IV.


PREVIO EXAME LOCAL.


Gilliatt estava cercado de urgencias. O mais urgente era achar ancoradouro para a pança, e depois abrigo para si.

A Durande, estava mais carregada a bombordo que a estibordo, e por isso a roda da direita ficava mais elevada que a da esquerda.

Gilliatt subiu á caixa das rodas da direita. Dahi dominava a parte baixa dos bancos, e embora a rede de rochas alinhadas em angulos por traz das Douvres, fizesse muitos cotovellos, Gilliatt pôde estudar o plano geometrico do escolho.

Começou por ahi.

As Douvres, como indicámos, eram duas altas pilastras marcando a entrada estreita de uma viela de penedos perpendiculares na frente. Não é raro achar nas formações submarinhas primitivas, esses corredores singulares feitos como que a machado.

Aquelle, que era tortuoso, nunca estava a secco, mesmo nas marés baixas. Uma corrente agitada atravessava-o sempre. A impetuosidade do rodomoinho era boa ou má, segundo o rumo do vento reinante; ora quebrava a onda, e fazia-a cahir; ora exasperava-a. Este ultimo caso era o mais frequente; o obstaculo encolerisa a vaga eleva-a aos excessos; a espuma é a exageração da vaga.

O vento da tempestade, naquelles estrangulamentos entre duas rochas, soffre a mesma compressão e adquire a mesma malignidade. É a tempestade no estado de estranguria. O sopro immenso fica immenso, mas faz-se agudo. É ao mesmo tempo massa e dardo. Fura e esmaga. Imaginai o furacão fazendo-se vento coado.

As duas cadeias de rochedos, deixando entre si, essa especie de rua do mar, terminava em degráos mais baixos que as Douvres, gradualmente decrescentes, e mergulhavam juntas no mar a uma certa distancia. Havia ahi outra foz menos elevada que a das Douvres, porém mais estreita ainda e que era a entrada, a Este, daquella garganta. Advinhava-se que o duplo prolongamento das duas arestas de rocha continuava a rua debaixo da agua até o rochedo Homem collocado como uma cidadella quadrada na outra extremidade do escolho.

Nas marés baixas, e era nessa occasião que Gilliatt observava, as duas fileiras de bancos mostravam os seus dorsos, alguns a secco, todos visiveis, e coordenando-se sem interrupção.

O Homem limitava e resguardava no levante a massa inteira do escolho, que era limitado, ao poente, pelas duas Douvres.

Todo o escolho, visto a vôo de passaro, apresentava um rosario recurvado de rochedos, tendo em uma ponta as Douvres e na outra o Homem.

O escolho Douvres, visto em seu conjuncto, era apenas a immersão de duas gigantescas laminas de granito tocando-se quasi e cahindo verticalmente, como uma crista de montes que estão no fundo do oceano. Ha fora do abysmo essas exfoliações immensas. A lufada e a onda tinham recortado essa cristã como uma serra. Via-se apenas o cimo, era o escolho. O que a onda escondia devia ser enorme. A viela onde a tempestade tinha atirado a Durande, era o centro dessas duas laminas collossaes.

Essa viela, em zig-zag como o relampago, tinha quasi em todos os pontos a mesma largura. O oceano fel-a assim. O eterno tumulto produz suas regularidades estranhas. Sobe d’agua uma geometria.

De um cabo a outro da garganta, as duas muralhas da rocha faziam-se face paralellamente a uma distancia que a Durande media quasi com exactidão entre as duas Douvres; o esvasamento da pequena Douvre, recurvada e voltada, dera lugar ás caixas das rodas. Em qualquer outro lugar as caixas ficariam quebradas.

A dupla fachada interna do escolho era hedionda. Quando na exploração do deserto de agua chamado Oceano, chega-se ás cousas ignotas do mar, torna-se tudo surprehendente e disforme. Aquillo que Gilliatt, do alto do casco, podia vêr na garganta fazia horror. Ha muitas vezes nas gargantas graniticas do oceano uma estranha imagem permanente do naufragio. A garganta das rochas Douvres tinha a sua, que era assustadora. Os oxydos da rocha davam-lhes aqui e alli umas vermelhidões imitando placas de sangue coalhado. Era uma especie de transudação sangrenta de um matadouro. Havia um ar de açougue naquelles parceis. A rude pedra marinha, diversamente colorida, aqui pela decomposição dos amalgamas metalicos misturados á rocha, alli pelo bolor, ostentava vermelhidões hediondas, esverdeamentos suspeitos, despertando uma idéa de morte e de exterminio. Acreditava-se vêr uma parede ainda não enxuta do quarto de um assassinato. Dissera-se que eram aquelles os vestigios de um despedaçamento de homens; a rocha ingreme tinha um cunho de agonias accumuladas. Em certos lugares a carnagem parecia escorrer ainda, a muralha estava molhada e parecia impossivel apoiar o dedo sem tiral-o sangrento. Por toda a parte apparecia uma ferrugem de morticinio. Ao pé do duplo declivio paralello, esparso á flôr d’agua ou debaixo da vaga, ou a secco nas excavações, monstruosos seixos redondos, uns escarlates, outros negros ou roxos, tinham semelhanças de visceras; acreditava-se vêr pulmões frescos ou figados putridos. Dissera-se que alli se tinham esvasiado ventres de gigantes. Longos fios vermelhos, que se poderiam tomar por distillações funebres, riscavam o granito de alto a baixo.

Esses aspectos são frequentes nas cavernas do mar.