Contos Tradicionaes do Povo Portuguez/A noiva do corvo


30. A NOIVA DO CORVO

Havia n’uma terra uma mulher, que tinha em sua companhia um corvo. Defronte d’ella moravam tres raparigas muito lindas. Como o corvo queria casar, mandou fallar á mais velha; respondeu-lhe que não, e o corvo raivoso anancou-lhe os olhos. Succedeu o mesmo com a segunda, até que a terceira sempre se sujeitou a casar com o corvo.

Tempos depois de já viverem na sua casa, a rapariga fallou a uma visinha no seu desgosto de estar casada com um corvo; a visinha aconselhou-lhe que lhe chammuscasse as pennas, porque podia ser obra de encantamento, e assim se quebraria. Quando á noite se foram os dois deitar, a rapariga chegou a candeia ás pennas do corvo; elle acordou logo, dando um grande berro:

— Ai, que me dobraste o meu encantamento! se me queres salvar, vae pôr-te áquella janella, e todos os passaros que vires, chama-os e pede-lhes assim: «Venham, passarinhos, venham despir-se para vestir el-rei que está nú.» De facto os passarinhos começaram a vir poisar na janella, e cada um deixava cair uma penna com que o corvo se foi cubrindo. Depois que ficou outra vez emplumado, o corvo bateu as azas, e desappareceu, dizendo para a mulher:


Agora se me quizeres tornar a vêr

Sapatos de ferro hasde romper.


A pobre rapariga ficou sosinha toda aquella noite, e logo que amanheceu foi comprar uns sapatos de ferro e metteu-se a correr o mundo. Tinha os sapatos quasi estragados de andar, quando encontrou um velho e lhe perguntou se não tinha visto um passaro. O velho respondeu:

— Eu venho da fonte da Madrepérola, onde estavam bastantes.

Ella continuou o seu caminho, e antes de chegar á fonte ali encontrou um corvo, que lhe disse:

— Olha, se quizeres salvar o rei, vae á fonte, onde estará uma lavadeira a lavar um vestido de pennas, tiralh’o e lava-o tu. Ao pé da fonte está uma casa, e um velho que a guarda; entra ahi, mata o velho para poderes quebrar todas as gaiolas e dar a liberdade aos passaros que elle tem lá presos.

A rapariga chegou á fonte, e fez como o corvo lhe tinha dito; lavou o vestido de pennas, e depois entrou na casa onde estava o velho, fingiu que via vir pelo mar uma linda embarcação; o velho chegou-se á janella e a rapariga pegou-lhe pelas pernas e deitou-o ao mar. Depois quebrou todas as gaiolas e os passaros em liberdade tornaram-se principes que estavam encantados, e entre elles estava o seu marido, que era rei e lhes pôz obrigação de a servirem toda a vida.

(Algarve.)


30. A noiva do corvo. — Nos Kalmükische Märchen, de Jülg, vem um conto do Passaro desposado, que se prende a este cyclo do amante tornado em porco ou em cavallo, em serpente ou em passaro. Nos Contos populares portuguezes, nº XXV e XXXIV, vem com os titulos O Carneirinho branco, e o Principe-sapo. Brueyre, nos Contes populaires de la Grande Bretagne, cita um conto da collecção de Campbell, em que o esposo é um corvo, e não um principe-sapo ou principe-serpente como no cyclo em geral, na Russia, Allemanha, Italia e França. (Vid. nota a pag. 58.) Estudaremos mais adiante ao annotar a redacção litteraria de Trancoso. No setimo conto mogol do Siddhi-Kûr, resumido por Gubernatis (Myth. zoologique, t. I, 140), é a gaiola que a desposada queima por conselho de uma bruxa. Nos mythos indianos o sol é um passaro, e a aurora a gaiola que arde. Nas Fiabe, Novelle e Racconti populari siciliani, de Pittré, ha o conto d'este cyclo, n.° CCLXXXI, Ré Cristallu. Consiglieri Pedroso colligiu duas versões portuguezas O Principe encantado, e o Talo de couve.