O Olho do Dono

Um veadinho, fugindo aos caçadores, escondeu-se num estabulo. E pediu ás vacas que o não denunciassem, prometendo-lhes em troca do asilo mil coisas. As vacas mugiram que sim e o fugitivo agachou-se num cantinho.

Vieram á tarde os tratadores, com os feixes de capim e a cana picada. Encheram as manjedouras e sairam.

Veio. tambem, fiscalizar o serviço, o administrador da fazenda. Correu os olhos por tudo e foi-se.

O veadinho respirou.

— Vejo que este lugar é seguro, disse ele. Os homens entram e saem sem perceber coisa nenhuma.

Uma vaca, porém, o avisou:

— O perigo, meu caro, é que apareça por aqui o bicho de Cem-Olhos...

— Que? exclamou o veado. Ha disso?

— Ha, sim. Chama-se Dono. E’ um que quando aparece tudo vê, tudo descobre, desde o menor carrapato do nosso lombo até o sal que o tratador nos furta. Se ele vem, amigo, tu estás perdido!

Não demorou muito, surge Cem-Olhos. Vê aranhas no teto e interpela os homens da lida:

— Por que não tiram isso?

Vê um cocho rachado:

— Consertem este cocho.

— Vê o chão mal limpo:

— Vassoura, aqui!

E está claro que tambem viu as pontas do chifre do veadinho.

— Que historia é esta? Chifre de veado entre vacas?...

Aproximou-se e descobriu o misero.

— Uma espingarda! gritou — e era uma vez um veadinho.

O olho do dono engorda o cavalo.

— Malvado! exclamou Narizinho vermelha de colera. O veadinho que o bruto matou com certeza era o filhote de Bambi...

Emilia tambem se indignou.

— Ah, eu queria estar lá para dar um tiro de canhão na orelha desse homem! Matar o filhotinho de Bambi só porque ele se abrigou naquela porcaria de estabulo lá dele! Mas eu sei por que o bruto o matou...

— Por que foi, Emilia? quis saber dona Benta.

— Pela mesma razão que o urubú matou o sabiá: de inveja. Inveja da lindezinha do filho de Bambi. Devia ser um sujeito horrendamente feio, com cara de coruja seca, tres verrugas no nariz, orelhas de camelo do deserto, capenga, boca torta, pé espalhado, beiço rachado no meio, analfabeto, jacarépaguá. Feio assim, não aguentou ver lá na fazenda dele aquela belezinha de veado, um bambizinho de pêlo macio, olhos de criança inocente, pernas que eram quatro mimos, focinho côr de rosa Bela Helena... Inveja, inveja só. Eu só queria que...

— Pare, Emilia! disse dona Benta. A fabula não é para mostrar a feiura de um e a boniteza de outro — é só para frisar que quem é dono vê tudo, não deixa escapar coisa nenhuma.

Mas de nada adiantou a advertencia. Todos estavam indignados com o tal dono. E Emilia teve uma ideia. Berrou:

— Lincha! Lincha essa fabula indecente!

Os outros acompanharam-na:

— Lincha! Lincha!...

— E os tres lincharam a fabula, unico meio de dar cabo do matador do filhote de Bambi que estava dentro dela.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.