A Fome não tem Ouvidos
Caira um triste sabiá nas unhas de esfaimadissimo bichano. E gemendo de dor implorava:
— Felino de bote pronto e afiadas unhas, poupa-me! Repara que se me devoras cometes um crime de lesa-arte, pois darás cabo da garganta maravilhosa donde brotam as mais lindas canções da selva. Queres ouvir uma delas?
— Tenho fome! respondeu o gato.
— Queres ouvir uma canção que já enlevou as proprias pedras, que são surdas, e fez exclamar á bruta onça: "Este sabiá é a obra prima da natureza?"
— Tenho fome! repetiu o gato.
— Tens fome, bem vejo, mas isso não é razão para que destruas a maravilha da floresta, matando o tenor cujos trinos criam o extase na alma dos mais rudes bichos. Queres ouvir o gorgeio em lá-menor da minha ultima sinfonia ?
— Tenho fome! insistiu o gato. Sei que tudo é assim como dizes, mas tenho fome e acabou-se. Para satisfaze-la eu devoraria a propria musica, se ela me aparecesse encarnada em petisco. E isso, meu caro sabiá, porque a fome não tem ouvidos...
E comeu-o.
— Acho muito “literaria” esta fabula, vóvó! disse Narizinho. Não ha sabiá que fale em “felino de bote pronto”, nem em “crime de lesa-arte”, coisas que nem eu sei o que são. Ponha isso em literatura sem aspas.
Dona Benta explicou que “felino” é um adjetivo relacionado a gatos, onças, tigres, panteras e todos os mais “felideos”.
— E que é felidio?
— E’ a familia dos mamiferos carniceiros que os sabios chamam felis. Ha o felis catus, que é o gato. Ha o felis pardus, que é o leopardo. Ha o felis onça, que é a onça. Sçao os felinos.
— E crime de lesa-arte?
— E’ um crime que lesa ou prejudica a arte. Lesar significa prejudicar.
— E por que a senhora botou essas “literaturas” na fabula?
— Para que vocês me interpelassem e eu explicasse, e todos ficassem sabendo mais umas coisinhas...
— E a fome não tem ouvidos mesmo?
— Não tem, minha filha. Quando a fome aperta, o animal faminto come o que encontra. Ha casos até de pais que têm comido os filhos, por ocasião das grandes fomes da humanidade...
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.