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MARÁNOS, ELEONOR E A SAUDADE




E Marános, ainda dominado
Pelo encanto d'aquela Aparição,
Ia andando...
 Era a hora em que se vê
Já mesmo atraz da luz a escuridão...
Quando profundas lagrimas a medo
Sobem á face extatica das cousas,
D'onde o vulto nocturno do Segredo
Dir-se-ha que se levanta e nos espreita...
Dirigia-se á Ermida da Senhora
Da Serra ... Ali passava as longas noites...
E ali, n'um aureo gesto, a luz da Aurora
Lhe vinha anunciar o nascimento
Do Sol-Menino aparecendo além
Do horizonte serrano todo em chamas,
Como se fôsse a Terra a sua mãe,
E o erguêsse nos braços, offertando-o
Ás florestas, aos passaros e ás nuvens!


E Marános seguia a meditar
N'um silêncio tão grande, que ele ouvia
O coração no peito palpitar.
Mas antes de chegar á bôa Ermida,
A noite surpreendêra-o no caminho...
Ao longe, uivavam lobos, e nas trevas
Voavam aguias em busca do seu ninho.
E a triste escuridão, que se elevava
Do mundo para o céu, na grande altura,
Como fumo subtil, se dissipava,
Entremostrando o riso das estrelas...
E o beijo da penumbra, desprendido
Dos teus lábios, ó noite, em altos sêrros
Esvoaça mais tenue e esclarecido
Que nos vales profundos e scismaticos...
E no brumoso longe oriental,
Um doce alvôr, um mystico desmaio,
Um silencio de luz espiritual,
Luminosa tristeza vae subindo...
E a sombra refugia-se medrosa
Nos recantos escuros ... e depois,
Vae descendo ... descendo a fragarosa
Encosta das quebradas e dos píncaros
Que erguem os altos cumes pelo céu,
Já tocados de branda e etérea graça...


E a Lua no Oriente amanheceu,
E anda o Luar, emfim, sobre a Montanha...
Dir-se-hia que do Azul a Via Lactea
Descêra ao mundo, e as almas caminhantes,
Que andam atravez d'ela, agora andavam
Por outeiros e pincaros, errantes...
E em tal estado de intima canção,
Caminhava Marános, que ele todo
Era uma fonte viva de emoção...
E parava a scismar, como suspenso...
E os sentidos perdia ... e assim perdidos
Contemplavam melhor esse Além-Mundo,
Onde as almas e os soes recemnascidos
Vivem na infancia eterna do Universo.
E viam Eleonor com as estrelas
Dançando e rindo na suprema Altura,
Junto á Fonte sagrada d'onde nasce
A Vida em onda imensa que murmura...
De fronte erguida, sobre a terra em pé,
Marános era o Sonho, pois de sonho
Eram seu sangue e carne; e mesmo até
Seus ossos eram feitos de remotos,
Fossilisados sonhos primitivos
Que ha milhares de seculos pairaram
Na penumbra dos bosques pensativos
E das negras cavernas habitadas...


Mas já se via a Ermida no seu alto,
Sósinha e triste e branca do luar...
E ao lumiar da porta, em sobresalto,
A Saudade esperava, olhando a noite...


E o Silencio, o Luar e a Solidão
Caminhavam ao lado de Marános...
Tres Phantasmas da Terra em oração,
Sob o espectro de Deus que abrange tudo...
Tres Phantasmas da Terra, tres Figuras
Do principio do Mundo, e que ainda existem
Só porque são phantasmas ... e ás escuras
Vagueiam na tristeza das Montanhas...
Logo a Saudade, ouvindo um som de passos
Que o silencio mais nitido tornava,
Correndo ao seu encontro, assim lhe disse:
—Ha quantas horas já que te esperava!—
E na face o beijou; e ao lado d'ele,
Dando-lhe a mão alvíssima e contente,
Alegre o acompanhava, conversando...


A Lua era já alta no Oriente.


E entrando na Capela abandonada,
Acenderam folhagens, urzes sêcas;
E o fumo azul e a chama alvoroçada
Irrompem, de mãos dadas, no ar bailando...
E sobre o altar, a Virgem parecia
Uma estatua animada ... e o fundo e triste
Silencio de abandono em que existia,
Era agora Marános e a Saudade...


Já um rumor longínquo de mudança
De tempo o céu turvava; e em torno á lua
Um desmaiado circulo de nevoa,
Em transparente palidez, fluctua...
E um vento repentino penetrou
Pelas frinchas da porta; e o fogo brando
Mysteriosamente se avivou
Ao contacto espectral d'aquele beijo...
E pela grande solidão noturna
E silencio da Serra, o vento alado
Sua voz oceânica em profundos
Murmurios derramava...
 E concentrado,
Com os olhos no fogo e com o olhar
Mais longe do que brilham as estrelas,
Marános se abysmava em seu scismar,
Esquecido e alheado de si mesmo...
E no peito do Esposo a branca fronte,
Descançava a Saudade; e ali ouvia
O rythmico bater d'um coração...


Lá fóra, n'um sussurro, já chovia...


E Marános scismava alegremente
Em seu poder humano de criar,
E no poder divino e transcendente
Que a Divindade tem de ser criada...
E n'um intimo encanto misterioso,
Alcançava a fronteira indefinida,
Onde o seu meio organico tocava
O fim espiritual da sua vida...
Era o Sêr de olhar duplo, contemplando
O Reino a que pertence e o seu etereo
Desdobramento animico; e por isso,
Olhava as duas faces do Mysterio...


E Marános sonhava e meditava,
E o fogo ardia alegre e crepitante;
E o vento, clamorando, desfiava
Seu rosario de lagrimas sem fim...
Lá fóra andava a Noite; e bem se ouviam
Seus passos de phantasma ... e a luz da Lua,
Por entre as grossas nuvens que se abriam,
Esboçava, na sombra, os altos píncaros.
E Marános ouvindo a voz do vento,
Com tristeza evocava o mar longinquo
Que surgia em seu vago pensamento,
Tempestuoso, intérmino e profundo...
Na sua propria alma, o mar brumoso
Em deliradas ondas ondulava,
Atirando ás estrelas, ancioso,
O beijo amargo e gélido da espuma!
Seu coração marítimo e serrano,
Era o Mar e a Montanha ... Dentro d'ele,
Tomavam, por milagre, aspecto humano
Ondas, outeiros, nuvens, tempestades...
E assim, intimamente, ele sentia
A intimidade cosmica que prende
A onda revolta, em febre de agonia,
Á terrea onda extatica e parada...
Porque a montanha, o mar, as altas nuvens
E tudo o que beijava o seu olhar,
Dentro de si ficava, recordando
Outro mundo girando em outro ar...
Via a ronda infinita das Imagens
Bailar em sua lucida memoria;
Eram rostos amados e paisagens,
Longes de nevoa e pertos de verdura...
Figura esvelta e linda que passou
Por ele, ha muito tempo ... e na sua alma
Um crepusculo eterno derramou
E nos seus olhos pôz eterna lagrima...
Era o scenario vivo do Passado;
O lar da infancia, as árvor's que o cercavam;
O adro da Egreja, ao longe, branqueado,
O vale, o rio, as ultimas montanhas...
A fonte que ele ouvia da sua cama
Cantar lá fóra, á noite, no silencio,
N'uma voz de quem sofre e de quem ama,
Um outro amôr e dôr, em outro mundo...
Eram aves e flôres, creaturas
Que o Tempo já levára e consumira...
Mas em formas anímicas e puras,
Perfumavam, cantavam e falavam
No seu divino Reino Espiritual...
E encantava Marános o segredo
D'essas intimas vidas que não morrem,
Sejam de flór ou de ave ou de arvoredo...


E viu que todo o corpo exterior,
Ao tocar a sua alma comovida,
Se espiritualisava; e, em puro amor,
Vivia a vida anímica e perfeita.
E viu que a Natureza, d'esta forma,
Em seu imaterial desdobramento,
Destróe o Espaço, o Tempo e tudo quanto
É dôr, fragilidade e sofrimento.


Hora eterna, divina, extraordinaria,
Em que o Homem gerou a Deus na Terra,
Como a terra fecunda e solitaria,
N'um impeto de amôr, gerou as arvores!
E o destino d'um homem não é mais
Do que ser atraído e dominado
Pelo seu Deus, divina Creatura
E seu divino Filho consagrado.
Tudo ao Filho obedece; o céu e o mundo.
Dão-lhe graças, cantando, os passarinhos!
O sol o glorifica e o mar profundo;
Falam d'Ele os Prophetas, no deserto...
Jesus para cumprir sua vontade,
Sobe o Calvario e n'uma cruz expira!
E sob a influencia astral da sua graça,
Orfeu tocou, sonhando, a eterna Lyra...
Ah, Deus é o Fim da Vida, porque Deus,
Entre os sêres animicos, é o Sêr!
E sobem até ele o mundo e os céus
Pelo Homem,—essa Escada de Jacob.
Ah, Deus é o Fim da Vida! E tudo quanto
Existe em pobre corpo sofredor,
Gravita em volta d'Ele e se aproxima
D'esse infinito e santo Resplendor,
D'esse Phantasma vivo e sempiterno
Que abrange a Imensidade tenebrosa:
Almas, estrelas, bosques, penedias
E o Sonho, branda nevoa misteriosa...


E Marános vivia n'esse além
Do Mundo, porque o via ... Contemplar
Não é mais que adorar; e amar alguem
É ser a creatura bem amada.


E n'estes pensamentos transcendentes
Marános se embebia; e no seu peito
Descançava a Saudade a branca fronte
Com espiritual, divino geito...


E eis que surge Eleonor, tão alta e pura,
E tocada de sonho e eterea graça
Que, ao vê-la, a luz do sol se faz escura,
Tórna-se a noite clara, quando a vê...
E logo, assim falou para a Saudade:


«Quando a primeira vez eu te encontrei,
Bem longe ainda eras tu da claridade
Que envolve e transfigura a tua face...
Eras Menina e Flôr, de natureza
Fragil e dolorosa, bem distante
De mim; oh, bem distante da Beleza
Na viçosa e perpetua Primavera.
Mas a Dôr sublimou-te, e ergueu teu sêr
Á altura espiritual em que hoje vives.
A condição que tinhas de mulher,
Divinisou-se; és Deusa e eu te bemdigo...


«Por ti, o sol regressa ao berço de oiro;
Por ti, volta a ser agua murmurosa
Agua que um raio a arder evaporou...
Por ti, se faz botão a murcha rosa;
Por ti, o grande roble secular
Volta á semente humilde e pequenina;
Por ti, a luz do sol se faz luar
E o nosso olhar, caindo, se faz lagrima...
Por ti, os passarinhos batem a aza
Em busca do seu par e do seu ninho!
E ao teu sôpro de zephyro se abrasa
Tudo o que a morte apaga: estrela ou flôr.
Por ti, a alma remota da Paisagem
Se aproxima de nós, á luz da lua;
Por ti, a fonte seca da estiagem,
Evoca a nevoa escura, e logo canta!
Por ti, em nossos olhos sempre ficam
As passageiras lagrimas caidas;
Por ti, na terra, as almas comunicam,
Por ti, no espaço, os astros se contemplam.
És a Perpetuação, a Eternidade...»


E depois, dirigindo-se a Marános
E mostrando-lhe o vulto da Saudade,
Tão vivo de presença e de alegria:


«Vêde o alto Luar que te acompanha;
Tua divina Esposa, irmã das nuvens
Que trazem para os sêrros da Montanha
Aparições phantasticas do mar...


«Mas eu vim para ser a bem amada
E jamais para amar ... Á tua frente,
Serei como a Columna incendiada
Ou a Nuvem, de pé, sobre o Deserto...»


E Marános, sentindo junto d'ele,
Seu Amor, sua Deusa e Creatura,
N'um alvoroço ouvira aquela voz
Que fala ao mesmo tempo que murmura!
E respondeu:


 «Além da minha vida
Existes; é de que tu me falas...
Mas na lua d'estes olhos definida,
Teu infinito sêr palpita e vive.
És aquela que eu amo, ou simplesmente
O amôr que sinto em mim? Tu és o Amor,
O amor divino, eterno, omnipotente,
Divindade criada no meu corpo!
Eu amo o Amôr, amando-te, o que é mais
Que amar somente alguem ... Eis a razão
Porque as tuas palavras comprehendo;
E, ouvindo-as, fico todo em oração...
Tu és o Amôr que eu amo; e foi por isso
Que segui tua voz, para que, um dia,
N'esta eleita Montanha consagrada,
Se realise a nova Profecia...


«Sim: eu avisto o Reino d'onde falas,
E o Reino a que pertenço; vejo bem
A terra onde meus pés criam raizes;
Mas egualmente vejo para além
Da terra e para além do azul dos céus,
Onde em sonho tu vives, e este corpo
Espiritualisado é o proprio Deus...
Onde meu sêr é já minha esperança,
Meu desejo vivente que parece
Um divino phantasma de mim próprio...
Tambem ao sol, de longe, lhe aparece
O seu espectro em flôr, que é a Primavera...


«Sei que nasces de mim ... Mas que me importa,
Se não sou como tu? Que serve á flôr
O bemdito perfume que ela exhala?
E á estrela de que serve o seu fulgor?...»


E Eleonor: «Um dia, saberás
Para que existo, sim. Ha de nascer
Um sol para os teus olhos simplesmente,
Que seja luz de luar e luz de vêr...

«Se é triste a minha voz nos teus ouvidos,
É que ela vem cansada da viagem
Que teve de fazer ... Os teus sentidos
Afastam-me de ti ... Ver uma cousa,
O que é, senão estar já longe d'ela?...
Para que tu me vejas, é preciso
Que me afaste de ti; também a estrela
Só pôde ser visível na distancia...


«Ha de nascer um sol para os teus olhos,
E não mais me verás; e n'esse dia
Existirás em mim, como eu existo
Em teu corpo de treva e de agonia...
Eis o grande segredo ... Mas ainda
Vives longe de mim, embora eu viva
Perto de ti; embora eu toque e beije
Tua herdada tristeza primitiva...
Por emquanto, quem sou? A creatura
Que te fala das nuvens ... Ainda paira,
Entre a minha chimerica Figura
E o teu Corpo mortal e transitorio,
Essa fria distancia indefinida
Que te inunda de magua e de anciedade...
Mas hei de ser, um dia, aquela vida
Que deixarás de vêr ... para a viver.»


E Marános scismava ... E nos seus olhos,
Negros corvos famintos de beleza,
Vôa uma nuvem, outra nuvem passa...
E n'uma voz nevoenta de tristeza:


«Para que foi, Amôr, que me empeceste,
Se não posso alcançar-te? Se és apenas
Uma nuvem altissima e celeste,
Sem amoroso pêso e fórma clara.
E para maior dôr, ao mesmo tempo,
Nos meus olhos és viva creatura...
Se abro os braços, és nuvem; se contemplo
És feminino corpo de ternura...»


E n'um grande desgôsto assim ficou
Marános ... E a Saudade piedosa
Beijou-lhe a fronte palida, sorrindo...
E Eleonor na penumbra radiosa,
Parecendo afastar-se, repetia:


«Ha de nascer um sol para os teus olhos
E será para ti o grande dia...
Mas segue, por emquanto, a minha sombra...»