XV
DA IMPORTAÇÃO DE CEREBRO
Estavamos na sala de jantar quando sôou a campainha. A criada foi attender e logo voltou a dar conta do que era. Vinha sorridente, toda enlevada numa cesta de frutas artificiaes que trazia na mão.
— Está ahi um sujeito, disse ella a Mr. Slang, que vem offerecer esta "belleza" de frutas. Dez mil réis só...
Era evidente o interesse da criada em que o patrão adquirisse a "belleza".
— São comestiveis? perguntou-lhe Mr. Slang.
— São de cêra, respondeu a criada.
— Pois nesse caso devolva-as ao homem. As frutas teem para nós uma funcção muito séria, minha filha: serem comidas. E estas você mesma declara que são de cêra, substancia que nem as abelhas, suas fabricantes, me consta que comam.
A criada olhou-o com assombro. Não podia admittir que um homem tão rico recusasse ter á mesa de jantar aquelle primor de arte. Permaneceu irresoluta, como á espera de que Mr. Slang voltasse atrás na sua decisão. Mas Mr. Slang manteve-se firme.
— Leve-as ao homem, repetiu. São frutas para inglez vêr — e já as vi.
A criada foi-se e Mr. Slang, voltando-se para mim, disse:
— Bem curiosa esta sua patria, meu amigo. A terra dá tudo, já disse, creio que o Vaz Caminha. No entanto, para que houvesse frutas nas mesas, foi necessario que apparecessem por aqui uns slavos emigrados, fabricantes de frutas... artificiaes. Não ha casa burgueza onde não figurem, nos etagères, as taes frutas de cêra que tanto seduziram a minha bôa Dolly.
— E' que as casas burguezas não podem tel-as naturaes. Nossas frutas são caras como as joias e os livros. Muita praga, Mr. Slang. Paiz quente....
Mr. Slang sorriu e disse:
— Está ahi um juizo dos que chamo apressados. A praga é universal, mas o homem aprende a livrar-se della. Inda ha pouco li no Geographic Magazine um estudo sobre o combate a uma praga da canna no Haway, ilha quente. A victoria foi completa. E não precisamos ir muito longe. Em S. Paulo a campanha de Arthur Neiva contra a praga do café vae surprehendendo pelos resultados. Não é a praga que nos encarece a fruta, meu amigo, e sim a falta de transporte. O Brasil está parado porque ainda não se convenceu de que é tão absurdo um paiz sem vias de transporte como um corpo sem arterias e veias por onde circule o sangue.
— Realmente! E tanto que, mal sobrevem a arterio-esclerose, o organismo humano começa a decair...
— Exacto. Esclerose quer dizer decadencia das estradas de rodagem do sangue. Pois o Brasil tem o seu systema de arterias e veias completamente esclerosado. Chamam estradas aqui a sendas de boi e burro por onde o transporte de uma tonelada de carga se faz pelo mesmo processo, com a mesma lentidão e preço de seculos atrás. Isso torna o lucro do productor praticamente igual a zero e eleva o preço de venda dos productos a niveis fantasticos.
— Mas o remedio, Mr. Slang? perguntei.
— Difficilimo, respondeu elle. Remedios para tudo neste paiz só vejo os indirectos.
Admirei-me da resposta. O remedio contra a má estrada sempre me pareceu a bôa estrada.
— Como, Mr. Slang? O remedio contra a má estrada ou a ausencia dellas é directissimo, é estrada!...
— Parece... respondeu o inglez. Si assim fosse, o problema seria dos mais simples e já estaria resolvido. O remedio é, como eu disse, indirecto. Para ter a rede de estradas que a sua economia está pedindo, só possue o Brasil um meio: importar cerebro.
Decididamente Mr. Slang extravagava.
— Importar cerebro?!... repeti, franzindo a testa. Não entendo...
— Sim. As nossas más estradas decorrem do máo cerebro que ha por aqui. Para tel-as boas está claro que antes de mais nada havemos de importar bom cerebro. Que cerebro temos aqui? O luso, o africo, o amerindio. São os brasileiros uma fusão de tres cerebros anti-estradeiros. As estradas de Portugal e suas colonias são deficientes ou más: as de Africa são trilhas e as dos amerindios eram picadas pelo seio das florestas. O brasileiro não possue, pois, a mentalidade estradeira, isto é, não reconhece, não admitte, não concebe que a estrada é tudo num paiz, mas absolutamente tudo! E' a instrucção, a riqueza, a defesa, a ordem, a lei, a policia, o progresso, a felicidade...
— A fruta barata...
— A fruta barata, sim, e baratos tambem a carne, os cereaes, a roupa e a casa. Ha dias li no "Today and Tomorrow" do immenso Henry Ford, um livro que está fazendo furor no mundo mas que vocês innocentemente ignoram, uma opinião sobre o Brasil. Diz elle: "For while Brazil takes up one fifteenth of the earth's surface and has extraordinarily rich natural resources, it has not had transport facilities for development. A country develops only according to the ease of transport, and most of Brazil has only six months of transport by motor because, during the other six months, the roads are too heavy for any car to force through." Vê? Ford tem a mentalidade dos povos estradeiros e sem nunca ter estado aqui comprehendeu o que pouquissimos brasileiros comprehendem.
— Não ha duvida. As affirmações de Henry Ford são categoricas. "Um pais só se desenvolve por meio da facilitação do transporte." E' isso mesmo. Mas o assombroso phenomeno norte americano explicar-se-á apenas pelo transporte?
— Passei o mez de outubro na America do Norte, respondeu Mr. Slang, e posso dizer que não sahi do meu automovel. Em quatro semanas percorri 24.000 kilometros, ou seja uma media de 800 por dia.. Para percorrer esta mesma distancia no Brasil, S. Paulo fóra, o brasileiro vê-se forçado ao dispendio de 666 dias!
— Que calculo extravagante é esse. Mr. Slang? Não estou entendendo.
— Muito simples. Quantos kilometros póde um homem viajar no Brasil, a cavallo, que é o meio de conducção possivel nesta terra?
— Seis leguas, sendo homem, resistente. Seis leguas por dia, durante 30 dias, valem por tour de force.
— Pois está ahi o meu calculo .O heróe que nesse andar quizesse percorrer cá os 24.000 kilometros que eu, commodamente e sem o menor cansaço, fiz em outubro nos Estados Unidos, teria de gramar 666 dias em lombo de matungo. Duvido que tal heróe supportasse a tortura...
Fiquei a reflectir nas carradas de razão que tinha o meu inglez. Mas a historia da importação de cerebro ainda me importunava os miolos.
— Está bem. Seu calculo está certo, Mr. Slang. Só não comprehendo o remedio: importação de cerebro como meio de ter estradas.
— Explico-me, respondeu elle. Por importação de cerebro entendo immigração, entrada de europeus. Noto que no Brasil só ha estradas em S. Paulo, Santa Catharina e num outro trecho onde penetrou cerebro europeu. E concluo dahi que, praticamente, o problema só se resolverá por essa forma indirecta.
— Mas S. Paulo cuida cada vez mais de estradas e não podemos attribuil-as ao europeu. Os autores desse movimento foram os paulistas.
— De facto, vejo os paulistas no leme da administração. Mas não contassem elles com a força propulsiva da população rural, já muito infiltrada de cerebro europeu, e estariam, como os mineiros, no carro de boi ainda.
— Minas tambem já começa a pensar em estradas.
— Começa... Levará um seculo começando. Sem importação de cerebro aquelle zebú não perde a giba.
— Acho que Mr. Slang tem razão, exclamei, ao recordar-me da campanha feita em S. Paulo contra as estradas de rodagem. Insultavam de "estradeiro" ao presidente que iniciou o movimento...
— Cerebro, meu caro. O Brasil tem que importar cerebro. Com este cerebro velho, cheio de teias de aranha e bolor, nada vae. No governo novo vejo um moço que me parece significar cerebro revitalizado, desse que o Brasil precisa..
— Sim. O pouco de cerebro que entrou no seu estado natal, Santa Catharina, já creou lá o systema de arterias e veias que as condições requeriam. O problema brasileiro se resume em eliminar da raça que povoa este territorio o peso retrogrado de certos elementos que a compõem.
— Enxertia...
— Sim. Enxertar cerebro novo no cerebro velho.
Nisto a criada entrou, ainda com as frutas artificiaes na mão. Vinha insistir com Mr. Slang para que adquirisse a obra prima.
Mr. Slang riu-se e murmurou para mim:
— Vê? A minha Dolly é como o Brasil. Tambem gosta de illusões. Vou ver se descubro algum cirurgião que lhe abra o craneo e metta dentro um pouco de cerebro novo.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.