Antanho.


POR acaso topei um tomo do Wilhelm Meister desgarrado da estante ha annos.

Abro- o e leio uma nota a lapis, para mim saborosa como instantaneo photographico do passado. (Lembro-me: meu quartinho de estudante — que saudades! — vizinhava de outro, separado por tabique de pinho, empapelado, onde moravam dois individuos que nunca cheguei a ver). Diz a nota: "Este ultimo capitulo li-o durante meia hora sem conseguir comprehender coisa alguma. E' que os meus vizinhos conversam e por mais que eu faça é-me impossivel deixar de attender-lhes á parolagem. O velho (um delles é positivamente velho) perece-me homem vivido, de boas philosophias e de muito senso. Sabe coisas e fala com a calma e o socego dos experimentados. O outro, moço, ignorante e estouvado, concorda sempre, ri alvarmente e admira-se com espectaculosos — oh! oh! A conversa principiou tomando por thema o jantar. Foram esfolados ahi num fréje qualquer, onde, diz o velho, lhes deram dois peixinhos a 800 réis cada um, macarrão, lingua, e sobremesa. "O peixe estava sem sal", commenta o moço. "E a lingua dura", secunda o velho. "E a sopa salgada" continua o moço. “E a banana podre", conclue o velho, com uma risadinha pausada, á qual o moço casa a sua, estrondosa, caixeiral. Fez-se uma pausa longa de goso. Adivinhei-os immersos na delicia da vingança attica. Depois abordaram varios assumptos, com essa preguiça molle dos que jantaram e estão a cahir na beatitude soporosa da digestão. Desceram rio abaixo, de acontecimento em acontecimento, até alcançar o Visconde de Ouro Preto, que o velho mostrou conhecer a fundo, quasi intimamente. Classificou-o entre os homens funestos, dando razões, e o moço, depois de ouvil-as, bradou indignado:

— Inepto, inepto é o que elle era!

O velho entendia de nuanças.

— Não vou lá, não vou lá... Competentissimo, até; mas funesto, funesto. Da primeira vez que foi ministro, o caso de certa moça retida em carcere privado provocou um movimento popular; da segunda, sobreveio o desastre da tentativa de pagamento da divida externa por meio do café; da terceira deu-se o caso demagogico do imposto do vintem; da quarta rebentou a republica.

— Má raios! berrou o moço.

— Na vespera, proseguiu o velho, avisaram-no da conspirata, mas o Ouro: "Qual! Tenho confiança nelles, no Deodoro e no Floriano". No dia seguinte estava mettido em Sant'Anna..

— Piratas! exclamou, furioso, o moço.

— Quem, piratas?

— Todos elles, o Ouro, o Déo, o Floriano.

O velho desprezou o arroubo e veio atrás.

Falou das arruaças do vintem, narrando-as tão ao vivo que eu vi bondes de pernas ao ar, incendiados. E a serena palestra rememorativa proseguiu. Breve chegaram á França, deposição de Luiz Phillipe e subida de Napoleão III. Mas a palestra ia cochilando. O moço já não emittia apartes e o velho alongava as pausas. Falou ainda do filho do primeiro, um conde de Paris, que cahiu d'um carro, e não sei quê mais. Silencio. O velho imitou o conde, cahindo no somno. Ouço-lhe o roncar pausado... Tossiu agorinha. Quatro tossidazinhas delicadas e sonoras... Dormem os dois. Chama-se o velho são Macedo".

Esse momento da vida de dois desconhecidos fixou-o o lapis, através dum tabique, num livro de Goethe. Ahi ficou embalsamado durante annos. Vem agora para este livro e durará até que as traças roam o ultimo exemplar da edição...

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.