SEGUNDO TRATADO.

 

CAPITULO I

Dos fructos do Evangelho, que appareceram cedo pelo baptismo de muitos meninos.
 

O cantico segundo, (representando allegoricamente a origem da Igreja, em terra nova, ainda não illuminada pelo conhecimento do verdadeiro Deos) diz: Vox turturis audita est in terra nostra: ficus protulit grossos suos: vineæ florentes dederunt odorem suum: «foi ouvida a voz da rolla em nossa terra: produzio a figueira seos figos verdes, e as vinhas em florescencia derramaram seo aroma.»

Interpretando estas palavras Rabbi Jonathas, diz em sua Paraphrase chaldaica, que a vóz da rolla significa a vóz do Espirito Santo annunciando a Redempção promettida a Abraham, pae de todos os crentes: eis suas proprias palavras: — Vox spiritus sancti et redemptiones quam dixi Abrahæ Patri vestro: «a vóz do Espirito Santo e da Redempção, que prometti a Abraham, vosso Pae.»

Diz mais, que pela figueira deve entender-se a Igreja, e que pelos figos novos se representa a confissão da fé, que devem os crentes fazer diante de Deos, e finalmente que pelas vinhas em flor exhalando bom cheiro são indicados os meninos louvando o Senhor dos seculos: Cœtus Israel, qui comparatus est precocibus ficubus aperuit os suum, et etiam pueri et infantes laudaverunt Dominatorem sæculi: em nosso tempo vimos isto realisado em Maranhão, e suas circumvisinhanças, onde depois que á vóz do Espirito Santo, por meio da prédica do Evangelho, se fez ouvir n’estas terras, e tocou o coração de muitos, especialmente dos que solicitaram o baptismo, a bella figueira da Igreja produzio novos figos, que são as almas sahidas de infidelidade para a crença do verdadeiro Deos, e então as vinhas em florescencia exhalaram seo cheiro quando em suas cabeças receberam os meninos as agoas do baptismo, louvando o Senhor dos Seculos pela parte que ja tomavam do sangue de Jesus Christo e da fé da Igreja.

Coisa admiravel, digna de ser bem pensada e considerada: apenas a vóz do Evangelho trovejou, e fuzilou por essas florestas desertas, por estas sarças, cheias de agudos espinhos, esses pobres bichos (esses selvagens) presos nos laços do cruel caçador Satanaz, começaram animados pela força e impetuosidade d’essa vóz a construir seus pequenos templos, como outr’ora tinha predicto o Propheta Rei David no Psalmo 28. Vox Domini præparantis Cervos, et revelabit condensa et in templo ejus omnes dicent gloriam: a vóz do Senhor amançando os viados, descobrirá o interior das brenhas e das sarças e no seo Templo todos entoarão louvores á elle.

Explicam os doutos, em varias licções, estas palavras dizendo que á voz do Senhor parem os bichos seos filhos, á similhança da mão da parteira ou do cirurgião habil, que serve para tirar do ventre da mulher o menino sam e salvo.

Esta voz não é outra, a darmos credito aos naturalistas, senão o ribombo do trovão, e a luz do relampago, que por um segredo muito intimo da naturesa faz com que param as femeas dos animaes ferozes.

O mesmo produz a prédica do Evangelho, animada e vivificada pelo Espirito Santo, excitando o coração d’estes barbaros, ha muito tempo internados nas sarças e brenhas da ignorancia, da infidelidade, e dos maos costumes.

Nas casas grandes não se falla mais de outra coisa senão do conhecimento de Deos, contando cada um o que ouvio de nós quando veio visitar-nos, e terminando essas especies de conferencias pela manifestação do grande desejo, que tinham de vêr seos filhos baptisados e elles tambem, por meio d’estas e outras palavras similhantes.

Que coisas, diziam elles, são estas, que os Padres nos contam por meio dos interpretes? Nunca as ouvimos iguaes.

Nossos paes, ja por tradicção nos contaram, que outr’ora veio aqui um grande Maratá de Tupan,[NCH 92] isto é, Apostolo de Deos nas provincias, onde residiam, e lhes ensinou muitas coisas de Deos: foi elle quem lhes mostrou a mandioca, as raizes para fazer pão, porque antes só comiam nossos paes raizes do matto.

Vendo este Maratá, que nossos antepassados não faziam caso do que dizia, resolveo deixal-os, mas antes quiz dar-lhes um testemunho de sua vinda aqui, esculpindo n’uma rocha uma especie de mesa, imagens, letras, á fórma de seos pés, e dos seos companheiros, as patas dos animaes, que trasiam, os furos dos cajados, a que se arrimavam em viagem, o que feito passaram o mar, procurando outra terra.

Reconhecendo nossos paes sua falta, procuraram-no muito, porem nunca d’elle tiveram noticias, e até hoje ainda não veio visitar-nos algum Maratá de Tupan.

Muito tempo ha, que frequentamos os francezes, e nenhum d’elles nos trouxe padres, e nem nos contou o que por seos interpretes nos dizem os padres.

Por exemplo fazem viver de maneira diversa os Caraibas.

Prohibem os francezes de tomarem nossas filhas, o que outr’ora faziam com facilidade, dando-nos em troca algumas mercadorias.

Dizem grandes coisas de Deos, e á elle fallam em suas Igrejas, e para isso fecham as portas, fazem-nos sahir para que desça Tupan diante d’elles, e então si ajoelham todos os Caraibas.

Bebe e come Tupan em bellos vazos de oiro, e em mesa bem preparada e ornada de bellos estofos, e bonitos pannos de linho.

Adornam-se com ricos vestuarios, e quando querem fallar aos Caraibas assentam-se no meio d’elles, e somente falla um Padre, que está assentado.

Escutam-no todos os francezes, falla por muito tempo, cança-se, ninguem o entende porem todos ahi estão firmes.

Depois que este falla, cantam uns depois de outros, de lado a lado, lêem n’um Cotiare, (n’um livro) o que cantam e dizem elles que assim estão fallando á Deos.

Julgam nossos paes perdidos com Jeropary, ardendo em fogos subterraneos, e riem-se de nós quando choramos e lamentamos nos funeraes de nossos parentes.

Mandam atirar no matto a comida, a bebida, e o fogo, que costumamos dar aos nossos parentes defunctos para fazer a viagem até onde estão nossos avós nas montanhas dos Andes.

Elles nos dizem e prégam, que somos muito tollos em dar credito aos nossos barbeiros e feiticeiros, especialmente ao seo sopro para o curativo dos infermos.

Fallam com altivez contra Jeropary, e não o temem de fórma alguma.

Promettem aos que crêem em Tupan, e que elles lavam com suas mãos, de subir ao Céo por cima das estrellas, do sol e da lua, onde está Tupan sentado, e em roda d’elle os Maratás, e todos os que acreditam em suas palavras, e são por elles lavados.

Regeitam raparigas e mulheres, dizendo que o filho de Tupan não as teve, sahindo do ventre de uma rapariga chamada Maria com a qual nunca seo marido teve relações.

Ha dias nos quaes não comem carne embora lh’a offereçam.

Não se passam dez dias, contando pelos dedos, que não mandem os Francezes vestirem-se com roupas bonitas, e irem a casa de Tupan fallar com elles e escutar a palavra de Deos.

Vestem-se de maneira diversa dos outros francezes, caminham diante d’elles, e todos os saudam. Convivem sempre com os grandes, que lhes fazem tudo quanto querem, e dizem até que abandonaram suas riquezas e fazendas para mais livres conversarem com Tupan, e manifestarem a vontade d’elle aos francezes.

Quando vamos vel-os, nos acariciam, especialmente a nossos filhos dizendo-nos, que já não nos pertencem e sim a elles, sendo-lhes dados por Tupan.

Que não nos penalizemos por isso, porque nunca nos deixarão e nem nossos filhos: que elles são muitos em França, que todos os annos virão outros, que depois de haverem educado e ensinado nossos filhos, os farão fallar em Deos tão familiarmente como elles o fazem: que lhes ensinarão a rotiarer (a escrever) e a fazer fallar o papere (o papel) mandado de muito longe aos que estão auzentes.

Dizem-nos que seo Rei é poderoso, que os ama, e nos ajudará em quanto elles estiverem comnosco. Ah! porque não somos mais moços para vêr as grandes coisas, que farão os Padres em nossas terras! Elles construirão com pedra grandes Igrejas como ha em França.

Trarão bellos estofos para ornar o lugar, onde desce Tupan. Mandarão buscar miengarres, isto é, musicos cantores[NCH 93] para entoarem as grandezas de Tupan.

Recolherão todos os nossos filhos n’um lugar, onde alguns dos Padres cuidarão d’elles. Mandarão buscar de França mulheres para ensinarem o que sabem á nossas filhas. Não nos faltarão ferramentas para nossas roças. Ah! diziam alguns d’elles em continuação, si chegarmos a vêr essas mulheres em nossas terras, então temos certesa que não nos deixarão os francezes, e nem os Padres, especialmente si nos derem mulheres de França. Si eu tivesse, disse um d’elles, uma mulher franceza não queria outra, e faria tanta roça que havia de chegar para sustentar tantas francezas, como de dedos eu tenho nas mãos e nos pés, isto é, vinte, numero infinido para significar muito, porque depois de terem chegado a vinte, começam a contar de novo.

Levantando-se então elle, que era o Principal no meio do grupo, em que me achava, e batendo nas nadegas com quanta força tinha, disse Aça-uçu, Kugnan Karaibe, Aça-uçu seta, &. «Amo uma mulher francesa com todo o meu coração, amo-a extremosamente.»

Respondeo o Cão grande, tambem Principal — «prometteram-me uma mulher francesa, que desposarei na mão dos padres, e me farei christão como fiz meo filho Luiz-galante, e quero ter em pouco tempo um filho legitimo. Minha primeira mulher está velha, e por isso não precisa mais de marido, e as outras oito, ainda moças, as darei por esposas a meos parentes, e ficarei só com a mulher de França, e minha velha mulher para nos servir.»

Faziam outros iguaes discursos em suas cazas grandes e na minha residencia, ou quando me viam passar, contentando-me de referir apenas o que acima escrevi para mostrar o fervor d’estes barbaros, suscitado pelo Divino Espirito Santo.

Vox turturis audita est in terra nostra, para produzir de seo seio fechado e preoccupado por mil infecções estes bellos e amigaveis viadinhos, vox Domini præparantis Cervos, e em outro logar Cerva charissima e gratissimus hynnulus, cap. 5º dos proverbios, «a côrça muito estimada, e o templo muito lindo.»

Continuemos.

A estas palavras seguio-se logo a pratica, porque foram muitos meninos entregues ao Rvd. padre Arsenio, residente em Juniparan, e a mim, morador em São Francisco, perto do Fórte de São Luiz, para acudir aos francezes e receber os Indios de outras terras, que todos os dias nos vinham vêr e conhecer, si era verdade o que de nós se dizia em longes terras.

Foi esta a divisão, que fizemos, de tantas e tão grandes terras para cultivar e lavrar o que permittissem nossas forças, cuidando um de uma parte e outro de outra, excepto quando houvesse necessidade de sahir da Ilha, porque então se tomariam providencias adequadas.

Impossivel é á palavra o pintar o contentamento e a alegria, que sentiamos vendo estes selvagens trazer-nos seos filhos, voluntaria e expontaneamente, para serem baptisados, preparando-os o melhor que podiam com os meios offerecidos pelos francezes, isto é, vestidos com um pedaço de panno de algodão, escolhendo padrinhos entre os francezes, contrahindo assim com elles estreita alliança, especialmente com os meninos baptisados, si estivessem em idade de o conhecerem, porque então considerariam seos padrinhos como seos proprios paes, chamando-lhes pelo nome de cheru, «meo pae» e sendo pelos francezes chamados os rapazes cheaire «meo filho,» e as meninas cheagire «minha filha»: vestiam-nos em summa o melhor, que podiam, e os selvagens, paes dos meninos baptisados, lhes offereciam todas as commodidades resultantes de suas roças, de suas pescarias, e caçadas.

Vendo assim estas cousas, lembrava-me do que diz o cap. 5º dos canticos. Oculi ejus sicut cólombæ super rivulos aquarum, quæ lactæ sunt lotæ, et resident juxta fluenta plenissima: «os olhos de Jesus Christo, esposo da Igreja, parecem-se com os olhos da pomba, orvalhada de leite, que contempla os regatos das fontes, e faz seo abrigo e morada nos rochedos, que abrangem rios amplos e espaçosos.»

Estes olhos de Jesus Christo são as graças do Espirito Santo, que fazem quebrar seos ovos á maneira das tartarugas, expostos á mercê das innundações do mar e da frialdade da areia.

Tem estes mesmos olhos por plano e fim lavar e purificar as almas, especialmente as almasinhas rociadas de leite. Assim como a pomba branca brinca sobre os riachos, e habita á margem dos grandes rios, assim tambem o Espirito Santo folga e muito na conversão de uma terra nova, e encara com bons olhos a sahida d’estas almasinhas do estado geral d’estas terras barbaras, a saber, da ignorancia de Deos para chegar a conhecel-o por meio das agoas do baptismo, partecipantes, como nós, da visão de Deos, porque não fazem accepção de ninguem, visto que estas almas barbaras lhe custaram tanto como as nossas.

Oh! preço infinito! oh! falta de caridade, que não tem desculpa perante Deos, de se verem tantas almas pedindo a salvação, sem embaraços e riscos, e em risco de se perderem por não haver um pequeno auxilio.

Bom Deos! todos nós acreditamos, e Jesus Christo confirma esta crença, que uma só alma valle mais que todo o resto do mundo, isto é, que todos os imperios, e reinados da terra, que todas as riquezas e thesouros do homem: mais ah! não temos difficuldade de pôr em execução nossas crenças.

Não posso deixar este assumpto sem primeiro declarar a luta interior, que experimentei, para fazer vêr e descarregar minha consciencia tanto quanto a julgo compromettida, parecendo-me bastante para minha justificação e defesa o que acabo de dizer.

Li e notei em bons auctores, profundos e perspicases no conhecimento dos segredos e mysterios da Escriptura, que as pombas brancas orvalhadas de leite eram certas pombas, que os Syrios creavam em honra e veneração de sua rainha Semiramis, sendo prohibido matal-as sob pena de morte.

Contam-nos os antigos ter-se esta rainha immortalisado por um acto memoravel, entre seos altos feitos d’armas, o mais milagroso quanto é possivel á grandesa dos reis, qual a suspensão entre o Céo e a terra de seos jardins, pomares, e bosques de recreio.

Salomão procurou esta comparação entre as coisas profanas para mostrar uma obra divina notavel entre as outras, qual a conversão das almas, inteiramente reservada ao poder de Deos por ser uma segunda creação pela qual assim como suspendeo a terra no ar, assim tambem suspenderá jardins, pomares, e florestas de sua igreja com surpresa dos calculos e juizos humanos, afim do dar lugar aos seos predestinados e eleitos chamando-os quando lhes apraz, no meio dos desertos, e do interior das mais vastas e densas florestas.

Antes de ir adiante, não deixarei escapar a coincidencia que se nota entre a grande Semiramis e Maria de França, rainha christianissima.

Semiramis rainha reinante e tutora do seu filho o rei d’Asyria emprehendeo grandes coisas, em beneficio e sustentaculo do imperio de seo filho.

Igual caso se dá com a nossa rainha, e embora Semiramis tenha em seo tempo feito muitas obras magnificas, pelas quaes grangeou o amor e a obediencia de seos subditos mais do que outra qualquer, sua antecessora, a immortalidade de seo nome foi devida a seos edificios miraculosos.

Com igual razão direi, que entre as heroicas acções da rainha, mãe do rei, que levaram a posteridade seo nome immortal, conta-se a missão dos padres capuchinhos ás terras do Brasil para ahi plantar os jardins da igreja, começada e fundada sob sua authoridade e ordem, e assim será o Brasil obrigado a sustentar estas pombas brancas em memoria e lembrança de tão grande Semiramis que tem tanta piedade como poder para aperfeiçoar esta empresa.

Ainda vos peço, que em nossas pequenas pombas rociadas de leite deveis vêr os filhinhos dos selvagens conduzidos ao gremio do christianismo pelo baptismo.

Ha cinco annos, pouco mais ou menos, nem havia desejo de se intentar a cathequese d’esta gente.

O diabo ahi mandava com imperio, arrastava para si todas estas almas sem pagar dizimo a Deos, porem presentemente, em quanto durar e continuar a missão, com o auxilio de Deos ouvireis dizer quaes os grandes fructos, ja colhidos, e outros que se colhem todos os dias.

A nossa maior consolação, a que nos fazia soffrer as amarguras e as difficuldades dos trabalhos, que ahi não nos faltavam, era vêr a franqueza e boa vontade, com que os selvagens nos apresentavam seos filhos para serem baptisados dizendo então nós, em conversa com elles, que para nós nada havia mais agradavel do que o trazerem elles seos filhos á pia baptismal, e sempre que comnosco fallavam era assumpto da conversa a manifestação de seos desejos por verem seos filhos por nós baptisados.

Poderia aqui reproduzir muitos exemplos para confirmar esta verdade, mas como tenho de referil-os em lugar proprio, deixo-os agora de mão.