XIV
DA CABEÇA E DA MÃO
Aquellas idéas de Mr. Slang sobre o parasitismo camuflado impressionaram-me profundamente. Cheguei a convencer-me de que o Brasil era a fragillima nação que é porque finge ser o paiz que não é.
— Mas acha, Mr. Slang, insisti, que a nossa marinha constitue um méro pretexto para gastar dinheiro?
— Que duvida! Si não tem efficiencia, de modo nenhum se justifica. E a sua inutilidade aggravou-se depois do apparecimento do avião. Correspondem hoje, os carissimos couraçados e cruzadores, ás velhas armaduras de aço. Emquanto os combates eram a arma branca, desempenhavam as armaduras o seu papel; mas logo que sobreveio a invenção da polvora, tornaram-se inuteis. Que diz o meu amigo de um exercito que hoje apparecesse em campo raso com os seus homens revestidos de pesadas armaduras medievaes?
— Que era um exercito de bobagem.
— E que diz da nação que gasta milhares de contos por anno para a conservação de umas armaduras marinhas, que já tiveram o seu tempo, mas de que se riem hoje os aviões? Que vale um dreadnougth? Para que conservar, á custa dos olhos da cara, custosissimos mostrengos que um pequeno avião manda ao fundo com a maior facilidade? Parasitismo, meu caro. O Estado é uma sociedade anonyma que explora o imposto e impõe-se aos povos á força de dar-se como necessario. Exercito, marinha e todas as mais creações do Estado só existem para justificar a extorsão de impostos e a manutenção de um bando immenso de parasitas. aqui e em toda a parte.
— Que absurdo, Mr. Slang! exclamei horrorizado com o anarchismo daquellas idéas, admissivel num russo mas inconcebivel num britannico.
— Elle, porém, explicou-m'as de um modo muito claro.
— Si nenhum povo possuisse exercito e marinha, que succederia?
— Ficavam indefesos...
— ... e simultaneamente inoffensivos. Consequencia logica: desapparecimento da guerra no mundo. Um bem, pois. E si constituiria um bem a extincção dos exercitos e das marinhas, quer isso dizer que a existencia delles é um mal.
— Theoricamente está certo, Mr. Slang. Mas seria necessario que todos os povos os supprimissem, o que não se dá. E si existem povos carniceiros como leões, que se armam até aos dentes, os outros se vêem forçados a fazer o mesmo.
— Sim, a armarem-se. Mas acha que é armar-se possuir carissimos apparelhos de defesa que não funccionam, por antiquados ou ineptos?
— Sua logica é terrivel, Mr. Slang, mas no caso brasileiro de nada vale. E' impossivel extinguir aqui os apparelhos de defesa inuteis e quasi sempre voltados contra o paiz. O povo brasileiro não o consentiria.
— Diga que o parasitismo camuflado não o consentiria. O pobre povo moureja na labuta pelo pão e só quer socego — socego que os apparelhos de defesa deste paiz, parece-me, não lhe permittiram ainda...
Ri-me das extravagancias de Mr. Slang. Estes inglezes teem cada uma... Mas concordei que a logica no Brasil não funcciona e que o parasitismo camuflado defende-se.
— Defende-se tanto, meu caro amigo, confirmou Mr. Slang, e aperfeiçoa-se tanto, que um dia os povos perdem a paciencia e espojam-se nas revoluções. E' o meio de que usam os cavallos para se libertarem dos parasitas.
— De que valem taes violencias? Desapparece uma forma de parasitismo e surge outra. O parasitismo é irreductivel...
— De facto assim tem sido, mas ha esperança de que um dia a humanidade possa ver-se livre dessa monstruosidade.
— Um dia!... exclamei num muxoxo de incredulidade.
Mr. Slang não se deu por vencido.
— Ha cem annos a escravidão parecia indestructivel. Hoje está quasi totalmente extincta. Eu creio no progresso moral do homem.
— E crê tambem no governo novo? perguntei, mudando subitamente de assumpto.
— Não ha governo novo, respondeu elle; o governo é uma continuidade ininterrupta. Ha homens novos á testa de uns tantos serviços que mudam de chefes de quatro em quatro annos.
— Mas crê nesses homens?
— Vejo em quasi todos elles uma qualidade muito séria — honestidade, o que já é muito em vista dos ultimos quatro annos de inversão moral que o paiz teve. Poderão limpar um bocado o sujissimo apparelho do Estado e fazer as coisas dentro da lei. Só.
— E acha pouco?
— Acho. A rigorosa applicação das leis brasileiras não trará nunca felicidade ao paiz. São leis-cipós, que enleiam os homens e lhes embaraçam os movimentos. Além disso, o regimen no Brasil é o innominavel disparate physiologico do corpo com tres cabeças autonomas — os tres poderes. A natureza não creou nada com tres cabeças.
— As minhocas teem duas.
— Duas apenas, e por isso, envergonhadas, mettem-se pela terra a dentro. A tricephalia é pura monstruosidade anatomica.
— Mas na Inglaterra tambem é assim.
— Engano. Na Inglaterra a cabeça é uma só, o Parlamento. O executivo é mão.
— E o judiciario?
— Um méro ajustador. Não é poder.
— Mas aqui, na realidade, a cabeça é o executivo. Dá na mesma.
— Não sei, exclamou Mr. Slang com certa bonhomia, si dará na mesma attribuir ao que é mão funcções de cerebro. A experiencia do passado quatriennio parece-me decisiva. A mão executiva pensou e agiu como cinco dedos...
— Já com o governo novo não se dará isso. E' mão limpa.
— Logo, o systema brasileiro está errado, concluiu Mr. Slang. Equivale a um jogo. Fica de quatro em quatro annos na dependencia da qualidade da mão que o empolga.
— De facto assim é. Mas o Congresso, como o temos, não merece ser o detentor da hegemonia. Si a mão do executivo não lhe puzer freios, não sabemos onde irá parar o paiz...
— Si o mandatario é incompetente o povo que lhe casse o mandato e escolha outro á altura da missão.
— Mas o nosso povo é incapaz de escolher. Não tem a cultura, nem a educação necessaria para escolher.
— Nesse caso, como vive o seu paiz sob forma de governo representativo? Não acha um monstruoso contrasenso?
Não tive por onde escapar. Mr. Slang levava-me á parede.
— A democracia, Mr. Slang! exclamei, fazendo phrases. As conquistas democraticas, a integração republicana da America...
Mas o inglez viu que eu brincava e mudou de assumpto.
— Já leu isto? perguntou-me, tirando da estante um pequeno livro escolar.
Corri os olhos pelo titulo: "Little Arthur' History of England", de Callcott.
— Neste livrinho, continuou elle, aprendi os rudimentos da formação do meu paiz. Aqui no capitulo VIII trata a autora, em linguagem ao alcance de qualquer menino, de como se formou o parlamento inglez. Cada cidade enviava ao rei tres ou quatro dos seus homens mais habeis, os quaes se reuniam numa casa dicta, em velho inglez, "Witenagemot", ou reunião de homens avisados. Reuniam-se e davam opinião sobre as leis que o rei queria fazer. E o povo só acceitava as leis dos reis quando seus homens as consentiam. Assim nasceu o parlamento e com esta funcção se tem conservado até hoje. Cá no Brasil as coisas parecem-me diversas. Ser representante do povo constitue apenas uma profissão altamente remunerada.
— Quer dizer...
— ... que essa funcção, como tudo mais, degenerou aqui em parasitismo.
— Pobre Brasil! exclamei compungido. Tudo nelle degenera...
— Até o xadrez. Passa de arena de lucta silenciosa a campo de debates, concluiu Mr. Slang, aquilotando philosophicamente o seu cachimbo de louro "Navy Cap."
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.