptível — «Entre!» imperceptivel. A porta abriu-se e Leão Lobo entrou.

— Com que então, espiões?... — disse o coronel, de olho arregalado.

— E dos peores! D´aquelles, coronel!...

A entonação do «d´aquelles» foi tão impressionadora que José Pedro se encostou á parede para conservar o aprumo coronelicio. A situação era de tal modo imprevista que o chefe não sabia como agir. Salvou-o Leão Lobo, affeito a lidar com charadas e logogriphicos dos mais crespos.

— Coragem, coronel! O momento não é para vacillações. Proponho que se desperte Ventania, que se mobilize o «Frei Gaspar», mais o destacamento policial, e que se monte guarda rigorosa ás sahidas da cidade durante o resto da noite. Amanhã, engaiola-se o melro!

— Bem ponderado! — exclamou o chefe, já mais seguro de si. — Vá você mesmo avisar os homens, emquanto eu...

Leão Lobo, sem esperar o fim, saiu aos pinotes, emquanto o coronel... emquanto o coronel voltava para a cama bastante apprhensivo.

— A gente tão «socegado» aqui e aquelle raio da Allemanha...

— Que foi? — indagou a mulher num bocejo.

— Espiões na terra, Candoca! Raios de espiões!

D. Candoca era um poço de bom senso. Disse apenas:

— O que me admira é vocês andarem pela cabeça daquelle bódinho e virando-se para o canto, adormeceu.

Leão Lobo acordou Ventania e o delegado. Horas depois o destacamento policial — um cabo e dois praças — mais o Tiro inteiro estavam em pé de guerra, com grande pavor de varias mulheres despenteadas que á janela, em camisa, punham as mãos, invocando as varias Nossas Senhoras adequadas ao lance — que aquilo era por certo o fim do mundo.

Não era noite de lua e como os lampiões não se accendessem havia mezes, por precaução contra os zeppelins mortíferos, o escuro era de breu. Mesmo assim ás apalpadelas as forças mobilizadas agiram com tal estratégia que, tres horas após o rebate, todas as saídas de Itaoca estavam hermeticamente sentinelladas. Numa delas ficou metade do «Frei Gaspar» com a Flaubert á frente. A outra metade conseguiu munir-se de uma velha garrucha de dois canos, carregada de chumbo Paula-Souza. A senha era impiedosa: não deixar passar viv'alma loura ou ruiva; em caso de resistência, fogo de barragem!

Não passou ninguém, afóra o Vinagre, cachorro veadeiro do Pimenta, o qual, como o seu dono, tinha inventerados habitos noturnos.

Amanheceu, emfim. Quando o astro rei, desdobrando as gazes da aurora, espargiu sobre o orbe os seus primeiros raios — como esplendidamente disse mais tarde o «Lyrio», historiando os factos — o major Ventania e o delegado iniciaram rigorosa pesquiza. Não foi preciso muito. O espião lá estava espichado no trottoir da egreja, ronflando com a cabeça apoiada na valise suspeita. (Adivinha-se aqui o estylo do «Pall-Mall-Lyrio», secção evidentemente influenciada pelo mirifico José Antonio José). O major Ventania não vacilla: mette dois dedos na bocca e tira um assobio agudissimo. Era o signal. Acodem logo o Tiro, mais o destacamento e a molecada. Solemnemente, então, num sherlockiano nhoc! agarram, em nome da lei, o perigosissimo agente do Kaiser.

Não ha memoria em Itaóca de lance mais repassado de dramaticidade. O patriotismo engasgava os pro-homens da terra, emmudecendo-os de sagrada emoção. Naquelle momento augusto salvava-se a Patria...

D'alli seguiu para a cadeia o infame dolichocephalo louro, e lá lhe montou guarda o Tiro. Ao detentor da Flaubert foi marcado o posto de maior responsabilidade, á porta do xadrez, com ordem de conserval-a engatilhada.

— Si o bicho tentar fugir, nada de mollezas, ordenou o major, fogo nelle — fogo de barragem!

A's dez estava tudo prompto para o interrogatorio. Mas aqui surgiu imprevista difficuldade: o espião teimava em não falar lingua de gente, e na terra, fóra os membros da colonia allemã, ninguem pescava um ya da odiosa lingua de Goethe. (A colonia allemã de Itaóca compunha-se do velho boticario Muller, estabelecido com pharmacia havia sessenta annos e uma criada, nascida em Blumenau).

— E agora? indagou a autoridade atarantada. Só se convidarmos o Muller para interprete.

Leão Lobo, com a sua clara visão de patriota exaltado, obtemperou incontinente:

— Não é possivel! Muller, como allemão, é suspeito. Pode alterar as respostas do agente. Proponho para «lingua» o monsenhor Accacio. Ha de saber allemão. Que é que elle não sabe? Até astronomia...

Era verdade. Monsenhor Accacio sabia tudo, dissertava de omnia res scibile, e em linguas vivas e mortas ganháva até D. Pedro II, que sabia quatorze.

Veiu o padre. Solemnemente, durante meia hora, bateu lingua com o espião, sob o olhar aparvalhado dos assistentes. Por fim,

— O allemão deste homem, concluiu sentenciosamente, é o allemão thuringio da baixa germanidade wallona da Silesia hannoveriana. Inintelligivel, portanto, a quem, como eu, só conhece o allemão grammatical da alta germanidade_dos Goethes, dos Lessings, dos Bergsons, dos Scheneider-Canets.

Os circumstantes pasmavam. Leão Lobo, enthusiasmado, cochichou para o Ventania:

— Eu não disse? E' um bicho!

Do pouco que o espião disséra, uma phrase, por muito repetida, gravou-se na memoria dos itaóquenses: ai eme inglix. Leão Lobo, affeito a lidar com os mais embaraçantes enigmas, tentou decifrar a phrase mysteriosa pelos processos charadisticos. Matutava: A, I, M, inglix; A, uma; I, uma; inglix, duas. Conceito? Engasgava no conceito. Estava nisso, quando o padre cortou o nó gordio:

Ai eme inglix, disse elle enrugando a testa, quer dizer, se me não falham as analogias glottologicas — « estou com fome ». E é natural. Já bateu meio dia. Deem-lhe, pois, almoço, e a mim licença para retirar-me, que estou de hora passada. E, pondo na cabeça o chapeu felpudo, saiu, solemne e sabio como a propria Minerva de batina e corôa. Leão Lobo namorou-o com o olhar até certa distancia.

— E' um báita, o nosso monsenhor... Pena viver neste fim de mundo. Si «actuasse» no Rio, que figurão!!...

***

Na impossibilidade de arrancar ao espião palavras intelligiveis resolveram envial-o á capital, de presente ao chefe de Policia. Iria escoltado por quatro heroicos voluntarios, tirados á sorte. Assim se fez, e no dia seguinte houve choradeira de mulheres e um discurso ao bóta-fóra. «Ide-vos, disse o orador official, a Patria exige de vós esse sacrificio. Não occultamos os perigos que correis. Este facinora poderá ser membro d'uma quadrilha de sicarios emboscada á beira da estrada. Podeis ser chacinados em massa, atacados a gazes lacrimogeneos, picotados pelas metralhadoras. Não importa! Ide-vos! A Patria exige o vosso sangue! Si cairdes, tereís como recompensa a sua gratidão eterna!»

—E o nome numa rua! aparteou o presidente da Camara.

Partiram os jovens heróes. Nunca se viu maior resignação ao sacrificio. Malbaratavam a vida como bravos de raça que eram, com antepassados na Guerra dos Mascates e na dos Emboadas.

Itaóca distava duas leguas da via ferrea e quarenta da capital. Os rapazes da escolta, apesar do quadro horrendo que o orador desenhára, arreceavam-se menos das emboscadas do inimigo, perigo um tanto problematico, que da viajada na via ferrea, vezeira em descarrilamentos, choques, telescopagens etc. Razão pela qual só empallideceram quando, na estação, ouviram o apito do trem mortifero. Antes do embarque radiographaram para Itaóca um despacho conciso mas eloquente: «Chegamos. O espião sempre na unha. Viva a Republica !»

Quando o Zé Burro, preto recadeiro que fazia carretos a pé a mil réis por legua, entregou o radiogramma ao major Ventania, o prefeito municipal commemorou a auspiciosa notícia mandando atochar uma duzia de foguetes — pela verba «soccorros publicos».

Nesse mesmo dia um grupo de exaltados promoveu uma grande manifestação patriotica. Falou na praça Sete de Setembro, com pathetica eloquencia, o inclito Leão Lobo, produzindo a mais vehemente oração de sua vida. «Alli, senhores disse elle apontando o trottoir d'ora avante historico, esteve deitado, fingindo que dormia, mas de facto espiando, um dos mais perigosos agentes da espionagem allemã. O scelerado não confessou, mas havia de confessar? Havia de denunciar os tenebrosos planos do Anti-Christo moderno, esse Kaiser assassino que está assassinando o mundo? A situação é gravissima, meus senhores! Itaóca está sobre um vulcão! Minada por todos os lados, a vida das nossas familias, a honra das nossas esposas, as mãozinhas das nossa creanças (sensação) correm o maior dos riscos! Lembrai-vos da Belgica, essa heroica crucificada na cruz de ferro do monstro kruppeano! (sensação) Senhores! Um desagravo se impõe. Precisamos manifestar a nossa repulsa perante a colônia alemã que, como vibora, alimentamos em nosso seio. Viva a França! Viva o Exmo. Dr. W. B. Pereira Gomes, nosso imperterrito presidente!»

Foi um delirio. Estrepitaram palmas, de envolta com imprecações de vingança — «Abaixo o Muller!» A onda popular, arrastada pelos impulsos do mais nobre patriotismo, despejou-se, como avalanche para os lados da velha botica. Leão Lobo á frente, com o patriotismo a cem gráos centigrados, desfechava vivas e morras truculentos. Viveu Clemenceau, Joffre, Foch; morreu Hindenburgo, Mackensen e Enver-Pachá. Os gavroches (está no «Lyrio») iam pelo caminho juntando pedras para o bombardeio da colônia. Defrontados que foram com a odiosa pharmacia, nela choveram projectis, entre apupos e assobios. Não ficou vidraça intacta. Um obuz, penetrando na prateleira das drogas, quebrou ali o vidro de sal-amargo. Também a ipéca e a tintura de iodo foram seriamente maltratadas. Mas a colônia allemã não deu mostras de si. Nem Müller nem a criada tiveram a coragem de mostrar a ponta do nariz. Covardes!

Os patriotas, cansados de apedrejar e desafiar, arrancaram a placa da botica e levaram-na à guisa de trophéo para a redação do «Lyrio», onde beberam várias garrafas de champanha (soda), sempre pela verba “socorros públicos”.

Na noite desse dia a esposa do coronel José Pedro teve uma violentissima cólica intestinal. Receitaram-lhe sal-amargo. Correu á botica uma negrinha, que voltou de mãos abanando.

— Seu Muller manda dizer que não tem; que os patriotas quebraram o vidro; que se serve sal de azedas, que tem.

A pobre da dona Candoca estorceu-se e...

— E' isto! — exclamou. — Aquele bódinho faz das suas e quem paga o pato é a pobre de mim. Ai, ai!...

— Mulher! — interveio o marido. — A Patria acima de tudo!

— Vocês são uns...

O chronista não ouviu o qualificativo de d. Candoca, mas a avaliar pela cara do marido, foi forte. O homem passou embezerrado o resto do dia.

A' noite chegou telegrama do chefe de polícia: “Verificamos prisioneiro subdito inglez. Receios complicação diplomática. Guardem reserva ridiculo incidente”.

O coronel José Pedro, desapontadissimo, esteve meia hora com o papelucho na mão, meditando. Depois reuniu os paredros e disse:

— Recebi telegramma confidencial do chefe. O caso é mais grave do que suppuz. Sou obrigado a guardar reserva. Altos segredos de Estado, vocês compreendem...

Apatetamento geral. Cada um comentou a seu modo o caso, e Leão Lobo, incontinenti, recorreu ao método charadístico: Telegramma, reserva, segredo de estado... Conceito? Engasgou no conceito. Era a segunda vez na semana que por falta de conceito perdia uma charada.

Assim permaneceram até a volta dos heroicos expedicionários. Que bela festa, a recepção! Foi a banda esperal-os à boca da cidade, e com ela os patriotas, o Tiro, as moças. Mal os avistaram, romperam em vivas. A banda malhou o hymno. Depois, a accolade («Lyrio»). A Mariquinhas Fagundes offereceu a cada um uma corôa de louros, feita com folhas de camelia. Ella mesma enfiou-as na Flaubert de um, na garrucha de outro, e nos guatambús chumbados dos restantes. Itaóca sabia ser grata para com os filhos heróes...

E não ficou nisso, note-se. Na primeira sessão da Camara foi proposta a cunhagem d'uma medalha commemorativa, tendo no verso um cambito de perneira esmagando uma vibora, e no anverso um distico em latim. E' verdade que cahiu este projecto. Mas vingou outro, mais economico; dar a quatro ruas o nome dos quatro heróes. D'ess'arte, e com muita justiça, pois não, as antigas ruas General Osorio, Duque de Caxias, Regente Feijó e Rio Branco, passaram a denominar-se, respectivamente, rua do Tenente Teixeira, rua Aristeu da Silva, rua José Joaquim de Souza e rua Aristogiton Pereira.

Mas Leão Lobo, o infatigavel patriota, não está contente com isso. Entre uma charada e outra perde-se o seu espirito em longos devaneios. Como não se abriu ainda com os amigos, ninguem sabe qual é a grande idéa que lá lhe germina sob o pixaim. Mas ha meios de devassar o pensamento secreto dos homens generosos que pronunciam cem vezes ao dia a palavra patria com P maiusculo. Elle — nobilissima criatura! — está amadurecendo a idéa de pedir a Clemenceau uma fita da Legião de Honra para a lapela da mui leal e invicta Itaóca. E vão ver que inda Clemenceau acaba fazendo-lhe a vontade e dando a elle, de lambujem, o Mérite Agricole. Merecidissimo, aliás, pois não! pois não!



FIM

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.