CAPITULO XLIX
Instrucção para os que vão pela primeira vez ás Indias.
Sabio é aquelle, diz o proverbio, que para seos negocios se aproveita do exemplo e experiencia dos outros.
Se os nossos francezes, antes de terem ido á India, soubessem o que depois conheceram, teriam melhor dirigido os seos negocios, e nem teriam passado pelos encommodos, que soffreram: o que resolver ahi ir, calcule quanto tempo ahi se pode demorar, junte ainda mais um bocado, porque lá não se tem a commodidade do regresso quando se quer.
Faça seo sortimento para esse tempo, e por duas formas, uma para si e outra para os selvagens afim de obter delles viveres e outros generos.
As suas provisões devem consistir de aguardente forte, do melhor vinho de Canaria, em bons frascos de estanho, bem arrolhados e acondicionados n’uma frasqueira fechada a chave, e esta tão bem guardada, como o seo coração, para servir nas necessidades e nas molestias que podem apparecer.
Fuja de sucia com pessoa alguma, porque então desapparecem bem depressa as suas provisões.
É costume no mar, desde que se suspeita haver vinho ou agoardente na frasqueira de algum passageiro, o pedir-se de vez em quando uma vez d’esses espiritos para beber em companhia, e quando se está em viagem deve-se fazer de duas coisas uma, ou ser-se liberal e para isso não faltam instigações, ou então passar-se por velhaco, e soffrer todas as injurias, que lhe queiram fazer.
O meio mais seguro para evitar estas coisas é não entrar em sucias.
Para a passagem do mar deve surtir-se de algum vinho tinto, e de coisas iguaes para quando precisar visto o trivial do navio ser muito mal preparado.
Deve fornecer-se de um bom numero de camisas, lenços, e vestidos de fustão, e não de estofos pesados, excepto os vestuarios para festas, porque n’este paiz não se precisa senão de pannos leves.
Leve sabão para o aceio da casa, muitos sapatos porque lá não achará um só, senão os que para ahi forem levados e por alto preço, de forma que pelo preço de um par tereis em França uma duzia, toalhas, guardanapos, lençóes e um bom colchão, e se quizerdes viver á francesa, isto é, com limpesa, deveis levar baixela de estanho para quando estiverdes doentes.
Devereis levar assucar, boas especiarias, uma porção de rhuibarbo muito fino, tudo bem acondicionado n’uma caixa para livrar o assucar das formigas do paiz, porque é impossivel imaginar-se o que fazem estes animaesinhos, que metem-se por toda a parte, e tudo trespassam se é de madeira.
Devem essas caixas ser feitas de ferro branco.
As mercadorias pelas quaes dos Indios obtereis em troca viveres e outros generos do paiz, e escravos para servir-vos e cultivar vossas roças, são as seguintes — facas de cabo de pau, de que usam os magarefes, e muito apetecidas pelos selvagens, muitas thesouras de bolsa de couro, muitos pentes, contas de vidro verde-gaio, a que chamam missanga, foices,[NCH 87] machados, podões, chapeos de pouco valor, fraques, camisollas, calções de adellos, espadas velhas, e arcabuses de pouco preço.
Dão muito apreço a tudo isto, e assim tereis escravos e bons generos.
Não esqueçaes tambem pannos verdes-gaios, e vermelhos de pouco valor, porque não fazem grande differença dos estofos, rosetas, assobios, campainhas, anneis de cobre dourado, anzóes, alicates de latão chatos, com um pé de cumprimento e meio de largura, tudo isto por elles muito apreciado.
Assim bem providos destes generos, não duvideis de serdes bem vindo entre elles: ahi não deveis viver vida folgada, e muito negocio fareis n’esse paiz pelo qual pouco dareis, se souberdes guiar-vos.
Assim preparado, não vos esqueçaes do principal, que é antes de embarcardes purificar e robustecer vossa alma com o Santissimo Sacramento da confissão e da communhão, dispondo todos os vossos negocios como quem não sabe se o mar lhe permittirá o voltar.
Apenas embarcado, fazei vossa cama o mais perto, que fôr possivel, do mastro grande para evitardes o balanço visto ser ahi o lugar mais quieto do navio.
Deve-se sempre temer a Deos, porem não receiar os acasos do mar, sendo melhor mostrar o rosto tranquillo do que desassocegado, visto de nada servir o medo.
Não vos assusteis senão quando os pilotos implorarem misericordia, porque então é preciso cuidar da alma, visto irem mal as cousas.
Quando virdes o navio navegando de lado, as caixas viradas, o mar entrando no convez, as vellas molhando-se nas ondas, os marinheiros jurando e buffando,[NCH 88] não vos assusteis, mostrae-vos sempre de animo prasenteiro, não vos descuidando porem da vossa consciencia.
Não questioneis com algum marinheiro, pois com isso nada alcançareis.
Quando chegardes ao porto, não vos apresseis em saltar, cuidae primeiro nas vossas mercadorias e bagagem, porque acontece muitas vezes visitarem a bagagem, e serrarem os caixões, onde vem os generos, de maneira que se possa introduzir a mão.
Fazei conduzir tudo em vossa companhia para casa do vosso Compadre, que deveis escolher com estes predicados se fôr possivel.
1.º Que tenha escravos, canôa e cães, para não sentirdes falta de peixe e de caça, senão raras vezes tereis estes generos, sendo necessario compral-os aos selvagens, e assim muito cara vos seria a vida.
2.º Indagae se elle tem bom genio especialmente a mulher, porque nada ha peior do que má hospede.
Se encontrardes bom acolhimento, convem fazer alguns presentes, e depois deveis trazel-os sempre na esperança de outros, sem serdes comtudo muito liberal, e por isso todos os mezes lhe deveis dar alguma coisa afim de não vos chamarem avarento, e como tal não vos apregoem entre os seos iguaes, criando assim difficuldades quando quizerdes obter alguma coisa.
Não vos deixeis prender pelos affagos das filhas dos vossos hospedes, ou de outras, pois não vos faltarão caricias se souberem que tendes mercadorias.
Em tudo o mais é preciso andar prevenido, tendo sempre bem presente á memoria o acaso e o perigo, que fazem contrahir molestias sórdidas áquelles, que de si se esquecem.
Podeis livrar-vos d’isto com facilidade, mormente se considerardes o grande peccado, que commeteis.