VII


DA INDUSTRIA DA REPRESSÃO


Mas o barco deu volta e breve se sumiu por detrás da ilha. Desfez-se o lindo quadro e Mr. Slang poz pé na realidade, donde o tirára o momentaneo "castagnetto". Aproveitei o ensejo para interpellal-o:

— Eu queria, Mr. Slang, conhecer as suas idéas sobre a revolução. Quem já viveu entre nós quarenta annos deve ter idéas assentes a respeito.

— Mr. Slang respondeu-me com a fleugma de um naturalista de cerebro ordenado á ingleza:

— As revoluções brasileiras, disse elle, incluem-se no quadro geral das endemias que assolam o paiz. Temos a opilação e a malaria na gente rural, e já tivemos a febre amarella na gente urbana. A endemia revolucionaria é febre que dá na gente desgostosa, armada ou em situação de armar-se.

— Gente desgostosa? repeti, sem comprehender.

— Sim, gente revoltada contra a coisa unica que revolta o homem, a injustiça.

— Mas Mr. Slang já me deu como causa das revoluções a miseria...

— E que é a miseria sinão a consequencia ultima da injustiça distributiva de bens? A longa continuidade da injustiça leva o povo á miseria, e por fim a revoluções, ao molde da franceza de 89 ou da russa. Antes de chegar até lá, entretanto, e é este o caso do Brasil, provoca revoltas parciaes, sem forças para se alastrarem pelo paiz inteiro, e mais revoltas de grupos do que propriamente revoluções. Mas a origem é sempre a falta de justiça.

— Nesse caso o remedio contra os levantes periodicos não pode ser a repressão, adverti.

— A repressão, explicou Mr. Slang. vale apenas por cataplasma. Não cura. Não curou na Irlanda, não curou na Russia dos tzares. Não curou em parte nenhuma. Tenta combater uma febre do organismo, esquecida de que a febre é mero effeito de uma causa. Não deixa de ser contristadora esta generalizada inepcia de combater febres com emplastros, sem o menor exame das suas causas reaes. Vejo que bem merecem os homens as ironias do meu Bernard Shaw...

— Mas por que se generalizou no mundo o emprego da cataplasma repressiva? Ha de ter sua justificação.

— E tem. E' o meio pratico de evitar que se extingam os levantes e com elles a industria da repressão.

Olhei com espanto para Mr. Slang. Não o entendi.

— Sim, explicou elle, industria da repressão ou industria do legalismo, uma das mais rendosas que o homem ainda inventou. Encarta-se nas industrias da guerra. E' a que permitte ao "profiteur" maiores lucros, em troca de menos serviços, em menor espaço de tempo. E' a velha pilhagem dentro da lei e sem riscos de nenhuma especie.

— Industria criminosa, exclamei, tomado de ingenuo horror.

— Para o sociologo. Mas no mundo não vejo sociologos. Vejo lavradores, negociantes, industriaes, burocratas, militares, politicos. Quem os consultar sobre a repressão dos levantes pelas armas ouvirá, em todos os paizes, duas ordens de razões. A favor e exaltadissimas, nos que estão dentro da industria. Resignadas e perfeitamente sociologicas, nos que lhes soffrem os males. A consciencia do homem móra no bolso, eis tudo...

— Mas um governo legalmente constituido não póde deixar de reprimir levantes, aventurei eu.

— Evidentemente que não póde. Seria uma incoherencia que tendo criado a causa do levante, por meio dos seus actos de injustiça ou encampação de injustiça anterior (e incluo entre os actos de injustiça os actos de deshonestidade), não procure defender-se, defendendo-os. O reconhecimento do erro e a volta atrás só seriam concebiveis num governo justo; mas o governo justo não praticaria actos injustos, nem os encamparia, donde o afastar-se para muito longe a hypothese do reconhecimento do erro, isto é, do unico remedio verdadeiro contra o mal dos levantes.

— O seu raciocinio, Mr. Slang, leva a conclusões absurdas. Leva á conclusão de que os levantes não se reprimem nunca e perpetuam-se, o que não é facto. As revoluções terminam.

— A revolta armada contra a injustiça não terminou jámais na vida do homem sobre a terra. Interrompe-se, apenas, gangliona-se de armisticios, de apparentes submissões, de momentos de repouso. O estado revolucionario do mundo só cessou nos paizes que enthronizaram a justiça. Veja o caso brasileiro do Sul. Como a causa-injustiça persiste, a revolução é constante, apenas interrompida por pausas de repouso. Ninguem fez ainda a conta do que, desde o inicio da Republica, vem ella custando em vidas, destruição, lucros cessantes e miserias ao Brasil. Seria um calculo de arrepiar. Que teem feito as enormes sommas de dinheiro e de esforço despendidas na repressão? Fomentado o espirito de revolta, isso sim, preparado novos actos do mesmo drama. A revolução esteve, está e estará no Sul emquanto a arma erguida contra ella fôr a espada e não a balança da justiça. O filho ainda no berço herda a revolta de coração do pae morto na luta. Os annos passam. As crianças fazem-se homens e a revolução, apparentemente suffocada, resurge.

— Mas é mal da America Latina.

— Mal da iniquidade, apenas.

— Todas as republicas sul-americanas viveram assim.

— Muitas já encerraram esse cyclo. O Uruguay foi uma xarqueada de homens durante annos e annos. Hoje é um dos mais felizes e prosperos recantos do mundo. O mesmo se dá com a Argentina.

— E a que attribue Mr. Slang essa reviravolta?

— Não é preciso muita argucia para perceber que o fim do periodo revolucionario na Argentina e no Uruguay coincide com duas medidas de justiça: estabilização da moeda e voto secreto. Uma trouxe a justiça economica: direito de prosperar ininterruptamente a quem trabalha. Outra, a justiça social: direito do cidadão eleger de accordo com a sua consciencia. E o que a bruteza das armas não conseguiu em tragicos decennios de repressão, essas duas elementares medidas de justiça o conseguiram suave e instantaneamente.

— Admitto o voto secreto, mas vejo o reverso da medalha. Esse systema de voto destróe as élites.

Mr. Slang permittiu-se um sorrizosinho de malicia.

— Abusamos por aqui, meu caro, da palavra élite. Eu a interpreto como a nata dos valores moraes e mentaes do paiz e logicamente pergunto: encartar-se-á nesta definição a élite que entre nós domina?

Como eu vacillasse na resposta, Mr. Slang continuou:

— O Brasil possue a sua élite. Não ha leite, por magro que seja, que não dê creme sobrenadante. Mas será um creme naturalmente sobrenadante o grupo que aqui domina? Foi assim na Argentina, antes de Saenz Peña?

— A resposta é difficil, murmurei.

— Tem sido aqui uma selecção natural, a selecção dos valores? O facto de ser valor mental ou moral leva para cima? Vejo valores moraes e mentaes em cima, não porque sejam valores, mas pelos acasos da fluctuação. A regra, sob o regimen do voto a descoberto, é uma selecção artificial, muito ás avessas da natural e merecedora de adjectivos de jornal amarello. Nem é siquer uma selecção consentida. Na alma do homem que votou contra a sua consciencia subsiste um fundo de rancor. Foi victima de uma injustiça. E' um revoltado. Será um revoltoso si lhe calhar occasião.

— Ha o receio de que com o voto secreto as massas predominem. A maioria nunca vale a minoria.

— A mim tambem me parece que é assim e por isso condemno o voto secreto obrigatorio Em materia de voto, isto é, escolha, só póde valer a qualidade do eleitor. Que importa o numero? Voto obrigatorio traz o numero, com depreciação da qualidade. Mas voto secreto apenas, sem obrigatoriedade, traz selecção. Automaticamente afasta das urnas a massa ignara e attráe a élite consciente — o eleitor nato. O erro das democracias vem de admittir que o diploma de eleitor cria faculdade electiva. Admittamos Assis Brasil e o seu cosinheiro, ambos com diploma de eleitor. Serão eleitores naturaes ambos?

— Não, está claro. Eleitor nato, isto é consciencia e capacidade de escolha, só será o primeiro.

— Como então obrigar o cosinheiro a votar e a destruir assim o alto valor do voto consciente e medido de Assis Brasil? Muito hão de rir-se nossos netos das nossas tolices de hoje. Suffragio universal e voto obrigatorio serão motivos de gargalhadas estrondosas. No entanto...

— Fazem parte ainda dos programmas mais adeantados...

Mr. Slang assentou o binoculo para a bahia e poz a acompanhar um "ita' que entrava.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.