NOTAS





PAG. 7 — A RIBEIRADA


Este poema parece ter sido um dos primeiros ensaios da musa de Bocage. Inducções fundadas em boa razão nos levam a conjecturar que a composição d′elle data de tempos anteriores ao da partida do poeta para Gôa, isto é, do anno 1785. O transumpto pelo qual se fez a presente edição, é sem duvida preferivel por sua correcção ao de que se serviu quem ha já bastantes annos fez imprimir em Paris o referido poema, juntamente com outras poesias do mesmo genero em um folheto de oitavo grande. Posto que sobejem fundamentos para julgar reaes as personagens, e passados em verdade os factos, que despertaram a veia satyrica do poeta, suscitando-lhe a ideia de tal composição, não é comtudo possivel entrar em algumas particularidades a esse respeito: e até julgamos pouco provavel que, mesmo em Setubal, se conserve ainda a memoria das façanhas do azevichado heroe, que mereceu obter a immortalidade nos versos do Bardo do Sado.


PAG. 21— A MANTEIGUI


Resumindo aqui as indicações constantes de uma nota, que encontramos appensa a um antigo manuscripto d′este poema, sem todavia nos responsabilisarmos por sua veracidade, diremos que a protogonista D. Anna Jacques Manteigui, natural de Damão, vivia na cidade de Gôa em companhia de um marido de boa feição (cujo nome e circumstancias não vieram ao nosso conhecimento). Esta dama tornava-se notavel não menos pela sua belleza que por sua desenvoltura e ambição; e sabia fazer dos seus encantos um trafico por extremo lucrativo. D. Frederico Guilherme de Sousa, então Governador geral da India, apaixonando-se por ella, a tomara por sua amiga; porém isso não obstava a que ella não lhe fizesse repetidas infidelidades. Entre outras era accusada pela voz publica de entreter luxurioso commercio com um negro, seu escravo, moço bem fornido, ao qual dava de graça o mesmo que o Governador só podia comprar por alto preço! — Disse-se que na presente composição entrára por muito a vingança pessoal de Bocage, despeitado porque a dama se recusára abertamente a corresponder-lhe, pleiteando elle com ancia os seus favores. O que parece fóra de duvida é que d′aqui lhe proveio em parte a sua desgraça: pois que chegando esta satyra ás mãos de D. Frederico, este se julgou altamente offendido na pessoa da sua bella, e irritado contra o poeta o mandou incontinente deportado para Macau, d′onde a muito custo pôde obter licença e meios de transportar-se a Lisboa.

Do poema «Manteigui» temos visto tres ou quatro edições diversas; todas feitas, ao que parece, em Lisboa. Não nos ligamos a alguma em particular, mas aproveitamos de todas as variantes que offereciam visos de mais correctas, confrontando-as sempre com os manuscriptos que possuiamos, e preferindo em todos os casos o que se nos afigurava por mais exacto, e conforme ao texto original.


PAG. 29 — A EMPREZA NOCTURNA


Esta peça, mais conhecida sob a denominação de «Noite de inverno» e já por vezes impressa, tem sido quasi universalmente attribuida a Bocage; pareceu portanto que não devia omittir-se na presente edição. Devemos porém declarar aos leitores, que segundo o testemunho de pessoas mui auctorisadas, ella não é obra do nosso poeta, e sim do seu contemporaneo e amigo Sebastião Xavier Botelho. De outras, que estão em caso analogo, e que similhantemente vão aqui incorporadas, iremos dando razão nos logares competentes.


PAG. 36 — EPISTOLA A MARILIA


Todas as pessoas lidas na historia de Bocage sabem que esta epistola, e o soneto que damos a pag. 106 do presente volume, lhe serviram principalmente de corpo de delicto, quando, perseguido por ordem da Intendencia geral da policia, foi afinal preso em 10 de agosto de 1797; sendo então transportado de bordo da embarcação onde se refugiára para os segredos da cadeia do Limoeiro, e d′ahi passados alguns mezes removido para os carceres da Inquisição. (Veja-se o «Estudo Biographico» que vem no tomo I das Poesias de Bocage, edição de 1853, a pag. XI e seguintes.)

Antonio Maria do Couto nas «Memorias» que escreveu ácerca da vida do poeta, affirma em tom decisivo — que a Epistola a Marilia fôra feita por occasião de ser seu mestre um frade (graciano) que a requestava: assim será; mas parece-nos, lendo esta composição, que o poeta exigia da sua bella mais alguma cousa do que pol-a de aviso contra as seducções do frade.

Quando começaram a divulgar-se algumas cópias d′esta epistola, varios engenhos devotos e de animo timorato , escandalisados justamente da erronea philosophia do auctor, e muito mais do modo impio e libertino com que elle dogmatisára, estabelecendo e propalando principios tão anti-religiosos, e anti-sociaes, entenderam que era do seu dever opporem-se a taes doutrinas: para que o antidioto seguisse de perto o veneno, julgaram por melhor servir-se das mesmas armas, empregando egualmente a linguagem das musas, e ligando á força de raciocinios as graças da metrificação. Das «Refutações» que n′este sentido appareceram conservamos duas em nosso poder; e como as suppomos desconhecidas para o commum dos leitores, ahi lh′as apresentamos, desejando que n′ellas encontrem um correctivo seguro contra as falsas e seductoras maximas da epístola bocagiana.

A primeira é obra de Manoel Thomaz Pinheiro d′ Aragão, admirador e amigo de Bocage, fallecido ha poucos annos, e que por muitos exerceu em Lisboa com bons creditos o magisterio na instrucção da mocidade. Quanto á segunda não pudémos, apesar de toda a diligencia, conhecer até agora o nome do seu auctor.




ANTI-PAVOROSA – PARODIA CHRISTÃ


I

Fatal maldição da Eternidade,
Dos vivos illusão, vida dos mortos;
Ou gloria para sempre, ou sempre inferno
De desordens, de crimes oppressora.
Não forjada por despotas, por bonzos.
Mas sim por divinal credulidade;
Dogma infallivel, que o prazer arreigas
Quando a sizania c′o remorso arrancas;
Dogma infallivel, favoravel crença.
Digno premio de peitos innocentes,
Das delicias gosando, que mal fingem
Impávidos á furia Centimanos,
Que vomitando estão perpetua chamma;
Superiores motejam o seu engano.
No limiar das Parcas, eis o quadro
Que observa em vivas côres a ignorancia,
Igualmente a sciencia em vivas côres;
Inda que eu por sciente só conheço
A quem teme os castigos no ameaço,
A quem teme tornar um pae tyranno,

A quem lamenta inuteis suas preces,
Por mais que em giro ao throno elle as espalhe.
Teme o sabio que um Deus irado o fira,
E penitente vai, supplica a venia
Ao dispenseiro seu, nobre e sagrado;
Que ora as graças lhe abre, ora as ferrolha;
As graças, que co′as leis da natureza
Se ligam sempre, eternas, necessarias,
E só quando a vontade as torna em crimes
Cruel desunião n′ellas fomenta;
Por vel-a rebellada lhe fulmina
Prisões suaves no jejum, cilicio.
Que n′um geral concelho só lhe arbitra:
Humilde, pede resarcir-se a benção;
Soberba, porque quer desenfadar-se
No jugo que remata nas delicias,
Recáe n′outro maior, que a morte vende.

II


E inda dizem que Deus é vingativo.
Se com razão sacode o raio ardente?...
Antes te louvarei, porque não déste
O justo premio a muitos, que arrojando
Contra si tremendissima sentença
Julgam pela grandeza propria o crime,
E não querem fazer seu peito escravo
No castigo, que affirmam ser-lhes duro!
Será eterna a pena n′esses peitos,

Que d′um Deus se não movem ao interesse,
E o desaggravo indomito attribuem
Menos ao Sempiterno, do que a todos
Temendo perdurar como a mesma alma,
Verdades proferidas nos altares;
Onde ha satisfação, e não cruezas:
Vemos alli ministro venerando,
Longe de renovar suppostos odios,
Defendendo nos crimes a innocencia,
Primeiro recusando alto dominio,
C'o pezo superior por tempo incita: ′
Eil-o na honra altissima abrazado,
Com sangue apaga innundações de fogo;
Testemunhas do zelo a voz, e a espuma;
Mandado por um Deus, tão bom como elle,
Pede ao Senhor não multiplique exemplos
Com que já se consterna a phantasia!
Victima impura de outra vez no povo,
Livremente seu povo entrega á morte:
Defuncto o servo, que esfriava os raios.
Punia sem limite o Omnipotente;
Inda lembra ao Sinai tremer-lhe a terra,
Quando Adonai lhe intima seus decretos.
Ah! Moysés, que não podes ser astuto,
Contra a publica voz, que assim troveja;
O teu povo confessa os seus furores,
Quando entregue de um Deus á justa raiva
Sua clemencia, succumbia á tua:
Na inteireza, que tens, creio; confio
Que a tocha da verdade te precede,

Para mais deslumbrar aos que te offendem:
Que se o ferro fatal já não se ensopa
No resto d′estas animadas cinzas,
Da lei da graça os divinaes incensos
Por disfarçar a pena tornam surdos
Á voz interna os que não creem no inferno:
Tremenda lei, se a pena lhe retardas!
Mas se lh′a appressa executor propheta
Lhe acalmas as iras, porque vai, diffunde
O pavoroso medo nos sequazes
Do idolatra e espantoso fanatismo.
Convocam-se os levitas, os quaes matam
Aos cumplices de tal atrocidade:
Comprimida gemeu a Natureza;
Por um Deus os consortes, paes e filhos
Com seu sangue as espadas, vestes tingem;
Recobra o pae quem faz o parricidio,
E aos campos que de victimas se alastram
Chovem mil novas graças como em rios.
Acalmada a justiça a teus clamores,
Por honra do teu Deus, servo sedento,
Co′ um só estrago evitas mil estragos,
Ferrando a todos do leão as garras.
E tu, impio, as blasphemias que derramas
Escusas, lendo a historia dos tyrannos.
Os de Israel não foram que este exemplo
Tomaram por fazer pezado o jugo;
Por uma vil paixão, cruel, não manches
Os direitos de um Ser eterno, augusto.
De um Deus real Moysés real valido

Deu culto á verdade, corte ao genio,
E código de leis mais necessario
Deu a todos, que a bem de si o imitam.
Prova fiel de que um Deus senhor existe.

III


O quadro original eis, oh Marilia,
Em que a verdade ha tempos anda envolta,
Sem que pinceis deslustrem d′esses tempos
Os que fieis copiam pinceis nossos.
Tradição verdadeira desarreiga
Toda a suspeita de falaz doutrina.
Quando entre mil e mil preoccupados
Nos podemos suppôr de horridas sombras,
Formando povo, juram que a piedade
Existe em Deus, inda quando te flagella.
Não julga o impio assim, que todo é fogo.
Que o Deus tem nas paixões, e vive d′ellas;
Forma um Nume, que ao seu ditame ajusta,
E por elle regula a infeliz vida.
Simulacro liberrimo é suave,
Dirige a seu exemplo as acções todas,
E em tanto que se escuta a natureza,
Vai fugindo a razão, e cega a muitos.
Ambas, sendo guiadas, não differem.
Dos factos aos reflexos só conduzem;
E a mesma, que soccorre ao indigente,
Que alenta, que consola o triste afflicto,

A mesma em si reflecte consternada
Quando algum seu alumno entrega os pulsos
Voluntario de amor ás vis algemas:
Amor, que uma inspirou, ambas approvam,
E ambas murmuram aliás da insânia
Que os humanos colloca a par dos brutos,
Queda, vicio total, que os desacorda,
Do qual preoccupados, uns aos outros
Invenciveis motivam feros males.
Ah! não sejam Marilia, nossas mentes
Tomadas do dictame em que jaz crime!
Do remorso a lembrança evite a culpa;
Um Deus em nosso bem benigno existe,
Que te pode estudar o pensamento
Ao golpe do que fragil se arrepende.
Não são aos actos intenções oppostas,
Antes estas áquelles dando exemplos
Na contemplação propria culpam a alma.

IV


Supplemento d′acção faz doce encanto
O que antes era objecto de terrores,
E convertido n′um final interesse
Emprega a bem dos crentes a astucia;
Oxalá, doce amada, que no inferno
Não padecesse o pensamento angustias
Do crime o galardão, merecido premio!
Que eu de amor aos fatidicos embustes

Me entregára por ti, se o não houvera!
Além de contemplar-te deusa bella,
Novo altar te formára em minha mente.
Mas ah! que a minha lei, se rigorosa
Mostra um semblante no ext'rior severo.
Seus nobres fins a tornam jugo amante,
Concedendo-me em doce ajuste sacro
A posse eterna do que pinta a idéa!
Em teus dotes mais ricos do que o mundo
Tu bem podes gravar pacto solemne.
Que é desejado mais quando te esquivas:
Porque o pejo innocento foge ao laço
Que inculcando te estou, te estou pedindo.
Sacra alliança pedem teus direitos
Por belieza e traição só extorquidos.
Approva ternamente o jus paterno
A chamma, quando pura se affoguéa.
Então desfructarás da liberdade.
Quando maior sentires este jugo [1]
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Quando quer sustentar que amor com guardas
Influencias não pode ter propicias,
Emmudeça tambem o louco Elmano,
Que ignora do seu Deus os sanctos lares,
E quer solemnisar a união das almas
Dando por testemunhas venerandas
As trevas, a pezar que nada sejam:
Deixado o sacerdote, ampliado o templo,

Celebra o matrimonio em toda a terra;
Quem faz caso porém de seus transportes?
Seu coração ao menos desafogue
Em proclamar, mas por que não incita
O vedado prazer do horrivel nome.
E querendo render nossas vontades
Co′as falsas persuasões, que mal recebem,
Na religião pretende amortecer-te,
Porque possa appetite aviventar-te.
Ah! que não se propõe ser teu amante
Quem quer na confusão de mil suspiros
Tão infeliz fazer-te quanto é elle!
Entretanto, Marilia, não te prives
D′outras estimações de quem te adora;
Da minha lei tu podes ser amada,
E amares, se á razão não fores surda.
Meu coração de ver-te enfeitiçado
Emprega provas mil suas, e minhas,
Porque ames, sem deixar de ser ditosa.
Deve a religião guiar teu gosto,
A lembrança final desterre o crime:
Que apezar do vicioso que pregòa.
Existem céos, existe o negro inferno:
Lauréa-se n′aquelles a virtude,
Arderá n′este para sempre o vicio.


Até aqui M. P. Thomaz Pinheiro d′ Aragão. Veja-se agora a refutação anonyma.




EPISTOLA AO AUCTOR DA «PAVOROSA»


Sacrilego impostor, que renovando
Os antigos delirios da ignorancia,
Mil vezes felizmente refutados,
Pretende illudir a innocencia,
Fabricando um systema monstruoso,
Incrivel mesmo aos olhos da impiedade:
Quando a mão temeraria assim levantas
Contra o dogma fatal da eternidade,
Aviltando o teu ser, dize, profano,
Não te grita a razão — Suspende o braço?
Esse Deus, que confessas amoroso,
Deus de paz, pae dos homens, não flagello,
Com esses attributos desempenha
Com frouxa indifferença submergindo
No embrião do nada aquelles entes
Em que quiz esculpir a sua imagem"?
Onde estará o amor, onde a ternura
D′esse Ente nosso pae? Em ter creado
De motu proprio uns miseraveis entes,
Que depois de passarem opprimidos
Sobre este globo cheio de trabalhos.
Devem ser outra vez depois da morte
Reduzidos ao nada? Dize, infame,
O que val a virtude, essa virtude
Á custa de mil lagrimas comprada.
Se a alma não passa além da sepultura,

Onde só pode achar a recompensa?
Para que o feio vicio é condemnado,
Que os sentidos encanta e lisongéa?
Se da nossa existencia é o sepulchro
O novissimo termo, é impiedade
Contrastar o appetite, e devem todos
Ás ávidas paixões largar as redeas,
Por mais felicidade não se espera.

Réo de taes sentimentos, e dos crimes
Que são d′elles precisas consequencias,
Atreves-te a chamar sonho, e chimera
Esse logar terrivel, que desejas
Não existisse para teu flagello!
Dogma fatal, mas dogma necessario,
Cuja existência só negar se atreve
Quem pondo-se ao nivel dos mesmos brutos
A razão, como tu, tem degradado!
Dize, infeliz: se o homem virtuoso
Vês sem estimação, sem recompensa,
Luctando com a desgraça, em dura guerra
Com as suas paixões continuamente,
Se o vês dos orgulhosos opprimido,
Da miseria arrastando as vis cadéas,
E os flagellos soffrendo da injustiça,
Dirás que o justo Deus adormecido
Lhe não reserva digna recompensa
De o chamar no seu seio, repartindo
Com elle os dons da doce eternidade?
Se o impio vês, pizando impunemente
As sanctas leis aos pés, e da ventura

Os favores gosar, se o vês honrado,
E talvez recebendo inda favores
Por opprimir a candida virtude
Dos que gemem debaixo do seu throno:
Se leis não pondo ao ávido appetite,
Gosa a satisfação, que tanto prezas,
Dirás que o mesmo Deus deixa impunida
Por frouxidão a sua iniquidade,
E que lhe não destina calabouços
Onde a pena receba de seus crimes?
O estado feliz das almas justas,
Nem de Deus fora digno, nem perfeito,
Se sendo limitado a algum espaço
Não se estendesse a toda a eternidade;
Pois que durando n′ella essa virtude
Porque alcançaram esse dom supremo
É conforme á justiça que em Deus seja
O premio assim tambem continuado:
Pelos mesmos principios são eternos
Os castigos do impio: um juiz justo
Não póde perdoar um crime grave.
Se d′elle o aggressor não se arrepende.
Nos precitos ha sempre pertinacia,
E por isso serão eternamente
Da justiça divina castigados.
Aos sanctos livros... porém não profanes
Co′a impia mão as paginas sagradas.
Que estas tristes verdades nos revelam;
Só chegar deve a este sanctuario
Quem cheio de temor, e de respeito

As palavras adora, que elle encerra.
Para te confundir, a outras fontes
Mais dignas de teus vis impuros labios
Por tua confusão quero guiar-te,
Porque vejas que o cego gentilismo
Falto das luzes sanctas no evangelho,
Por entre as grossas trevas da ignorancia
O dogma conheceu, que tu condemnas:
Ouve Platão, que manda os assassinos
Para o Tartaro negro, e tenebroso,
Onde diz que os tormentos são eternos.
De Sycione ao philosopho pergunta
Quem lhe ensinou que havia dous logares
Para o premio e castigo além da morte?
Ouve Plutarco, que esta mesma crença
Com a maior clareza te annuncia:
Lê finalmente gregos e romanos,
Egypcios e chaldeos, verás em todos
Este logar ao vivo retratado:
Verás gemer Sisyphos carregados
Co′o peso rude de infernaes penedos;
Promethêos oppirmidos de cadêas,
Ticios de abutres feros devorados,
Tantalos, e outros mil, que submergidos
No abrazado barathro nos pintam:
São fabulas, eu sei: mas esta idéa!
Posto que com ficções desfigurada,
Só de uma tradicção a mais antiga
Podia deduzir a sua origem.

Escravo das paixões, a que te entregas,

Pretendes temerario collocal-as
Par a par da virtude, blasfemando.
De quem por torpes vicios as condemna?
Aprende a defendel-as, ignorante;
Verás que da razão sendo inimigas
Não se podem livrar de ser culpaveis.
Perdendo a graça, dize, fementido.
Qual é o meio de revindical-a?
Duvidas de que o summo sacerdote
Para estes infelizes naufragantes
Da penitencia não deixou a taboa?
Duvidarás que foi aos sacerdotes
A quem deu o poder illimitado
De atar e desatar os criminosos?
Se não duvidas, deves conferssar-me
Que antes de proferirem a sentença
Devem primeiro conhecer a culpa.
Ajoelha, profano, mentecapto,
Ante este tribunal, de que escarneces,
Fonte de graça, que te fugiu d′alma.
Respeita nos ministros, que a despendem,
Não as suas fraquezas, que são homens.
Mas aquelle de quem são commissarios.
Não é Deus oppressor, não vingativo.
Por vibrar com a dextra o raio ardente
Contra os que seguem, como tu, com furia
Da carne os criminosos movimentos,
Que sua lei, tua razão condemnam.
Dizes que a punição excede o crime;
Blasphemo, que tu és! Piza, se pódes

Da offensa a infinita gravidade,
E verás que o castigo não excede.

Apostata infeliz, como te atreves
A tratar de tyrano o Omnipotente,
O Deus, que no Sinay envolto em gloria
Santas leis d′Israel dictou ao povo?
Achas indigno d′ellas o extermínio
D′esses torpes idolatras, mil vezes
Ingratos de seu Deus aos beneficios?
Arbitro absoluto dos viventes.
Não póde, prescindindo inda da culpa.
As vidas acabar, que lhe pertencem?
E conclues d′aqui, que o seu ministro
Moysés incomparavel, foi um monstro
De furor, impostura, e fanatismo?
Hallucinado monstro, onde bebeste
Para tua desgraça tal doutrina?
Podia um impostor fender as aguas
Com a força enganosa dos prestigios,
Fazendo pelo leito do mar-Roxo
Caminho só aos peixes conhecido?
Poderia de um arido rochedo
Só com o leve toque de uma vara
Fazer sahir uma abundante fonte
Para o povo com sede fatigado?
Seria a sua astucia só bastante
Para outros mil prodigios d′esta ordem,
Em que de Pharaoth os mesmos magos
Confessaram andar de Deus o dedo?
Vai lêr sem prevenção os seus escriptos,

Que são retratos os mais vivos d′alma,
N′elles descobrirás quanto é diverso
Aquelie original da negra cópia
Que desenhou a tua mão indigna
Por fascinar os olhos da innocencia.
Lê nos mesmos pagãos os elogios
Que soube merecer-lhe o seu caracter.
Já que da santa Egreja os testemunhos
Indigno desertor assim desprezas,
Para enganar a crédula innocencia,
Que seduzir pretendes insensato,
Confundes o amor, que Deus ordena,
Com aquella paixão, aquella insania,
Que arrasta os homes ao nivel dos brutos?

Que idéa, dize, tens da Divindade?
Confessas que é delicto aos similhantes
Traçar damnos crueis, injustos males,
E pretendes sem culpa assassinar-lhe
A virtude, roubando-lhe a innocencia?
Indigno, inconsequente, mentecapto,
Das luzes da razão abandonado.
Que dogmatizar queres vãos delirios
Uns a outros oppostos, e que offendem
Natureza, Razão, e Divindade;
Degradas o teu ser, não consentindo
Que haja além do sepulchro Eternidade.
Aviltas a Razão, suppondo-a digna
De approvar teu delirio extravagante;
A Divindade offendes, quando a pintas
Com attributos, que lhe são contrarios.

Esconde a face, e nunca as claras luzes
Vejas do céo, cuja existencia negas;
Sepultado nas trevas da ignorancia,
A que te guiam voluntarios erros,
Costuma-te aos horrores d′esse abysmo,
Em que apezar de o teres por chimera.
Confessarás um dia mas já tarde.
Não ser uma illusão a Eternidade.


PAG. 47 – ARTE DE AMAR


No anno de 1822 appareceu em Lisboa impressa (anonyma) em um pequeno folheto de oitavo esta peça, miseravelmente deturpada em muitos versos, e mutilada em alguns outros como facilmente poderá verificar o leitor curiooso, que possuindo por ventura o citado folheto, quizer confrontal-o com a presente edição. Aquelle que fôr versado no conhecimento de estyios terá talvez aventado que o d′esta composição se afasta notavelmente da elocução propria de Bocage. E na verdade, segundo a asseveração de pessoas competentes, a obra é de Sebastião Xavier Botelho; mas tambem nos certificaram que tendo-a seu auctor submettido á correcção e censura de Bocage, este emendara e polira muitos versos, introduzindo-lhe outros totalmente seus, pelo que nos pareceu que de justiça devia achar cabida na presente collecção.

PAG. 61 — CARTAS DE OLINDA E ALZIRA


Estas famosas cartas gosam desde muitos annos da posse de andarem encabeçadas no nome de Bocage em diversas collecções manuscriptas, que temos tido presentes. Se por ventura não são d′elle, ao menos (que nós saibamos) não foram ainda attribuidas a outro auctor.

As seis primeiras epistolas tem sido já impressas, e por mais de uma vez, posto que mais ou menos correctas, conforme os diversos transumptos que os editores poderam haver á mão para as suas edições. Quanto á setima (pag. 90) devemos declarar que não sómente julgamos ser esta a primeira vez que se imprime, se não que estamos persuadidos de que poucas pessoas haverão noticia da sua existencia. Pelo menos na immensa multidão de opusculos e papeis d′esta natureza, que no decurso de muitos annos temos revolvido, apenas uma unica vez deparámos com esta epistola junta ás suas companheiras. D′essa cópia extraimos a que nos serviu para a presente edição; onde, pela impossibilidade de fazer a necessaria confrontação com outras cópias, deixamos ir alguns logares, que nos parecem viciados, mas que nos não atrevemos a emendar de motu proprio.


PAG. 106—SONETOS


Se levassemos a mira sómente em engrossar o volume, ainda que á custa de obras suppositicias, teriamos sem duvida duplicado, ou triplicado a serie dos sonetos que apresentámos, admittindo alli indistinctamente como de Bocage todos os que se lhe attribuem nas muitas e variadas collecções manusciptas, que temos consultado, ou os que geralmente e sem exame se repetem como taes. Outro tanto dizemos no tocante a decimas, glosas, e outras similhantes composições. Mas entendemos que isto seria intoleravel em uma edição feita para leitores intelligentes, os quaes teriam justissimo direito para queixar-se de quem, como se diz, quizesse encampar-lhes gato por lebre. Assim, resolvemos excluir tudo o que de proprio conhecimento ou em resultado d′exame critico e comparativo, se mostrava evidentemente alheio; já porque quando tivesse alusões a pessoas, ou factos mais recentes; já porque sendo mal dirigido ou ineptamente escripto, serviria de descredito para o poeta, e muito mais denunciaria a falta de siso e de critica em quem ousasse attribuir-lh′o; já finalmente porque muitas d′essas obras pertencendo aliás a auctores conhecidos, seria flagrante injustiça privar a estes da fama, ou do desar, que de taes producções deva provir-lhes.

Apezar da regra adoptada, alguns sonetos vão ainda incorporados n′este volume, que supposto não desdigam do estylo do auctor, e tenham sempre corrido em seu nome, nem por isso nos julgamos auctorisados a dal-os por genuinos. Pelo que os marcámos respectivamente com a letra (D) querendo com ella significar que os temos por duvidosos, não affiançando por modo algum a sua authenticidade.


PAG. 106 — SONETO I


Já a pag. 173 tocámos alguma cousa com respeito a este soneto, escripto na occasião em que o exercito francez commandado por Bonaparte invadira os estados ecclesiasticos (1797), chegando quasi ás portas de Roma, e ameaçando o solo pontificio.

O verso 9.º:

D′ellas em vão rogando um pio arrojo,

envolve uma especie de equivoco, ou como hoje se diria um calembourg; porque Pio VI era o papa, que então presidia na universal egreja de Deus.

O penúltimo verso lê-se em algumas copias do modo seguinte:

Zumba, catumba; ficam-lhe em despojo, etc.


PAG. 110 – SONETO V


Bocage, o folgazão, rostia o França.

Se o soneto foi escripto, como parece, pouco antes das contendas com os Árcades, isto é, entre os annos de 1791 e 1793, o França nascido em 1725, devia então contar os seus 67 de idade! — Rostir é verbo neutro, que em sentido figurado significa mastigar. Fazemos aqui esta observação, porque já notámos que alguem entrou em duvida acerca da verdadeira intelligencia do vocabulo.


PAG. 111 — SONETO VI


Veja-se em geral a respeito dos sonetos marcados com a letra (D) o que acima dizemos no fim da nota a pag. 193

O de que ora nos occupamos, tem sido tão constantemente havido como producção de Bocage, é tão popular e conhecido, que não poderíamos dispensar-nos de aqui o reproduzir. Mas pede a verdade que se diga que Manoel Maria foi inteiramente extranho a esta composição. Conforme o testemunho irrefragavel dos comtemporaneos mais bem instruídos n′estas particularidades, o seu verdadeiro auctor foi João Vicente Pimentel Maldonado. É certo que ainda em vida de Bocage muitos lh′o attribuiram; porém elle nunca o reconheceu por seu: ao contrario, dizem-nos que consultando-o alguem a este respeito, respondera que lhe não agradava, mas que se o tivesse feito em lugar do verso

O teu cono não passa por honrado,

teria dito

Não passa o cono teu por cono honrado.

Outros mais reparos fez, que o sujeito de quem houvemos esta anecdota não nos pôde repetir, por lhe faltar a reminiscencia de caso passado ha tantos annos.

Este soneto ha sido parodiado em diversos tempos, e com differentes fins. Poremos aqui o seguinte, feito sobre pensamento analogo, e que se diz ser de José Anselmo Corrêa Henriques:


SONETO


Não lamentes, Alcino, o teu estado,
Corno tem sido muita gente boa;
Cornissimos fidalgos tem Lisboa,
Milhões de vezes córnos tem reinado.

Sicheu foi corno, e corno de um soldado:
Marco Antonio por corno perdeu a c′roa;
Amphitrião com toda a sua proa
Na Fabula não passa por honrado;

Um rei Fernando foi cabrão famoso
(Segundo a antiga letra da gazeta)
E entre mil cornos expirou vaidoso;

Tudo no mundo é sujeito á greta:
Não fiques mais, Alcino, duvidoso
Que isto de ser corno é tudo peta.


PAG. 112 – SONETO VII


Nas «Poesias Satyricas ineditas de M. M. B. do Bocage, colligidas pelo professor A. M. do Couto» (Lisboa 1840), vem este soneto a pag. 28, e tem ahi o seguinte titulo: — A um musico velho chamado L. F. — Não alcançamos alguma outra indicação, nem mesmo vimos outras copias d′este soneto, com as quaes podessemos conferil-o.


PAG. 113 - SONETO VIII


Diz-se que este soneto fôra escripto em Gôa e dirigido a D. Francisco de Almeida, fidalgo de raça mestiça, cuja indole e costumes o poeta quiz assim escarnecer. Derramou por todo elle vocabulos da lingua canarina, cuja explicação debalde se procurará nos díccionarios. Pessoa que suppomos bem informada, nos assegura que tambió quer dizer tabaco: — fuscó, peido; gu, trampa, etc. Valha a verdade!


PAG. 115 E 116 — SONETOS X E XI


Como a historia da composição d′estes sonetos se encontra amplamente descripta na «Livraria Clasica» (tomo XXIII), para aqui a transcreveremos, em obsequio aos leitores, que não tiverem á mão aquelles folhetos.

«Era Santarém a mais cara residência de Bocage. Tractado como irmão em casa do Senhor Salinas de Benevides, ali se esquecia durante mezes. Era chegado o tempo da feira, em que, segundo o uso, grande multidão concorria áquella terra.

Á hospitaleira porta de Salinas vão, sabedores do benevolo agasalho, batendo amigos e extranhos: são onze horas da manhã, quando pela centesima vez se toca a campainha! Dous varatojanos, moidos e suados, mais o padre mestre herculeo e nedio, e o leigo moço e mirrado, entram para a sala commum. Trazendo-lhe dous copos, um de vinho, outro de agua; o mais velho, sem dar satisfações, precipitou-se sobre o do vinho, que o leigo viu com olhos de inveja emborcar até meio, resolvendo-se então humildemente a pegar no copo d′agua. Mal não era feito o movimento, quando irado o padre mestre por vêr a audacia com que o seu subalterno, faltando ás regras da santa obediência, bebia a agua de moto proprio, volta-se ainda em cima, para o estafado moço, berrando-lhe: O irmão já me pediu licença para beber isso?

«Bocage, que de toda a scena nem um meneio perdera, ergue-se furibundo, vai dentro, e apodera-se de um cajado, com que sáe para a rua a desancar frades. Esteve divino: vociferações, epigrammas contra frades borbotavam em cachão.

«Quiz a fortuna que a um canto da feira lobrigasse um cardume de gente, ralhando, ameaçando, rindo e gritando. Encaminhou-se para a multidão, que rodeava uma loja ambulante de bonecos de barro. E ahi lhe contaram como a mais rica peça da loja, era um frade de louça d′Extremoz, atacando uma freira; que passára aquelle frade de carne, que ainda lá ia ao longe, o qual encolerisado arrebatara o escandaloso grupo, o esmigalhara e conculcara aos pés, continuando impavido em seu caminho.

«Imagina-se como Bocage ficaria! Entra a correr, clamando como possesso: — « Cerquem-me o frade!... agarrem-me o frade, que ahi vai uma saraivada de sonetos!...»

E com effeito, á queima roupa lhe desfechou uma duzia de sonetos (de que apenas se conservam como amostra os dous que damos no texto).....

Continuou ainda a disparar epigrammas a frades, taes como os seguintes, que nunca foram impressos:

Entre um frade, e entre um burro
Ha tanta conformidade,
Que ou o frade é pae do burro
Ou o burro é pae do frade!

..................

Casou um bonzo na China
Com uma mulher feiticeira;
Nasceram tres filhos gemeos,
Um burro, um frade e uma freira

etc. etc.


PAG. 120 — SONETO XV


O seguinte é o titulo d′este soneto na collecção de Couto, já citada:

«A um clerigo fulo, Deão de Angola, que aqui veio a requerimentos, e era corcovado naturalmente; corria o armo de 1800.»


PAG. 122 — SONETO XVII

As horas do prazer voam ligeiras.

foi mote dado, a que este soneto serviu de glosa, bem como o que adiante se trancreve sob numero XXX.


PAG. 123 - SONETO XVIII


É dirigido ao padre Domingos Caldas Barbosa (Lereno Selinuntino) no tempo das contendas com os Arcades (vejam-se para a historia d′esta guerra a «Livraria Classica» tomo XXIII e o «Estudo Litterario» no tomo VI da nova Edição das Poesias de Bocage a pag. 329 e seguintes).

Como em qualquer das duas obras, nos logares que deixamos apontados, se encontram varias poesias satyricas, com que os contendores e rivaes d′Elmano o brindaram, em desforra e retribuição de muitas, que elle lhes dirigira (as quaes tambem podem lêr-se no tomo I da citada edição de Bocage de paginas 341 a 363) parece-nos que os leitores nos haverão em graça que lhes completemos a collecção d′essas obras, dando-lhes incorporadas não só algumas das já impressas, que por circumstancias e motivos obvios se haviam publicado com suas lacunas, restabelecendo-as aqui na sua integra, mas tambem outras, de que por ventura não terão conhecimento. Ahi vão portanto em seguida todas as que conservamos d′esta especie.


SONETO


Emquanto a rude plebe alvoroçada
Do rouco vate escuta a voz de mouro,
Que do peito inflammado sáe d′estouro
Por estreito bocal desentoada:

Não cessa a cantilena acigarrada
Do vil insecto, do mordaz besouro;
Que á larga se creou por entre o louro
De que a sabia Minerva está c′roada:

Emquanto o cego atheu, calvo da tinha,
Com parolas confunde alguns basbaques,
Psalmeando a amatoria ladainha:

Eu não me posso ter; cheio de achaques,
Cangado de lhe ouvir — «Bravo! Esta é minha!»
Cago sem me sentir, desando em traques.


SONETO


Morreu Bocage, sepultou-se em Gôa!
Chorai, moças venaes, chorai, pedantes,
O insulso estragador dos consoantes.
Que tantos tempos aturdiu Lisboa!

Por aventuras mil obteve a c′rôa
Que a fronte cinge dos heroes andantes;
Inda veio de climas tão distantes
Á toa vegetar, versar á toa:

Este que vês, com olhos macerados,
Não é Bocage, não, rei dos bregeiros.
São apenas seus olhos descarnados:

Fugiu do cemiterio aos companheiros;
Anda agora purgando seus peccados
Glosando aos cagaçaes pelos outeiros.


SONETO


Esqueleto animal, cara de fome,
De Timão, e chapeu á hollandeza,
Olhos espantadiços, bocca acceza,
D′onde o fumo, que sáe, a todos sóme:

Milagre do Parnaso em fama e nome,
Em corpo gallicado alma franceza,
Com voz medonha, lingua portugueza,
Que aos bocados a honra e brio come:

Toda a moça, que d′elle se confia,
É virgem no serralho do seu peito;
Janella, que se fecha, putaria!

N′este esboço o retrato tenho feito;
Eis o grande e fatal Manoel Maria,
Que até pintado perde o bom conceito.

(Anonymo.)


SONETO


Ha junto do Parnaso um turvo lago,
Aonde em rans existem transformados
Os trovistas de cascos esquentados.
Cerebro frouxo, ou de miolo vago;

Por mais infamia sua, e mais estrago
Doou-lhes Phebo os animos damnados,
P′ra que exprimam os versos desazados
Os seus destinos vis, nos quaes eu cago:

Aqui Bocage vive, e d′aqui ralha,
E co′a tartarea lingua ponti-aguda
Bons e maus, maus e bons, tudo atassalha

É vil insecto, e o genio atroz não muda,
Bem como a escura côr não muda a gralha,
E o hediondo fedor não perde a arruda.


EPIGRAMMA


De todos sempre diz mal
O impio Manoel Maria;
E se de Deus o não disse,
Foi porque o não conhecia.


SATYRA


Impondo duração além das eras
Numen te eriges, fanfarrão Bocage,
Envesgando raivoso o vasto mundo
Ante o teu throno serpeando a medo.
Usurpador de louros soberanos.
Ah! não aviltes o Apollineo solio
Em que é dado reinar a augusto vate.
Que equilibrando na invenção madura
Potente phrase, se abalança aos astros,
Até c′os deuses praticar soberbo.
Os titulos sagrados me apresenta,
Com que alardeas profanando Apollo:

Esse idyllio, que tens em gran portento,
Pensas te salva da vorage eterna?
Falle o Tritão, que tu fizeste amphibio,
Pondo-o na terra, namorando a nympha.
Sonetos, glosas lhe attrahis louvores,
Cheios de vento, que empanturra o Paula;
Pècco epigramma, que afugenta o riso,
Fabulas tuas, traducções franjadas;
Essas cantatas de Parny são roubos,
Em que sedento de invenção campéas.
Mas, Tantalo phebêo, em vão cobiças
Á custa alheia eternisar teu nome.
Busco debalde acção nas obras tuas,
Que o Tesejado fim demande altiva;
És emprestado vate: Italia o diga,
Falle a Gallia tambem, d′onde saquêas
Sem ter pejo os relampagos de gloria.
Tentas medir-te c′o soberbo Ovidio.
Na apoquentada epigraphe acoutado
D′essa sem par metamorphose eterna,
Aonde o triste pensamento enjòa.
Pela enfadonha somnolenta phrase!
Nas satyras não fallo venenosas,
Em que impera a calumnia, socia tua.
Ou te divertes com tremendas caras.
Com trombas, que se vão sumindo em lenços.
Ou proferindo, como sempre, á tòa
Mais outros chochos palavrões ensossos,
Com que ha pouco louvaste o Ersaunio vêrme.
Porque fallar só d′elle é dar-lhe a vida.

Tu lhe mandas sequer desprenda um verso,
Um pensamento eu só te peço ao menos,
Que nas azas do metro e sentimento
Não toque ouvidos só, como os teus versos,
Mas subito alvorote o peito arfando;
Echo de auctores, pequenino Elmano,
Sonoroso, monótono, apoucado.
Que não sabes tirar pulsando a lyra
Sem, que arremede a voz da natureza
Hyperbolico auctor desesperado
D′oucas repetições as obras matas,
Coalhas a podre, insupportavel massa,
Metrico impulso te flammeja a mente;
Mas olha inda o declive em que és por ora
De remontar á brilhadora esphera!
Para colher do Pindo egregio louro
Não basta deslizar canoro accento,
Soltando de improviso o dique ás vozes.

Mas debalde minha alma se afadiga,
Que os meus consellios só te valem risos;
Porém desabafei, mostrei-te aos pangas.
Que embasbacados te lauream nume,
Qual o pastrano camponez papalvo,
Pasma, encarando da cidade os nadas.


PAG. 124 — SONETO XIX


A respeito da origem d′este soneto contou-se-nos que tendo Bocage sido iniciado em uma das LL.*. Maçonicas que n′aquella epocha existiam em Lisboa (de que era Ven.*. Bento Pereira do Carmo, e Orad.*. José Joaquim Ferreira de Moura, ambos deputados ás Côrtes de 1821 e 1823, e bem conhecidos na historia politica dos nossos tempos modernos) frequentára durante alguns mezes aquella associação, assistindo ás suas reuniões, até que desavindo-se um dia com os Ir.*. por qualquer motivo que fosse, em um accesso de cholera rompera extemporaneamente n′este soneto, que rasgou depois de escripto; mas alguem o tinha já copiado, aliás succeder-lhe-ia o mesmo que a tantas outras producções do auctor, irremediavelmente perdidas.

Doctor macaco — José Joaquim Ferreira de Moura tinha eflfectivamente uma physionomia amacacada como ainda se mostra do seu retrato, e gaguejava algum tanto, segundo dizem os que o conheceram.


PAG. 125 - SONETO XX


Tanto este como os que se seguem XXI, XXII, XXIII e XXIV acham-se impressos no tomo I da já citada edição de Bocage; mas pareceu acertado reproduzil-os por conterem variantes; como se verá da respectiva confrontação de cada um d′elles com o que lhe corresponde. Lá se encontrará também a indicação dos seus assumptos, que por superflua deixamos de trasladar aqui.


PAG. 130— SONETO XXV


Na collecção de Couto, já por vezes mencionada, vem este soneto com o seguinte titulo, que fielmente copiamos:

« Em dialogo, a certo Fidalguinho que, pedindo vir
« com licença a Lisboa da guerra do Roussillon por
« cá se deixou ficar; até que o obrigaram a voltar:
«o estylo é rasteiro, attentas as pessoas que fallam.»


PAG. 131— SONETO XXVI


A proposito d′este soneto, ajuntaremos aqui outros de assumpto analogo, que todos teem sido em diversos tempos attribuidos a Bocage, mas que de certeza sabemos lhe não pertencem. O primeiro é de Fr. José Botelho Torrezão, frade paulista, fallecido em 1806; — o segundo de José Caetano de Figueiredo, official maior que foi da Junta do Commercio; — o terceiro de Francisco Manoel do Nascimento. Dos outros não podemos assignar ao certo os nomes de seus auctores.

Do throno excelso nos degraus sagrados
D′Assiz o patriarcha ajoelhára:
E consta que d′esta arte se queixára
Ao Deus, que rege o céo e move os fados:

«Grande Deus, com que pejo relaxados
«Vejo os filhos, que outr′ora abençoára!
«Já entre elles o vicio se descara,
«Já de Christo não são, da fé soldados!

«Eu te rogo, senhor, que aos loucos brades,
«E lhe avives a fé no paraiso?...»
Riu-se de Deus, e lhe disse: — Não te enfades:

—Frades não fiz, de frades não preciso;
Quando o mundo souber o que são frades,
Ha de extinguil-os, se tiver juizo.




Encontrei certo Leigo franciscano,
Com os olhos no chão, pedindo esmola;
Dos hombros lhe pendia alva sacola,
Celeiro, que dá pão p′ra todo o anno:

Queria o leigo armar-me um bello engano,
E fazer-me cahir na carriola;
Mas eu que sigo esta moderna escóla,
Só chicóte daria ao tal magano:

Como é possivel que a nação contente
Mantenha ufana, e liberal soccorra
A tão inútil e ociosa gente?

Elles tem que comer á tripa-forra;
Eu, por mais que trabalhe, ando indigente.
Se o torno a encontrar, dou-lhe co′a porra!




Christo morreu ha mil e tantos annos;
Foi descido da cruz, logo enterrado;
E ainda assim de pedir não tem cessado
Para o sepulchro d′elle os franciscanos!

Tornou a resurgir d′entre os humanos;
Subiu da terra ao céo, lá está sentado;
E á saúde d′elle sepultado
Comem á nossa custa estes maganos:

Cuidam os que lhes dão a sua esmola
Que ella se gasta na funcção mais pia...
Quanto vos enganais, oh gente tola!

O altar mór com dous côtos se allumia:
E o fradinho co′a puta, que o consola.
Gasta de noute o que lhe daes de dia.




Padre Frei Cosme, vossa reverencia
Se engana, ou enganar-nos talvez tenta:
Quem as riquezas dá, quem nos sustenta,
Não é de Deus a summa providencia?

Pois logo com que cara ou consciencia
Esmola pede, e arrepanhar intenta
Para o Senhor da Paz, ou da Tormenta?
Tem Deus do homem acaso dependencia?

Tire a mascara pois, largue a sacola,
E deixe o povo, a quem impunemente
Em nome do Senhor escorcha, e esfola:

Á viuva deixe a esmola, e ao indigente;
E não queira, hypocrita farçola
Foder á custa da devota gente.




Lingua mordaz, infame, e maldizente,
Não ouses murmurar do bom prelado:
Inda que o vejas com Alcippe ao lado.
Amiga não será, será parente:

Geral da Ordem, prégador potente,
No jogo padre-mestre jubilado,
E tambem caloteiro descarado
Pode ser que o repute alguma gente:

E que te importa que fornique a moça?
Que prégue o evangelho por dinheiro?
Que em vez de andar a pé ande em carroça?

Talvez que d ′isso seja um verdadeiro
Dos monges exemplar, da Serra d′Ossa
Pois que dos monges é hoje o primeiro.


PAG. 132 — SONETO XXVII


Conforme a opinião de alguns, este soneto é do desembargador Domingos Monteiro d′ Albuquerque e Amaral; — outros porém affirmam ser de Bocage. Os leitores assentarão o juizo que melhor lhes parecer.


PAG. 134 — SONETO XXIX


Tanto este, como o que adiante segue sob n.° XXXII, andam em algumas collecções attribuidas ao Abbade de Jazente.


PAG. 139 — SONETO XXXIV


Para perfeita intelligencia d′este soneto, que de outra sorte ficaria talvez impenetravel à percepção dos leitores, ajuntaremos aqui resumidamente a historia que forneceu o assumpto de tal composição, a qual não deixa de ser curiosa, e vai fielmente extrahida dos apontamentos, que a esse respeito nos foram communicados.




HISTORIA MARAVILHOSA DA INTITULADA BEATA D'EVORA


Junto á porta de Alconchel, na cidade d′Evora, vivia na companhia de seus paes uma beata, moça de vinte e dois annos, e de muitos bons bigodes, chamada Anna de Jesus Maria. Esta serva do Senhor fôra por algum tempo confessada de fr. João de Santa Euphrasia, da ordem dos Carmelitas descalços, e morador no convento dos Remedios, da mesma cidade: porém, morrendo este, tomou-a debaixo da sua direcção espiritual um fr. Felix, que passados tempos teve de ausentar-se da cidade e antes da sua partida traspassou a beata a outro masmarro da sua ordem. Este ultimo, satisfeito em extremo de tão bella acquisição, dava a Deus continuos louvores por tel-o ali enviado, afim (segundo elle dizia) de dirigir e encaminhar para a bemaventurança aquella alma predestinada, cujas singulares virtudes apregoava por toda a parte á bocca cheia. Depois de terem ambos abusado por algum tempo da credulidade e fanatismo, não só do vulgo ignorante, mas até de individuos de mais elevada esphera, que por suas circumstancias deveriam julgar-se fóra do alcance de tão ridiculas suggestões, entenderam o frade e a confessada que podiam levar a audacia mais longe, e concertaram entre si uma farça, de que esperavam colher um resultado maravilhoso. Começaram pois a assoalhar entre os seus conhecimentos que por divina revelação fôra annunciado á beata que no dia de S. Miguel, 29 de Setembro de 1792, pelas nove horas e meia da noute havia de infallivelmente morrer; querendo Deus chamal-a a si no proprio instante em que completava os seus vinte e dois annos. A noticia d′esta especie de prophecia espalhou-se velozmente por toda a cidade; isso era o mesmo que os interessados desejavam; e grande numero de pessoas, preocupadas pela opinião de virtude da santinha, guardavam anciosamente o cumprimento da promessa divina. Chegado que foi o dia, em que devia realisar-se o vaticinio, o arcebispo D. Joaquim Xavier Botelho de Lima, que era, ou fingia ser um dos que mais acreditavam nos embustes da beata e do seu director, quiz authenticar o milagre, em modo que não ficasse logar para as duvidas dos incredulos. Mandou portanto sair da casa da santa o padre confessor e o prior do convento, seu fiel companheiro; e ordenou a quatro clerigos da sé que alternadamente assistissem dois e dois á beata, dia e noute, até chegar a hora prophetisada, para serem testemunhas do seu miraculoso transito.

Cumpriram os clerigos a determinação do prelado; e tudo correu na melhor ordem. Porém vendo que o praso promettido era passado, e que a santinha se conservava de perfeita saude, sem que apresentasse o mais leve indicio de uma morte proxima, entenderam que deviam retirar-se; despediram-se d′ella, e abalaram para suas casas. Ainda bem não tinham cruzado a porta, e já o pae da menina corria apoz elles, a annunciar-lhes que n′aquelle mesmo instante déra a alma ao creador! — Voltaram attonitos os bons clerigos, pezarosos sem duvida de não terem presenciado o prodigio; acha-ram-n′a com effeito já amortalhada no habito de Santa Theresa; e para ser mais cabal o milagre, tinha as mãos e pés estigmatisados com chagas similhantes ás do nosso divino redemptor! — Quem ousaria ainda duvidar da verdade, depois de tão claramente manifestada? Os clerigos promptamente se persuadiram e correram logo a levar ao arcebispo a noticia do successo.

Entretanto appareceu o padre confessor, declarando aos circumstantes, que começavam a affluir, ter sido elle o que mesmo do convento impozera preceito á santa para que morresse, logo que os clerigos saissem; porquanto sem permissão d′elle o não podia fazer. Apresentou-se em seguida a communidade de cruz alçada, e começou a altercar com o parocho de S. Antonio acerca de quem levaria aquelle bemdicto corpo para a sua egreja. O povo amotinado corria em chusma para a casa da beata; todos pretendiam vêr com os proprios olhos tão estupenda maravilha... Eis que o frade começa a pregar com grande ancia, preconisando a defuncta pela maior de todas as santas nascidas em Portugal; narrou um milhão de suas virtudes e milagres; affirmou a todos que Deus estava n′ella; disse-lhes que a adorassem: e finalmente para mais enthusiasmar os pios ouvintes, volta-se para a bisbilholeira que jazia amortalhada e diz-Ihe: «Anna! Em virtude da santa obediencia abre os olhos!» (E ella os abriu, tamanhos como duas cebolas). «Anna! Cruza os braços!» (E a defuncta, que os tinha estendidos, os cruzou effectivamenle). «Anna! Abençoa os que aqui estamos!« (E ella assim o fez). — Mandou-lhe que declarasse onde estava: ella respondeu que já tinha ido ao céo, e que la encontrara fr. João de Santa Euphrasia, que eslava dizendo missa, o qual lhe dera a chuchar metade do calix! — Finalmente satisfazia com presteza a tudo quanto o frade lhe ordenava. Os espectadores enternecidos á vista de tantos prodigios, e lavados em lagrimas, começaram humildes a beijar-lhe os pés, tocando lenços, contas e veronicas nas suas chagas. Repicaram-se os sinos por todos os campansrios da cidade; começaram de affluir em tropel os coxos, os cegos e paralyticos, que vinham com muitas lagrimas implorar o remedio para seus males: mas infelizmente para elles saiam como entravam.

Crescia de ponto a devota multidão, e cora ella a desordem, até que as auctoridades tractaram de providenciar , mandando vir tropa, que poz fóra a todos, com promessa de voltarem, ficando a final sós na casa o pae, e a mãe com a supposta defuncta. O official que commandava a tropa, tendo-se retirado para baixo, chegou porém passado algum tempo casualmente á porta: e como ouvisse rumor de vozes no quarto onde jazia a santa amortalhada com tochas accezas, empurra a porta de repente, e acha-a sentada muito á vontade, conversando sem cerimonia com o pae e mãe! — Ella mal que o viu, estendeu-se novamente, e deixou-se morrer outra vez querendo sustentar a impostura: e os paes com toda a presença d′espirito contaram ao official que sua filha lhes estava declarando o lugar em que no convento dos Remedios queria ser sepultada. Aquelle, que já desconfiava de tanta maranha, deu logo parte do facto ao Arcebispo. Vieram medicos, e acharam-na mais viva que o azougue!

Descoberta a impostura, o povo amotinou-se novamente: mas d′esta vez com o intento de dar cabo da beata, a quem não podiam perdoar a illusão em que haviam cabido. A final foi mandada presa para o recolhimento de Santa Martha. O reverendo padre confessor fugiu, e todos os seus confrades foram suspensos das ordens, e degradados para um convento do Algarve. Tudo porém ficou impune; porque passado algum tempo a beata sahiu do recolhimento, e casou com um soldado , e os frades regressaram para o seu convento, não se fallando mais em tal.

Se a devota pantomina tivesse ido para diante, é provável que mudariam a moça para alguma cella, e que d′esta sahissem para a roda netos de Santa Theresa; como o corpo havia necessariamente de desapparecer do logar do deposito, os frades fariam crer á pobre gente que ella subira ao céo em corpo e alma. Que novo ramo de commercio tão lucrativo para a communidade, e tão proveitoso para as beatas bonitas! E quantas d′estas se terão engolido no mundo!


Além do soneto de Bocage, que deixamos transcripto no texto, a que a presente nota serve de illustração, outros mais appareceram ao mesmo assumpto. Os seguintes, que não deixam de ter seu merecimento, attribuem-se a Miguel Tiberio Pedagache:


I


De c′rôa virginal a fronte ornada,
Em lugubres mortalhas envolvida
A beata fatal jaz estendida,
De assistentes contrictos rodeada:

Um se tem por já salvo em ter chegada
Ao lindo pé a bocca commovida:
Outro protesta reformar a vida:
Porém ella respira, e está córada!

Que é santa, e que morreu, com juramentos
Affirma audaz o façanhudo frade,
E que prodigios são seus movimentos:

O devoto auditorio se persuade:
Renovam-se os protestos, e os lamentos:
Triste religião! Pobre cidade!


II


Acredite, sentado aos quentes lares
Nas noutes invernosas de janeiro,
Lendo em Carlos Magno o sapateiro
As proezas cruéis dos doze Pares:

Crêam que vem as bruxas pelos ares
A chupar as creanças no trazeiro;
Comam quanto lhes diz o gazeteiro.
De casos, de successos singulares:

Porém, que uma beata amortalhada,
Com a cara vermelha e corpo molle,
E sancta por um frade apregoada;

Que respire, que os braços desenrole,
E seja por defuncta acreditada,
Isto somente em Evora se engole!

Voltando ao soneto de Bocage, digamos aqui alguma cousa com referencia ás distinctas personagens n′elle commemoradas.

Heroe da bola chata, etc. — Era D. José da Costa, marechal de campo, e governador d'Evora, que por morte de seu irmão mais velho veio a ser conde de Soure, e tenente general. Foi elle o primeiro que com sua filha bastarda D. Maria José tiveram a honra de ser abenpoados pela santa beata, e de lhe beijarem os pés, tocando seus lenços nas chagas, que ahi se offereciam á veneração dos fieis, feitas prodigiosamente por meio do nitrato de prata!

Falso pastor, etc. — O Arcebispo D. Joaquim Xavier Botelho de Lima, do qual acima fallámos.

O respeitavel Cunha, etc. — Antonio da Cunha Souto-Maior, sargento mór do regimento de cavallaria d′Evora, que não obstante ser tido por homem instruido e desabusado, foi o segundo que teve a alta ventura de beijar o pé á santa!


PAG. 141 A 157 — SONETOS XXXVI A LII


Todos os sonetos comprehendidos nas paginas e sob os numeros indicados, foram por nós trasladados ha quasi trinta annos de um caderno, que continha promiscuamente obras de Bocage, e de Pedro José Constancio, mas sem a devida separação; tornando-se por isso difficultoso, se não impossível, descriminar com certeza entre ellas as que pertencem a um ou outro dos dois poetas; muito mais quando os estylos de ambos offerecem ás vezes tal similhança, que deixa indeciso o juizo mais experimentado.

Por conseguinte pareceu preferivel a idéa de os reproduzir aqui na sua totalidade; o leitor poderá fazer a respeito de cada um as observações que a sua critica lhe suggerir, e estremal-os-ha como fôr do seu agrado.

Pedro José Constancio, a quem indubitavelmente pertencem alguns dos sonetos a que nos referimos, foi bacharel formado em canones pela universidade de Coimbra, filho de Manoel Constancio, cirurgião da camara da Rainha D. Maria I, e conseguintemente irmão do nosso conhecido escriptor Francisco Solano Constancio. Falleceu antes de 1820, e conviveu no seu tempo com a maior parte dos poetas contemporaneos, particularmente com Bocage, e José Agostinho. Homem de vida extravagante e desregrada, soffria por vezes ataques de alienação mental, chegando a apresentar-se nú em pleno dia ás janellas da casa onde morava, no deserto da rua larga de S. Roque! Compoz grande numero de poesias, quasi todas licenciosas, e entre estas um poema allusivo á fornicação dos cães dentro das igrejas, que sendo denunciado ao Intendente Geral da Policia por Pedro Alexandre Cavroé, deu logar á reclusão do poeta por alguns dias na cadeia do Limoeiro; e poderia ter peores consequencias, se não interviessem os rogos e empenhos de alguns amigos, que se interessaram por elle para, com o Intendente. Enfermidades geradas pelos excessos venereos a que se dava, sem escolha nem reserva, o levaram a um estado valetudinario, atrophiando-lhe as faculdades, e tornando-o incapaz de toda a applicação. Victima de seus desregramentos, falleceu antes de completar quarenta annos de edade.

Entre as poucas composiçães suas, que se imprimiram, ha um soneto, que por engano foi inserido como de Bocage, pelo editor do 4.º tomo das obras poeticas d′este poeta, que sahiu à luz em 1812; posto que, mais bem aconselhado, o mesmo editor o expungisse depois na segunda edição do referido volume feita em 1820. Cremos que os leitores não desgostarão de aqui o verem, pois que n′outra parte se não encontra.


SONETO


Para illudir o suspirado encanto,
Por quem debalde ha longo tempo ardia,
« Um ninho achei, oh Lesbia (eu lhe dizia)
« Como é dos pães dilicioso o canto!»

Assim doloso me expressava, em quanto
Um alegre alvoroço em Lesbia eu via:
«Ah! onde o deparaste?» (ella inquiria)
«Vem (lhe torno) comigo ao pé do acantho:»

Por um bosque me fui co′os meus amores,
Pergunta aos ramos pelo implume achado,
E respondendo só vão meus furores:

Conhece... quer fugir ao laço armado.
Na encosta a vérgo, que afofavam flores,
Beijo-lhe as iras... fique o mais calado.



FIM

Notas editar

  1. Na copia que temos presente falta o verso seguinte. [Nota de Inocêncio Francisco da Silva]