XIII


DO PARASITISMO CAMUFLADO


No dia seguinte, quando penetrei no cottage de Mr. Slang, estava o meu homem a fazer recortes de jornaes.

— Não sabia que era colleccionador, Mr. Slang, disse-lhe á guisa de saudação.

O inglez respondeu-me apontando para varios scrap-books, gordos de tantos recortes grudados.

— Já formei sete volumes de 500 paginas cada um e estou no fim do oitavo. Duvido que haja um brasileiro possuidor de tantas notas sobre a vida do Brasil. Ha 40 annos que faço isto e não dou a minha collecção por dinheiro nenhum.

Dali a falar de jornaes foi um passo.

— Os jornaes brasileiros são muito curiosos, disse Mr. Slang. Nunca sabem o que dizem, mas reflectem como espelho a vida desta terra — para quem sabe lel-os. O meu systema não é colleccionar artigos. Recorto dos artigos o que me interessa: quatro, dez, ás vezes vinte linhas. Um artigo não passa de enchimento ou farofa para pôr em relevo uma idéa ou facto. Deito fóra o farello e guardo o facto ou a idéa. Hoje, por exemplo, estou a collar um facto bastante significativo, embora bem commum por aqui. Encontrei-o no relatorio do meu amigo Renato Jardim, o novo director da instrucção municipal: uma escola que existe e não existe.

Abri a boca.

— Como póde existir o que não existe, Mr. Slang? Parece-me um contrasenso.

— Uma "cosa brasileña", apenas. explicou elle, como ha "cosas de España"...

— Trata-se de...

— De uma escola profissional, e de nome pomposo — "Escola de Aperfeiçoamento", que custa ao thesouro 140 contos annuaes, que tem director, professores, empregados, etc., mas não tem casa, nem alumnos.

— Como? E' um absurdo!

— Existe só no orçamento, eis ahi.

— Assombroso!...

— O assombroso é que ha innumeros serviços assim, com existencia só no orçamento. O facto de não existir a escola accentúa apenas a deshonestidade, mas si ella existisse e não prestasse nenhum serviço estaria apparentemente justificada, embora désse na mesma. Ha numerosos serviços publicos desta ordem, carissimos, e da mais absoluta inocuidade. Existem apenas como ninho de parasitas.

Calei-me, reflectindo na verdade daquillo. Quantas repartições não conhecia eu, méros ninhos de parasitas!

— Olhe, disse Mr. Slang abrindo.o livro de "Cosas brasileñas", aqui está outra curiosidade. Uma villa bahiana cuja arrecadação municipal é de oito contos. Veja como se distribue a despesa.

Lancei os olhos para o recorte e assombrei-me. Os oito contos eram totalmente empregados na paga dos vencimentos do prefeito, dos fiscaes e agentes arrecadadores.

— Curioso, não? disse Mr. Slang a sorrir, no enlevo d'alma do colleccionador que exhibe um achado raro. Pois o municipalismo no Brasil, segundo as notas que tenho neste livro, quasi que se resume nisso. Em 90 % das Camaras a receita só dá para o pagamento do pessoal arrecadador. E' um dos mais bellos casos de parasitismo que possuo em minha collecção.

Mr. Slang, soube-o mais tarde, dedicava-se ao estudo do parasitismo humano e tinha idéas de publicar na Inglaterra um tratado a respeito. A razão da sua residencia no Brasil prendia-se a taes estudos.

— O campo cá é maravilhoso, disse-me certa vez. Em parte nenhuma do planeta o parasitismo se aperfeiçoou tanto, nem assumiu tão engenhosas fórmas. O Brasil póde gabar-se de um "record"...

Entristeci-me com o caso da escola. Por mais que procure desinteressar-me das nossas cousas, não o consigo, e isso me faz infeliz.

— Diga-me, Mr. Slang, que remedio a sua experiencia aconselha para esse mal?

Mr. Slang sorriu com malicia.

— Por que mal? Acho até um bem. Na minha idade o homem se torna sceptico e passa a vêr as coisas atravez de um prisma muito diverso do da mocidade. Eu hoje só quero o pittoresco. Olho tudo pelo prisma esthetico. Vejo paizagens humanas, nas quaes o parasitismo figura como como um elemento esthetico de muito valor. Si dependesse de mim, confesso que estimularia inda mais o parasitismo brasileiro, para ver até que ponto podem os agrupamentos humanos comportal-o. O parasitismo é a lei da humanidade. Uma creatura parasita outra...

O cynismo de Mr. Slang horrorizou-me. O Brasil para aquelle homem não passava de uma cobaia immensa...

— Mas si fosse na Inglaterra, que faria? interpellei-o.

— Bom, o caso ahi mudava. A Inglaterra é a Inglaterra e merece até dos inglezes scepticos o sacrificio dum ponto de vista puramente de arte. Si fosse o caso na Inglaterra, e a mim incumbisse destruir o parasitismo, a primeira coisa que eu, como governo, faria era constatar a existencia delle.

— Isso não é resposta, Mr. Slang. Si elle existisse, ipso facto teria a existencia constatada, com perdão do gallicismo.

— Engano. O parasitismo é machiavelico e vence como o camaleão, á custa de disfarçar-se e justificar-se como sendo coisa util. Temos, pois, antes de mais nada, de desmascaral-o, pôl-o a nú, provar que não passa de camouflage da utilidade. Exemplo. Ha aqui uma Bibliotheca Naval. Fui outro dia lá pela primeira vez, em consulta a um alfarrabio. Casarão enorme e vasio. Em vez de consulentes, empregados bocejantes, que matam o tempo a ouvirem o caruncho roer a livralhada. Pedi o livro, e emquanto esperava puz-me a observar aquelle curioso caso de parasitismo e a calcular o quanto já teria custado á nação.

— Mas a marinha precisa de uma bibliotheca, exclamei.

— Precisará apenas de livros e poderia tel-os na Bibliotheca Nacional, com enorme economia publica, não acha?

— Realmente...

— Agora pergunto eu, continuou Mr. Slang: e precisará o Brasil de marinha?

Arregalei os olhos.

— Hom'essa! Onde já se viu paiz sem marinha?

Mr. Slang ia muito longe em sua logica ingleza.

— Marinha é coisa que a Inglaterra creou por necessidade, e como veio por obra da necessidade, possue-a efficientissima, desempenhando uma missão defensiva real. Os outros paizes europeus imitaram-na, uns por puro espirito de imitação, outros para equilibrio de forças com vizinhos hostis. Isso lá. Mas aqui? Que é que significa a vossa marinha?

— Defesa das costas... suggeri.

— Mas será com meia duzia de calhambeques antiquados que se defendem umas costas tão largas como as do Brasil? Haverá algum almirante ou grumete que acredite na efficiencia defensiva da vossa marinha? Algum paiz do mundo por acaso a teme?

— Realmente, de um ponto de vista elevado assim é.

— Imagine agora todo esse dinheiro, os milhões de contos, que o Brasil despendeu até hoje na manutenção desse bric-a-brac de ferro, puro mostruario retrospectivo do navalismo dos ultimos decennios, imagine todo esse dinheiro invertido em obras uteis!

— E si se visse atacado por mar esse Brasil sem marinha, mas cheio de obras uteis?

— Succederia o mesmo que si fosse atacado tendo isso que lhe custou milhões e que ingenuamente considera marinha. Marinha é arma que ou é marinha, á ingleza, efficientissima, ou não é coisa nenhuma. E o mesmo direi do exercito.

— Que? Até o exercito, Mr. Slang?

— Exercito ou é ou não é. Efficiente, é. Inefficiente, não é. Pergunto: é o nosso exercito efficiente?

Fiquei embasbacado. Mr. Slang estava positivamente delirando .

— O dever de um paiz consiste, primeiro, em crear riquezas, desenvolver-se. Depois, cuidar da defesa dellas, mas a sério. Ter apparelhos de defesa para inglez vêr é camouflage de parasitismo das mais onerosas. Si não tem estradas, si não tem instrucção, si não tem riquezas, como enterrar-se de dividas para fingir que tem dentes?

— Fingir, Mr. Slang?

— Ponha a mão na consciencia, meu amigo, e responda-me se é assim ou não.

Calei-me.



Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.