Pagina de Inverno

Passam pela superficie chumbada dos céus negros e amontoades vagalhões de nuvens; ribombam atravéz do espaço, amortecido pelo silencio do pavor, profundos estampidos de trovões ; fulgorecem, em meandricas, e fulgidas scintillações, fugazes sulcos de relampagos ; uivam, furiosas e desencontradas, na mortiça athmosphera obumbrada, as fortes ventanias: tudo isso é o presagio das immensas e carregadas procellas que, ás derradeiras agonias do estio, começam a desabar por sobre a Terra !

A natureza, até então apertada em um halo suffocante de luz e calor, crestada pelo impio abrazamento flammejante do astro-rei, se espreguiça em amplo e morno banho, aos primeiros e beneficos borrifos hibernaes...

Gemem e soluçam inclementes tempestades: lavam-se as montanhas com as suas aguas, derramando pelas encostas escarpadas reconditas opulencias nativas. E emquanto metralham as peças sideraes, o crebro esfuziar do corisco vae até á copa do altaneiro cedro e, inexoravel, espatifa-o, incendiando com as chispas do madeiro fulminado o resto da floresta virgem, por onde outr'ora correram, na liberdade magestosa da selva, as hordas indomitas do patrio gentio.

Rompe o passaredo alegre canção triumphal, celebrando as galas luxuosas dos mattagaes e campinas, que exuberam vegetações esplendentes de seiva...

O solo ensopado com a humidade fecundante das aguas, crêa alento. e favorece os tenros embryões confiados á sua feracidade : e assim se vê o homem provido na propria subsistencia, abençoando os constantes chuveiros.

No ar mesmo já se não sente aquella pesada e fatigadora influencia do causticante veranico; si bem mais triste e convidativa ao meditar, a natureza de inverno tem o seu que de mystico e affectivo visivel nessa espontanea poesia da alma, inebriada com as grandezas do Creador !

Si quereis espectaculo do mais subido e imponente efícito, escutae, por tempestuosa noute, toques prolongados de um sino, cujo sonóro echo se va perder de envolta com o esbravejar emocionante do encapellado oceano, ou com os silvos barulhentos das folhagens agitadas nos negros bosques !

Parece que nessa hora de sublime gravidade, um eterno e indecifravel scismar se apossa da mente humana, confortando-a meigamente com as divinas caricias do Amor ! Então sente-se um desprendimento dos laços materiaes da vida, e o espirito purificado com a meditação do solemne momento, sóbe alto, bem alto, embalado no leve berço da Esperança no Além; e o coração do mortal, por entre preces e hymnos, persegue aà ilusão Final, emquanto o mundo physico é açoutado com os bramidos dos tufões e com o despejar das tormentas...



Já rompeu mais um desses humidos e friorentos dias do ennevoado Dezembro.

Na lareira estala o feixe molhado de lenha, espalhando labaredas despidas de calor por dentro das rusticas habitações.

Lá fóra, pelo espaço triste, vê-se o ar enfumaçado pela garôa, que tudo cobre de uma adelgagada brancura luminosa, desde os cimos ponte-agudos dos montes até as baixas planícies alagadas...

Ouve-se o enfadonho e nervoso pipillar dos griltos, por sob os moitaes de relva; espantadas vôam pobres aves, de cujos ninhos quentes as enxotou o granizo gelado... Enjôa e cança, aborrece e commove essa soturna paysagem de inverno.

De ao longe, onde pastam os rebanhos, vem, reboante e lugubre, o inalteravel muãn, muãn dos pesados bois, cujo mugir é na lingua delles um profundo lamento...

Os regatos que ha pouco serpejavam, mansos e crystaliinos, são agora ribeirões espumantes e turvados : a agua transborda pela estrada, levando em destruição impisdosa troncos e ramagens quebradas.

A pujante florescencia das arvores se ostenta no denso emmaranhado das florestas e dos mattos virgens.

Tudo tem o aspecto trisie e enfezado.

Alli no pequeno povoado, á direita da via real, naquelle confuso amontoado de casinhas brancas, a chuva inclémente desabou em cataractas. Pelos tectos de côlmo e sapé, pelas paredes de taipa construidas, se infiltraram as pluviaes aguas, estragando os unicos bens do roceiro.

A pequena ermida, na sua alva vestidura de tabatinga, com a graciosa torre arredondada no cimo, amanheceu a escorrer dos muros, grossos fios de barrento liquido, que a salpicam toda, tal como se chorasse, curtindo soffrimentos intimos...

Começa a labutação quotidiana da roça, mesmo com os lameiros e chuvas. Santa lida essa que transforma as seccas e insignificantes sementes, plantadas pelas callosas mãos do lavrador, em pão que vivifica e fortalece os nossos corpos!

Assim é que os tristes chuveiros de inverno inundam e regam os campos, para a grande fecundação mysteriosa da terra — nossa mãi commum.

1894.



Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.