Aracy[1]
(A Minha Mãe)

Corre o mez de junho de 183...

A natureza se intumesce, bella e galante, ao começo da estação primaveril.

Um sol de fogo esbate sobre as aguas enfumaçadas do Rio Doce, que rolam, mugindo eternamente, sobre um alveo opulento de purissimas esmeraldas.

A’s margens do rio, na pequena abra de Cuieté, está um acampamento de Pojichás, indios de origem tapuya, pelo ramo degenerado dos Aymorés, e que naquella larga zona inda vagueiam.

E’ a epoca da pesca abundante, das festas da tribu, da celebração dos amores, pela fórmula singella do hymeneu primitivo.

As canôas selvagens (ubás) estão á banda, evitando os remansos formados aqui e alli, em redor dos cachopos coniculares e lodacentos, que irrompem, cobertos de espuma, pela gigantesca corrente do Tejo brasilico.

Margeiando a abra referida, se vêem labyrinthosas florestas que se prolongam com a grande caudal, e onde se ouvem constantemente o estrugir da anta e o uivo felino do nosso tigre, acoutados no tronco carcomido e espaçoso do carvalho secular.

Uma natural tapeçaria se extende de ramagem em ramagem, tecida, ora com os cipós verdoengos e enflorescidos da trepadeira sylvestre, ora com os caules musgosos dos timbós, que se entrelaçam pelos taquaraes estalejantes.

Vêem-se inclinados pela ribanceira escorregadia mil galhos arrebentados do tronco, que já não os póde supportar, tal a sua virencia. Adeante, um enorme madeiro do roseo páu de cedro está partido em lascas pelo igneo corisco, que elle attrahio; e, qual comprido esquife, arrasta o cedro pela corrente além tenros arvoredos, que foram arrancados na sua queda. Acolá, entrando pelo rio, um banco de gorgulhos e seixinhos, onde vicejam moitas de capim e dórmem á sesta com a cauda enrolada, as corás, as caninanas, as verdes,as uyutús e as cipós, derramando da bocca asquerosa longa baba côr de vidro liquido, que é caracteristica dos venenosos ophidios. Ao lado do banco, pela margem em fóra, contempla-se a praia recamada de finissimas e argenteas areias, por cima das quaes scintillam variegadas placas de malacacheta (mica), com pingos de ouro rebrilhantes aos raios do sol, e conchas de formatos variados esparsas pelos monticulos das pedrinhas ovaes, apresentando o labro roxo desmaiado á carambina das geadas, que nelle se conserva petrificada.

Amplas ramagens cahem dos barrancos sobre a superficie longa das aguas, que marulham, em brancas espumas: sobre ellas passam bandos informes de peixes, no meio dos quaes se destaca o dorso chato e povoado de escamas avermelhadas do saboroso piáu, que espadana o rabo lyriforme, aquentando-se ao vivificante calor do astro, que derrama faiscas auriluzentes de encontro á magestosa corrente.

Aqui, em nado oscillante, está uma raiz que se prolongou pela terra até surgir á margem do rio; pertence ao pé de um grosso e elevado palmito, que se suspende verticalmente, no emmaranhado das arvores circumjacentes, como que a dominar toda a multidão de indayás pigmeus e vergados ao peso de amarellos cachos, que delles pendem.

A imagem daquelles troncos altos e nus de palmeiras fica estampada, perpendicularmente, |no fundo turvo das aguas, á borda das quaes se enfileiram legiões de ipés vetustos e colossaes, acompanhando as voltas do rio — que, rompendo obstaculos de cachoeiras e saltos, corre veloz até se precipitar convulsamente no Oceano, na costa Espirito-Santense, onde o mar amplissimo sorve, em leve estrebuchar, o avolumado contingente de aguas do Doce.


Pennachos cinzento-azulados se elevam pelo espaço, em espessas diluições de fumo de fogueiras, denunciando humanos ajuntamentos.

Approximemo-nos, caminhando pelas picadas quasi indistinctas da floresta, d'aquelle ponto, que, sem duvida, pelo aspecto do terreno, está ás margens do Rio Doce.

Silvos agudissimos de flechas (huis) cortam, em sibilações cantantes, o ar perfumado pelas constantes virações matutinas, mirando ellas o peito carnudo de aves que voam, ruflando azas.

Já os pesados troncos dos araribás e perobas foram alli derrubados pelo primitivo processo do fogo ateado na base do madeiro, ou pelo lento moirejar do machado de pedra, esmoendo a grossa lamina de encontro ao fibroso tecido resistente das arvores velhissimas, das quaes vae sahir o côxo fluctuante nas aguas, pelo indio paciente denominado igarité ou ubá, conforme a sua menor ou maior conformação.

Signaes de fresco pisar no solo macio e arenoso de margens de rio, nos desenham o pequeno pé selvagem, de chato e largo calcaneo, que contrasta com a estreitura desforme das articulações digitaes.

De facto, para corroborar o indicio encontrado, lá passa um grupo de Pojichás, moços caçadores, de arco e carcaz cingidos, levando triumphantes uns, valiosa enfiada de ave não meuda, como macucos e tucanos; outros, farta provisão de carne que lhes forneceu a morte das astutas cutias e nedios veadinhos, nas tocas e mundéos armados previamente.

Mais longe, na orla distante do matto corre á toda brida jovem selvagem, em cujo semblante se vê estampado terror indescriptivel : é que na brenha vastissima em que errava incauto, subito ouvio aquelle pavoroso troar da onça sedenta de sangue, que, no molle ar das fundas devezas, farejou o almiscar caracteristico da carne do indio. . .

Está proximo o acampamento indigena do generoso cacique Itaúna[2], pois facilmente se perceoe já o surdo rumor dos saltos e encachoeiradas corredeiras do Doce.

Itaúna, chefe dos Pojichás, é o pae da formosa Aracy, estrella das selvas, cantada por mil guerreiros fortes e bravos, que agora, na epoca das festas ruidosas da tribu, vêm mais uma vez celebrar a formosura da gentil donzella india, em cujos labios de bonina colorados a abelha zumbidora distillou a ineffavel doçura dos alvissimos favos. que fabricou nos bosques.

Aracy tem nas delgadas e correctas fórmas de seu bello corpo nú, que o doirado sol de junho amoroso oscula, em claras alegrias, a lesta agilidade da corça vigorosa e fulva, que galga em pulos as serranias e vallados; nas madeixas opulentas e descuidadas, que ella alisa, graciosa, com as pequeninas mãos bordadas pela bizarra e confusa tatuagem dos caraibebês, brilham os negros e intensos fulgores das pennas do corvo — a sinistra hyena alada dos pincaros e alturas.

Palissadas compridas (cahiçaras) cercam o espaço de terreno occupado pelos Pojichás, que alli se reuniram, pelo tempo da pesca abundante e nutritiva, afim de cantar os lugubres e ephemeros amores da nobres filha de Itaúna, a qual vai desposar o mais denodado em façanhas e brios dentre os ultimos prisioneiros feitos na horda dos botocudos hostis.

E' o sagrado e antigo costume da tribu. Por isso todos aguardam, impacientes, o dia do delirante sacrificio, que preludia o louco banquetear da festa barbara do cauim...


Potente e invencivel era Angá, O famoso morubixaba das hordas temiveis dos Jiporocks, que campeavam, indomitas, atravez das florestas do uberrimo valle do Rio Doce.

Guerreiro dextro, inimigo implacave!, o valente e ambicioso Angá, que já levára o exterminio ao recinto de outras tabas, infensas ao seu mando, queria agora empunhar — garboso e unico cacique — o sceptro das selvas e brenhas, que o tinham visto nascer, havia já luas sem conta.

Quando brandia a terrivel tangapema e sua estridente inubia resoava, em sonoras vibrações de guerra, pelo vasto ambito dos incultos mattagaes milhares de submissos e fortes selvagens corriam ao bellicoso chamado, promptos ao combate irado e sangrento.

Era elle o novo Jeropary, o temido « anjo máu » das cercanias.

E ai da horda que possuisse bellas e nutridas indias, vigorosas € altivas filhas dos mais respeitados chefes selvagens...

Angá, embora mal conhecesse o sitio de acampamento indiano, onde lhe diziam haver formosas mulheres, para lá ia, cégo e lesto, impellido pelo doce pungir de insoffridas concupiscencias.

Ternos enleios de uma quente e anciosa volupia, á qual elle incontaveis victimas já tinha sacrificado, o arrastavam e subjugavam, a ponto de tornal-o ferocissimo, quando se tratava de satisfazer os infernaes desejos de carne tenra e virgem, porque suspirava o seu temperamento sensual.

Conhecido assim O fogoso ardor tropical de Angá, não é de espantar que elle se aprestasse para marchar contra os Pojichás, que vimos acampados ás margens do Rio Doce, na pequena abra de Cuieté.

Aracy, de cuja soberba e rija carnação amorenada — dessa quente carnação correcta e sadia que ainda distingue, entre americanas, o busto altivo, forte e encantador da mulher brasileira — brotava, em virginaes perfumes, o frescor de não talvez vinte primaveras, accendera, mesmo de longe, na alma pervertida do indio Angá causticante requeimar de suspirados deleites !

O cacique Angá, ao ser informado de que não mui distante de sua taba, perdida nas cavernas e vallados da Serra Negra, estavam derramadas ocas inimigas dos Jiporoks e ao mando hostil de Itaúna ; e que Aracy, a extremosa filha deste cacique, celebrada nas canções apaixonadas dos menestreis selvagens do paiz, pela sua arrebatadora formosura, ia desposar no proximo plenilunio o botozudo Pirahytinga[3] , o mais valente dos guerreiros inimigos, aprisionados nos ultimos combates por Itaúna : — concedeu, então, o ousado plano deroubar á horda contraria o thesouro que esta guardava, cheia de natural orgulho e ferozes cuidados, como era costume nas tribus, que consideravam objecto de continua e religiosa vigilancia as jovens e mais lindas filhas de seus chefes, cujo coração e magicos explendores de corpo eram entregues, ás vesperas do cruento e repugnante sacrificio, ao mais bravo captivo da taba, que nella enlaçava, saudoso, a «Virgem dos Ultimos Amores» !


Os indios Pojichás cantam, embriagados pelo espumoso cauim, as suas nacionaes canções e bellicosos hymnos.

Festões de flores se enroscam graciosamente pelos troncos dos sandalos e perobas, plantados em torno das ocaras fortificadas, derramando pelo ambiente os castos odores das rosas sylvestres e dos bogarys de primavera

Alentadores orvalhos de mansas neblinas cahem sobre o calice magnífico das niveas magnolias de haste fixa e musgosa, de petalas conchoidaes e acamurçadas, com as quaes vão se engrinaldar as donzellas, na celebração das festas sagradas da tribu.

A cabilda selvagem reunida, sob o mando respeitado do cacique Itaúna, ouve, cheia de fanatismo, as invocações e praticas cabalisticas dos manhosos e solitarios pagés, depois do que irão os indios se regalar em farto banquete primitivo, de caça e pescado abundantes, que elles regarão com o liquido fermentado e entontecedor das bojudas urnas de barro fabricadas (iguaçabas).

Homens e mulheres têm o semblante e corpo reluzentes, pelo fixo verniz colorido do genipapo e urucú;—aguelles ostentam vistosos enduapes e cocares, nos quaes os tons de fogo das plumas das araras, bizarramente sarapintadas de encarnado brilhante e manchas de um metallico azul ferrete, se distinguem da negra côr intensa das pennas dos anús e macucos ; — estas pavonêa-se, formosas e altivas, envolvidas na esplendida açoyaba fluctuante, cahindo-lhes sobre os hombros os bastos cabellos retintos.

Aracy, bella entre todas as jovens raparigas da tribu, tem sobre a cabeça um kanitar de fulvos reflexos ; revestem-lhe as roliçzas pernas, do joelho ao aristico tornozelo, as ligas distinctivas da virgindade, o symbolico tapacorá.

Instrumento ; selvagens, como maracás, membys, borés e ways,[4] resôam em sua honra, pois é ella a rainha da festa, a deslumbrante donzella, candida e branca como o cecem, que desabrocha nos prados e silvedos, languida e delicada como o beijo do colibri nos jasminciros em flor.

No mais alto ebriamento da festa selvagem dos Pojichás, quando já os tenros labios carminados da doce e formosa Aracy, estão collados, em celestes estribilhos de amor, aos grossos beiços polpudos e sensuaes do valoroso Pyrakytinga ; quando prazeres infinitos entontecem a mente exaltada dos noivos daquelle singello hymeneu de indios ; — repentinamente estrondejam,sinistros e estridentes, os clangores guerreiros de um pavoroso ataque inopinado de hordas inimigas, que amplamente envolvem o acampamento, bloqueiando por todos os lados os inermes e desapercebidos Pajichás.

Ao primeiro instante aquelles espiritos, meio aquecidos e turvados pela febril tumultuosidade das festas e ardentissimos prazeres, julgam-se no enleio de um pesadelo amedrontador ; porém, á incerteza do momento succede a completa apprehensão do perigo que correm e se vêem então colhidos nas malhas mortiferas de seus mais encarnigados perseguidores — os Jiporocks.

Com effeito era Angá, o terrivel e concupiscente Angá, cacique audacioso que viera para arrancar pelas armas dos braços daquelle ephemero noivado, a india Aracy, que desposara, segundo as praticas rituaes de sua tribu,o mais glorioso dos ultimos prisioneiros dos PojichásPirahytinga.

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Conta a lenda corrente entre os indios mansos do Rio Doce, que trucidadas foram todas as cabildas então reunidas na abra de Cuieté para a celebração dos amores de Aracy — a dilecta e suspirada filha de Itaúna, morubixaba dos inditosos Pojichás, ferozmente sacrificados aos impiedosos golpes dos Jiporocks.

Quanto ao destino dos infelizes noivos, morreram ternamente enlaçados, correndo-lhes de larga ferida, aberta pelo mesmo propicio córte de setta inimiga, jorrante e rubro fio de sangue, que foi o augusto baptismo de suas rapidas nupcias, cruelmente martyrisadas...

Angá, desesperado pelo insuscesso de sua ignobil tentativa, vendo fortuitamente succumbida aquella que fora premeditado alvo de sua temeraria empreza — disparára, louco de dôr, em galope vertiginoso pelos antros e brejaes, aterrorizando a selva pacifica com os berros echoantes e allucinados de seu doudo peregrinar ; e dizem ainda os indios que, quando no fundo tenebroso dos priscos mattagaes urra alto e tremendo o esfomeado tapir, é a alma damnada do cacique Angá que vagueia pelas selvas, enxotada, por indigna, das longinquas « montanhas azues » — repouso final e eterno dos sagrados manes indianos!

O terno canto agudissimo que vibra a garganta metallica da araponga, pousada nas grimpas esgalhadas de annosos carvalhos, e que estridula, em em notas de viva e heroica agonia, pelos recessos das florestas virgens : traduz a imaginosa poesia autochtone, nas suas meigas e simples canções historicas, como o pungente adeus saudoso de Aracy, cujo grito de dôr, — quando expirava, tendo o amoroso coração atravessado pela mortifera huy do gentio imigo — a pequena ave errante imita desde então, talvez para traduzir o immenso soffrer da formosa india que morria...


Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. « O sol ». Em tupy era chamado « Guaracy », que quer dizer « luz da vida », «fonte creadora ». Nos dialectos, porém, dos indios, que, fugindo dos tupys, vieram se refugiar nas montanhas do sul, desappareceu a syllaba inicial «Gu» da palavra « Guaracy », que é a primitiva traducção de sol.
  2. Itaúna quer dizer « pedra negra » — de ita—pedra e úna, negro, escuro.
  3. Pira — peixe — hy — agua — tinga — branco: quer dizer agua clara que contem peixe, ao pé da lettra.
  4. E' sabido que respectivamente significam : chocalho ou cabaça cheia de pedras e seixos o maracá; uma especie de gaita ou buzina de taquara o memby e o boré ; e tambor o may.