Cidades Mortas (3ª edição)/O romance do Chopim

O romance do Chopim


Ouviamos no cinema a valsa precursora da primeira fita quando penetrou na sala um casal estranho. Ella, feiarrona, na edade em que a natureza começa a recolher uma a uma todas as graças da mocidade. Tirara-lhe já a frescura da pelle e o viço da côr, deixando em troca as sardas e os primeiros pés de gallinha. Tirara-lhe tambem os flexuosos mencios do corpo, a garridice amavel, os tiques todos que, sommados, formam essa teia de seducção feminina onde se enreda o homem para proveito multiplicativo da especie. Quasi gorda, as linhas do rosto entravam a perder-se num empaste balofo. Certa pinta da face, mimo que aos dezoito annos inspiraria sonetos, virára verruga, com um torcicolado fio de cabello no pincaro. No nariz amarellecido cavalgava o pince-nez classico da professora que se preza.

Em materia de vestuario suas roupas escuriças, mais attentas á commodidade que á elegancia, denunciavam a transição da moda para o «fóra da moda».

Elle, bem mais moço, tinha um ar vexado e submisso de «coisa humana», em singular contraste com o ar de dona da companheira. O extranho do casal residía sobretudo nisso, no ar de cada um, senhoril do lado fraco, servil do lado forte. Inquilino e senhorio; quem manda e quem obedece; quem dá e quem recebe. Ella falava d'alto, sem volver o rosto. Elle ouvia de baixo, humilde, attento. Visivelmente um caso conjugal onde cantava a gallinha e o gallo chocava os pintos.

Meu amigo apontou o homem, com o beiço e murmurou:

— Um chopim.

— Chopim? repeti, interrogativamente, deante da palavra que ouvia pela primeira vez.

— Quer dizer, marido de professora. O povo alcunha-os assim, tirando analogias do passarinho preto que vive á custa do tico-tico, conheces?

Lembrei-me da scena tão commum em nossos campos, e puz-me a observar o casal com maior interesse, mormente depois de começada a fita, relissima salgalhada com o enfadonho adulteriozinho francez por base. Já elles não tiravam os olhos da tela, salvo o marido, que, para ouvir melhor algum commentario da esposa, não se limitava a dar-lhe ouvidos, dava-lhe olhos tambem.

— Os chopins, proseguiu o meu cicerone, são homens falhos, ratés da virilidade — a moral, está claro, que a outra lhes é indispensavel ao bom desempenho do cargo.

— Cargo?

— Cargo, sim. Elles desempenham o cargo importantissimo de maridos. Em troca disso as esposas ganham-lhes a vida, dirigem os negocios do casal, desempenhando todos os papeis attribuidos aos machos. Taes mulheres apenas fazem aos maridos a concessão suprema de engravidarem por obra delles, já que lhes é impossivel a revogação de certas leis naturaes.

Quando a mulher vae á escola fica o chopim em casa, cocando os filhos, arrumando a sala, ou mexendo a marmellada. Ha sempre para elles uma recommendaçãozinha á hora da sahida para a aula.

— As vidraças da frente estão muito feias. Você, hoje, quando as Moreiras sahirem, passe um panno com gesso. (As Moreiras são as vizinhas da frente).

O chopim acostuma-se á submissão e acaba usando em casa as saias velhas da mulher, para economia de calças.

— Pára ahi, homem de Deus! Do contrario acabas contando a historia de um que deu á luz um creanço!.....


A fita chegára ao fim. Surgiu o gallo vermelho do Pathé, boleou o pescoço num có-ri-có-có mudo e sumiu-se para dar logar ao reaccender das luzes.

A mulher ergueu-se, espannejou-se e sahiu, seguida pelo chopim solicito. Acompanhamol-os de perto, estudando o caso, e na rua, depois que os perdemos de vista, o meu amigo retomou o assumpto.

— Em materia de chopins conheço um caso typico, que segui desde os primordios reveladores da vocação. Havia na minha terra um menino, de nome Eduardinho Tavares. Filho de tio e sobrinha, nascera sem tára apparente, a não ser uma extrema dubiedade de caracter, uma tímidez de menina — de menina do tempo em que a timidez nas meninas era moda. Especie de creatura intermediaria entre os dois sexos.

Em creança brincava de boneca de preferencia ás nossas touradas, ao jogo dos «caviunas», ao «pegador». Em meninote, emquanto os da sua edade descadeiravam gatos pela rua, lia elle Paulo e Virginia, á sombra das mangueiras, chorando lagrimas sentidas nos lances lacrimogeneos.

Fomos collegas de escola, e lembro-me que um dia nos appareceu lá com um papagaio de missanga verde, obra sura.

Eu, estouvadão de marca, ri-me d'aquillo e escangalhei com a prenda, emquanto o maricas, abrindo uma bocarra de urutáo, rompia num choro descompassado, como choram mulheres. Irritado, dei-lhe valentes cachações. Não reagiu, acovardou-se, humilhou-se e acabou feito o meu carneirinho. Só procurava a mim dentre cem companheiros. Acamaradamo-nos dahi por deante, o que me não impediu de o fazer armazem de pancadas. Por qualquer coizinha, uma cacholeta. Elle ria-se, meigo, e cada vez mais me rentava. Puz-lhe o appellido de Maricota.

Não se zangou, gostou até, confessando achar mais graça nesse nome que no de Eduardo.

Hoje eu estudaría esse typo á luz da sciencia, como caso devéras notavel; naquelle tempo feliz de sadia ingenuidade limitava-me a tirar partido da sua submissão, transformando-o em peteca, em escravo, em coisa de que se põe e dispõe.

Fóra do collegio continuamos camaradas, de modo que pude acompanhal-o por um bom pedaço da vida afóra. Nunca perdeu a timidez donzellesca. Fugia ás meninas, sobretudo si eram romanticas, ou accentuadamente mulherís — o meu genero.

Fez-se misogyno.

Por essas alturas casei-me — casei-me com a moça mais feminina da epoca, uma romantica escapulida a Escrich, dessas que têm medo ás baratas e caem de fanico si um rato lhes corre pela sala — o meu genero, emfim.

Eduardo permaneceu solteiro, sempre ás sopas do pae até que este morreu e lhe deixou de herança uns predios, mais uns titulos. Sem tino commercial, passaram-lhe a perna, comeram-lhe casas e apolices e o pobre rapaz, quando abriu os olhos, estava a nenhum. Recorrendo a mim para um bom conselho de arrumação de vida, vi que não dava para coisa nenhuma e receitei-lhe casorio.

— Casa-te. Incapaz de acção como és, tua sahida unica está em tirar partido da tua qualidade de macho. Casa com moça rica, ou então com mulher trabalhadeira.

Nada valeu o conselho. Eduardo não tinha geito para requestar mãos femininas, quer bem anneladas, quer muito callejadas. Embaraçava-o a irreductivel timidez.

Mas o diabo as arma. Um bello dia appareceu na terra uma professora nova, mais ou menos ao molde desta de ha pouco. Typo de mulheraça mascula, angulosa, ar energico, autoritaria. Gostava de discutir politica, entendia de cavallos, lia jornaes, tinha opiniões sobre a secca do Ceará e o saneamento dos sertões. Apesar de bem conservada andava perto dos quarenta, não fazendo mysterio disso. Si não casara até então, não é que fosse infensa ao matrimonio: — não achara ainda o seu typo d'homem, dizia. Pois não é que o raio da pedagoga vê Eduardo e se engraça d'elle? Examina-o fulminantemente como quem examina um cavallo, mira-o d'alto abaixo, interpella-o, dá-lhe balanço ás idéas e aos sentimentos, pesa-lhe o valor monetario, pede-lhe, ou antes, toma-lhe a mão, leva-o á igreja e casa-o comsigo.

Foi um relampago tudo aquillo. Em tres tempos namorado, noivado, casado e mettido no gyneceu, Eduardo, quando abriu os olhos, estava chopim para o resto da vida.

D. Zenobia sabia avir-se com a vida. Ganhava-a folgadamente. Além da escola particular que dirigia, tinha a premio um pequeno capital que não cessava de crescer, collocado a quatro e cinco por cento ao mez sob garantias de toda a ordem. Casada, continuou á testa dos negocios; o marido, si apparecia nominalmente nalguma transacção, era pró-forma.

Encaramujado em casa da professora, Eduardinho foi sonegado ao mundo e o mundo acabou esquecendo Eduardinho.

Nunca mais o viram na rua ou nas festas sem ser pelo braço da mulher, na attitude encolhida daquelle chopim do cinema..

Um filho nasceu-lhes nesse entretempo e começa aqui o mais engraçado da comedia. A tantas, d. Zenobia deu de gabar as qualidades artisticas do esposo. Eduardo era um grande talento literario capaz de obras deveras notaveis.

— Vocês — dizia ella ás outras professoras do collegio — não sabem que thesouro perderam. Eduardo sahiu-me uma verdadeira revelação. E' dessas creaturas privilegiadas que possuem o dom divino da arte, mas que passam ás vezes a vida sem se revelarem a si proprios. Aquelles seus modos, aquella timidez: genio puro, minhas amigas! Vocês. hão de vel-o um dia apparecer como um meteoro, alcançar a gloria, cahir como um bolide dentro da Academia. Está escrevendo um romance que é o suquinho! Lindo, lindo!...

Esse romance levou mezes a compor-se.

Todos os dias, no quarto de hora de folga que reunia as professoras na saleta de espera, d. Zenobia dava noticias da obra.

— Está ficando que dá gosto! O capitulo acabado esta manhã parece uma coisa do outro mundo!

E desfiou o enredo. Era o caso d'um moço loucamente apaixonado por uma donzella de cabellos loiros e olhos azues. A primeira parte do romance ia toda na pintura desse amor, lindo como não havia outro. Puro poema em prosa.

E d. Zenobia revirava os olhos, em extase. As outras professoras acabaram por interessar-se a fundo pelo romance de Eduardo Nupcias fataes, o qual virara folhetim vocalizado aos pedacinhos, dia a dia, pela pittoresca d. Zenobia.

A noticia correu pela cidade e isso acabou rehabilitando Eduardo da sua fama de Zé-faz-fôrmas, pax-vobis e mais pechosos appellidos amaricados de que é fertil o povo. Como a gente se engana! diziam; parecia uma lesma de pernas, ninguem dava nada por elle e no entanto é um grande romancista!...

As professoras dávam á tréla e o enredo das Nupcias fataes corria de bocca em bocca pela cidade; os lances de effeito eram gabados com citação das melhores tiradas. O «Livro», noticiando o anniversario do moço, consagrou-o — «festejado homem de letras.»

D. Zenobia sabia dosar a narrativa de modo a manter as professoras suspensas nos lances mais commoventes. Houve um trecho que as pôz pallidas de espanto. Era assim: Lucia fôra pedida pelo rival de Lauro, o galã infeliz. O pae de Lucia e toda a familia queriam o casamento, porque o monstro era riquissimo, tinha casa em Paris, hiate de recreio e um titulo de conde promettido pelo Papa. Já o pobre do Lauro, coitado, para cumulo de desgraça, perdera urna demanda de herança e estava mais pobre que Job. As cartas em que elle contava isso a Lucia eram de chorar!... Todos contra o misero e tudo a favor do monstro. O pae fez uma scena horrivel:

— Antes ver-te morta do que ligada a esse miseravel... poeta!

E a coitadinha, alanceada no mais dolorido do coração, doida doida de amor, chorava noite e dia encerrada numa cella escura.

— Desgraçado! intervem com um nó na garganta a mais compassiva das professoras. Porque não ha de sahir a sorte grande para um desditoso destes? Peça ao seu marido d. Zenobia, que lhe faça sahir a sorte, sim?

— Não pode. Isso prejudicaria o desfecho do romance, e, demais, não é esthetico, respondeu preciosamente d: Zenobia.

E assim corria o tempo. O romance era á moda antiga; em varios volumes, systema Rocambole. Já tinha acontecido o diabo. A moça fugira de casa, raptada em noite de tempestade pelo cavalleiro gentil; mas o dinheiro do monstro vencia tudo: foram presos e encarcerados, ella no convento, elle num calabouço infecto. Mas quem pode vencer o amor? O cavalheiro conseguiu, illudindo os guardas, abrir um subterraneo que la ter ao convento. Que tarefa ingente! Como as professoras deliraram acompanhando a obra desesperada do homem - toupeira, escavando a terra humida com as unhas sangrentas! Afinal, venceu, alcançou o pavimento da cella onde Lucia chorava de amor e conseguiu falar-lhe. Que lance este, quando Lucia comprehende o estranho murmurio de voz subterranea que a chamava! Era a redempção, afinal! Entendem-se e combinam a fuga. Um barqueiro os operarios no lago, á meia noite etc. e tal,

D. Zenobia parava nos trechos mais empolgantes, deixando a assembléa ora em lagrimas, ora em arroubos de indizivel extase. A's vezes, quando estava de saia preta, em seus dias azedos, não adeantava a novella de um passo, siquer.

— Hoje, descanço. Eduardo está com um pouco de dôr de cabeça e não escreveu uma linha.

As professoras ficavam pensativas...

Afinal chegou o dia da fuga, ponto culminante da obra. D. Zenobia, perita na arte de armar effeitos, annunciou-o de vespera.

— E' amanhã, o grande dia!

— Mas escapam, d. Zenobia? — disse uma torturada do romantismo, com a mão no seio, arquejante.

— Não sei...

— Pelo amor de Deus, d. Zenobia! Eu não posso mais! Si o monstro ganha a partida mais esta vez, diga, que eu tiro umas ferias e vou para a roça esquecer este maldito romance qué já me está deixando hysterica.

— Paciencia, filha! Como eu posso saber o que lá se passa na imaginação do artista?

— Mas peça'a elle, peça por nós todas, que não deixe os espiões do monstro descobrirem os fugitivos desta vez. Pelo menos agora. Mais tarde vá, mas agora elles precisam uns mezes de recompensa. Arre, que tambem é demais...

No dia seguinte d. Zenobia appareceu sorridente. As professoras anciosas, ao vela assim, criaram alma nova.

— Então? exclamaram palpitantes.

D. Zenobia fez um muxoxo.

— Esperem lá. A coisa não vae a matar. Eduardo neste momento attinge o ponto culminante, o Itatiaia da obra. Deixei-o com o olhar em fogo — o fogo da inspiração! — os cabellos revoltos, a cabeça febril. E' o momento supremo do fiat! Toda obra depende deste fecho de abobada. Como a solução do caso vem das profundas do subconsciente esthetico, e inda não veiu até á hora de eu sahir, pedi-lhe que me communicasse o resultado pelo telephone. Esperemos...

As moças puzeram os olhos no céo e a mão no peito.

— Meu Deus! disse uma. Estou com o coração aos pinotes! Si Lauro é preso, si os emboscados o matam... O monstro é capaz de tudo!

Nisto vibrou a campanhinha do telephone. D. Zenobia piscou para as amigas estarrecidas e foi attender.

Ficaram todas no ar, immoveis, palpitantes, trocando olhares de interrogação emquanto no compartimento vizinho d. Zenobia conversa com o grande artista.

— Elle não pára de chorar, Zenobia. Ao meu ver é colica que elle tem. Desde que você sahiu está que é um berro só. Já fiz tudo, dei chá de herva-doce, dei banho quente — nada! Berra que nem um bezerro!

— Você já cantou o Guarany?

— Cantei tudo, o Guarany, o «Tutú já lá vem», o «Somos da patria a guarda»... Mas é peior.

Deu camomilla?

— A camomilla acabou. Quiz mandar a negrinha buscar um pacote na botica mas não achei o dinheiro...

— Lerdo! E aquelles quatrocentos réis que te dei hontem? Não sobrou metade?

— E'... é que... que eu comprei um maço de cigarros...

— Sempre o maldito vicio! Olhe, atrás do espelho, perto da saboneteira azul, está uma pratinha de quinhentos. Mande buscar a camomilla, mas no Ferreira, que a do Brandão não presta, é falsificada. Ferva uma pitada numa chicara d'agua e dê ás colherinhas. Dê tambem um clyster de polvilho. Mudou os panninhos?

— Trez vezes, já.

— Verde ?

— Verde carregado, como espinafre.

— Bem. Eu hoje volto mais cedo. Faça o que eu disse, e fique com elle na rede. Cante a area da Mignon, mas não berre como daquella vez, que assusta o menino. Em surdina, ouviu? Olhe: ponha já as fraldas sujas na barrela. Escute: veja si tem agua no bebedouro dos pintos. A marmellada? Ora bolas! Deixe isso para amanhã. Bom, até logo!

D. Zenobia largou o phone e voltou ás companheiras, que continuavam immoveis, suspensas.

— Estes artistas!... começou ella dizendo. Que é que vocês pensam que Lauro fez?

— Fugiu! disse uma.

— Deixou-se prender! aventou outra.

— Suicidou-se! declarou terceira.

— Ninguem adivinha. Lauro rompeu o pavimento, entrou na cella, e depois de uma grande scena resolveu metter-se frade!!...

Foi um «oh!» geral de desapontamento. Aquelle fim imprevisto decepcionára a todas. Protestaram, e d. Zenobia, condoída, voltou atrás:

— Estou brincando. Eduardo está hoje com uma dôr de cabeça damnada e eu o aconselhei a descançar um bocadinho. Fica para outro dia. Esperemos !...

As romanticas respiraram...


O romance do chopim tem hoje onze annos. Já é menino de escola. Chama-se Lauro e para rehabilitação do sexo barbado puxou o caracter da mãe.


Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.