Índice
editar- Capítulo I: Recepção íntima
- Capítulo II :Um jovem contemporâneo
- Capítulo III: Exercício preliminar
- Capítulo IV: Primeiro, o amor...
- Capítulo V: O incidente fatal
- Capítulo VI: O mais feliz dos três...
- Capítulo VII: Diversões úteis
- Capítulo VIII: Uma grande festa
- Capítulo IX: Episódio teatral
- Capítulo X: Sports
- Capítulo XI: Desastres
- Capítulo XII: O epílogo dos desastres
- Capítulo XIII: Após tremenda tempestade...
— Mais um bolo?
— Obrigada. Ouvimos o Chagas. Está famoso.
— Oh! Dando apenas as últimas alcunhas do Lírico...
— Aposto que não sabe...
— A do presidente ou a do cardeal?
A Sr.ª de Melo e Sousa parou, olhando a sala. Seria inconveniente perguntar a alcunha de alguma pessoa presente. A Sra. de Melo e Sousa era muito bem-educada desde criança.
— Por exemplo, a do Florimundo - atalhou a menina Laura Gomes, que não era bem-educada.
— Ah! essa é o puzzle - fez o Chagas olhando o sujeito ao fundo.
— Por quê?
— Ora! Porque esgota a paciência dos credores e é mudo como um peixe.
As senhoras fingiram rir. As primeiras alcunhas tinham sido mais felizes. Era, naquele inverno, a recepção inicial da Sra. Gomes Pedreira.
Mme. Gomes Pedreira, Malvina para os íntimos, com os seus cinqüenta anos discretos posto que adiposos, afadigava-se em recepções. Com dois filhos apenas, Jacques, cujo curso de Direito se completara dias antes, e Gastão, ainda num equiparado de padres, distante, era ela quem dirigia o serviço, preparava os bolos nas pratarias, revolucionava a pouca vontade evidente dos criados. Podia ter uma governante. Era, porém, uma questão de hábito. A força do hábito obrigava-a. Todos os anos invariavelmente em Petrópolis, decidia não abrir mais a sua sala do Rio em dias certos. Em seguida, continuava a fazer o que fizera no ano anterior. Continuar é ainda uma das ações mais fáceis deste mundo, que a calúnia chama hostil. Assim, Malvina descia de Petrópolis sempre numa linda manhã de abril, acompanhada por muitas malas e por duas criadas. A sua primeira frase era invariavelmente a mesma:
— Meu Deus! que calor faz cá!
Em seguida tomava um carro. Ao chegar a sua residência de Botafogo, vasto casarão apalacetado, presente de noivado que o marido já hipotecara, repetia também invariavelmente:
— Santo Deus! Em que estado puseram a minha casa!
E encetava uma arrumação geral. Aborreciam-se todos os criados, os patrões, ela principalmente, e, acabada a arrumação, a casa era cada vez mais a mesma coisa. Ao cabo de um mês, não tendo outro meio para se enfezar e enfezar os serviçais, marcava o dia da abertura semanal dos seus salões. Temperamento.
Naquele ano fora tal qual. A Sra. Gomes Pedreira passara quatro meses desesperados na cidade de verão. Como seu marido, o célebre advogado Gomes Pedreira, consultor de várias companhias inglesas, era um fino homem, muito relacionado, a esposa vivia numa roda-viva, sempre a aceitar e oferecer (oferecer mais, sempre), almoços, jantares, festas a ilustres conhecidos, quase desconhecidos e mesmo por conhecer. Gente bem cotada, eles! Isso irritava-a. Seria decerto pior entretanto se não tivesse tantas relações. Ao demais, os rapazes inquietavam-na. Gastão, em férias, alugara um cavalo e um automóvel (ambas as conduções ao mesmo tempo), e fizera por questões de recibos escândalo num certo campo de lawn tennis da melhor roda, em que os freqüentadores se dividiam em dois grupos: o das trouxas e o das assanhadas. Enquanto o último rebento agitava, de tal sorte o Piabanha, Jacques teimava em ficar no Rio, no calor do Rio! com o plano vulgar de cair na pândega. E fora ao exagero, levara ao próprio lar um bando de estróinas e de mulheres alegres, a que oferecera uma ceia naturalmente alegre. Nunca na sua vida a pobre senhora tivera emoção tão violenta como quando soube da cena...
— É um escândalo!
— Sabes lá se eram alegres? - dizia o esposo conciliante. - Depois, simples boatos!
— Não, desta vez parto.
Desceu quatro dias antes do que era costume, modificou a sua frase inicial da Prainha, porque ao chegar logo exclamou:
— Nunca senti tanto calor na minha vida.
E foi tudo. Em casa, como nada havia de anormal, não teve coragem para falar a Jacques, receosa de perder uma hipotética força moral, assim como não se resolvera a cortar em Petrópolis o cavalo, o automóvel (ambas as conduções ao mesmo tempo) e as insolências sociais do jovem Gastão. No fundo, muito boa senhora. Um mês depois, abria os salões. Era aborrecidíssimo, mas sentir-se-ia diminuída se o não fizesse. Que diria o mundo?
As recepções de Mme. Gomes Pedreira representavam de fato várias coisas solenes. Em primeiro lugar a tradição. Há dez anos, Malvina, em pleno outono sem fatuidade, tinha o seu dia, era das raras antes da Avenida. Além do mais a sua casa fazia-se uma espécie de campo de honra neutro-conservador. Lá se encontravam todos os capazes de ter vencido ou de vencer, e os capazes se davam o ar do melhor tom. O palacete, todo num pavimento assobradado, em meio do jardim parecia bem. Nesses dias de importância abriam ã sociedade que os visitava, o grande salão da frente, com janelas para a rua e muito pouco mobilado, como à espera sempre de um baile imprevisto, o pequeno salão com um piano de cauda e algumas tapeçarias autenticamente falsas e a casa de jantar, em estilo manuelino sobre embuia, presente de uma associação portuguesa ao advogado. Não era bem um five-o'clock. Nem uma sauterie. Nem uma recepção. Tinha dos três - era o dia de Mme. Pedreira. Não raro as senhorinhas e os rapazes faziam, isto é, acabavam por fazer umas valsas no grande, nu e encerado salão. Os sandwiches, os doces, os bolos, os licores e os vinhos da mesa da casa de jantar desapareciam infalivelmente. Mas na pequena sala aconchegada, servia-se o chá com um ar distinto. Nesse dia, Malvina estava intimamente satisfeita. Os doces estavam a ser muito gabados, o criado, um italiano novo, servia bem e havia na peça intermediária entre a dança e a comedoria a nata das suas relações. Era como se estivesse no Lírico, numa noite em que não se canta nenhum drama de Wagner.
Entre as senhoras de raça - é tão difícil fazer questão de raça! - havia a Viscondessa de Muripinim, encardida relíquia da monarquia, chegada de Cannes, onde acabava de assistir ao batizado do príncipe herdeiro, o primeiro rebento de D. Luis, que ela conhecera menino; a Sra. de Melo e Sousa, de uma estirpe de diplomatas, a mais inteligente dama da sociedade. E ao lado dessas senhoras, as três Praxedes, esposa e filhas do negociante Praxedes, a encantadora Eleonora Parckett e a baronesa sua mãe, a Viuvinha Ada Pereira, Graça Feijó, a mais parisiense das cariocas, mulher de um banqueiro e filha de um milionário, o casal Gomensoro, ele secretário de Legação, ela Etelvina, com o ar de Mme. Benhe Bady, nas peças de Bataille, cantando deliciosamente e tendo o cuidado de elevar o seu refinamento a ser falada nos jornais como Etelvina Gomensoro, née d'Ataide; a condessa do Papa Rosalina Gomes, perfeita de ingenuidade, uma verdadeira criança; a sempre modesta esposa do jornalista proprietário Altamiro, com um vestido que devia ter custado no Paquin muitos bilhetes azuis e; a fascinante Luísa Frias, um tânagra vivo, coberta de pérolas (dizem que muitas falsas), porque é moda em Paris a pérola, assim como Gina Malperle, a filha do eterno cônsul do Cobrado, com corais rosas e brilhantes para conservar o ar da 5.ª Avenida, o tom fufly, o aspecto americano; a bela Mme. Andrade (bela há vinte anos irrevogavelmente!), a bela Mme. Gouveia (bela há dez anos fixamente!), a bela Mme. Zurich (bela há cinco anos só felizmente), três irmãs irreconciliáveis no predomínio da beleza. Quanta gente! Mme. Pedreira consegue mesmo mostrar na sua sociedade a jovem esposa milionária do Deputado Arcanjo dos Santos, rio-grandense, filha de um estancieiro poderoso. Como tem um vestido acintosamente caro e os seus lindos olhos mostram uma gula desdenhosa pelo meio, Alice dos Santos só encontra cordialidade natural na Sr.ª de Melo e Sousa.
— Sou muito medrosa. Só estive em Buenos Aires.
— E em Paris?
— Vou agora, V. Exa. não imagina a vontade...
A Sra. de Melo sorri boamente.
— Não me dê excelência, por favor.
— A culpa é de meu marido, que é deputado. Em casa tudo é excelência.
— E que tal a recepção?
— Olhe, faz-me o efeito de um teatro.
— As recepções são sempre um primeiro ato de peças que principiam ou já acabaram quando elas começam...
Alice olha. Realmente. No salão de jantar, devorando sandwiches as Praxedes, a mãe e as duas filhas fazem o seu flirt com o impecável Bruno Sá e o lindo Dr. Suzel, lindo como um pajem de gravura dos contos de Boccaccio. A Condessa Rosalina come há vinte minutos a terça parte de um bolo, conversando com o ex-dom-juan Anselmo de Araújo, sempre petulante e juvenil. No salão, várias meninas e vários rapazes, to dos muito bem vestidos, com um ar de superioridade, desconfiado de que essa superioridade venha a desaparecer de um momento para outro, valsam. É uma valsa francesa, feita para os casinos de Nice e da Riviera, - valsa escrita decerto por maestros divorciados. Às janelas há nomes ilustres, e neste mesmo salão, onde Graça Feijó, Etelvina Gomensoro, née d'Ataíde e o distinto Gomensoro fazem a um canto uma partida de bridge, para não perderem a linha parisiense, ela vê, rindo com Gina Malperle, um homem magro, bem vestido, e um velho alto de monóculo.
— Quem são?
— Não conhece? Godofredo de Alencar, homem de letras que se dá com políticos de importância. O outro é o Barão Belfort, tipo muito curioso, que posa para alarmar toda essa gente.
— Ricos?
— O primeiro de esperanças. O segundo solidamente, o que é raro por cá.
A valsa cessara. Quem tocara, tendo ao lado o Chagas a fingir que virava as páginas, fora a jovem Laura da Gama.
— Também quero eu um pouco!
— Estava tão bom.
— Tão bom o quê?
— A valsa.
— Olhe, venha cá, ainda não lhe disseram o seu apelido?
— Já.
— Aposto que não.
— Mas não admito que diga, porque digo o seu.
— Ora!
— Qual é? - interrogou Alice.
— Não indague, porque diz o seu. É um traidor!
Carlos Chagas, Charlot para todos, de idade e de profissão indefinidas, era um elemento mundano de primeira ordem. Como estava em moda darem-se uns aos outros alcunhas, deram-lhe o apelido de "Ganhou o macaco". Esse apelido tinha o dom de irritá-lo. Era também a única coisa que o irritava. Diante do olhar de Alice em que se anunciavam todas as possibilidades e todas as vontades, ao mesmo tempo que considerava a estancieira parlamentar pelo lado prazer, estava com o apetite de dizer ali a insolente alcunha de cada uma das três senhoras. Calou-se porém. O buffet renovara de apreciadores. O Dr. Justino Pedreira aparecia a conversar com dois cavalheiros que pareciam ricos e influentes. Charlot tinha um grande respeito por quem parecesse rico ou influente. E de um deles lera nos jornais da oposição que ficara com trezentos contos de uma tremenda roubalheira aos cofres do Estado. Era um homem digno de atenções. Não só dele. De toda gente. E de outro lado, enfim fatigada de fazer o bridge, Etelvina Gomensoro, née d'Ataíde, surgia pelo braço de seu marido, rindo como se estivessem em casa ou fossem os dois os subprefeitos da "Sociedade onde a gente se aborrece".
— Estão alegres?...
— Não, imaginem vocês o Comendador Praxedes...
— O escafandro? - indagou logo Charlot.
— Ah! sim, o escafandro, que quer por força aprender o bridge com a Graça.
— Nunca aprenderá.
— Um jogo chic.
— Pois claro.
— E se nos desse o prazer de ouvi-la um pouco?
— A sua recepção está tão alegre.
— É preciso elevá-la. Nestes dias da Malvina tenho o receio de convidar muitos artistas para que as recepções não tenham urna importância que não devem ter e não passem o limite da intimidade. Mas quando no nosso meio há uma grande artista!...
— É o céu que a envia.
Etelvina Gomensoro, née d'Ataíde, bebia a ambrosia do elogio como uma verdadeira artista e o jovem Gomensoro, escanhoado, com o aspecto simpático de um espanhol educado em Londres, irradiava esse mesmo prazer. Em torno, o Feijó e a linda esposa, Mme Gomes Pedreira com a sua pesada autoridade de dona de casa, a fascinante Luísa Frias pediam um trecho de música. Mesmo Mme. Rosalina, Condessa Gomes, dizia com a sua irredutível ingenuidade:
— Eu gosto tanto de música; é tão romântico!
E o Barão Belfort, o homem mais viajado do Brasil; e Alencar, Godofredo de Alencar, que escrevia crônicas mundanas de um sabor tão estrangeiro, pediam discretamente. Charlor bateu palmas.
Então, Etelvina, foi até o piano. Houve um silêncio. Ela ia cantar numa toada de sonho, os versos de Sully. E a sua frase surgiu como um bordado de ouro na renda da música:
Quand on est sous l'enchantement
D'une faveur d'amour nouvelle
On s'en défendrait vainement
Tout le révèle.
Neste momento, com um passo macio e seguro, a fronte lisa de moço, os cabelos negros tão passados de escova e concreto que pareciam de ônix, o frack de uma linha impecável, a gravata branca com uma pérola escura, surgiu à porta da sala de jantar um jovem. Mme de Melo e Sousa acenou-lhe com o leque. Ele adiantou-se devagar até o canapé em que a ilustre dama conversava com a admirada Alice dos Santos. As suas mãos largas e bem tratadas estenderam-se para ambas num gesto natural de força íntima. Depois sentou-se entre as duas.
— Já se conheciam? - indagou Mm' de Melo e Sousa.
— Desde anteontem.
— Foi no Lírico.
— Psiu, falem baixo...
A voz de Etelvina enchia a sala d'amor:
Comme fuit l'or entre les doigts
Le trop plem du bonheur qu'on sème
Par le regard, le pas, la voix
Crie: Elle m'aime.
A Melo e Sousa sussurrou:
— E eu que antegozava o prazer de apresentá-lo! Eis Jacques Pedreira, um menino de maus costumes!
Alice dos Santos sorria. A ave do paraíso que pousava nos seus cabelos, graças a uma modista inimiga dos horizontes, arfava. E Jacques sentado entre o outono e o verão, cumprimentava, com um alegre riso os seus amigos; o Barão Belfort, Alencar, que dera uma tão linda nota do curso que ele não fizera e a bela Mme. Gouveia, e a belíssima Mme. Andrade, e Graça, como que abstrata...
Nas recepções de Mme Pedreira, a senhora artista era um dos números certos. Todos os números eram mais ou menos certos. Havia a chegada, as conversas gerais de uma desoladora e importante insignificância, as conversas nos pequenos grupos em que seriamente as damas conversavam ou com os próprios flirts ou dos flirts alheios, algumas valsas, passeios aos bolos, um número de música e um número de literatura, em geral versos. O número de música dava ensejo a conversarem baixo d'outra cousa, negócios, mal do próximo. O literário era um sinal de partida. Etelvina Gomensoro, née d'Ataide, era deliciosa, porém.
La vie est bonne, on la bénit
On rend justice à la nature!
Uma prolongada salva de palmas. A cantora fez um cumprimento quase plongeon, como se estivesse em Rambouillet, diante do Imperador. Era admirável. Um movimento geral estabeleceu-se que parecia de partida em parte. Malvina Pedreira deu com seu filho.
— Até que enfim! onde esteve até agora?
— Dormindo, mamã.
— Vejam vocês. Um homem de dezoito anos dormindo até às cinco da tarde!
— Perdão, mamã, até às duas.
— É que entra pela manhã em casa. Um bacharel!
— Desde anteontem.
— Verdade é que o barão diz que não tens culpa alguma... Ah! minha querida, veja se me dá juízo ao Jacques...
E partiu solene. Alice dos Santos estava de pé. A ilustre Melo e Sousa sorriu.
— Esta Malvina acaba nomeando-me governante moral da casa... Jacques estava sério, com as mãos nos bolsos, sério e confidencial.
— A mãe, não tem nada. O velho é que é. Imaginem! Quer que eu vá trabalhar para o consultório! Eu! Já tem lá uma escrivaninha.
— Mas então, advogado...
— Não tenho culpa nenhuma... Então, D. Alice, como vai de cidade?
— Se nos levasse a beber um cálice do Porto?
— Enquanto é tempo.
Alice precipitou-se. Mme. de Melo e Sousa acompanhou-os a querer desvendar a significação da frase, porque ela tinha de fato, ou podia ter três significações. Enquanto é tempo porque a recepção ia acabar. Enquanto é tempo porque talvez não houvesse mais nem migalha. Enquanto é tempo de escapar aos versos do Dr. Inocêncio Guedes, rico político de Goiás, que ia decerto recitar o seu fatal Smart-Ball.
Smart-Ball, epíteto galante de uma sociedade...
Na sala de jantar parecia, de resto, ter passado a possibilidade de um batalhão argentino. Jacques que se olhara num dos espelhos, à exclamação pesarosa de Alice, não teve a menor contrariedade. Enfiou as mãos nos bolsos da calça e disse:
— Não tem nada, acompanhem-me; deve haver na outra sala.
Entraram na sala de jantar de todos os dias, modestíssima, dando para a copa e para um terraço, de onde se debruçavam também as cozinhas. Mme. de Melo e Sousa gozava aquele aplomb do seu querido Jacques. Alice parecia acanhada. E o querido Jacques bateu palmas, mandou vir o vinho, marmelada.
— Se tomassem um caldo? Só aturar uma recepção inteira da mamã! O Barão Belfort diz que o prepara para não sair do purgatório nunca mais. - Depois pegando a mão de Alice: - Bonitos esses brilhantes. São de cá?
— São.
— Jóias compram-se em Paris. Tomam o caldo?
Nenhuma quis o caldo. A milionária estancieira aproximou-se do terraço.
— Está a tarde bonita.
— Está - fez Jacques, que aborrecia a poesia.
— Que é aquilo?
— É um telheiro, que serve de garage. O Jesuíno...
— Que Jesuíno?
— O velho. Tem só um automóvel, aliás sempre em conserto. Mas é bonito. Quer vê-lo?
Era extravagante acabar aquela recepção no quintal. Mme. de Melo e Sousa estava seduzida. As duas damas desceram, erguendo muito os vestidos. Jacques, absolutamente sério, mostrou o telheiro e o automóvel, como um jovem lord inglês mostraria os seus domínios, parques e castelos. Em seguida continuou:
— A senhora é do Rio Grande. Não há árvores grandes por lá, pois não?
— Quem lhe disse?
— Mas não há uma jaqueira, uma grande mangueira...
— A jaqueira vejo eu - interrompeu a notável Melo e Sousa.
— É porque a mangueira fica ao fundo. Tem até um balouço.
— Para você?
— Não. Eu faço barra fixa, paralelas.
Realmente, ao fundo, havia uma vasta mangueira, com um balouço. Os três olharam para a árvore com poderosa admiração. Parecia que nenhum enfrentara assim de perto com uma espécie botânica tão grande. Depois, Alice soltou uma gargalhada.
— De que ri?
— Rio, porque gostaria de baloiçar-me. É uma idéia louca.
— Pois trepe.
— Perdoe V. Exa. como diz meu marido, mas já, seria inconveniente.
— Ora menina, por quê? É só imaginar que a recepção da Malvina é uma garden party.
— D. Argemira é capaz de imaginar o dia de mamã até um baile de máscaras.
— Jacques, por quem é, sou a melhor amiga de sua mãe.
— Por isso mesmo...
Com autoridade sentou Alice no baloiço, arrumou-lhe os vestidos, aliás inconvenientes para semelhante exercício e impulsionou o balanço. A rio-grandense ardente dava gritinhos, não de medo - uma rio-grandense nunca tem medo - mas de prazer. Argemira de Melo e Sousa colocara o seu face-à~main para admirar melhor os vôos do lindo pássaro. Jacques não parecia ter feito outra cousa na sua vida senão empurrar baloiços. Era magistral. E, de repente, diante deles, precedidos de um criado em mangas de camisa, cujo sorriso parecia o de um agente secreto, surgiram, Arcanjo, marido e deputado, e Mme. Pedreira, mãe e anfitriã.
D. Malvina tinha já o sorriso verde da máxima contrariedade:
— Com que então aqui?
— Os três!
— E nós a procurá-los. O Dr. Arcanjo estava assustadíssimo. Eu e seu pai também.
— Oh! - conciliou Mme. de Melo e Sousa - nem pensávamos que davam pela nossa falta. O Inocêncio ia recitar...
— Recitou, recitou todo o Smart-Ball.
— É a sexta vez que ouço aquele trabalho - atalhou Arcanjo. - Muito mimoso.
— Imensamente. E estamos a procurar D. Alice os dois, porque não há mais ninguém.
— Que me dizes! Acabado o dia? Então viva o dia!
— Valha-me Deus! Uma criança este meu filho. Que diz, doutor, não é da minha opinião?
Arcanjo, habituado ao Congresso, sem saber a opinião da venerável senhora, curvou-se:
— Sou da opinião de V. Exa..
Fazia como na Câmara. Argemira riu. O frio desapareceu.
— Mas não fiquemos aqui. Levemos D. Alice até à porta...
Jacques deu o braço a Alice. Viu que devia dar o outro a Argemira. Seguiu com as duas damas, pensando que seu pai o esperava para uma hora de ordens e conselhos. Até perdia o prazer de ser amável!... E enquanto pela aléia do jardim assim conduzia duas damas, sua mãe, atrás, falava seriamente com o Deputado Arcanjo.
— Cinco horas, doutor. Quase noite. Como fatigam as recepções! Ah! se pudesse ver-me livre desse trabalho!
— V. Exa. tem razão, realmente o convívio social instrui, mas estafa...
Jacques entrou nos aposentos do seu pai, um pouco aborrecido. O importante consultor de várias companhias estrangeiras, pelas contingências de uma vida de advocacia forçadamente administrativa, acostumara-se a dobrar o temperamento, a fingir, a representar. A vida é um palco, onde cada um representa o seu papel, disse Shakspeare. Depois do transformismo, moda passada em ciência e moda em voga em cena: a vida é um palco, onde cada um representa seus papéis. Justino representava alguns - nem sempre gloriosos, é de convir, mas com tal elegância, um brilho tão particular, que só merecia aplausos. Chamavam-no o "camaleão dos ministérios"; ninguém poderia afirmar numa questão de que lado estaria sempre advogado assim admirável. Mas, Justino fazia para ser de qualquer jeito de uma das partes e era de um cepticismo fatalista, absolutamente oriental, nas decisões graves da vida. O hábito de mascarar o temperamento, de mudar de cara várias vezes ao dia, apagara-lhe a energia de retomar o seu "eu" - que era no fundo bom, inteligente e conservador. O secreto e acovardado Justino íntimo tornara-se apenas o espectador de vários Justinos mundanos, e só raramente intervinha no drama, como os freqüentadores de circo para os palhaços em situações difíceis.
— Vamos a ver como te sais deste negócio!
— Queres apostar?
— Tens muita sorte.
Esses curtos diálogos entre o seu verdadeiro "eu" e os outros Justinos para uso externo, deixavam-no esperançado e arrasado nos graves momentos de protestos de letras e de agonienta falta de dinheiro. Enquanto não lhe faltasse a estima daquele espectador, seria amável e vencedor. E sorria. Quantos, como ele, por este mundo? Sorria e continuava a representar, mesmo em casa, para a família, mesmo só. Apenas, como tivera sempre a preocupação dos papéis simpáticos, e como não havia nem tempo para perder, nem muita confiança em inspirar terror, organizara um pai misto de peça romântica e de comédia moderna. Os seus aposentos eram de uma simplicidade monacal, o leito de ferro, onde repousava das vigílias estudiosas, mais desolador que um catre d'hospital; e nas paredes nuas só se via a litografia de Nossa Senhora da Conceição, em caminho do céu, atestando uma crença, tanto maior quanto não a possuía, senão para um efeito social, mundano e prático.
Quando Jacques entrou, o seu ilustre progenitor estava ainda com a sobrecasaca da recepção, sentado, a escrever. Nesse dia, por felicidade, fazia-se completamente pai comédia moderna.
— Boa tarde, caro colega e filho!
— O pai quer falar-me?
— Em teu interesse.
— E o escritório?
— O escritório e tudo mais. Senta-te. Fumas um cigarro?
Abriu a cigarreira, serviu-se, guardou a cigarreira, estirou-se na poltrona.
— Meu caro Jacques, vejo que estás aborrecido. Eu também. Nada mais fatigante do que estas cenas de conselhos entre pai e filho. Teu avô passava-me um carão, de oito em oito dias e nunca me falou senão zangado. Para consentir que eu fizesse a barba - o que para ele parecia um insulto aos seus direitos paternos, foi necessária uma verdadeira campanha diplomática. Mas isso era no tempo antigo. Hoje, os pais não precisam dar consentimento para fazer a barba, porque nunca vêem barba nos filhos.
— É um uso americano...
— Que acho, aliás, muito asseado. Entretanto, como ainda resta, por um velho preconceito, aos pais, a boa vontade de guiar os filhos, não pude deixar de escolher esta tarde para conversarmos um pouco.
Houve um silêncio. Justino, acariciando a barba grisalha, olhava o seu pequeno, com um secreto prazer de tê-lo feito tão bonito e talvez uma certa inveja daquela mocidade despreocupada ainda das necessidades da vida. Jacques continuava sério, em pé, brincando com a espátula de cortar papel.
— És uma criança, meu filho. Não podes ter queixa de mim. Não sei se estás educado, mas fiz o possível para te fazer bacharel, como toda gente. Absoluta liberdade, contas pagas, empenhos, professores em aulas particulares. Enfim, tudo. Mas nesta facilidade de vida, talvez nunca te afigurasse a triste verdade de que é preciso ganhá-la. Aqui estou eu, com cinqüenta anos, a esclerose fatal, obrigado a viver com desperdício, exatamente porque desse desperdício vem a possibilidade de negócios grandes. E sem vintém. Sim, meu caro Jacques, sem vintém. É preciso que te habitues a triste idéia de que, morrendo eu amanhã, estás com tua mãe e teu irmão, absolutamente sem recursos.
— O pai a fazer testamento!
— Não senhor, estou apenas a falar sério. De resto, a maioria dos teus companheiros está nas mesmas condições, em que estás. São raras as nossas grandes fortunas. São raras, até, as pequenas sólidas. Atravessamos um grande momento curioso, e vocês não imaginam como custa ser o maquinista, um dos maquinistas da mágica. É preciso trabalhar. Mesmo milionário, dar-te-ia este conselho. Não o sendo, acrescento que é imprescindível, desde já, para te habituares, antes de uma perda grave. Um homem não é homem, enquanto não ganha.
— Ganhar como? - fez Jacques sucumbido.
— De qualquer forma. A questão é ganhar. As sociedades fazem cada vez menos caso dos meios. Metade dos cavalheiros que estiveram cá, hoje, é dessa opinião... De resto, não seria mesmo bonito para um homem, ser sustentado por seu pai, toda vida.
— Ah! isso não.
— Já vês...
— Mas como, papá?
— Oh! ganha-se dinheiro, mesmo não fazendo cousa alguma. Tudo é dinheiro. A questão é preparar o espírito, é encaminhá-lo para o ponto prático, e o ponto prático para um rapaz de boa sociedade é pensar sempre que precisa conservar uma série de confortos, de aparência insignificantes quando os temos, mas enormes, quando lhes sentimos a falta. Vamos a saber: não queres advogar?
Jacques sorriu:
— O pai sabe bem que não sei. Foi você mesmo quem disse que eu de Direito sei menos que o Gastão.
— Sabe-se sempre o que nos vai ser útil.
— Depois, o escritório, a escrivaninha, o foro, com aquela poeira...
De novo a frieza inicial voltou. Justino tornou, um pouco seca a voz:
— Creio que te formaste para fazer alguma cousa.
— Não pai, não se zangue. Tenho, quer que lhe confesse? medo de começar.
— Pois esse medo passará. Guiar-te-ei. As pequenas causas - terei pequenas causas? - serão tuas. Depois a escrivaninha não é escrivaninha, E um lindo bureau-ministre.
— Então, pai, vou amanhã...
Justino ergueu-se, mostrando uma satisfação que talvez não tivesse.
— Nota que não te quero forçar a ser advogado. Com uma carta de bacharel, por enquanto, ainda é possível ser várias cousas neste país. Tens diante de ti, o mundo dos negócios, o funcionarismo, a jurisprudência, a política. O meu desejo é lançar-te na vida, não como o pequeno do Pedreira, mas como o filho formado do seu pai, agindo por conta própria e ainda com uma defesa não só de pai como de amigo prático. E preciso ser homem. Foste menino até hoje. Vamos a ver o que fazes, d'agora em diante. Até amanhã.
— Até amanhã.
— A uma da tarde, no escritório. Tu hoje acordaste mais tarde... - Depois, sorrindo, como Jacques já estivesse à porta: - olha, aqui tens vários convites com o teu nome, da recepção do Chili, do baile do presidente da República e do decantado baile que o Itamarati oferece aos oficiais portugueses. Tens mais um cartão permanente para o recinto da Câmara, dois cartões de cinematógrafos. Estas lembranças pessoais, deu-mas o Godofredo de Alencar, que é muito amigo dos governos. Sê também amigo dos governos.
Jacques recebeu os convites com uma certa emoção. Afinal, a conversa não fora tão aborrecida. Ele sentia-se bem um personagem, alguém... O pai tornou:
— Com estes trunfos que tens em mão, um homem esperto talvez não se decidisse por nenhuma profissão, mas decerto teria meios de arranjar uma fortuna. E basta de conversa. Caro colega e filho, até ao escritório.
Jacques saiu. Era só atravessar a sala de jantar e estava no seu quarto. Consultou o relógio e viu que eram seis e meia. Os criados punham a mesa modesta do jantar. Um sentimento complexo agitava-o, sentimento que era de alegria e era de um terrível e assustado desalento. Tinha vontade de chorar, como uma criança. Chegar tão cedo ao marco em que já se não é bem da família! Amanhã seria um homem, uma individualidade à parte, agindo por conta própria, com a gravíssima responsabilidade das suas ações a recair no dia seguinte. Estava farto de saber a situação financeira do seu pai. Era a de três quartas partes da sua sociedade, um triste bluff que se tornara norma angustiosa. E entretanto, vinha-lhe um medo louco de encarar a necessidade no dia seguinte.
Se Justino morresse? Sim, se morresse... Em que estado ficariam, em que estado ficaria ele? Era preciso atirar-se, trabalhar, ter uma profissão, que lhe desse a troco de um certo esforço quotidiano o pão do mês. Oh! era miserável, era humilhante. E era fatal! Tinha que fazer como toda gente. E vinham-lhe à memória vivas impressões de vários infelizes. O Dória, o rico Dória engenheiro, que, morrendo o pai, fora especulador da praça, zangão, dono de hotel quebrado e sempre a querer aproximar-se do meio, que, impiedoso, o afastara, era intendente de um milionário, ganhando comissões das cocottes e dos vendedores - só com a preguiça de seguir a sua profissão; o Aragão, que montara um club de jogo, com egoísmo e roubara no baccara,, o Adalberto... De um momento para outro podia ficar assim, e ele que se sentia tão fraco d'alma, tão incapaz de reagir!
Fechou-se por dentro, no quarto, acendeu a luz, olhou-se ao espelho. A tristeza tornava-lhe ainda mais bonito o lábio sensual, a boca de uma frescura úmida, a pele lisa e morena. Diante de um físico tão agradável, aproximou mais o rosto, a ver um sinal ao pescoço. E lembrou-se dos olhos de Alice dos Santos, dos lábios de Alice dos Santos, da proteção que Argemira parecia querer dar aos avanços da Alice dos Santos. Ainda não tivera uma amante senhora casada. Quanta coisa ainda não fizera na vida! Mas havia de fazer, tinha o desejo de fazer, desde que elas fossem agradáveis e pouco trabalhosas. Sorriu para o espelho um sorriso tentador. Afinal tinha sorte, sempre tivera sorte e havia de ter sorte. O Dória não fora feliz porque não tinha de ser. Também há mendigos que pegam caiporismo. No primeiro ano visitara com os colegas uma quiromante que lhe prognosticara muitos amores e muitas viagens. Como ter amores e fazer viagens sem dinheiro?
Começou a despir-se vagarosamente. Amores! A Alice talvez. Como? A Alice e outras muitas, a Malperle por exemplo, de quem se falava tanto, ou a mãe da Eleonora que fingia um desmaio sempre que se achava a sós com um rapaz? O apetite da vida voltava-lhe diante da própria imagem a mover-se no espelho. Sempre obtivera tudo sem esforço e a sorrir.
Havia de continuar. Acendeu um cigarro, soprou o fumo, assobiou um pouco uma copia de café-cantante. Deitou-se a fio comprido na cama. Ah! se soubesse o futuro! E para quê, de resto? Saber é uma necessidade muito relativa. É possível passar perfeitamente sem saber uma porção de coisas. Saber teatro, por exemplo. Para quê? De teatro, Jacques tinha a noção de que as companhias de línguas estrangeiras eram de primeira ordem e as mulheres das boas ou não. As peças de cujos autores ignorava os nomes, caceteavam-no assaz. Entretinha-se, durante o espetáculo, a comparar a elegância das atrizes com as das suas conhecidas e a verificar o mau alfaiate dos atores. M. Le Bargy foi-lhe uma dolorosa desilusão. E literatura? Jacques nunca na sua vida lera uma novela, um romance. Nem Paulo de Kock, nem o Conde de Monte-Cristo. Uma indiferença integral afastava-o dos jornais. Mesmo os versos imorais, as leituras ardentes que os meninos fazem sempre com o prazer de atiçar um incêndio em plena violência, não o tentaram. Ao demais, os profissionais do talento não lhe agradavam. Só admitiu desde criança inteligência nos que a sua roda permitia e decretava fossem inteligentes.
Este feitio não o obstou de ser precoce em tudo, por tudo lhe ter sido fácil. Aos oito anos, como nesse tempo sua mãe ainda tinha ilusões de reagir contra a gordura, foi para um colégio de padres. Aos dez, nas férias do Carnaval perdeu-se com o criado num baile de Carnaval da mais baixa classe. E como D. Malvina o recebesse em pranto disse:
— Não te assustes. Dancei com umas mulheres pintadas. Elas gostaram. Até pagaram cerveja para mim, que não era tolo para gastar o meu dinheiro.
No ano seguinte, os padres bem pagos e difíceis de expulsar os alunos, queixaram-se do seu mau comportamento. Fumava, arremedava os frades professores, não estudava. Jacques não voltou aos padres e fez um curso de preparatórios em externato, conseguindo o assombro, aliás comum, de ser aprovado numa série de matérias que ignorava.
Seu pai não tinha tempo de fiscalizar a educação, mas pagava sem hesitar os melhores professores e arranjava a valer cartas de empenho no fim do ano. Era mesmo a época do ano, em que senhor de posição tão importante dava para reconhecer velhos amigos de rapaziada, que a sorte fixara em simples examinadores. Jacques, com conta aberta no alfaiate, no camiseiro, no sapateiro, julgava os professores também fornecedores de atestados, mas não era sem um certo sangue-frio superior que colava provas escritas e dizia inconseqüências nas provas orais. Ficou célebre o seu exame de química em que não sabendo quem era Lavoisiert e ignorando a composição da água passou com simplesmente. Ninguém falou também do seu exame de francês. Aliás, Jacques sabia falar francês. Foi o único exame em que foi reprovado. Mas aproveitou a segunda época, e nunca disse obrigado aos examinadores como não dizia ao sapateiro. Quando passou para a escola de Direito a fazer o primeiro ano, uma carta que escrevesse devia ter alguns erros, mesmo na língua comum geralmente falada entre nós e que, por excesso de reconhecimento histórico, ainda denominamos português...
Os preparatórios deixaram-lhe uma sensação de igualdade inexplicável e que no fundo sempre lhe pareceu desagradável rebaixamento. Havia uma porção de rapazes de má roupa, sem vergonha pobres, e que se permitiam, entretanto, fazer versos, usar pince-nez e não lhe ligar a menor importância. Quando os professores falavam - (de modo geral sempre) - da desmoralização do ensino, da inferioridade da geração, esses rapazes tinham a impertinência de olhá-lo e ele não podia deixar de ficar contrariado, porque esses sujeitinhos é que lhe pareciam inferiores. Os últimos tempos passara-os mesmo a jogar football, jogo em moda que as senhorinhas aclamavam aos domingos em Paissandu. Foi sob essa brilhante vocação esportiva, que se matriculou para fazer o primeiro ano. O primeiro ano constava de duas matérias: Filosofia de Direito e Direito Romano. Oito dias antes dos exames, começou de ler umas apostilhas da segunda matéria, veneráveis apostilhas que representavam o saber desse monumento social em dez gerações de bacharéis. Em Filosofia copiou a prova escrita e na oral, diante de um lente grosso e sábio, assegurou:
— A Filosofia, esse verdadeiro pão do espírito...
O professor abriu numa gargalhada homérica. E ainda sacolejado de riso:
— Continue, muito bem... continue, menino...
Não continuou por ser susceptível ao ridículo. Mas fez o curso inteiro com a mesma profundez, cada vez menos culpado de ser bacharel. Não que não tivesse inteligência para aprender o que tanta gente sabe nem sempre para bom uso: mas porque era desnecessário. Para que cansar se o resultado seria o mesmo? Instintivamente economizava-se.
O seu tempo de acadêmico passara-o pois assim. Acordava, ia para o football ou fazia ginástica sueca no quarto. Em seguida iniciava a sua toilette com cuidado. A escolha do fato, da camisa e da gravata correspondente, punha-o muita vez perplexo. Estas coisas absorviam a sua atenção. Conhecia gravatas ao longe.
— Esta gravata não é daqui?
— Não.
— É do Doucet. Estavam em moda o ano passado.
Em fornecedores o seu conhecimento era doutoral. A menor alteração no corte dos fracks uma insignificante mudança d'aba nos chapéus de Londres ou da Itália tinham nele um fiel. As cores das roupas de baixo também. E a maneira de estar conforme manda a educação dos salões - educação e maneiras que variam todos os anos. Ultimamente usava camisetas irisadas de morticores imprevistas, abandonando nas gravatas os tons monocromos, e nunca sentara para jantar sem estar de smoking e ou de casaca. Um homem quando tem apetite, pode jantar até tendo apenas por fato a aliança do casamento. Ele, porém, achava aquilo necessidade imprescindível, e mesmo em Teresópolis, num matagal horrendo de cura, aparecia sempre, com espanto do hotel, de smoking e sapatos de verniz.
Apó5 a toilette, ia almoçar e saía. Às vezes passava pela escola. Raramente. Empregava o tempo em namoros e ftirts. Nunca desejara. Era desejado. Aos quatorze anos uma criada portuguesa virgem agarra-o com uma violência de Tântalo se encontrasse um jarro d'água fresca à mão. Depois era sempre solicitado e achava isso meio aborrecido. Saía à hora em que as ruas de Botafogo, principalmente as transversais deixam ver tanta coisa. Aos dezesseis anos, indo visitar o Barão Belfort, que por sinal viajava Pela Rússia, encetou através do muro um escandaloso namoro com a Ada Pais, a ponto de fazê-la pular a separação de pedra e vir ler romances na biblioteca do barão. Essa ligação semivirgem dera-lhe de resto a consideração de Belfort e do literato Godofredo de Alencar. O barão era um perverso, cuja amizade não deixava de ser corrosiva. Godofredo muito hábil sob aqueles ares fatigados, trabalhava no desejo de ser de uma roda, a que aspirava por uma multiforme e vaga ambição. Troçava de todos, elogiava a todos e principalmente o fraco de cada um. Para Jacques, como para outros rapazes tinha sempre dessas frases que ficam:
— Estavas ontem com uma linda bengala.
Aos demais dizia-se amigo dos políticos, o que aguçava sobremaneira o interesse dos homens de negócios, a maior ou talvez a única aristocracia do momento.
Jacques tinha pelo barão e pelo homem de letras prático uma sincera admiração. E no chá, um chá elegante, onde parava desde as quatro da tarde a ouvir o Dr. Suzel, o Belmiro Leão a cumprimentar as senhoras e a fazer sinais às cocottes não perdia ocasião de citá-los. As seis voltava a casa. Smoking, jantar. A noite, o music hall, em que aparecem como numa exposição as melhores mulheres de várias casas especialistas. A sua memória, mais virgem que a criada portuguesa e Ada Pais, gravou com facilidade as cançonetas e a algaravia desse pessoal pintado e abrilhantado. Passava, como a maior parte dos seus amigos por trás dos camarotes, onde as damas se pavoneavam. Nos intervalos tomava umas bebidas, convidado pelos endinheirados da semana. Porque, cada semana, havia nessa sociedade assaz misturada de mulheres, michés, jogadores, gigolos, um sujeito que aparecia com muito dinheiro. Godofredo e o barão apresentaram-lhe uma vez aí o jovem construtor Jorge de Araújo. A época era de resto do aparecimento de jovens construtores, jovens motoristas e velhas manicuras. Jorge de Araújo ficara rico num mundo de casas mandadas fazer pelo governo e tinha a dupla mania dos automóveis e das mulheres. Belfort fizera colocar num dos automóveis do construtor esta divisa heróica:
— Esmago todo mundo e ninguém me vê.
Jorge via tanto no barão como em Godofredo duas utilidades para a continuação dos seus negócios. Viu decerto em Jacques uma outra, posto que obscura. E Jacques, com a gula da mocidade pelo prazer, viu nele um meio de divertir-se sem pagar. Em pouco tempo era amigo inseparável, aproveitando os automóveis e a intimidade das mulheres. Datou daí, na função de menino bonito, a sua ligação com a Lina d'Ambre, italiana de cabelo oxigenado, terrivelmente ciumenta. Para ver se podia acompanhá-la a casa, Jacques ia a um dos mil e um clubs do jogo onde o baccara infernal sustenta um batalhão de patifes amáveis.
Para passar o tempo e ver se ganhava, jogou. A mesada era escassa. O pai dava-lhe roupas, mas não dinheiro. Para arranjar dinheiro, pediu aos fornecedores que forjassem fornecimentos falsos. Depois pediu a Jorge, ao barão. Godofredo, por precaução pedira-lhe antes do ataque uma pequena quantia. Enfim, uma noite a Lina d'Ambre, votada ao sacrifício romântico, exigiu que lhe fosse empenhar um dos anéis e ficasse com o dinheiro. Jacques hesitou, com frieza, e foi.
Dias depois, na mesa redonda da pension d'artistes, a Lina, num calão indizível, atirou-lhe o epíteto de explorador feminino. Como estavam na sopa, Jacques atirou-lhe com um prato, que felizmente só atingiu a cabeleira de um loiro não veneziano, mas inverossímil. A mulher teve um ataque, depois de retribuir a violência com idêntica remessa de sopa. Furioso, Jacques saiu com o smoking sujo, para nunca mais voltar. Lina mandou-lhe cartas perdidas de amor. A sopa reacendera-lhe a chama. E, como tal chama leva a excessos, Lina, depois de dizer a toda gente que fora explorada, apresentou-se no escritório de Justino a mostrar a cautela e pedir providências. O Dr. Justino, naquela conjuntura, foi de grande gentileza e calma. Pagou, deu à mulher uma gratificação generosa e teve com o filho esse primeiro e lamentável encontro em que entre pai e filho aparece a miséria sexual, o escândalo mulher, aliás tão apreciado por filhos, pais e mesmo avôs.
— O senhor envergonhou-me. Um homem na sua idade não paga o amor. Perfeitamente. Na sua idade nunca paguei. Reservei-me para depois. Há sempre tempo. Mas receber!
— Está enganado, pai. Pergunte a Jorge, pergunte ao barão. Vou quebrar a cara àquela tipa!
— O senhor não vai quebrar a cara a ninguém. O senhor vai é não fazer mais isso, porque está arriscado a perder o meu auxílio. E a propósito: descontarei na sua mesada a importância da cautela. Quem tem vícios não se fia nos outros.
Desde então, Jacques, a quem a inexorável D. Malvina fazia um sermão de moral semanalmente, para lhe dar dinheiro, foi acentuando esse afastamento progressivo da família em favor da rua, a que o eufemismo social denomina fazer-se homem. Jacques fazia-se homem a todo pano, vertiginosamente. Passava dias sem ver o pai. Chegava pela manhã. Não foi a Petrópolis, durante o verão e, segundo informações da vizinhança, dera uma ceia a damas alegres na própria residência da família. Mas, ainda assim, agindo com inteira liberdade, não se sentia senhor das próprias ações, era feliz e descontente exatamente por isso. Ao recordar a breve vida, estirado na cama, sentia que as palavras cordiais de seu pai tinham cortado as últimas amarras. Ia ensaiar a vida só, apenas comboiado durante algum tempo. No dia seguinte, à uma da tarde, estaria num escritório a ver autos, a folhear o código...
A idéia pareceu-lhe tão intolerável, que se ergueu de um pulo, olhou-se de novo ao espelho a ver se não teria mudado. E achou-se perfeitamente agradável.
Então, meticulosamente, vestiu-se. Uma semana com tanta coisa a tratar! O circuito de automóveis, um piquenique noturno na Gruta de Paulo e Virgínia com a esposa do ministro de Honduras, e três ou quatro senhoras com os respectivos responsáveis, a festa dos animais oferecida pelo barão! Trabalhar quando a vida é tão bonita! E ia jantar em casa, ia talvez ao teatro com a família, voltaria cedo, para no dia seguinte, à uma hora...
O criado veio chamá-lo. Era o jantar. Saiu. O pai de casaca e de pé lia um jornal. Já passava das oito...
— Então, pensaste?
— Não, vesti-me.
— A ocasião do presidente, do baile presidencial é excelente.
— Ora o baile do presidente? - fez Jacques, que sempre ouvira seu pai ridicularizar todas as autoridades constituídas deste país.
— Farás o que entenderes.
Nesse momento, com um vestido de rendas creme sobre fundo de liberty preto, decotada e irritada, Mme. Malvina entrou. Sempre que ia ao teatro - e era dia de assinatura do Lírico - retardava o jantar para preparar-se antes. Seria impossível depois com a sua crescente gordura. Mas assim o que se tornava superior às suas forças era jantar, apesar de um razoável apetite. Então, D. Malvina fazia ato de presença, de rosto fechado.
— Por que jantamos cada vez mais tarde?
— Porque é impossível jantarmos mais cedo.
— É o Lohengrine hoje?
— É.
— Com aquele dueto que não acaba mais. Você vai?
Jacques não teve tempo de responder. A campainha retinira. O criado chegara.
— O Dr. Jorge, de automóvel, que pergunta se o senhor esqueceu.
— Ah! é verdade. E eu que prometera jantar com o Jorge!
— Onde?
— No Leme. Está aí?
— Está à espera no automóvel...
— O papá dá licença?
D. Malvina carregou o sobrecenho. As roscas do seu pescoço tornaram-se vermelhas. Mas Justino sorria complacente. Era um pai comédia moderna, como a maioria dos pais modernos. Aquele filho formado e formoso, que parecia Perseu, agradava-lhe. Depois em Jorge o velho advogado farejava graves coisas futuras a defender.
Jacques precipitou-se para a varanda, correu no jardim. Nem já lembrava o dia seguinte. Jorge guiava. Ao lado, Godofredo estava de veston azul, e dentro do automóvel fechado havia quatro mulheres.
— Então isto faz-se?
— Estava tratando da vida.
— Tu?
Um estrepitoso riso rompeu. Jacques meteu-se entre as damas. O automóvel deslizou, fugiu pela Avenida, que era um esplendor de luzes.
E enquanto o filho seguia para o prazer, e a esposa arfava irritada por ter de ir ao Lírico, o Dr. Justino Pedreira, lendo o jornal e pensando noutra cousa, fez um gesto ao criado para que lhe desse de jantar.
Precisamente, Jacques não foi muito pontual. A pontualidade é talvez um erro para quem almeja valorizar-se. É crime quando a obrigação não nos parece agradável. Os jovens que se revelam lúcidos ganhadores, chegam sempre antes da hora, no dia marcado. Prova de sofreguidão pueril. Às vezes nada se adianta com a pressa. Jacques apareceu no escritório, quatro ou cinco dias depois, - às três e meia de uma linda tarde. Como o escritório ficava na Rua do Rosário, nenhum dos seus transeuntes desconfiaria da beleza do céu. A estreita rua, atravancada com carroções, o calçamento desigual e engordurado, uma multidão de cocheiros seminus, de caixeiros, em mangas de camisa, e cidadãos apressados, a contar dinheiro, a discutir papéis estampilhados ou de pasta debaixo do braço - não dava tempo para pensar na beleza, mesmo na beleza de uma tarde linda. Era a rua dos armazéns de comestíveis por atacado e dos consultórios de advocacia. Jacques só aparecia lá para pedir dinheiro ao pai, que dava o nome ao consultório e trabalhava com outros colegas. O pai, nada agradado com tais visitas, aconselhara o continuo, um velho macróbio, cor de castanha, chamado André, a dizer a Jacques que não estava. O filho chegava e de cá de baixo:
— O pai?
André esticava o braço magro e fazia um gesto inexorável de negativa:
— Não, senhor; saiu.
— Há muito?
— Ainda há pouco.
Por último, com o hábito, ao ver assomar Jacques, fazia maquinalmente o gesto, quase com raiva, e gritava com a sua voz septuagenária:
— Não! não! já saiu.
Como em geral os cérberos de casas de negócio, embirrava com os que vinham pedir, mesmo sendo parentes. Uma das suas volúpias - uma das derradeiras, coitada! - era dizer não, era negar a quem lhe parecia precisar. Assim, quando viu Jacques a subir, o velho cor de castanha ergueu-se furioso, agitando o braço:
— Não está; não está!
Jacques parou, quase resolvido a voltar, mas para confundir o pobre homem, subiu. No consultório havia cinco advogados, contando com seu pai, que se reservava a sala da frente. Gente subia e descia as escadas. Cavalheiros conversavam junto das secretárias. Havia poucos livros na atmosfera sempre suja. O Dr. Justino, que conversava com dous clientes ao mesmo tempo, um provinciano interessado contra a oligarquia do seu Estado e um empresário teatral disposto a intentar ação contra a Prefeitura, apertou-lhe a mão, deu-lhe a face a beijar e apresentou-o logo aos dous clientes.
— Meu filho, formado há dias.
Jacques reparou na sua secretária, com um nobre feitio antigo, de carvalho. Sentou-se, abriu a pasta virgem e ficou ouvindo o inimigo da oligarquia, que de vez em quando voltava o busto e por deferência dizia:
— Não acha, doutor?
Depois foi ver os outros advogados, que estavam a tratar de negócios, nada interessantes. Que supremo aborrecimento! Nunca mais poria os pés naquele horror!
Mas, voltou. Voltou até todos os dias. É que a sua fraca vontade irritada contra um trabalho comum, descobrira que esse trabalho, mesmo comum, seria um titulo de elegância no meio por onde andava, um titulo superior. Chamarem-no de doutor, convencidamente, julgarem-no capaz de uma opinião decisiva, era para envaidecê-lo. Mas ter a certeza de que as senhoras e os seus amigos, e os simples conhecidos acreditavam em outro Jacques, era um prazer indizível. Estava duas mil léguas longe da vida prática. Entretanto, contentava-se. A entrada no escritório, deu-lhe uma individualidade definida. Pediu aos amigos que o fossem ver. Deu a mesma direção, com o número do telefone, na pensão da Lola Safo, na pensão da Isabela Corini, no seu alfaiate. Saia invariavelmente depois do almoço, só, com uma pasta cor de granada com fecho d'ouro, saltava do tramway apressado como um businessman, atravessava a Avenida a passo inglês. Ao chegar, indagava:
— Não veio ninguém procurar-me?
Invariavelmente, André cor de castanha respondia:
— Não, senhor.
Esperava um tempo e saía de novo com a pasta, ordenando:
— Se vier alguém, que espere.
Dava uma volta, reaparecia, no íntimo louco para que soassem quatro horas. Era a liberdade até o dia seguinte, em que de novo subia as escadas empoeiradas, contrariado e com a esperança de ter sido procurado. Uns quinze dias depois, quem lhe apareceu foi Jorge de Araújo, baixinho, magro, elegantíssimo.
— O Dr. Jacques? - perguntou a André.
— Não conheço.
Jacques, que ia sair, precipitou-se:
— Grande idiota, então não me conheces? Desculpa. É casmurro. Entra. Estou aí com uns negócios.
— Já? Parabéns. E ainda bem. Preciso muito dos teus serviços. Não se trata de advocacia. Tenho advogado.
— Então?
— Preciso de uma carta amiga para o ministro da Fazenda. Obras, reformas. O engenheiro abriu concorrência. Uma carta amiga era decisiva para o ministro. Se for aceita a minha, tens vinte contos.
— Vinte contos? Mas como arranjar a carta?
— Tens relações. Teu pai, por exemplo. Teu pai arranja.
— Vamos a ver.
— Espero até amanhã. Lembrei-me de ti. Fala ao Dr. Justino. Até logo.
— Só isso?
— Achas pouco? A minha hora de diversão ainda não chegou. Hoje, onde?
— Onde quiseres.
— Damos a volta da Tijuca.
E desapareceu. Jacques ficou num indizível estado de nervos. Compreendera logo que a proposta de Jorge fora uma distinção especial de amigo. Provas de tanta consideração só a pessoas de idade e de respeito. Arranjar um negócio, ganhar na primeira cartada vinte contos! Como? A quem pedir? A seu pai? Mas seu pai talvez recusasse, talvez não tivesse intimidade com o ministro. E Godofredo? Godofredo exigiria metade. Metade ou mais. Depois o favor de Jorge era a ele, a ele pessoalmente, Jacques... Ficou a passear na sala, febril, à espera do pai. Quando o Dr. Justino chegou, não teve coragem, procurou circunlóquios, arriscou uma opinião sobre a marinha americana, folheando revistas. Por fim, foi até dizer:
— Conheces o ministro da Fazenda?
— Muito. É um bicho de concha. Por quê?
Por quê? Com a pergunta compreendeu o seu estado d'alma. Faltava-lhe a coragem, não de falar francamente, mas de repartir. O seu divino egoísmo tinha a intuição cega do perigo. Antes de responder, sentiu que se falasse, o pai pediria para ver Jorge... Seria melhor conversar com a mãe, fazer intervir a influência da esposa.
— Por nada... - murmurou, afetando indiferença.
E saiu logo, deixou de ir ao chá das quatro horas, onde havia de encontrar Alice dos Santos e Mme. de Melo e Sousa, já inseparáveis. Foi diretamente para casa, com um cartucho de bonbons, o primeiro que comprava na vida para oferecer à mãe. D. Malvina não estava. Ficou na varanda, chegou a abrir um jornal, a ler uma notícia de pavoroso incêndio num gabinete da pensão de Lola Safo. Um toque de campainha fazia-o ter sobressaltos. Nunca na sua vida tivera um tão forte desejo de ver D. Malvina. E D. Malvina demorava, não vinha mais. Antes da esposa chegou o Dr. Justino no automóvel do Deputado Santos, que o seu continuava quebrado. Só, ás sete, apareceu a formidável dama. Vinha exausta. Fora ao Dispensário da Irmã Adelaide, assistir como dama de caridade ao aniversário da fundação. Estivera depois em casa da Baronesa de Muripinim, a encardida relíquia da monarquia, muito mal com um acesso de fígado. Lá soubera do divórcio iminente de Mme. Zurich. Era a quinta vez que anunciavam o escândalo, sempre, naturalmente, por causa do marido. E aquelas emoções violentas: a religião, a moléstia, a vida alheia - tinham arrasado a pobre senhora. Jacques foi buscá-la ao jardim, com carinho. Ao ver-se assim tratada, Mme. Pedreira exagerou. Era um hábito antigo.
— Mamã, preciso falar-lhe.
— Agora não, estou que não posso.
— Mas mamã, é a minha vida.
— Tens alguma ousa?
— Não, não é conta.
Na casa de jantar, ofereceu-lhe os bonbons. D. Malvina, apesar de gulosa, deixou-os sobre a mesa. Mas o filho teimava. Foi com ela até o toucador. E lá abriu-se. Precisava arranjar a carta. Um comendador que oferecia cinco contos. A carta devia ser apresentando Jorge de Araújo. A digna senhora não compreendia nada das infantilidades de Jacques. Apenas uma secreta admiração brilhava no seu olhar. O filho fazendo negócios, agindo, trabalhando, falando em ganhar...
— Não sei se teu pai...
— Pede-lhe, pede-lhe com calor.
— Vou ver. Amanhã dou-te a resposta.
— E pede também a Nossa Senhora, mamãe, para que o ministro da Fazenda atenda...
D. Malvina abriu mais os olhos. Jacques, o endemoninhado, voltava às tradições de família, e era católico como o seu ilustre pai e era crente como sua mãe!
— Peço sim, meu filho. Ainda hoje a Irmã Adelaide perguntou por ti, com muito interesse...
Jacques deixou o lar, logo após o jantar, em que foi de uma extraordinária gentileza para com o pai. Descobrira de chofre os efeitos da lisonja. Servindo aos progenitores com um interesse mesquinho, em que ainda por cima pretendia enganá-los, uma série de atenções desusadas, admirava secretamente o seu tato. Também ele sabia mentir com mestria. Era da família. Como no temperamento mais nascido para as transações hábeis há sempre uma grande dose de ingenuidade, se lhe viessem dizer que mostrava inteligência de advogado, acreditaria. Passava a um papel ativo na vida, com desenvoltura e esperteza. No dia seguinte entregaria a carta, e Jorge teria as obras, dando os vinte contos. O mundo era seu.
— Pai, o negócio do empresário?
— Queres aquilo? Ainda lembras? É um aborrecimento. Estamos há quatro meses.
— E quanto ganhas?
— A metade do dinheiro que obrigarei a Prefeitura a dar-nos. Uns dez contos.
Dez contos. O pai levava quatro meses para um negócio de dez contos! Ele, de um dia para outro, obtinha o dobro. Na rua, a vários conhecidos que cumprimentou, sorriu com o ar triunfante e superior. Era definitivo. No dia seguinte teria aquela soma, que aliás de pronto não sabia como utilizar. Depois outros negócios se sucederiam. De que gênero? Talvez de cartas de recomendação, de influências íntimas. Oh! ele agora compreendia aquela febre estranha que agitava a maioria dos seus contemporâneos: as faces machucadas, as neurastenias, a pressa, o ar de corrida por um tremedal em que quase toda a sua sociedade e ele também, pela força das circunstâncias, viviam. Agora já poderia dar uma explicação aos gastos de muitos conhecidos, a flexões de espinha inexplicáveis até o momento. Era o negócio, o jogo das influências, um tremendo jogo certo de consciências, que o vencedor devia ser o maior ganhador. No fundo devia ser muito aborrecido fazer como o Jorge, de assaltante diário, ou como Godofredo, e seu pai, de intermediários entre o assaltado que deixa assaltar, mediante condições e o assaltante que reparte. Ele faria com rapidez, uns duzentos contos...
Passava um tramway, tomou-o. Ao pôr o pé no estribo, tinha mentalmente duzentos contos, e foi como milionário que saudou o jovem Gomensoro e a linda Etelvina, sua esposa, née d'Ataíde. Os dous continuavam o flirt marital, divertindo-se, ou fingindo rir com a trepidação cinematográfica da sociedade. Etelvina fora educada em Paris, educação americana na filigrana parisiense. Fazia de grande dama e tinha o curso completo dos cabarets de Montmartre, que visitara, a princípio com sua mãe, ambas incógnitas, e depois com o próprio marido, sem incógnito.
Montmartre desenvolvera-lhe a ironia. Nas salas, aquele ar de Mme. Bady, os plongeons à Segundo Império, ocultavam uma observação mordaz e uma garotice de assobio. O marido acompanhava-a na troça e ambos pareciam perfeitos. Jacques admirou-se de vê-los.
— Oh! que prazer! Então, nenhuma festa?
— Relâche, hoje, meu caro. Desde que cheguei, não posso mais. Canto todas as noites e todos os dias. As nossas damas de caridade verdadeiramente abusam. E as elegantes também.
— É a grande atração dos salões.
— Mas esgoto o repertório. Que culpa tenho eu de saber cantar?
— E há cousas - interrompeu o Gomensoro. - Ontem, depois da matinée em favor do Orfanato das Irmãs do Monte Branco, em que Etelvina cantou cinco números, tínhamos a recepção do presidente da República. O secretário da presidência foi em carro de palácio lá ao hotel pedir, pelo menos, um número.
— E V. Exa. compareceu?
— Fui. Oh! oh! que cousa! Nem os bailes do Eliseu em que o Félix Faure aparecia de sapatos brancos. A coleção de casacas para uma crônica hilariante! A série de damas gordas, mal nuns vestidos crispantes! E havia programa. Cantava uma das damas gordas, cantava uma das casacas. Os amadores da administração pública! Os amadores governamentais!... Quase não canto.
— Mas havia o corpo diplomático estrangeiro, gente muito fina, e alguns colegas meus. Sabe que na minha posição, Etelvina prejudicar-me-ia se não cantasse. Depois o ministro da Fazenda...
— O ministro da Fazenda? - interrompeu Jacques.
— Conhece? Muito amigo de mamãe.
— O ministro da Fazenda pediu. É um desses republicanos históricos a que nada se pode negar. Pertencia ao partido conservador da monarquia.
— E cantei, meu caro, mais três vezes. Também afirmo que acabo morrendo de cantar.
Esperou uma frase amável, que o Jacques não tinha, passou a língua no lábio, concluiu na íntima necessidade de um louvor.
— Como os rouxinóis...
Jacques, entretanto, pensava. Talvez fosse possível pedir à mãe da Etelvina a carta. Ou outra carta. Cartas nunca são demais no caso de empenho. Mas seria tempo ainda?
— E hoje, que fazem?
— Passeamos de bond, costume nacional, vendo o mau gosto desta arquitetura. Foi o secretário de França que comparou a Avenida a um bazar de fenômenos arquitetônicos.
No Passeio, Jacques saltou para assistir a um ato de opereta italiana. Como os artistas eram detestáveis e as coristas bem redondas e bem dispostas a saírem acompanhadas, a companhia tinha sempre enchentes, mais de homens, representativos de várias classes sociais, principalmente a política. A primeira pessoa conhecida que avistou foi o Deputado Arcanjo. Estava numa frisa com a esposa e a ilustre Sra. de Melo e Sousa. Viesse vê-las. Que prazer! Jacques foi. Alice estava com um escandaloso vestido cor de vinho ardente. Mme. de Melo e Sousa sorria cheia de malícia. Evidentemente a ilustre dama sentia um certo prazer em aproximar corações.
— Não há mais ninguém que o veja.
— Que exagero!
— A Alice já perguntou duas vezes pela sua pessoa.
— Palavra?
— A primeira à sua mãe no Dispensário da Irmã Adelaide.
— Também é de lá?
— Grande protetora. Deu muitos contos.
— Oh! D. Argemira.
— Que tem, minha filha? A Irmã Adelaide vai até inaugurar-lhe o retrato no salão de honra.
— Não quero.
— Será, então, o de seu marido. A Irmã Adelaide é firme de convicções.
E com a autoridade do seu grande nome, ergueu-se:
— Só nestes maus lugares é que se encontra o Jacques, não acha Dr. Arcanjo?
Levado pela ilustre dama num fio de conversa, o Dr. Arcanjo, que aliás não era formado, acompanhou-a até à galeria dos camarotes. E Jacques percebeu que, pela terceira ou quarta vez, D. Argemira dava ocasião. Seria desejo de D. Alice? Estava num estado d'alma pouco disposto ao amor. Mas ao mesmo tempo com a convicção de que nada lhe seria difícil.
— Então, por que não aparece?
— Para não enlouquecer.
— Enlouquecer, o Jacques?
— A senhora bem sabe.
— Eu?
Voltou-se completamente. Olhou-o com os seus dous grandes olhos ardentes.
— Sabe que fui à Cavé hoje? Amanhã lá estou à mesma hora.
— Seu marido vai buscá-la?
— Vai, como sempre. Mas eu vou antes à casa da Argemira.
— Eu também. Preciso ir.
— Ah! bem. Tem gostado da opereta?
— Muito. Às duas horas.
E voltando-se para D. Argemira, que se encostara ao balaústre, disse alto:
— Bastou ver-me chegar para sair! É a guerra?
— Sabe bem que não.
A generosa senhora e o generoso marido aproximaram-se. Ia de resto começar o ato. Jacques assistiu no camarote de Arcanjo. No seu cérebro com a impressão nova da Alice, o negócio de vinte contos passava a uma questão liquidada. Já ganhara os vinte contos. Agora eram as mulheres, as mulheres casadas. Um homem só é realmente chic quando tem uma amante casada. Cresce na consideração alheia, apesar de ser cada vez mais comum uma amante casada. E ele que nunca se atrevera por preguiça, julgando ser preciso ou muito dinheiro ou muita sorte, via que era fácil, tão fácil como convidar uma cocotte para cear. Seria o primeiro de Alice? Observou-a como se observa uma cousa mais ou menos sua. Era bem interessante. Ao demais fazia por que o notassem. Durante o ato inteiro levou a encarar cavalheiros na platéia e a pôr o binóculo para certas damas das frisas, trocando impressões com D. Argemira, que parecia apreciá-la imenso. Jacques pensou que ela estivesse afetando indiferença por sua causa, para fazer de senhora fina, dessas capazes de enfrentar um batalhão de amantes passados sem dar a perceber que lhes deu a mínima confiança. Quando baixou o pano, porém, os seus olhos fixados na boca de Jacques diziam tão claramente o desejo que ele se prometeu um dia seguinte, melhor do que qualquer outro, da sua leve existência. Ao sair, encontrou Godofredo de Alencar, o aplaudido cronista. Godofredo estava doente. Ficava sempre doente para a noite. Vinha, entretanto, de jantar com o senador relator do orçamento da Fazenda.
— Da Fazenda?
— Sim, homem, que tem isso?
— Conheces o ministro?
— Faz-me o favor de ser meu amigo.
— Que tal?
— Que tal, como?...
— Ora...
— É um costume este esquisito que todos vocês têm de insinuar dúvidas sobre a honestidade dos homens colocados. Não sei, não, caro. Para mim todos os ministros são angustiosamente honestos enquanto são ministros. Olha, a questão é de habilidade.
— Vamos cear?
— Mas a que horas queres que eu escreva, se durante o dia tenho negócios?
— Então, não dormes?
— Sim, às vezes, para não perder o hábito.
— Vais escrever agora? E custa muito?
— Escrever custa. Agora, vende-se muito em conta. E, meu caro, um gênero na baixa.
— Acompanho-te.
— Com prazer.
Jacques seguiu-o porque não tinha o que fazer e estava muitíssimo nervoso para dormir. Godofredo aceitou a companhia sem vontade e começou a dar voltas vagarosas pelas avenidas que partem do Largo da Lapa. Nem Jacques tinha a coragem de contar o seu negócio, nem Godofredo desejava comunicar aquele filho de boa sociedade que morava numa pequena sala de uma ruela escura. Tudo é vaidade. Vaidade das vaidades, já dizia o Eclesiastes. Exatamente por isso, Jacques falou de Alice.
— A pequena atira-se - fez o escritor cínico.
— Não?
— Queres dizer que não só a ti como a toda gente. É uma febre caro Jacques, uma verdadeira febre. Estou que é caso de moléstia. E a nossa encantadora D. Argemira...
— Sim, mas discretamente.
— A levá-la a toda parte, a passeá-la. Sabes o valor social de D. Argemira. Pois nunca me convidou para a sua casa. O dinheiro, meu amigo, o dinheiro é a grande arma. Nem talento, nem sangue nesta califórnia. Dinheiro!
— A quem o dizes - fez Jacques como se fosse um ganhador exausto de operações dinheirosas. - E por falar em dinheiro, o Jorge...
— Oh! mil contos, mil contos só em imóveis.
— Imóveis?
— Sim, terrenos e casas, caro advogado. E honesto, generoso, mais generoso, essencialmente moderno, último aeroplano. Adeus, estou perto de casa. Não precisas vir.
— Moras por aqui?
— Ali embaixo - fez vagamente o escritor deambulando.
Jacques foi deitar-se. Foi de tílburi, apesar do tramway ser mais econômico, mais higiênico, mais cômodo e mais rápido. Ao deitar-se, tinha a certeza de que não poderia conciliar o sono. Era bonito passar a noite a passear de um lado para outro, pensando no marido da amante e na certa para o ministro. Entretanto, dormiu quase imediatamente e só acordou às onze da manhã. O sol ia alto. O copeiro que lhe trouxe o café,
Deu-lhe uma notícia desagradável:
— Madame foi à missa.
Atirou-se para o banheiro desesperado, obteve do copeiro que lhe desse uma fricção geral d'água-da-colônia, vestiu-se zangado. Ia perder o negócio, ia perder a Alice, ia perder tudo, por inépcia e indiferença dos seus parentes. Vá a gente fiar-se nos pais! Com a fisionomia de vítima resignada, ia sair, quando sua mãe apareceu da missa. Chamou-o logo ao pequeno salão.
— Então? - fez ele sôfrego. - Até pensei que tivesses esquecido.
— Falei com teu pai.
— Ah!
— Ele riu muito.
— Riu?
— Riu e disse que lhe estavas saindo de truz.
— E a carta?
— Não ma deu.
— Mas, mamãe, e só agora é que a senhora me diz isso!
— É que não há mais remédio. Justino tinha dado uma carta antes para outro construtor e esteve ontem com o Godofredo na casa do relator do orçamento para fazê-lo interceder. Chegaste tarde.
— Oh! mamãe, vinte contos!
— Tu disseste cinco.
— Cinco, sim, cinco. Mas ainda não está tudo perdido. Os parentes! Os parentes!
Saiu sem almoçar. Uma idéia atravessara-lhe a mente: ir falar com a mãe de Etelvina, com a Sra. d'Ataíde, que morava nas Laranjeiras. Era uma vergonha, logo no seu primeiro negócio, ser tratado assim. Que diria Jorge de Araújo? Riria da sua importância, mesmo junto ao pai. Era enorme aquela! No palacete de Mme. Ataíde, o criado disse que a senhora não estava. Lembrou-se que a mãe de Etelvina só estava, quando o sol descambava e podia mostrar, sem muito escândalo, a face de velha amorosa suficientemente esmaltada. Ninguém mais conhecia que conhecesse intimamente o ministro da Fazenda! Ministro pouco conhecido. Nem ele mesmo. Entretanto, já podia ter-lhe falado, graças aos convites dados pelo Godofredo, de que não se utilizara, senão para ir ao cinematógrafo. Qual! nunca teria jeito para os negócios, para ganhar dinheiro!
Consultou o relógio. Eram duas horas. Devia tantas gentilezas a Jorge, que era impossível deixar de dar-lhe uma satisfação. Precisava, além do mais, fingir, para não perder a importância. E tinha a entrevista de Alice em casa de Argemira, àquela hora. Heroicamente tomou o tramway e veio para o escritório.
— Ninguém perguntou por mim?
— Ninguém - respondeu o velho cor de castanha.
Acendeu um cigarro, acendeu-o à moda, não com fósforo, mas com um isqueiro. Para se saber a que sociedade pertence um homem, basta vê-lo fumar. Jacques, fumando era de primeira classe, com o cigarro grosso no meio do lábio carnudo, tragando vagarosamente, nunca, jamais quebrando a cinza com o dedo mínimo. Para as três horas, o telefone vibrou. André arrastou-se até ao aparelho.
— Hein? Jacques? Não conheço. Ah! o filho do Dr. Justino. Donde é que fala? Da casa da Sra. Melo? Bem.
Jacques fez-lhe sinal que não, furioso, o velho cor de castanha irradiou. Ia dizer não. E pegando outra vez no fone:
— Alô! É a senhora? Diz que não está!
Neste momento, radioso como nunca, apareceu Jorge de Araújo.
— Negócios muitos? Bons?
— Maus.
— Ah!
— Chegaste tarde, meu caro. Falei com o pai, falei com d'Ataíde, que se dá com o ministro, desde o tempo em que ele era do partido conservador. Não foi possível. Até o relator do orçamento deu cartas para o teu rival. Foi assinado hoje.
— Foi.
— Sabias?
— Pois claro. Lancei aquela proposta com outro nome, o de meu cunhado. Como houve outra mais em conta, tive que, à última hora, colocar uma em meu nome, mais reduzida. Se perdesse a grande não perdia tudo.
— Era tua, então?
— Era. Eram ambas.
E para Jacques, perfeitamente apatetado:
— Nada mais simples: negócios!... É preciso preparar as cousas. Deixa, porém, dar-te os parabéns. Fizeste muito num exercício preliminar. Não me esquecerei.
"Conhece-te a ti mesmo", disse o sábio. Era um sábio antigo. O verdadeiro saber está em cada um ignorar-se a si mesmo. Que seria da vida, se todos, ou a maioria, ou mesmo uma pequena parte tivesse idéia justa do seu valor? Há calamidades em que se não pensa, nem mesmo quando se é sábio e antigo.
Jacques percebia nitidamente que outro momento não havia surgido igual para uma vida aventureira de negociatas. Mas uma indolência, por demais moral e por demais física parecia afastá-lo desse ambiente de ativa persistência. Dois dias acompanhou Jorge de Araújo a ver as obras. Jorge, porém, tratava-o como uma visita e ele não podia perder a mania de que era muito superior ao amigo rico.
— Meu caro, dentro de dous anos, realizo a independência - dizia-lhe Jorge.
— Como?
— Negócios...
Negócios! Palavra mágica, palavra que, cada vez mais vaga, toma no Brasil proporções enormes e ao mesmo tempo, sutis - negócios!
Sabedores de que Jorge, com capital, repartia, vários numerosos cavalheiros passavam o dia a correr ao seu escritório, oferecendo contratos, concessões., negócios. Jacques, com o seu hereditário cinismo ingênuo, estava espantado. Nunca, na sua vida, imaginara que se fizesse dinheiro sobre o dinheiro, tão rápida e tão fantasticamente.
Pelo escritório de Jorge viu passar o Carlos Chagas, viu passar o Dória e viu também passar outros construtores, o Eleutério Souto, o maior bluff à espera de casamento rico, tendo um escritório com arquitetos franceses, o belo Passos Vieira, sem o mínimo talento, mas quase milionário, outros. Quem tivesse uma amizade imediatamente tratava de empenhá-la, de pô-la no prego. Mas Jorge dizia:
— São intermediários demais. Já agora não precisamos.
— Como não?
— Vamos de cara. Os próprios detentores dos negócios dão à gente...
— Com condições?
— Com boa vontade - fazia o industrial, subitamente discreto. - Mas os intermediários! Imagina que há um mês para certas obras orçadas em dois mil contos, recebo propostas trazidas por diversos rapazes. Algumas tinham a letra do próprio diretor da repartição, que prometia abrir concorrência. Mas eu conheci o diretor sem níquel, num club de prontos.
— Quando?
— Quando eu também era "pronto". E vi bem que ele embrulhava os rapazes, estando feito com uma casa amiga de que é sócio secreto.
— Mas é um imoral.
— Qual de nós é moral, Jacques?
Para aquele meio tudo era dinheiro. Jorge trabalhava das seis da manhã às seis da tarde. Depois lavava-se, perfumava-se, vestia-se e aparecia para o vermouth, numa confeitaria da moda, no seu lindo automóvel de sessenta cavalos. Aí era o mundano. Fazia-se uma roda em que aparecia Godofredo, sempre doente e sempre inquieto, Otaviano Soares, um jovem ambíguo, vários industriais de diversas nacionalidades, inclusive um irlandês e um turco. De raro em raro, o Barão Belfort, esse curioso das emoções alheias, parava um pouco, ao vir do club, que ficava na Avenida, a dous passos.
Jacques sofria sem saber que sofria, com a promiscuidade daquele pessoal. Gostava muito mais da outra roda, da roda da Cavé, às quatro. ti estava no seu elemento, com gente conhecida, que já tinha chegado. E ficava calado, porque só sabia falar ingenuamente mal da honra dos seus conhecidos. Oh! A existência não era afinal apenas o seu reduzido grupo, as suas reduzidas pândegas e reduzidíssimas idéias. Bem sabia. Teimava desembaraçar-se de uma série de preconceitos, que o prendiam a uma casta sem dinheiro. E não podia, quando era preciso... Certo, o jovem encantador não refletia, com tanta clareza. Mas sentia. E sentir é tudo.
Os outros também sentiam que Jacques era melhor para divertir-se. conservava-o. Por simpatia? Por uma série de vagos interesses. Jacques era sempre decorativo. Quando pensava explorar o ousado Jorge, era de fato este que o aproveitava. Quanto a Godofredo, a verdade é que o a tratava, como uma criação mundana. Uma vez foi buscá-lo às seis horas, com o Jorge, à redação. Jorge falara por telefone. O telefone não se entendia. Deram então uns passos até lá. Jorge foi de mesa em mesa, a distribuir cumprimentos. A imprensa é uma grande força e o menor dos reporters podia prejudicá-lo, dando notícias dos desastres cometidos pelos seus automóveis, como podia fazer-lhe bem, levando qualquer negócio. Depois, conferenciou com Godofredo. Jacques não conhecia esses jornalistas, e, como todos da sua roda, não os tinha em grande conta - principalmente porque não tinham nem dinheiro nem nome. Só conhecia os donos dos jornais e três ou quatro cronistas, que como o Godofredo eram complexos: imprensa, aristocracia, política e chelpa. Quando terminou a conferência, Godofredo levou a conversa para um terreno mundano. Assim espantava os companheiros (as suas relações!), fazia espantar a Jorge e reduzia o pobre Jacques.
— Então é definitivo o divórcio da Zurich?
— Não sei, não; mamãe contou-me.
— Quem pede é ela.
— Como devem estar desgostosos os amigos do marido!
— Também o marido, recebida a herança da tia, batia-lhe.
— E não se pode dizer que não tenha bom coração.
— Apenas, agora é um coração que bate demais.
E falaram de Laura, que andava só com o Chagas, pela rua, à americana; e falaram de Mme. Gouveia, cuja paixão pelo hipismo levara-a a se fazer acompanhar por um jockey, o Gonzalez, argentino. Dilaceraram com dente afiado a honra de todo bando. Jacques tinha uma repulsão invencível por gente malvestida. De modo que, insensivelmente, o seu comentário agressivo ficava na roupa:
— O Gonzalez, com aqueles casaquinhos curtos e sujos.
— Um homem que foi lad da coudelaria do Espínola roleteiro.
Quando saíram, Jacques viu que se excedera servindo de trípode para o elegante cronista. Jorge tinha um riso amarelo, e ele ouviu, ainda a descer, o secretário indagar de Godofredo:
— Quem é esse idiotinha?
Para qualquer cousa na vida, é preciso antes de tudo persistência. Persistência e o esquecimento de sua classe. Jacques sentia que lhe faltava persistência e ou que espantava ou faziam por não lhe ligar importância, quando deixava os seus amigos. Aos poucos, foi deixando de ir ao escritório de Jorge, mas sendo cada vez mais o seu companheiro da noite. A vida é um prazer. Devemos gozá-la enquanto é tempo. O barão, que uma vez passava do club, tomou-o no seu carro.
— Levo-te até casa.
Jacques aceitou com vontade de pedir uns conselhos ao velho dandy. E o barão foi-lhe ao encontro.
— Então, como vai a linda criança na advocacia?
— Qual, barão, não tenho jeito.
— Não tem mesmo. Meu caro Jacques, o Rio de Janeiro é outro depois da Avenida Central. A mocidade de antes da Avenida era composta na sua maioria de estudantes alegres e despreocupados. Formado o estudante, ia tratar da vida, segundo as suas posses, depois de guardar os versos maus do tempo de menino, a recordação dos amores e a recordação das pândegas. Em regra geral, não havia senão ambições relativas. Com a abertura das avenidas, os apetites, as ambições, os vícios jorraram. Já não há mais rapazes. Há homens que querem furiosamente enriquecer e esses homens são ao mesmo tempo pais e filhos. Faz-se uma sociedade e constituem-se capitais com violência. E uma mistura convulsionada, em que uns vindo do nada trabalham, exploram, roubam para conquistar com o dinheiro o primeiro lugar ou para pelas posições conquistar o dinheiro...
— E os outros? - fez Jacques, que não se interessava demasiadamente pela tirada de psicologia social do barão.
— Os outros? Os outros são constituídos de pedaços heterogêneos da passada sociedade. Não se defendem. Têm família, os preconceitos da família no fundo, mas adaptam-se para ficar. E fazem a alta roda ao lado dos dinheirosos do momento, e tomam os seus processos, explorando de vários modos a sociedade. Tu...
— Eu?
— Tu nasceste para viver à custa da sociedade sem te incomodares.
— Isto é o que o senhor diz.
— É a melhor maneira. Não te canses. É impossível bateres a vida, como teu pai, como alguns dos meus companheiros de club, como Jorge ou Godofredo. A ti será preciso que venha o prato feito. E vem. Vem, porque seria uma pena se não viesse. Olha, diverte-te, ama. Estás na idade de amar. Não sei quem disse que primeiro o amor, depois a ambição...
Como são agradáveis os conselhos quando vêm ao encontro da nossa própria opinião! Jacques seguiu-os imediatamente. O consultório do pai foi apenas um ponto, onde passava alguns minutos, entre as três e as quatro, quando lá aparecia. O resto era a vida de prazer. Começava no chá da Cavé, às quatro horas, e lá ficava até às seis. O seu grupo era o Dr. Suzel, Bruno Sá e Belmiro Leão. O Dr. Suzel, inteligente e fino, fazia por esquecer o que sabia numa preocupação lambareira do mulherio de sociedade. Conhecia uma porção de anedotas, contava as ligações de cada uma, e estava permanentemente apaixonado por várias damas.
Bruno Sá, de dinheiro escasso, mas hábil, conseguia ser o homem mais amável do mundo. Era impossível haver outro mais gentil e mais sorridente. Ao aproximar-se de alguém, dizia logo:
— Sim, senhor!
Para mostrar que concordava. As vezes acabara, na mais estrita intimidade, de demolir o indivíduo. Mas as senhoras gostavam dele. Era uma figura obrigada de todos os bailes e de todos os salões. Belmiro Leão herdara do pai. Vestia bem, dizia mal dos outros e conquistava também, além de senhoras honestas, algumas cocottes. Era o passadiço, devido a esta qualidade extra, por onde Jacques passava para a roda de Jorge de Araújo, roda de confeitaria, de casinos, de clubs de roleta. e de pensões de raparigas loucas. Belmiro Leão, ao demais, usava um monóculo sempre entalado no olho direito.
Os quatro, com um chá modesto, tomavam conta do estabelecimento, sabiam o nome dos caixeiros e falavam com a caissière em francês. O Rio elegante passava diante deles. Suzel e Bruno cumprimentavam todas as senhoras do tom, e marcavam mesmo algumas entrevistas para o mesmo sitio, mais cedo, antes da afluência. Belmiro e Jacques também saudavam as cocottes, as melhores, afinal um pouco da família geral (o mundo é uma família) porque tinham sido, eram, ou tinham de ser amantes dos maridos das senhoras do tom, conhecendo-as muito bem, às vezes pelo apelido de casa, e sendo conhecidas também não pelo nome de casa que as próprias cocottes acabam por esquecer, mas pelo nome de guerra do momento.
Impreterivelmente, entre as cinco e as seis, aparecia Alice dos Santos. Quase sempre em companhia da ilustre Argemira de Melo e Sousa. O flirt, interrompido pela insolência da falta à entrevista, eternizava-se. Jacques nunca seria capaz de conquistar. Com as mulheres era sempre hipócrita. Queria, mas ficava quieto, sabendo que, quando são elas a desejarem, tudo fica mais agradável. A conquista de Alice satisfazia no momento as suas ambições adulterinas. Mas não dava um passo, não mostrava a menor animação, sempre na defensiva, excitando Alice com a frescura da sua mocidade ardente.
De resto, tinha de ser.
Alice dos Santos era um caso de frivolismo mundano e sensual comum. Passara até os vinte e três anos na província, com a atenção voltada para a vida elegante da capital. Fizera assim uma idéia exagerada de tudo: da moda, dos divertimentos, dos homens, da liberdade, dos costumes, acreditando em quanta fantasia lia nos jornais e em quanta invenção narram os provincianos de volta, para se darem ares. Os seus modos causavam impressão. Ela os tinha, entretanto, porque os considerava extremamente cariocas. Ao casar com Arcanjo, muito mais velho e pobre, posto que com posição política, casara com a mira de vir instalar-se no Rio, desejo a que se recusara sempre o velho estancieiro, seu pai; e não só para gozar os refinamentos da cidade como para dominar e ser a primeira entre as senhoras faladas pela beleza, pela fortuna e pela posição. O cuidado com que se comparava à fotografia das grandes damas nos jornais ilustrados para se achar melhor sempre! A pertinácia com que estudava nos magazines mundanos a tecnologia, a língua confusa da alta roda, aliás tão limitada! Quando chegou, não quis usar nenhum dos antigos vestidos, nenhum dos antigos chapéus, que, entretanto, já eram grandes. Esteve incógnita oito ou dez dias, à espera de toilettes estupendas.
O marido era uma figura doente e simpática, que lhe fazia sempre as vontades com uma resignação de intendente. Realmente Arcanjo era doente como Rockefeller, dadas as devidas proporções de riqueza. Incapaz de falar na Câmara, porque dele se apoderava um tremor, que Godofredo dizia ser o prévio remorso da asneira - além da mulher, só duas coisas o preocupavam: o esperanto e o vegetarismo. Ambas tinham com a língua, que não utilizava nos debates parlamentares. Vegetariano era-o por completo. Dedicara-se até a estudos especiais e nesses estudos vieram a causar-lhe inquietação as conclusões de um célebre médico num congresso de patologia geral sobre a influência dos legumes no caráter. Arcanjo sabia na ponta da língua que o espinafre desenvolve a ambição, a constância e a energia; a azedinha leva à melancolia; a cenoura é recomendada aos biliosos e aos maridos infelizes; a vagem incita à arte; o feijão branco convém aos intelectuais; o petit-pois é frívolo; a couve-flor agrada aos egoístas e a batata provoca o equilíbrio mental.
Para sentir-se possuidor de um caráter de primeira ordem, fora aos poucos misturando, tanto que acabou por almoçar e jantar panachée de legumes. Indicava aliás essa alimentação aos artríticos, concluindo sempre:
— É tão boa que o Dr. Zamenhoff continua vegetariano.
— Que Zamenhoff, Arcanjo?
— O pai do esperanto, a língua universal, a língua em que daqui a tempos poderei falar em qualquer país do mundo, quando esses países souberem o esperanto.
Era afinal um bom sujeito. Não há ninguém que não seja um pouco bom. A teoria do absoluto é impossível aplicada às qualidades.
Alice aceitava-o sem repugnância, pensando, aliás, noutra coisa. Esta outra coisa era a fixação na sociedade, "como devia ser". Era preciso montar casa, imediatamente. Arranjada a casa na Avenida do Entroncamento, uma nuvem de fornecedores caiu sobre eles, explorando-lhes a vaidade provinciana. Em toda parte é mais ou menos assim. Mas Arcanjo tinha a lutar com os empenhos dos políticos e as opiniões de algumas relações mundanas que valorizavam os fornecedores. Os colegas de política escreviam a pedido empenhando-se pelo fornecedor de tapetes ou pelo fornecedor de louça. Arcanjo recebeu até por intermédio de um agente de mobílias uma carta do seu Grande Chefe, dizendo textualmente: "precisamos ajudar os nossos amigos".
— Amigos dele! Nem o conheço! Com certeza reforma algum compartimento do seu paço!
Mas atendeu também a um mercador de tapetes orientais recomendado pela bancada do Pará, acabou com vontade de montar outra casa, para satisfazer a todas as bancadas.
— Como se metem na nossa vida!
— Oh! filho, são os próprios fornecedores que vão pedir. Não viste com os automóveis?
Com os automóveis, uma das casas trouxera até uma recomendação do cardeal. Com um pouco mais trá-la-ia do Papa em pessoa. Era uma casa que fornecera automóveis por preços altíssimos para todos os serviços prováveis do governo, e distribuíra alguns grátis. Arcanjo e Alice, porém, impressionaram-se com a opinião dos seus conhecimentos da alta sociedade. Eram os primeiros, alguns rapazes, das melhores famílias, mas desses que preferem a transação ao trabalho. Também são esses que constituem sempre o piquete de reconhecimento da sociedade que se preza, passando uma vidinha de perpétuo regalo e explorando os pretendentes ao escol com um cinismo acima da expectativa. O primeiro a aparecer fora Carlos Chagas. Era correto, delicado, tinha esplêndidas relações, e como não se empregava em nada de confessável, resolvera ter gosto. Ter gosto pode ser uma profissão, dada a raridade do gosto. Era de resto sempre uma apresentação.
— Ah! "seu" Arcanjo - dizia atirando piparotes no ventre doentio do deputado vegetarista - gosto tenho eu. Aqui neste pais não se tem a noção do chic. Ninguém como eu sabe pôr uma mesa, arranjar um menu, decorar uma sala. Gosto tenho eu. Falta o dinheiro. Também quem já pôs fora três fortunas...
Sempre que se referia à moeda, precedia-a daquele determinativo que a realçava. Nunca dizia: dinheiro. Dizia sempre: o dinheiro. E com tal autoridade que era da gente pedir-lhe desculpa por vê-lo sem o dinheiro. Em duas palhetadas dominou o casal com decretos de elegância.
— Vi hoje uma jóia chic, cousa boa, que lhe vai a calhar. É para uma pessoa distinta.
Os esposos terminaram as dificuldades das escolhas, fazendo-o árbitro.
— Como achas?
— Não, como gosto distinto fica melhor assim.
Tinha gosto até a escolher o trem de cozinha. Os fornecedores, vendo a sua decisiva importância, procuraram ter gosto também. Ficaram os que tinham mais. Arcanjo devia ter pago preços de fábula pelo mobiliário, pela galeria de quadros, pela prataria. A casa já estava pronta quando Chagas, o Dória (que se dizia descendente dos Dória de Itália), o Raul Pereira, filho dos Marqueses de Pereira e outros rapazes da mais fina roda sem vintém lhe descobriram, um faqueiro histórico, faqueiro de setecentas peças de prata lavrada, oferta de um amigo em delírio ao Generalíssimo Deodoro. A esposa do Generalíssimo desfizera-se aos poucos do faqueiro colossal. Um colecionador reunira, porém, todas as facas, em que o proclamador da República - (os vendedores diziam-se no fundo, por chic, monarquistas) - nunca pegara. O faqueiro vinha à mão de Arcanjo por nove contos fortes, porque o colecionador tinha residência em Lisboa.
A casa ficou vistosa. Parecia um cenário de Antoine, quando se propõe reproduzir, na montagem das peças salões de luxo. Havia tapetes, bronzes, quadros, escadarias forradas de veludo cor de vinho e cor de granada, palmeiras em vasos de variados feitios, um coupé, um automóvel.
Alice, inteligente, consultava os costureiros, as modistas, os joalheiros, e aparecia cada vez mais desejosa de vencer. Mas sentia nitidamente a hostilidade dos leaders, das leaders mundanas.
A mãe de Eleonora Parckett dissera:
— Não posso freqüentar essa rapariga, que não é da nossa sociedade.
A mãe de Eleonora, ao que diziam, começara dançarina. Mas era falso. Luísa Frias denominara-a de "ave exótica". Havia outras ironias agudas. Alice percebeu que, se os homens em tal meio vencem com o dinheiro e braço, as mulheres podem vencer aliciando para o seu partido os homens. Apenas exagerou. Quando num baile, numa festa, na rua, no chá das quatro, nos dias de Mme. Pedreira, às quintas de Argemira, percebia ter agradado mais a um cavalheiro, sentia como a ebriedade da vitória e ultrapassava o flirt para irritar as proprietárias legítimas ou ilegítimas desse cavalheiro. O resultado era inteiramente desastroso. Os homens contavam uns aos outros, com perfeita discrição, os avanços da bela Alice, e o grupo de admiradores aumentava à proporção que a tolerância familiar esfriava. Venceria? Era ainda a mais honesta, era apenas uma vítima do esnobismo dos equilibristas da alta vida. E no fundo, nos seus nervos, só sentia um certo interesse por Jacques: Jacques com as suas largas mãos, a sua tez cor de pêssego, aquela boca tão carnuda e rubra, os dois olhos molhados, o cabelo negro, repartido ao meio. Jacques era o que lhe mostrava maior indiferença... Outra qualquer desanimaria, Alice, porém, tinha a Sra. de Melo e Sousa a seu favor.
A Sra. de Melo e Sousa passava por ser das mais ilustres damas da sociedade, fidalga de verdade, nobre de fato, inteligente, culta, requintada. A sua ascendência era conhecida de quatro séculos, sendo no Brasil anterior à vinda de D. João VI. As pequenas crônicas privadas davam-lhe na linha direta três monjas, quarenta adúlteras, cinqüenta generais, cinco artistas, dez juristas, vários diplomatas. Argemira mostrava-se culta com simplicidade. No seu tempo de moça amara muito, independente do marido, a quem aliás sempre respeitara, nas constantes viagens pelo estrangeiro. Agora, não velha, que senhora tão cuidada e de tão formoso espírito não envelhecia, mas apenas "datava" como se fosse do XVIII século, assistia a sorrir à eclosão da nova sociedade, amando a mocidade e amando o amor. Por isso, talvez protegesse os jovens, e, como sabia a crônica geral, perdia-os com anedotas autênticas da vida real de cada um, francamente corrosivas. Além do mais, Argemira queria ver caminhar o seu caro Jacques. Foi ela quem os aproximou de novo, sem a menor alusão à falta do lindo mancebo, fazendo-se encontrada como por acaso...
— A Alice recebe agora os seus amigos.
— Ah! meus cumprimentos.
— Arcanjo ainda não o preveniu?
— Ainda não.
E a linda Alice:
— Pois temos muito gosto.
Depois, era o chá a três, com conversinhas mais ou menos picantes, em que Alice flambava como um ponche, eram perguntas, indiscrições. A jovem tinha a idéia de que Jacques devia ser disputado por todas as mulheres. As mulheres pensam sempre assim, quando desejam, para sustentar e manter o desejo. E perguntava nomes de cocottes no Lírico e na Cavé, sorria maliciosamente, sempre que Jacques cumprimentava alguma dama. D. Argemira sabia conservar a atmosfera, divertida com o flirt. Jacques parecia tão agradecido... Um mês depois, Belmiro Leão apareceu indignado no chá das quatro.
— Olha - disse a Jacques - estive ontem na festa de caridade da Irmã Adelaide com a Alice e D. Argemira. É de força a Alice...
— É, ela contou-me que lhe disseste inconveniências e passaste uma cartinha embrulhando uma flor. Lemos a carta.
Belmiro Leão ficou rubro e indignado. Aquele processo da Alice parecia-lhe de uma depravação inqualificável. Não a cumprimentaria mais! Há coisas que não se contam. Nunca fizera papel de tolo. Ah! ia perder aquela impertinente no conceito público...
Jacques ficou glacial e ergueu-se logo.
— Mas olha, não tenho nada contigo; é com ela. Tens sorte, és o amante.
— Quem te disse que eu era o amante?
— Ah! bom, não sabia que era paixão. Cavalheiro...
Jacques saiu contrariadíssimo e encontrou na Carioca, ao subir para o coupé-automóvel, Alice e Mme. de Melo e Sousa. Há acasos fatais. A vida é um grande acaso.
Argemira pasmou:
— Por aqui a esta hora? Aposto que adivinhou a nossa presença?
— Não. Vou para casa.
— Está aborrecido? - indagou Alice.
— Não; estive com o Belmiro Leão e ele está furioso com a senhora.
— Comigo?
— Porque contou-me a cena de ontem.
— A quem poderia contar então? - fez Alice.
— Ora deve ser divertido o Belmiro. Venha você narrar-nos a cena por miúdo.
— Onde?
— No auto, conosco - disse logo Argemira. - Alice ia levar-me a casa. Levam-me os dous.
— Mas não chego.
— Vais no meio, um pouco apertado.
Alice um tanto trêmula, lembrou-se entretanto que era uma elegância espantosa essa de irem num carro apertadas várias pessoas. Jacques também estava trêmulo. Mas concordaram. Subiu primeiro Alice, depois ele. Por fim Mme. de Melo e Sousa. Jacques ficou na ponta do assento, entre o vestido roxo da ilustre dama e o vestido de veludo castanho de Alice, um vestido em que o seu corpo cheiroso parecia num estojo...
— Laranjeiras! - disse Argemira. - Para minha casa. - E depois: - Conte lá, menino terrível.
— Ora...
Jacques contava. Contava e sentia que insensivelmente o seu corpo ia tomando mais assento e que de Alice vinha um perfume doce, agradável, macio. Ela ficara silenciosa, olhando-o.
— Que me olha tanto? - indagou Jacques.
— Admiro a pérola de sua gravata.
— Bonita? Foi a mamã que ma deu.
— Gosto muito de pérolas.
— Quando não são as da Luísa Frias - interrompeu Argemita - falsas como a onda...
— Esta é verdadeira.
— Quem duvida? Você tem cada idéia...
— Não, que a senhora é muito perversa.
— Eu?
— Mostra-me a pérola? - pediu Alice.
Jacques tirou o alfinete da gravata. O automóvel dava solavancos. Passou-o à Alice, apertando-lhe os dedos.
— Tenha modos. Deixe de brincadeiras.
— Está enganada.
Mas viu que Alice se recostava e, pegando o alfinete pela ponta, roçava a pérola na face, nos lábios, no pescoço, pelas pálpebras, vagarosamente, como afastada do mundo, as narinas palpitando. Passou a mão na almofada e encontrou uma outra mão gelada, que tremia. O silêncio caíra de chofre. D. Argemira sentia, sem ver. Alice ofertava-se à pérola, que é a pedra de Vênus. Ele estava numa impetuosa onda de sangue e de desejo. Era o momento. O automóvel parou, sem que dessem por isso. Argemira saltou.
— Não os convido para entrar. É tarde. Merci pelo obséquio. Até logo à noite, não?
Nenhum dos dous respondeu. Eram incapazes de dizer uma palavra com senso. Em roda, como dizem os romancistas, o mundo se alheara, vago e indeciso. Ela só queria ele, ele. A sua carne vibrava um suspiro de apelo. Qualquer palavra seria inútil. Jacques puxou num rápido gesto os stores, soprou, no tubo acústico: devagar! enlaçou-a na violência da sua adolescência vitoriosa. Ela ainda meneou a cabeça, fugindo ao beijo almejado. Mas ele prendeu-lhe a face com as duas mãos e sorveu na sua boca vermelha a boca saudável de Alice.
— Mau! - fez ela. - Como demoraste! - E, numa ânsia tropical, o seu lábio procurou o dele, sorveu-o também, enquanto os dous corpos se enlaçavam na harmonia indizível do desejo.
E o automóvel, devagar, buzinava pelas ruas, ameaçando os transeuntes. Eram seis e meia da tarde.
O amor é uma felicidade transitória, mas irradiante. Só quem nunca amou pode imaginar o amor eterno. Só quem ignora as delícias dos primeiros tempos de uma paixão na agradável posição de amado, pode acreditar possível o segredo no amor. Não é preciso ser indiscreto, não é preciso dizer palavra. Cada gesto, cada olhar, cada inflexão do homem amado revela o deus que comeu ambrosia. Os outros homens ficam, sem saber por que, irritados, e mesmo muito amigos, procuram falar mal do feliz. As mulheres, todas as outras mulheres sentem de súbito uma incompreensível simpatia. E uma corrente misteriosa que põe o mundo exterior no segredo. De um lado aumenta a atração, de outro os homens se tornam ainda mais pólo negativo. A sabedoria do profissional é mudar imediatamente de amante para conservar a atmosfera. Jacques não era um profissional. Mas logo percebeu que entrava mais no mundo, muito mais do que quando se formara ou começara a vida prática. Certo não era nenhum ingênuo, nem caíra nos braços de Alice para aprender essa coisa difícil que no século XVII chamavam arte de amar e no século XX chamam sport do engano. O fato, porém, é que nem a criada iniciadora, nem as sestas passadas com a quase virgem Ada na casa do barão, nem a italiana oxigenada do desagradável incidente da sopa e da cautela, nem as pequenas de várias nacionalidades encontradas nos clubs e nos music hall, lhe tinham dado a satisfação pessoal, a plenitude, a segurança da sua vitória como o apetite, a violência amorosa de Alice. Nas ações menos importantes, Jacques sentia-se excepcional. Ao chamar o criado para a fricção de água-de-colônia, ao levar o garfo à boca, ao tomar um aperitivo, mesmo só, a caminhar no seu quarto, era como se conduzisse um objeto raro, alvo das atenções alheias. Está claro que não correspondia a tanto amor. Um rapaz de linha não se compromete assim. Gozava, entretanto, muitíssimo, assistia com aplausos ao ato de Alice, tanto mais quanto de um momento para outro aquelas senhoras que o tomavam por um menino de maus costumes, revelavam uma complacência curiosa. Curiosa e prometedora. As senhorinhas, como Laura Gomes, faziam alusões veladas.
— Já ninguém o vê, Jacques, a não ser com a política...
A Viuvinha Ada Pereira retivera-o numa das recepções de sua mãe a tarde inteira a conversar. Jacques não tinha uma palestra muito variada.
A viuvinha, ao contrário, gostava de conversar. Mas dava-lhe a deixa, trazia a baila assuntos possíveis. Não se conteve:
— Conte-me alguma coisa de novo.
— Não há nada, nada.
— Ora, conte-me a sua vida.
— E logo esse corte num ponto tão interessante do folhetim!
Gina Malperle, cada vez mais íntima amiga de Mme. Andrade, uma das três irmãs, que no momento disputavam o bastão da beleza, levou certa vez dois minutos com a sua mão presa, enquanto a admirável Andrade descia do seu papel de deusa e parecia requerer o voto daquele Páris último aeronave. Era a roda toda, indireta, mas visivelmente. E não só a roda. As mulheres livres olhavam-no de outro modo, tratavam-no de outra maneira.
— Tiens! voilà ]acques...
Era uma festa, nos salões de ceia dos clubs. Talvez Jacques exagerasse. Mas até nas ruas, nos tramways, rapariguitas pobres, senhoras desconhecidas, fixavam-no com a volúpia feminina que é a volúpia da serpente, a virtude de olhar e esperar. Com a sua educação, Jacques não cairia na vulgaridade de se julgar irresistível, como qualquer caçador de rua. Mas os fatos provavam, e ele, por um fenômeno reflexo, estava mais cheio, mais bonito, mais radiante.
— Este menino sua amor! - exclama a venerável Sra. Ataíde.
Todos os meninos suam amor, antes dos vinte anos, quando têm a amá-los uma criatura bela e ardente...
Alice dos Santos também não fazia por ocultar em público a sua conquista. As pessoas que a recebiam e a cumprimentavam ficaram hesitantes. Algumas damas invejaram-na. Outras encheram-se de ternura. A relíquia da monarquia, Sra. de Muripinim, deu para tratá-la de "minha filha", contando-lhe velhas histórias da Quinta, em carros do paço, os bailes dos mordomos, os flirts dos príncipes, a mania que o imperador tinha de trair a imperatriz só com atrizes.
— Era um sábio, minha filha, gostava muito de teatro.
A venerável mãe de Eleonora dissera:
— Se essa menina engana o marido, o caso é com o marido.
E D. Malvina teve um fraco de agradecimento maternal, satisfeita com a paixão inspirada pelo filho. Deu uma porção de conselhos graves e impertinentes a Alice, que aliás não os poderia seguir. No estado de espírito em que se encontrava a esposa do deputado vegetarista, só podia considerar o casamento a província do amor. Jacques era a capital, a capital mundana. Ela começava a realizar nele o que desejava realizar com a cidade. Tê-la sua, dominada, inteiramente sua. Depois da cena do automóvel surgiram as necessidades crescentes e a urgência dos primeiros encontros. Era impossível ser sempre no automóvel. Impossível e perigoso. Não pareciam convenientes os alvitres lembrados por Jacques, assaz sem dinheiro: um ou dois hotéis na Tijuca, em Santa Teresa.
— Não convém.
— Que há?
— E toda essa gente que te há de ver? Não, não.
Uma casa comum, casa do oficio, seria muito reles. Alice não iria, nem ele lembrou. No terceiro dia, porém, Jacques foi visitá-la a casa, às duas horas. Ela recebeu-o como uma criança. Assim que o criado voltou as costas, caiu-o de beijos, e ele já julgava o salão agradável, quando vieram anunciar as Soares, relações políticas do marido, gente das Alagoas, de passagem para a Europa. Não se podia estar naquela casa tranqüilo! Jacques então lembrou-se de Godofredo, do quarto de Godofredo. Era a solução. Godofredo seria discreto. Ao demais, nem precisava saber de que se tratava. Correu a procurar o cronista. Godofredo estava num dos dias de mau humor. Não se podia dizer que estivesse pálido. Era verde demasiado, eram grandes olheiras. De instante a instante torcia os dedos. Os negócios não lhe corriam bem decerto, as relações políticas divertiam-se contra o seu valor.
— Que tens?
— Nada, complicações morais.
— Os negócios?
— Ah! os negócios. Já vens tu com a seca dos outros também. Negócios! Que negócios! Não faço nenhum. Antes fizesse. Não é culpa minha. Mas ainda dou o tiro definitivo.
Invariavelmente, como sempre, nesse grave assunto, contradizia-se. Jacques aproveitou.
— Tens duas chaves de trinco?
— Eu?
— Sim, do teu quarto.
— Não tenho quarto.
— Como?
— Tenho a frente de uma casa.
— Vais emprestar-ma durante o dia.
— Emprestar, para quê?
— Segredo...
— Ah! bravo.
Mas explicou como era impossível: uma rua cheia de vizinhança sempre à janela; a casa com uma dúzia de crianças, que vinham para a porta, por não ter as janelas, e o seu quarto cheio de livros, papéis, uma trapalhada, uma barafunda! Jacques não se sentiria bem e a pessoa, que devia ser de sociedade, também não.
— Tenho uma grande biblioteca. Não imaginas. Na mesa, papéis, escovas, velas, frascos de essência (porque só escrevo cheirando heliotrópo e violeta), um inferno!
Havia, entretanto, a solução. O Barão Belfort era um dos quatro ou cinco homens da cidade possuidores de garçonnieres dignas de receber pessoas decentes. Ocupara-a, havia dois meses, com uma anedota sentimental de somenos importância. Podia cedê-la. Iria ele, pessoalmente, se Jacques achasse imprudente aparecer.
— Fico-te muito agradecido.
— Com que então já conquistador?
— Oh! Godofredo.
— Fazes muito bem. Conquistas de primeira plana colocam sempre bem.
— E vais hoje?
— Hoje, não posso. - E irritado: - Não posso, é impossível. Estou com azar. Tudo falha. O barão seria capaz de negar.
Jacques submeteu-se ao fetichismo do homem superior, e no outro dia, o criado de Belfort, um criado francês, foi pessoalmente entregar-lhe uma chave de prata, com esta palavra a lápis, em papel timbrado do barão: Excelsior!
A garçonniere era de um gosto apurado e fino. Ficava numa das ruas que desembocam no Flamengo. A casa era própria. Constava de cinco peças. No salão pequeno havia por mobília um caro tapete, um baú medievo, um contador espanhol, algumas telas de Corot, de Turner, uma vitrine com esmaltes e medalhas antigas, cortinas pesadas de seda. Logo depois, uma sala maior, à XVIII século, laca e tapeçaria gobelino moderno. As paredes eram forradas de seda rosa. As cortinas eram de seda quase branca. Em medalhões, Lancret, Watteau, Boucher, três telas em que o amor se repetia galante. O lustre, em bronze verde fantasiava a escalada dos amores. Havia uma bergere, um divan, um leito, e o ambiente estava impregnado de essência de rosas. A seguir, a sala de banho, feita de mármore colorido, alabastro verde, e cristais de tonalidades mortas. O conforto e a higiene tinham organizado aquela peça. Havia o leito de mármore forrado por um tapete persa para as massagens, havia a máquina elétrica do leito condensador, tabuleiro de cristal com frascos de todos os tamanhos, em que se encontravam desde as essências perfumadas até a terebentina. E a piscina de alabastro verde, enchia pelo fundo de água morna, água a ferver ou água gelada. Logo depois vinha a sala de jantar, mobiliada ao gosto inglês, aconchegada e agradável. Por fim a cozinha, com um fornecimento em latas e garrafas de tudo o que faz mal e sabe bem; vinhos da Hungria e da Borgonha, champagne, foie-gras, trufas...
— Homem esplêndido! - fez Jacques.
Era esplêndido, principalmente porque, à sua primeira necessidade frívola, presenteara-o com aquele luxo, com o uso daquele luxo. Jacques decerto não pensava em possuir o luxo. Bastava usá-lo. Sempre fora assim, e assim sempre seria. O efeito foi aliás fulminante na cabecita de Alice. O luxo, a elegância davam-lhe ao amor um supremo requinte. Ela sentia-se bem, sentia-se apreciada. Quando as mulheres amam, sentem coisas de que o bom-senso desconfiaria mesmo em estado de cometer imprudências. E foi no primeiro mês o grande duo fundamental nos dramas musicais de Wagner e em quase todas as existências. Ao acordar, Jacques tinha uma cartinha de Alice exigindo alguma futilidade ou a sua presença em qualquer lugar. Alice escrevia bem, abusava um pouco. Logo depois do almoço, o filho do Dr. Justino não se possuía. estava com Alice nas exposições, nos carros, nas conferências, nos teatros, em casa dos conhecidos. Até mais de meia-noite, às vezes nos bailes até pela madrugada, era do casal, conversando com o marido, valsando com a esposa, amado por ambos. Sim, porque Arcanjo amava-o com enternecimento, estava desvanecido com a companhia mundana de Jacques. À garçonnière nunca chegavam juntos. Ou vinha ela primeiro ou vinha ele. Quando ela chegava de automóvel ele chegava de carro, quando ele aparecia em auto, era ela que se fazia conduzir de trem. Alice transportara para o ninho um completo sortimento de dessous admiráveis, kimonos de levantar de seda leve, irlandas bordadas. Jacques nada levara.
— Meu amor! - dizia ela ao entrar, logo dependurando-se dos seus lábios.
— Linette! - dizia ele, deixando-se beijar.
Alice, se tinha uns caídos muito brasileiros, isto e, muito torráozinh0 de açúcar a derreter e as palavrinhas ternas, melosas, em que a brasileira vence o record mundial, distanciando mesmo a chinesa, Alice era inteligente. A inteligência dera-lhe uma ousadia ainda acrescida pelo desejo mundano de parecer bem, de parecer como nos romances. Depois era empolgante e enebriante. Não se poderia dizer que um ensinava ao outro. Ambos aprendiam com a ingenuidade cínica que o amor incute, o amor ou o desejo, e ambos queriam trazer novidades. Quando ambos estão nestas disposições, as coisas vão sempre longe. Não haveria o Kama-Sutra, o "El-Ktab" e outros volumes do ritual amoroso, prolixos em novidades, se os casais perfeitamente convencidos não se entregassem à aposta de trazer impressões novas. O desenvolvimento das ciências é devido ao estímulo da primazia na descoberta, dizia um venerando homem. Depois, Alice tinha um espírito satírico que agradava nos intervalos. Fazia troça feroz das senhoras conhecidas, arremedando-lhes os gestos, caluniando-as. Vingava-se assim. Jacques, a fumar um turco ponta de ouro, ria francamente, e contava coisas...
— Elas também gostam de ti.
— Quem te disse?
— Adivinhei.
— Falso. Não gostam...
Alice estava convencida de que arrebatara o jovem a um batalhão de amorosas. Jacques era bem homem para não desiludi-la. Sempre convém mentir.
— Jura que eu sou a primeira?
— Juro - fazia ele rindo de tal maneira, que se comprometia ainda mais.
Depois dava-lhe conselhos que Alice recebia com docilidade, incutia-lhe gostos delicados para as toilettes, as jóias e dava informações muito apreciadas sobre a maioria dos seus amigos: o Bruno Sá, o Dr. Suzel, o Belmiro Leão, que deixara abertamente de cumprimentar Mme. Arcanjo dos Santos.
— Ainda zangadinho?
— Não imaginas, filha...
Um mês depois, a chama, como dizem os poetas românticos, começou de diminuir. Conservavam-se uma preferência carnal, o desejo de não acabar, mas acrescido pelo vago instinto da curiosidade que, como se sabe, limitou o mundo e o ensinou a ler em caracteres cuneiformes, sem mestre. Nenhum dos dois deu, porém, claramente, pelo caso. Estavam em plena season e chegara para o hotel em que moravam Bruno Sá e Suzel uma grande atriz. Era o hotel das notabilidades de todo gênero: diplomatas, artistas, argentários, industriais, políticos, grandes artistas, "grandes cavadores", como não deixava de resumir Godofredo. A atriz parisiense trazia outras encantadoras atrizes. Jacques ia jantar sempre lá, em companhia de Bruno. Godofredo, cronista, que fazia crítica dramática e visitava com freqüência o jovem ministro, lustro e fulgor, reclamo luminoso do hotel, apresentou-os. Apresentou com satisfação, porque esses parisienses teriam uma idéia limpa e francesa da nossa sociedade.
Imediatamente, a grande atriz foi de uma simpatia desvanecedora. E à hora de jantar, como em geral ela não aparecia, comendo nos seus aposentos, tal qual Mme. Sarah Bernhardt e Mme. Réjane, divertiam-se com as outras. De resto, a ilustre artista já lhes oferecera um jantar de que fazia parte um grande psicólogo, pago pelos governos sul-americanos para fazer conferências sobre a alma feminina em Buenos Aires, Montevidéu, Rio e Rosário.
Além desse acontecimento mundano importante - Jacques não tivera nunca a intimidade dos renomes universais - um outro preocupava a atenção, não só dele, como de Alice, como de toda sociedade: a grande festa de caridade em favor do Dispensário da Irmã Adelaide. Mme. de Melo e Sousa e a Baronesa Parckett, mãe de Eleonora, dirigiam o acontecimento. A princípio pensaram no Casino. O Casino era pequeno. Depois estabeleceram definitivamente tomar conta de um jardim público.
Era preciso arranjar grátis o jardim, as obras necessárias para as transformações, uma tômbola formidável e um programa espantoso. O comércio, a indústria, a administração estendiam as mãos à alta sociedade para proteger os pobres. Estendiam e davam. A sua ação a isso se limitaria, como a ação do jornalismo seria a de fazer um reclamo permanente até o dia do espetáculo. A organização das comissões seria mundana. Os rapazes de gosto ociosos apareceram. Chagas fez uma planta do jardim com os lugares das barracas marcadas a bandeirinhas vermelhas. A importância das barracas variava, segundo o tamanho da bandeira. Dória, já expulso do seu meio, veio à cena como utilidade. O filho dos Viscondes de Pereira encarregou-se do capítulo sport, marcando regatas, corridas a pé, tobogã, gincana e algumas cousas irrealizáveis que lhe davam o pretexto para dizer:
— Qual! nesta terra tudo é impossível! Qual! estamos num país selvagem.
Godofredo ficava com a parte de teatros, muito contrariado aliás. A parte de teatro constava de uma comédia, naturalmente em francês, por amadores da nossa melhor sociedade, um intermédio em que figuravam por especial distinção o grande tenor Zenaro da companhia lírica, a notável atriz francesa e uma atriz portuguesa, que nenhuma das damas conhecia, por não freqüentar teatros, principalmente em português e finalmente, à noite, uma série de quadros vivos, com projeções elétricas, assunto religioso: "A Caridade". "A Samaritana". "Cristo e a Adúltera".
À escolha das diretorias das barracas, posto de sacrifício, presidia uma grande diplomacia. Só Mme. de Melo e Sousa poderia sair-se bem, pondo em relevo as personalidades dignas disso.
A primeira reunião do comíté organizador foi agitada.
Faltaram várias pessoas, censuradas aliás, e as comissões só foram nomeadas às onze da noite; comissão de angariar donativos, comissão de direção dos trabalhos, a de teatros, a de política, a das barracas.
— Falta alguma cousa - dizia Luísa Frias.
— Que falta?
— Não sei, mas falta.
— A parte infantil - rouquejou a Sra. Muripinim.
— É isso! é isso mesmo! - exclamavam de todos os lados.
— Quem se encarrega da parte infantil?
Ninguém queria. Era preciso pensar. Faltavam de resto mais cousas, para corser le programme.
— Tenho uma idéia - ganiu o Dória, que dava tudo para se conservar.
— Qual?
— Uma cartomante, que lerá a huena-dicha ao público.
— Estás louco? Todos quererão dar a mão.
— Descansem, é pago.
— Ainda assim.
— Lembro uma orquestra de fados portugueses.
— Mas isso, Dória, é impossível. Quem vai cantar fados?
— Esperem, explico-me, deixem-me explicar. Imagino uma orquestra de moças, tocando só bandolim.
— Ah! bem...
— Haverá uma jovem no Rio que não toque bandolim? Bem sei, Godofredo, que é desagradável. Mas tem um meio: não te aproximes, o jardim é grande. Escolhemos os últimos fados, os literários.
— Realmente - fez Etelvina Gomensoro, née d'Ataíde - conheço alguns; são lindíssimos...
— E depois muito distinto - decretou a ilustre Argemira.
— Mme. Gomensoro cantará os fados.
— Como quiserem.
Imediatamente a reunião inteira resolveu adotar o fado. Eram loucos pelos fados. Depois debateram a questão financeira.
— Deixem comigo o caso - liquidou Chagas, por alcunha "Ganhou o macaco". - Fiquem descansados...
Mas ao contrário do que imaginava, o oferecimento causou um discreto alarma. Chagas era um rapaz encantador, de muito bom gosto, que talvez por isso tinha a leviandade de não saber resistir nem às cocottes, nem ao baccara. O dispensário mudaria de nome.
— Não, não - disse a Sr.ª Pedreira - precisamos de nomes para impor aos negociantes, senhoras de posição.
Alice irradiava. Era da comissão que iria convidar o presidente da República, era chefe de uma barraca de flores, entrava nos quadros vivos, e como Belmiro Leão, por indicação de Argemira, fazia parte da comissão, teve o prazer de vê-lo vencido vir cumprimentá-la.
— Somos companheiros?
— Da santa cruzada do bem. Os pobres antes de tudo.
— Há várias espécies de pobres.
— Eu só não tolero os pobres de espírito.
— Pois admira. Os pobres de espírito são a melhor gente deste mundo.
Em compensação, Jacques sentado entre Luísa Frias e Laura Gomes, num flirt perfeitamente agradável, sentiu-se de repente nomeado para a comissão da política. As suas relações obrigavam-no a pertencer a essa comissão com Arcanjo dos Santos e a Viuvinha Amélia. Era aquele pretexto que o punha em contato com os detentores dos dinheiros públicos. Quem diria? A vida é uma surpresa.
No dia seguinte, a garçonnière ficou deserta. Alice dos Santos ia com o comite diretor ao jardim público, tomar disposições sur place, porque a planta do Chagas fora declarada inútil. Iam as Sr.as de Melo e Sousa, a Baronesa Parckett, a encantadora Gina Malperle, Mme. Gouveia, e como homens, só Bruno Sá, Suzel e Belmiro Leão. Era como eles gostavam os três - de andar, só os três, benditos entre as mulheres. Suzel tinha um apetite pueril pela Baronesa Parckett, Bruno dizia cousas sérias à Malpene, Leão, naturalmente, caminhava com Argemira e Alice. E como chovera na véspera e o dia estava sombrio, pelas aléias desertas errava uma vaga e úmida melancolia.
— Gosto tanto dos jardins. Um jardim assim faz pensar no amor.
— Se o amor foi revelado num jardim!
— Mas eu penso no amor de outrora e não no de agora. O amor num jardim.
As senhoras levantavam um pouco os vestidos escuros para dar volta nos lugares em que a água empoçara. Havia sorrisos que diziam mais do que as palavras, por serem imensamente vagos e tênues. Luísa estava com frio. E da festa foi impossível fixar qualquer cousa além da hora.
— Aqui ficava bem uma barraca...
— E aqui...
— Também...
— Onde ficará a vendedora de cartões postais?
Frases cansadas, sem ânimo, como se fosse uma fadiga superior às forças gerais, animar o velho parque melancólico com uma festa mundana. E cansados todos, estavam, entretanto, gostando. Deram uma longa volta, para fazer apetite para o almoço. Alice voltou só, no coupé-automóvel, abstrata.
Nessa ocasião, Jacques preparava-se para ir à Câmara, encontrar Arcanjo. Vestiu-se com um apuro inglês. Fincou na gravata escura a pérola com a qual Alice revelara desejá-lo logo. E foi, pausado. A festa de caridade ia introduzi-lo no meio que almejava entrar, mas de modo elegante, sem rebaixar-se. Munido do cartão dado por Godofredo (era o segundo de que se utilizara, porque até então só usara o do cinematógrafo) - entrou pelos corredores que ladeiam o recinto. Estavam num grande dia na Câmara. Os corredores tinham cento e vinte pulsações por segundo. Jacques passou a custo para uma cancela do deplorável recinto a descobrir Arcanjo. Afinal deu com ele, sentado, pálido. Arcanjo viu-o também, mas não se moveu. Nem o saudou. Jacques esperou meia hora, prestando atenção ao discurso.
O discurso era inverossímil de idiotice. Fazia-o um dos mais aplaudidos parlamentares. Jacques não gostava de discursos. Tinha razão de resto. Estava com a opinião de um estadista eminente, James Balfour, que já disse: "As criaturas que fazem ou ouvem discursos em vez de jogar o golf são incapazes de apreciar as possibilidades da existência".
Jacques apreciava as possibilidades da existência. E, depois, naquele movimento febril de homens a suar, a falar uma língua incompreensível, entre reporters, taquígrafos, redatores de debates, contínuos, parasitas, agentes de negócios, pedintes com ar triste e mesmo deputados, só deputados eleitos pelos presidentes dos Estados respectivos, não podia deixar de sentir-se superior. Superior, por quê?
Não o sabia, nem o era. Mas assim o fizera a educação e também a herança, desenvolvendo-se num meio propício. Os verdadeiros amigos de Jacques podiam jurar-lhe que qualquer daqueles contínuos era mais útil e mais inteligente. Não o acreditaria. Ele era importante, mais importante, apesar de não ter qualidade alguma superior para compensar as más disposições iguais às de todos os homens, mais ás dos da sua condição. E o seu meio, composto afinal de elementos desencontrados da sociedade, desde o jogador titular ao explorador sem escrúpulos, meio de que conhecia as histórias desagradáveis, era o único tolerável e o único possível. O resto não passava de poeira.
Não daria importância ao maior gênio, sem que a sua roda, em grande parte letrada, como ele, não dissesse que esse gênio era mesmo gênio. A roda nunca dizia, mas crismava alguns mortais felizes, o que era uma compensação. Assim, como em nenhum salão, em nenhuma "pensão de artistas", em nenhum dos clubs em que seu pai jogava, não ouvira falar do gênio de nenhum deputado, além do Arcanjo e do Inocêncio Guedes, o inexorável recitador do Smart-Ball, considerava aquele pessoal inferior. Ele, Jacques Pedreira, condescendia em ir vê-los.
Mas ninguém lhe ligava importância e o discurso era enorme, Jacques resolveu pedir a um continuo que lhe levasse o cartão a Arcanjo.
— Não está.
— Está! Está ali.
— É verdade, não tinha reparado. Mas não posso.
— Por quê?
— A. Ex.ª está tomando parte no debate.
— Por quem é, leva-me este cartão. O Dr. Arcanjo espera-me.
O contínuo tomou o cartão e deu uma porção de voltas pelo recinto, antes. Afinal decidiu-se, e Jacques viu que Arcanjo fazia um gesto de contrariedade, erguia-se. Quando Arcanjo se aproximou, notou que estava palidíssimo.
— Bom dia, há meia hora que o espero.
— Ah! Queres falar comigo?
— Venho para o negócio do Dispensário.
— Que Dispensário?
— Oh! Pareces que estás a brincar. O Dispensário da Irmã Adelaide.
— Desculpa. Temos uma sessão muito importante - fez o outro, dominando a alteração da voz. - Mas hoje é inteiramente impossível. Não temos tempo.
— Ah! bem - disse Jacques, seco.
— É uma pena aborrecer-te, mas tem paciência. Queres que te mande abrir uma das tribunas?
— Não, muito obrigado. Ouvir discursos...
— Às vezes são coisas sérias. Até logo.
E afastou-se. Jacques ficou rubro de cólera. Idiota! Tratara-o evidentemente mal. Por que estava na Câmara? Dava-se então à importância o Arcanjo! Com ele, porém, fiava mais fino. Não poria mais os pés naquele lugar. Contaria a Alice o procedimento do marido. Era inacreditável!
Tão incomodado ficou que voltou imediatamente a casa, imaginando várias vinganças. Entrou direito para os seus aposentos. Atirou o chapéu alto para cima da mesa. E arrancava o frack, quando o copeiro entrou com uma carta.
— Trouxeram minutos depois do senhor sair.
Vinha de Alice. Também essa senhora não passava um dia sem escrever. Abriu-a com raiva. E leu:
"Ele desconfia. Recebeu uma carta anônima, que conta tudo. Salva a situação no momento e deixa, por minha conta o resto. Até à morte..."
— Bolas! - fez Jacques, sentando-se na cama. - Que complicação!
Era como se tivesse recebido uma pranchada no alto da cabeça.
Arcanjo dos Santos não contara com a hipótese de ser enganado quando casara. É uma hipótese que raramente azeda o gesto heróico dos que se decidem a manter as bases da sociedade. Ele trabalhara, esforçara-se, obtivera como prêmio duma vida brilhantemente nula uma linda e rica esposa. Para o seu espírito era a derradeira etapa, a da apoteose da mágica. De então para diante poderia viver bem, apenas com a preocupação do esperanto, do vegetarismo e de não desagradar ao Grande Chefe, que o fizera deputado. Nada mais simples. Com o esperanto era sócio propagandista, com o vegetarismo fartava-se de macédoines de legumes. Com o Grande Chefe mandava-lhe um presente semanal e votava à sua vontade. Era feliz, integralmente feliz. Mas a felicidade não dura. A carta anônima insultara-o, chamando-lhe de nomes feios, considerando-o um desbriado. Não há homem que se não exacerbe, quando o chamam de desbriado, mesmo tendo a certeza de que o é. Arcanjo não tinha essa certeza. Ficou agitadíssimo. Ia sair. Voltou, foi ao gabinete de trabalho, virgem de trabalho, deixou-se cair numa cadeira, tentou pensar, coordenar idéias sem resultado, ergueu-se, passeou agitado, quis escrever uma carta, apesar de no gabinete não poder deixar de ver quem entrava, chamou o criado algumas vezes.
— A senhora, já veio?
— Ainda não, excelência.
Pediu os jornais, onde encontrou (em todos) o nome da esposa e o nome dele, do outro na primeira página, amarrotou as gazetas, tornou a passear, mandou vir a criada de quarto.
— A senhora disse que voltava para almoçar?
— Sim, excelência. Ela foi ao jardim ver o local para a festa.
Fez um gesto de despedida, lembrou-se de que nunca tinha comprado um revólver. Passou assim duas longas horas. A espera exasperava-o. A carta tomara proporções enormes. Seria de fato? Ela de quem gostava tanto, ela, tão bonita! E tendo tudo, nada lhe faltando! No fundo a revelação irritava-o. Iria brigar, sair dos seus hábitos, arrostar com um enorme ridículo, perder a sua mulherzinha. Como? Tragédia? Sangue? Divórcio o divórcio num casal sem filhos, sendo ela rica?
Era preciso que Alice chegasse imediatamente para a explicação. A explicação! Que horror...
Alice chegou. Vinha abstrata no seu automóvel. Viu-a sentar, por trás da vidraça. Preparou-se como para uma cena tremenda, mas digna. Ao ouvir-lhe os passos na sala próxima, o coração batia-lhe.
— Estás à minha espera? - fez Alice entrando.
— Há duas horas.
— Por quê?
Aquela pergunta natural, feita naturalmente, desconcertou-o. Respondeu esquivo:
— Ora, por quê? Por nada...
— É curioso. Mas não falas a verdade.
— Julgas?
— Juro.
— Então queres saber?
— Pois claro, meu querido.
— Teu querido. Faze favor, deixa de ironias.
— Ironias?...
— Há frases que ofendem, quando não são verdadeiras.
Alice ficou pasma. Não ser verdadeira ela, uma criatura nature por excelência. Caminhou para o marido, ofendida sinceramente.
— Dizes que eu minto?
— Pois eu sou lá o teu querido?
— Que bicho te mordeu?
— Que bicho, hem? Um bicho que esmagarei, podes ficar certa.
— Mas falas por enigmas, homem de Deus, dize logo o que tens a dizer.
— Digo que vamos partir, que seja como for, ouviste? nunca me prestarei a um papel ridículo...
— Ridículo?
— Sim, ridículo. E não negues, não negues. Tenho a prova.
Os criminosos e as senhoras inteligentes têm um poderoso self control. Aquelas palavras noutro ambiente fariam a perturbação. Alice compreendeu, entretanto, que o perigo estava longe e afastá-lo de todo, imediatamente seria preciso.
— Queres ver que tens ciúme de mim? Provas, provas! Mas perdes. te a cabeça. Onde a prova? Prova de quê? Exijo a prova. É a primeira cena que temos. Será a última. Ah! Este Rio! Bem não queria vir. Mas ou me dás a prova ou não fico mais nem um minuto aqui.
Ela gritava. Arcanjo teve que dizer, indo fechar a porta:
— Fala baixo, olha que escutam.
— Que importa? Hei de falar como quiser! A prova! vamos ver a prova de um crime, que ainda não sei qual seja!
Ele tirou a carta do bolso, estendeu-lha, com uma penosa sensação de ridículo, a sensação de que tinha feito uma enorme tolice. Alice pegou-a febril, leu-a de um jato. Era numa meia dúzia de insultos com péssima ortografia, o seu caso, o nome de Jacques, o escândalo. Ficou um instante, olhando o papel imundo a ver o que devia fazer. Soltar uma gargalhada seria teatral. Achou melhor atirá-la com um gesto de nojo.
— Isto? Mas é vergonhoso o que acabas de fazer, vergonhoso!... Uma carta anônima! Todas as senhoras da sociedade, todos os homens de posição recebem cartas anônimas. Nós estamos na terra da carta anônima. Sabes o que é isto? Inveja. Inveja de ti, da tua felicidade. E deste importância a essa cousa asquerosa! Nem vale a pena defender-me. É idiota. Jacques então, o filho de D. Malvina, uma criança. Que diabo! Tu não és um imbecil. Jacques é tão teu amigo, está sempre conosco. Quando? Onde? Havias de descobrir um gesto ao menos que denotasse mais do que amizade... Pela mesma razão serei amanhã amante do Chagas, do Dória, do marido da Frias. Francamente, sempre fiz outro juízo de ti.
Falava alto, agitada.
— Mas, Alice...
— Cale-se, cale-se ao menos. O senhor dá-me inteira liberdade, sabe que eu gosto de ser admirada. O Jacques é, entretanto, como de casa. Nunca pensei, meu Deus, nunca! Pobre rapaz! De resto, o senhor naturalmente seguiu-me...
Ela disse a frase que desde o começo lhe apertava o coração com um esforço enorme. O marido ergueu-se.
— Oh! Alice, isso nunca!
— Tinha a carta no bolso, podia acompanhar-me.
— Recebi-a ao sair há pouco. Sou incapaz.
— Oh! oh! conheço-o bem. Guardou a infâmia, acompanhou-me dias e dias e não achando o que dizer, veio lançar-me uma injúria sem fundamentos.
— Mas não, Alice, não digas tolices...
— É triste, é muito triste, depois de tão pouco tempo de casada... Se papai soubesse!
Caiu numa poltrona. Arrancou o chapéu num gesto de desespero. O marido, lamentável, procurava palavras.
— Não, tudo, menos pensares que te segui.
— Mas se acreditaste nesta infâmia!
— Quem te disse que acreditei?
— Acreditou, acreditou...
E de repente prorrompeu em soluços. Os seus olhos vermelhos choravam. Era uma verdadeira artista. As mulheres são assim: nascem feitas. As que têm o temperamento de honestas, nunca aprendem a mentir. As que, embora boas, são mais lealmente filhas d'Eva, não precisam de curso, de aulas, de experiência. Revelam-se no campo de batalha de chofre, generalíssimas. Alice era encantadora, boa, gostava mesmo de Arcanjo, como em geral gostava dos homens, sentia que o pobre marido sofresse, talvez o enganasse mais pela cabeça do que pelo coração, mas mentia, mentia sempre e naquele momento gozava em se ver acreditada, queria vê-lo submetido. Arcanjo, nervosíssimo com as lágrimas, aproximou-se, afagou-lhe os cabelos.
— Não chores, não chores... que é isso?
Os soluços redobraram. Então curvou-se, falando baixo, comovido, com as palavras que se têm para as crianças, com o gesto que para com elas temos, quando as consolamos de males imaginários, beijando-a, animando-a.
— Meu bem... então, então... seu maridinho... não foi por mal. Enfim, compreendes, eu também fiquei fora de mim... Bom, acabou-se, acabou-se, dê um beijo no seu marido.
— Não... não, nunca mais!
— Louquinha, vamos, um beijo...
A vida na sua essência é feita de palavras que se não dizem. Nas cenas mais sérias de uma existência, há uma série de cousas que se sentem, outras que se esboçam, outras, cujas palavras erram nos lábios sem serem pronunciadas. O resto é o que se fala. Quase sempre o inútil. Há homens que morrem ignorantes do seu próprio eu, porque nunca tiveram a coragem de dizer alto o que talvez pudessem ter pensado. Arcanjo pensava muita cousa de modo vago. Era raiva, medo de escândalo, credulidade, desejo, exasperação, luxúria, pena, amor, vontade física de se afirmar. Viu-se de joelhos a acariciar a esposa, que soluçava baixinho; beijou-lhe as mãos, beijou-a no colo por cima do vestido, beijou-a na testa, beijou-a na boca, afogando-lhe o não de recusa. E aquele beijo, num caos de dúvida vaga, foi decerto o melhor beijo da sua vida de casado.
Ela talvez o tivesse sentido um pouco - que o amor é superior sempre. Depois ergueu-se como uma convalescente, macerada, pisada, triste. A cena de minutos antes passava a velha recordação de um pesadelo, tão afastada estava.
— Almoças?
— Não sei.
— Deixa arranjar-me. Estou sem apetite.
— Eu também.
— Vais à Câmara?
— Tenho de ir.
— Até já.
— Adeus, meu amor.
Como Alice estava macia e boa! Foi vagarosamente, com um gesto de saudade desolada até o seu toucador. E aí, ainda vestida, sentou-se, escreveu três ou quatro linhas a Jacques, mandou-as pela criada de quarto, vestiu-se só, pensando em Jacques, na boca de Jacques, no moreno rosa da sua face glabra, mais sua do que antes. A entrava da carta excitava-a. O amor é um sport.
Arcanjo foi à Câmara. Era preciso votar uma ordem do dia cheia de concessões e de pensões. As concessões passariam todas com pedidos de grandes influências políticas, que de algumas seriam mesmo futuros diretores. As pensões, só passariam duas para senhoras bem de fortuna mas também com esplêndidas relações entre os situacionistas. As outras, as das viúvas pobres e sem conhecimentos seriam cortadas. O país precisava fazer economias. Ele coitado, ia acabrunhado. Parecia-lhe, vagamente, que toda gente era autora da carta e por conseqüência, que toda gente sabia, desconfiava, caluniava-o, insultava-o. A frase mais vazia parecia-lhe uma alusão clara, definitiva. Meteu-se no recinto, evitando conversas, a fingir que ouvia o discurso de um célebre orador empolado e soporífico. Quando Jacques apareceu, viu-o logo. Mas fingiu não o ver. Um estado esquisito, como se lhe estivessem apertando o epigastro e torcendo a nuca, dava-lhe uma raiva surda contra o rapaz. Achou-o tolo com a sua elegância; achou-o idiota, fingindo-se importante no seu anonimato; analisou-lhe a insignificância de jovem pavão, com desprezo, com mordacidade, com ódio. E sabendo-se esperado, vingava-se, vingava-se, não sabia bem de quê, mas deliciosa, lenta, enebriantemente. Ao ouvir o contínuo, estava resolvido a não falar. O homem de sociedade, porém, dominou. Veio. Veio e foi pela primeira vez com aquele adolescente, o superior, o maior, o mais velho, o homem. Estava aliviado. Terminadas as votações, voltou a casa, reintegrado. Se alguém lhe dissesse alguma frase dúbia, reagiria a bofetada. Ninguém lha disse. Alice recebeu-o ainda mais convalescente. Passara a tarde inquieta e ao mesmo tempo desejosa de saber quem teria tido a lembrança infame da carta. Jacques não lhe mandara dizer nada e pela primeira vez, vendo o marido entrar da rua, sem uma comissão sua, indagou:
— Então?
Ele esquivou-se:
— Votações, um aborrecimento...
— E eu que nunca fui à Câmara!
— Fazes o que alguns colegas conseguem.
— Deve ser divertido.
— E cacete. Saíste?
— Oh! não. Fiquei para ai, lendo um romance. O dia está tão úmido! Mas vamos, à noite, à casa do Pedreira.
— Para quê? - fez ele brusco.
— Oh! filho, a festa de caridade! Já nem te lembras que sou de várias comissões. E tu também. Temos reunião do comitê hoje.
Ele não disse nada. Estavam sós, era um tête-a~tête. Pela primeira vez, depois de chegar ao Rio, tinham um tête-a~tête, sem nada para dizer, com Alice tão submissa.
— Por que não vais ao chá do Gouveia?
— Vai tu. Eu, não.
— Prefiro ficar.
— Ficaremos os dois. Um five-o'clock a sós. Queres?
Ele sorriu, vendo-a retornar à menina. Há quanto tempo não tomavam chá os dous sós! Desde o Rio Grande, chá com torradas à noite, enquanto o sogro estancieiro bebia erva... Ficou. Leram os jornais da tarde juntos. Um deles esquecera o nome de Alice na notícia da grande festa de caridade. Era oposicionista. Jantaram sós, como quem come depois de uma viagem. Não tinham comido o dia inteiro. Alice já estava vestida para ir aos Pedreira. À sobremesa pediu para dar antes um passeio pela praia, no automóvel.
— Faz uma noite tão úmida.
— Que tem? É fechado.
Foram. Eram oito horas da noite e a Beira-Mar estava deserta, angustiosamente deserta no banho de luz dos combustores e das lâmpadas elétricas. De quando em quando passava um automóvel rápido ou uma vagarosa tipóia com gente suspeita arrulhando no silêncio o amor que por ser a hora não deixa - nem mesmo esse! - de ser doloroso. Todo aquele deserto parecia crescer sob a chuva deslumbrante das luzes. Era como se do céu um turbilhão de estrelas se despegasse e levemente viesse pousar por aqueles postes, fazendo uma colossal apoteose de luz. A distância as luzes eram brancas, eram verdes, eram azuis, eram de um verde pálido, de um jalde apagado, e reunidos aos grupos de cinco e três, recamavam as largas avenidas de um dossel de pedrarias irradiantes, de um estranho desenho feito de raios de astros. Casas graves e fechadas, palácios que pareciam villas de Florença estragadas pelo arranjo de arquitetos bisonhos, aumentavam a tristeza fúnebre. Em algum banco esquecido, um labrego, um par, o vazio.
— É tão bonita a luz.
— Lindo.
Ela reclinara-se. Ele, naturalmente, pegara-lhe na mão quente. Era a primeira vez que naquele automóvel o marido tomara uma deliberação tão pouco na moda para os maridos. Na casa do Dr. Justino Pedreira, quando chegaram, já a sessão começara. Estavam todos, inclusive Godofredo de Alencar, que precisamente gabava um grill-room montado com estrondo na Avenida, por uma dama das melhores relações do meio - como proprietária de uma pensão em Petrópolis, onde se aboletavam diplomatas.
— Esplêndido. Parece o Ritz, o Rumpelmeyer - dizia o literato, que nunca estivera nem no Ritz, nem no Rumpel, repetindo frases da crônica do dia seguinte.
— E resistirá, meu caro?
— É verdade, neste país de selvagens...
— Somos nós, apenas.
— E nós não vamos todos os dias...
— Ah! Eu que estava com o Dr. Inocêncio Guedes, logo disse: não dura um mês!
O inexorável e incontinente recitador do Smart-Ball sorriu satisfeito.
— Com efeito. Eu também disse. Outro meio, a Argentina, Montevidéu...
— É, é uma vergonha.
Alice procurava descobrir Jacques. Jacques estava a uma das janelas, conversando alegremente com a Viuvinha Pereira e Belmiro Leão. O jovem conquistador avançou. Ele também, naturalmente. Se o casal viera, as suspeitas tinham declinado. Estava soberbo de indiferença. Ao receber o golpe da carta de Alice, ficara meio aturdido. Mas o adultério era das muitas coisas que julgava sem conseqüências. Apanhado em flagrante, fugiria. Interrogado, mentiria por mais provas que houvesse. Não escrevera, porque custava escrever e seria pouco prudente mesmo. Esperou. Sangue, tiros, palavrões, só na gente baixa. Não havia receio. Gente do seu meio vingava-se de outra maneira. Se Arcanjo tivesse acalmado, teria por ele um pouco mais de consideração e continuaria com a Alice, segundo as disposições do marido. Estava acostumado com o caso por vê-lo praticar; estudara-o como alguns estudam o inglês sem mestre. E o adultério sempre foi mais fácil do que o inglês. Só haveria uma dificuldade: largar Alice. Na sua roda ouvira muita vez a frase de Bruno Sá:
Quando tenho uma amante de cá, antes de começar já estou a ver como hei de acabar.
De resto, Arcanjo tinha responsabilidades e Alice era um pouco adida ao núcleo. Estendeu a mão e foi logo a dizer:
— Ainda há instante falávamos mal de vocês.
— De nós?
— Sim, mamãe indagava o que se tinha feito pela política.
— E então?
— Pergunte a seu marido. Arcanjo estava tão preocupado que quase me recebe mal.
— Não é possível.
— Ora! Queria até que eu assistisse a sessão!
As damas e os cavalheiros sorriam. Arcanjo estava meio acanhado. Seria verdade? Seria mentira? Mas não perdeu o seu ar de superior a Jacques.
— Estes meninos pensam que a vida é só brincar...
Dous dias antes não teria tido tanta coragem, Jacques nunca fora tratado assim, senão por seu pai. Mas tinha culpa e achava-se na obrigação de ser gentil, meio vencido. Com o seu temperamento, tratá-lo d'alto era exasperá-lo, mas dominá-lo. Às duas horas da tarde achava aquele sujeito um imbecil que precisava taponas. As quatro estava sem opinião. As nove já não fazia um mau juízo de Arcanjo. No dia seguinte entregar-se-ia sem sentir, como se entregara a Jorge de Araújo, a Godofredo, ao Barão Belfort. O pobre Arcanjo estava nas mesmas condições de fraqueza de vontade, como de resto a maioria dos presentes, mais ou menos os doentes de impotência psíquica generalizada. Apenas o decorrer dos fatos dera-lhe a superioridade. Foi levado a ela num tremor de desastre. O outro aceitou-o. Ficariam sempre assim; ele, a mulher e Jacques.
Quem ganhara de resto com o decorrer dos fatos fora ele. O marido, em noventa e nove vezes sobre cem, é o mais feliz dos três. A mulher, por mais indiferente, trata-o bem porque o marido é uma tabuleta. O amante ainda melhor, porque teme o futuro onde se anunciam em escala desagradável desde a violência, até a responsabilidade. Respeitado, descansado, o marido é a autoridade e o primeiro, e em lugar de ser um pobre escravo a satisfazer a sua dona, é o cavalheiro desveladamente conservado e prestigiado pela esposa e pelo seu maior amigo.
— Brincar? - fez Jacques. - Você faz muito pouco na minha capacidade. Verá quando começarmos. Esvazio a carteira dos seus companheiros.
Fê-lo sentar, ficou um instante ainda prestando atenção à discussão. Tratava-se de arranjar bandas de música e de forçar Godofredo a fazer uma conferência10 sobre a caridade. Era uma reunião animada. Estavam todos dispostos como Jacques a assaltar a bolsa alheia em proveito dos pobres. Até mesmo a gentil Viuvinha Pereira, sempre tão generosa para os ricos, até mesmo Mme. Zurich, Mme. Gouveia, as irmãs inimigas, ambas a disputar o bastão da beleza.
Godofredo ia sair. Aproveitou para partir também. Alice, em palestra com Belmiro Leão, deu-lhe menos importância do que de costume.
O marido prometeu que no dia seguinte apresentaria os deputados para a colheita. D. Argemira marcou a hora.
— Não, o Dr. Arcanjo está na Câmara, às duas.
— Às ordens, minha senhora.
— E você, Jacques, passa lá por casa antes, para as últimas instruções.
A ilustre dama queria apenas saber do que ocorrera. Jacques despediu-se, saiu. Ainda no portão Godofredo rebentou.
— Querem teatro, conferência, tudo grátis.
— É uma festa de caridade.
— Caridade! Eu já assisti a dez festas de caridade para a construção do altar-mor de Nossa Senhora da Conceição. Mas essas senhoras não repararão que é demais?
Depois no tramway:
— Estive hoje no escritório do velho.
— Está danado. Não me fala há uma semana.
— Também não vais mais lá.
— Para fazer o quê?
— Oh! filho, para aprender, para exercitar, por sport, como ias ao football, como vais aos Estrangeiros. Depois não é possível perderes o tempo de enriquecer.
— Enriquecer! Enriquecer! Oh! Godofredo, não fales nisso. Sempre que tratavam de persistir num ato sério, Jacques ficava nervoso. Porque de fato tinha uma grande vontade de fazer um bonito, ganhar dinheiro, ter nome, e só não se atirava, porque levava tempo. Então ficava querendo ouvir os conselhos e querendo ao mesmo tempo que não lhe falassem nisso.
— Queres então ser pobre?
— Qual. Há de se ver, depois.
— Mas se tens tudo para entrar desde já?
— Advocacia não. Abomino autos.
— Outras advocacias.
— Custa tanto.
— Ora, ainda agora...
— Há alguma coisa? - perguntou ansioso.
— Precisamente não há, isto é, depende. Coisa para ganhar uns contos.
— Como?
— Da melhor maneira. Sabes que... não, não sabes, mas é o mesmo... Cartas na mesa. Há uma concessão que deve passar quinta-feira na Câmara.
— Bem.
— Mas não passa porque o Grande Chefe não quer.
— Então?
— É preciso demovê-lo. Só um deputado está nas condições de o fazer, se pedir com insistência.
— Quem?
— O Arcanjo. É uma das maiores influências da Câmara: não faz discursos.
— Mas eu não posso pedir nada a Arcanjo.
— Como? Sempre pensei...
— Agora, mais do que nunca.
— Houve alguma desinteligência?
Jacques calou-se. O cronista sorriu:
— Diabo. Olha que não se deve perder a amizade de Arcanjo. Dentro em pouco será uma das mais prezadas figuras do nosso grande mundo. Perdeu anteontem dez contos no CIub da Avenida, de que já é sócio. É comensal do Grande Chefe, tem uma linda e distinta esposa.
— Ora...
— Não sei...
— Pede sempre.
— Não tenho a certeza.
— Mas repara, Jacques, que fui eu quem te arranjou a chave da casa do barão.
— Por isso mesmo. Está tudo acabado. Ele sabe tudo.
— Quando soube?
— Não imaginas como estou incomodado.
— Está-se vendo. Mas quando soube?
— Hoje.
— Oh! então é um homem superior, um homem que a todos nós dará lições. Nunca pensei! Que sangue-frio dá a alimentação vegetariana! Olha. Pedes amanhã, impõe-te a Alice. Para ser amado é preciso dominar. Impõe, ouviste? Ou ele é um tipo - o que não acredito - ou fará tudo para mostrar à mulher a sua influência neste momento. Aceitas?
— Tens umas idéias...
— Esplêndidas. Amanhã venho buscar-te, trazendo tudo escrito. Com certeza estás amanhã com ela? Bem. Amanhã. Mas que acontecimento! Vem a calhar. Está notável o nosso Arcanjo. Não sei se conheces um ditado que diz: o mais feliz dos três é o marido.
— Homem, parece-me...
— É, não há dúvida, quase sempre. No momento é ele. Mas todos nós podemos ser. Os pequenos acontecimentos são a causa de grandes coisas. O dia de hoje podia ter sido aziago. É um começo de vida. Ah! meu caro, estás te fazendo homem. Teu pai ainda não te compreendeu.
— Estou me fazendo, não; vocês é que estão fazendo.
— Uma obra admirável. Até logo. Salto aqui.
Jacques seguiu. Tinha a sensação física de quem se entrega sem vontade. Era como se fosse desaparecendo num lameiro e transformando em carne a melhor parte do limo. Reproduzia socialmente a criação do homem feita por Deus, omnisciente e potente. Aquelas infâmias rodas eram a vida. Saltou no Casino e foi ver o espetáculo, certo de que Alice obteria tudo de Arcanjo e que na quinta-feira próxima não estaria, de smoking e peitilho, apenas com alguns níqueis no bolso bem cortado do colete irrepreensível.
— Não achas? Uma linda esposa que é um instrumento político de primeira ordem. Deves acabar com as infantilidades. Depois não é preciso falar a Arcanjo. Basta pedir a Alice.
A festa de caridade estava marcada para dali a quinze dias, e chovia torrencialmente aos domingos. As comissões trabalhavam com entusiasmo, principalmente a de tômbola. O presidente da República e os ministros prometiam comparecer. Todas as bandas militares existentes na capital tocariam no jardim. Era a ameaça de uma memorável festa. Jacques foi no dia seguinte à casa de Arcanjo e não encontrou Alice. Então partiu para a Câmara e encontrou o marido de uma complacência mais que simpática. A noite e a esposa tinham conseguido apagar as suspeitas. A noite é uma grande esponja. Arcanjo apresentou-o como o seu menino bonito a vários colegas - só os colegas que não posavam muito de republicanos positivistas ou de chefes de partido da roça. Jacques pedia com uma segurança absoluta. Um baiano milionário prometeu várias cousas.
— E agora?
— Agora, nada.
Em compensação alguns deputados de S. Paulo assinaram cheques com um ar americano-parisiense do melhor gosto, gabando o Dispensário, as obras de caridade.
— Excelente obra. Em S. Paulo...
Jacques fez imediatamente uma opinião superior de S. Paulo e dos paulistas tanto mais quanto algumas bancadas queixavam-se e nada davam. Um representante do Pará atacou mesmo a caridade mundana. Para o fim da sessão, encontraram o jovial Pimenta e o triste Olegário, os dous deputados. Vinham ambos de Paris, para onde voltariam dentro de três meses. O Brasil agoniava-os. Pimenta, o jovial, era um coureur de femmes, andava pelos clubs, pelas pensions d'artistes. Bradou:
— Olhem só o jeitão dele. Pois então não o conheço do Casino?
— Não ouças o Pimenta. É um perdid6.
— Qual! aqui? Não há mulheres. É uma miséria.
— Mulheres só em Paris - sentenciou o lúgubre Olegário.
— Mas, gasta-se muito...
— É um engano. Eu vivia lá com três mil francos. - Depois, refletindo: - Mesmo com dous mil e quinhentos... - E num suspiro: - Até com menos, sim, até com menos...
Ambos os representantes da pátria estavam bem vestidos. Jacques notou. O mesmo já tinham feito eles a Jacques. E coincidência da moda: os três tinham frack debruado, camisa de risca transversal, usavam isqueiro, fumavam tabaco turco e na gravata mostravam pérolas em forma de pêra. Para os três não era preciso mais para demonstrar que se podiam dar com intimidade. O Pimenta, em pouco propunha que se jantasse numa casa de damas italianas, no Flamengo.
— Mas eu? - fez Arcanjo.
— Tu vais.
— Queres ver que receias trair a esposa?
Jacques, que preferia o jantar à caridade, ajudou também a perder Arcanjo, que se debatia:
— Mas eu nunca fui a uma dessas casas!
— Tanto melhor, é uma impressão nova.
Era uma impressão nova, sim. Apenas, oito dias antes, Arcanjo não teria ousado experimentá-la. Mesmo na Câmara, entretanto, expediu um telegrama à esposa comunicando que à última hora fora chamado pelo Grande Chefe para um secreto-jantar político da coligação das bancadas. Ao mesmo tempo, Pimenta e Jacques corriam ao telefone a prevenir Zina Fanga, dona da pensão. O contínuo do salão presidencial estava junto ao aparelho. Jacques indagou receoso se não ficava mal falar assim do Parlamento para uma casa de geishas cosmopolitas.
— Qual! É o meu bicheiro... Toda a confiança! - fez Pimenta a rir.
E foi ele próprio quem pediu o número que a telefonista deu logo, aliás sem surpresa. Jacques começava a gostar da política. Na confeitaria, onde depois se abancaram a tomar um aperitivo, encontraram Godofredo de Alencar, como sempre impecável. Podia ser também da roda. De resto, Godofredo fazia-se dela, dando apertos de mão íntimos e pedindo logo a última mistura aperitiva da casa - mistura com a virtude imediata de fazer perder o apetite ao mais esfomeado. Ao saber do plano, Godofredo aprovou. E como chegava Jorge de Araújo, ocasionalmente sem o seu grupo, quis prestar um serviço geral apresentando os amigos. Jorge gabou a idéia e ofereceu o seu automóvel. Era insinuante e vestia muito bem. A repetir os aperitivos esses cavalheiros falaram de mulheres. Godofredo sempre mal, Jorge com a gula de quem ainda não está farto das boas, os deputados e Jacques, fingindo um ceticismo cínico, à francesa. Arcanjo perguntava. Os nomes das grandes cocottes surgiam com detalhes desagradáveis, principalmente para os amantes. Arcanjo soube que nem todos os seus pares desprezavam a casa de Zina Fanga e outras muitas congêneres. As sete da noite tomaram o automóvel que Jorge de Araújo guiava. Estava a noite de inverno deliciosa, dessas noites em que a brisa é como a carícia velutínea de céu numa estranha palpitação de estrelas. Zina Fanga instalara no Flamengo a sua pensão, entre árvores, com vista para o mar. Ao saltar, Godofredo indagou:
— Falaste?
— Não encontrei.
— Fala-lhe. Meus parabéns.
— De quê?
— Debochas o marido. É excelente a ocasião para pedir diretamente. Vais muito bem.
E subiram rindo ambos. Jacques sem saber muito bem por quê.
A casa de Zina Fanga era das melhores. Havia um salão para as visitas de cerimônia e uma agradável sala de jantar. Zina fora cantora de café-concerto. Quando veio ao Rio já não cantava. A rouquidão fê-la não ser ouvida nem mesmo como diseuse. Não se perdeu muito. Era uma diseuse atroz. Mas a galanteria passara por ela sem estragar muito uma carne de leite, aguçando febrilmente o apetite extravagante e a ânsia do lucro. Não lhe bastavam amantes. Queria explorar um pouco os das outras, montar uma grande casa de banco - non è vero, caro? Diziam dela cousas inverossímeis, que tinha agentes especiais com vinte por cento para levar a casa homens da província, ricos; que orçava as jóias em trezentos contos; que obrigava os freqüentadores a tê-la também. Calúnias. A sua pequena amiga, Josette d'Amboise, desmentia tão bons corações.
— C 'es' un ange, monsieur!
No inverno, a casa de Fanga redobrava de concorrência, porque além das cocottes cantoras de music hall, havia as atrizes das companhias de opereta italiana, zarzuela, opereta alemã e algumas damas de troupes exóticas: a domadora de leões, as três patinadoras do Niágara, a Orquestra Zambelli. Algumas vezes tinham tido pensionistas homens - em geral tenores. Mas por engano ou camaradagem. Nunca esses tenores pagavam as contas.
No momento em que Arcanjo entrou no salão de jantar com os homens divertidos, o jantar começava. Jacques estava no seu meio. Jorge e Pimenta também. Olegário e Godofredo fingiam estar e pelo menos já lá tinham ido. A confusão era tal que não deram por eles no primeiro momento. Um sujeito gordo, da melhor sociedade, pegara brutalmente pela cintura uma crioula da Argélia, sentara-a ao piano. A crioula, com gritinhos de gata assustada, caíra com as patinhas no instrumento batucando uns compassos malucos. E damas e cavalheiros, batendo com os talheres nos pratos, cantavam desabridamente:
O e o a
Do Quixadá
O e o u
De Caxambu
Boum!
Era uma cançoneta-método de português, inventada por um dos freqüentadores para ensinar às cocottes a língua de Camões. E irresistível. Todos riam. Uma alegria desvairada sacudia os assistentes, alguns com cara de sono. Quando deram por Arcanjo, que aliás já tinham visto alguns conhecidos, houve um súbito silêncio. Godofredo falava com a Fanga, autoritária e de apetite como uma camponesa da campanha romana. Esta voltou-se:
— Onorevole, grazie...
As mulheres na mesa olhavam. Apenas as que estavam sem companheiro. Porque as acompanhadas de uns rapazinhos pretensiosos, na maioria de profissão flutuante, ou de uns senhores de respeitável e desrespeitada idade, fingiam não se interessar. O brasileiro é ciumento. O resto do bando que estava alegre continuou. No piano, a crioula fora substituída pelo Chagas, o Chagas "Ganhou o macaco", que lá estava em companhia do Conselheiro Filgueiras, jantando por conta desse homem de gosto capaz de lhe pagar jantares entre mulheres. E o sujeito gordo, o Lalá, tomara da crioula e dançava com ela uma valsa turbilhonesca em que a pobre pretinha parecia desfazer-se.
Zina Fanga dava jantares a preços fixos e muito em conta. Apenas reservava-se para os vinhos. As pensionistas pediam vinhos bons e a tarifa do champagne seria inverossímil em qualquer ponto do universo - mesmo porque além de tudo era champagne marca sem cotação. Com cuidado dispôs no resto da mesa os lugares dos novos convivas. Jacques, que se sentia agradado de uma pequena corista italiana, deixou-a ficar entre ele e Arcanjo. Godofredo interessou-se vivamente por um tenor, que comia como um alarve. Godofredo odiava os tenores. O Pimenta e o triste Olegário ficaram com a Lianne d'Ortal, chanteuse gommeuse neurastênica, que os abandonava de quarto em quarto de hora para ver se ainda dormia o seu querido, doente de uma bebedeira colossal na noite anterior. Jorge de Araújo era o festejado de todos - porque entre as suas habilidades havia a de aparentar que gastava. Antes parecer do que ser. Tinham-no por um perdulário. Sabia dar o estritamente necessário. Mas no bom momento. É tudo. A roda dele e do italiano Buonavita, banqueiro atual e ex-engraxate, como os grandes milionários da América, as mulheres, os gigolos, os parasitas e mesmo alguns michés intimidados faziam o alarido da apoteose. Ele ria. Buonavita arreganhava os beiços mostrando uma dentuça de pantera. A gritaria continuava desordenada. De vez em quando as mulheres zangavam-se por ciúmes. Zangas rápidas, em que os palavrões estalavam o esmalte da educação muito mais rapidamente que o esmalte das respectivas faces. Só as mulheres, apesar disso, guardavam a agudez dos sentidos. Os homens estavam meio apalermados, mesmo os que pretendiam ser espirituosos, mesmo os grosseiros. Eles olhavam-se sem surpresa. Arcanjo ficou desconcertado por nem o Chagas nem o Filgueiras nem outros conhecidos mostrarem a menor admiração vendo-o entrar lá pela primeira vez.
Mas no fundo esses homens não eram só indiferentes, tinham uma certa raiva, embora tênue, uns dos outros, porque o egoísmo masculino idiota sempre, apesar da civilização, não fica esquecido quando um homem encontra com outros homens várias mulheres. Todo cavalheiro, por pretensão quase sempre, é, neste caso, irmão do galo. E o curioso é que nenhum havia a desconfiar que se não divertia...
Com desejo de dizer alguma cousa, Arcanjo voltou-se para a pequena italiana que conversava com Jacques:
— Que toma?
— Du champagne, monsieur.
— E tu?
— À americana. Desde o começo, champagne...
Do outro lado, uma espanhola, Concha Arantes, ganiu:
— Ché! Champagne, yo lo creo...
Arcanjo abominou a Concha e voltou-se para a italiana:
— Como se chama?
— Liana.
— Bonito nome.
Era idiota. Para se dar ares de habituado àquela espécie de vida, serviu o champagne, escorregou o braço, pegou-lhe na mão - que era muito bem tratada.
— Está aqui há muito tempo?
— Um mês.
— Sabe que é bela?
— Oh! monsieur, vous rigolez.
Ela era realmente tentadora, com o olhar das italianas, um olhar raro que se entrega como um lago ardente, e tinha vinte e cinco anos e amava a beleza e amava o interesse. Logo percebera a inexperiência de Arcanjo e a possibilidade de fazê-lo pagar. Mas, ao mesmo tempo sentia um calor, uma curiosa vontade de amar a Jacques. Resolvia, por conseqüência, ao responder a Arcanjo, o problema de se satisfazer. E resolveu. Ligou o seu pé ao do mancebo por baixo da mesa numa pressão apaixonada e apertou a mão de Arcanjo de modo visível, a rir. Jacques compreendeu, viu. Viu e teve uma esquisita sensação de orgulho e de humilhação. A verdade venceu e para pôr as cousas no seu lugar, debruçou-se sobre a mesa:
— Então, Arcanjo, já com uma conquista?
— Tu vois... - fez a pequena.
E o seu pé deixava-se esmagar ternamente pelos sapatos do adolescente.
Era uma fatalidade. Que se havia de fazer? Jacques tinha de ser a sota amorosa do amigo Arcanjo. Naquele ponto, como em nenhum outro, ficava mal. Num certo momento, afastou-se com ar discreto a ver um grupo que dançava o miudinho para as cocottes verem. Liana e Arcanjo tinham desaparecido sem dar por ele - o que acontecia a Arcanjo, do meio do jantar em diante, jantar que não comia aliás por ser vegetarista. Quando saíram da pensão da Fanga para o Club Incroyable a jogar, era uma hora da manhã. Liana ia vestida como se fosse para um grande baile, de luvas altas e decote, dissera a Jacques:
— Vieni domani...
Arcanjo fez parar o automóvel no meio do caminho, para voltar a casa. Iam numa alegria um pouco. ruidosa seis pessoas em quatro lugares. Jacques saltou também a um olhar imperioso e significativo de Godofredo. E os dous amigos caminharam a pé, pela Avenida deserta. Arcanjo ia fumando um havano.
— Felizardo!
— Eu?
— Com uma sorte destas.
Insensivelmente fez o elogio de Liana, que o outro pagaria e ele iria gozar. Era encantadora.
— Ora, já não estou no momento. Tu sim, menino...
— Eu? Sem dinheiro, preso por papai...
— Então a advocacia?
— Ora!
— Vens muito à casa da Zina?
— Algumas vezes. Olhe, você, Arcanjo, é que podia ajudar-me.
— Não fica mal aparecer por aqui algumas vezes?
— Creio que não. Era questão de você querer...
— Tinha um pedido a fazer-te.
— Qual? Também tenho o meu...
— Estás amanhã disponível?
— Pois claro.
Arcanjo hesitou um momento. Depois:
— Voltamos cá amanhã?
— Ah! seu maganão, gostou, hem? Pois sim, voltamos.
— E nada da Alice saber...
— Por quem me tomas tu?
Jacques estava digno. O marido aliviado indagou:
— E tu que queres?
— Imagina. Nem sei como diga. Recebi um pedido. Vocês votam sábado algumas pensões e algumas concessões. Há um projeto com prêmios para a exploração de fibras. Não me lembro bem.
— Sei. É um projeto feito de propósito para ser dado. Tem subvenção. É para desenvolver a indústria das fibras...
— O Grande Chefe é contra.
— Não sei, não. Eu voto com a bancada.
— Ora, se você quisesse, podia pedir para que a votação fosse favorável. Bastava ir ao Grande Chefe, que não negaria este obséquio de nada.
Arcanjo parou.
— Foi teu pai que te pediu isso?
— Não.
— Quem foi?
— Ninguém. Estávamos outro dia a conversar no chá. O Buonavita contou o caso, com outros. Lembrei-me de ti.
— E disseste o meu nome?
— Não. Por quem me tomas tu? Lembrei-me apenas. Creio que és meu amigo.
— Mas nisso ganha-se dinheiro.
Jacques ficou perturbado. Tirou a cigarreira, bateu o grosso cigarro sobre a cigarreira. A sua vontade era não ir adiante, não falar mais naquilo que o humilhava. Os dous homens continuaram calados algum tempo. Arcanjo sorria às recordações.
— Que espécie de gente, aqueles homens.
— É a vida de prazer - respondeu o rapaz bem-educado. E no seu elemento, podendo dar informações desagradáveis: - Não sei como eles podem viver gastando tanto! A vida custa cada vez mais cara! Também todos eles têm negócios, têm amigos. O Jorge está milionário. Não se sabe como, mas está...
— E a Fanga?...
— Hás de conhecê-la.
— Oh! não.
— Ora é da praxe e foi tu n'as pas froid aux yeux...
Arcanjo ficou satisfeito. À porta da casa, apertaram-se as mãos, fraternalmente.
— Então, que dizes ao meu pedido?
— Vamos a ver - fez o deputado esquivando-se, com a frase habitual de todos os políticos que se não querem comprometer.
Uma nova vida, entretanto, começava para ambos. Os homens mais sérios têm temporadas de vício. Arcanjo apanhara a sua febre. Era a primeira, a mais forte. Pela força das circunstâncias agarrou-se a Jacques. O lindo jovem foi o seu guia nesse inferno. Ambos assim enganavam Alice e Jacques ainda por cima fazia parte das partidas sem despender um real. Na quarta-feira, depois de se assegurar que Arcanjo estava no après-midi com a Liana foi a garçonnière do barão, mostrando-se preocupado. E contou a Alice os seus cuidados. Só Alice poderia vencer o marido, pedir mesmo ao Grande Chefe. Chegou a mentir, disse que D. Malvina estava interessada, era a principal interessada. Alice, que o beijava, prometeu. E nos dous dias que se seguiram, ele e Godofredo não largaram Arcanjo. O cronista não informara que, em seguida à assinatura presidencial, receberiam. Era pouco, porque havia espalhado muito dinheiro. Sempre servia, porém. No sábado fatal, não houve sessão, porque um deputado lembrou-se de morrer. A festa de caridade aproximava-se. E para Arcanjo a vida de prazer era estranha. Em vez de ir à Câmara, ia para a pensão de Fanga, onde almoçava com as cocottes e alguns íntimos. As cocottes desde o almoço bebiam, e já apareciam, posto que algumas em trajes leves, corretamente pintadas. No domingo, iniciaram as etapas clássicas da diversão: foram em dous automóveis cear à Mesa do Imperador, na Tijuca. Iam o Pimenta, Olegário, Jorge, o tenor, a Liana, a espanhola Concha e Marthe la Turque, dançarina da dança do ventre. Essas mulheres mais o tenor, logo depois da Muda, começaram a gritar, a fazer um barulho dos diabos. A ceia era oferecida por Jorge, que tinha gosto, hábito e mandara dous criados lá para cima, com um sortimento de frios, guloseimas, champagne e velas.
— Olá! olé! ché! - gania a Concha...
— É uma ceia neroniana - exclamava eruditamente Pimenta.
No deserto daquelas selvas embalsamadas, o luar estendia diluências argênteas. O contraste entre a paisagem e a exasperante corrida de homens de casaca e damas em grande toilette, incitava a cousas inéditas - dessas cousas inéditas que se praticam todos os dias. O homem de aço, que era Jorge de Araújo, comandava o pelotão. Arcanjo talvez não tivesse nenhum sentimento por Liana. A pequena, porém, tiranizava-o, aproveitando ocasiões para se deixar beijar e beijar Jacques. A ceia terminou às três da manhã na Gruta de Paulo e Virgínia, quando o tenor propôs que virassem todos faunos e ninfas.
No dia seguinte, Jacques, que não dormira, foi ao meio-dia buscar Arcanjo a casa. Arcanjo não estava. Nem Alice, que fora a uma reunião urgente das damas de caridade, ameaçadas de ficar sem o jardim, graças a uma reconsideração intempestiva do prefeito. E era o dia das votações, era o dia fatal...
— Talvez esteja na casa da Fanga...
Foi a pé, menos resolvido. Afinal, se tivesse que ser seu, era mesmo. Depois não adiantava nada correr. Para que correr? O que tem de ser, tem muita cousa. Na casa da Fanga, Arcanjo não estava. Com certeza, tinha ido votar. Ficou entretanto. Liana acabava de acordar e nos seus aposentos comprava objetos a uma velha francesa. Entrou, sentou-se numa vasta poltrona, deu conselhos, interessado com a velha, Mme. Monpalon.
— Uma senhora muito séria - disse a Liana, sentando-se na cama. Mme. Monpalon tinha setenta anos. Fora das primeiras no Rio e gastara loucamente, sem saber em quê. Uma noite, a eterizar-se, queimara-se com um fogareiro de espírito de vinho. Ficara, com o colo perdido, obrigada a não mostrá-lo. Viera a miséria e Mme. Monpalon foi dama de companhia de Huguette Lemaire, outra grande mulher. Huguette não amara nunca e sentia um prazer macabro em arruinar os contemporâneos. Mme. Monpalon, experiente, ia pondo de lado, na Caixa, pequenas quantias surripiadas ao estrago desenfreado. A Huguette nem olhava as outras mulheres. Desprezava-as. As outras vingavam-se com pragas.
Um belo dia, o mal terrível rebentou, deformando-a. Huguette estava imprestável e sem vintém. Então, Mme. Monpalon instalou a companheira num porão e foram gastando os dinheiros da Caixa, no porão. Os dinheiros acabaram. Ela fizera-se costureira nas pensions d'artistes, comerciando também em roupas, toilettes das mais de sorte às menos favorecidas, para sustentar-se a si e a Huguetre. Era uma doce velhinha. Vendia também remédios para conservar a cintura fina, a tez fresca e pomadas maravilhosas.
— A vida é dura, é muito dura...
Liana não comprou afinal nada. Ficou apenas com uma pomada que não pagou.
A velha fez a trouxa e retirou-se docemente. Vinha um cheiro de defumador horrível, do corredor. Era a Fanga que o defumava. Talvez por isso, do quarto pegado, uma tosse tremenda fez-se ouvir. Parecia que a criatura escarrava os pulmões. Liana ouviu a tosse com um vinco na testa.
— Quem é?
— É a Concha. Está a acordar mon p'tit. Sempre que se levanta tosse assim. Ninguém diz hem? Parece vender saúde. Pois usa flanelas e já aplicou óleo de cróton. Mas há quem goste. Um joalheiro milionário dá-lhe tudo o que ela pede
A Concha acabara de tossir. Ouvia-se distintamente que fazia a sua entrada Mme. Monpalon.
— Ché, vieja, espera un ratito.
Liana sorriu. Tinha esquecido a má impressão. Então saltou da cama, caiu nos braços de Jacques.
— Caro, carino.
— Espera, são três horas...
— Arcanjo viene alle quattro.
Jacques morria de sono. Ergueu-se a custo. Como fizera mal em não ter dormido! Depois uma cousa combinada... Estirou-se a fio comprido na cama, pensando nos acontecimentos. A rapariga olhava-o embevecida. E ele tinha os olhos cerrados.
— Sabes que te amo? - fez sacudindo-o.
— Sim, sim, como todas...
Na idade de Jacques os homens gostam das mulheres e não de uma mulher. Por isso, é o único momento em que os homens causam paixões. A pequena Liana estava junto dele, fremente. Não era desejo. Era um pouco de adoração pela graça estuante do efebo. Não lhe via nada de mal, nada de feio; via-lhe apenas a beleza, essa quente beleza, em que a fronte era lisa, sem preocupação e o sorriso garoto. Teria ele amado outra? Amaria naquele momento? Ela julgava ter lhe dado tudo quanto era possível - que era enganar outro homem seu amigo com ele, mas via bem que tal cometimento era aceito com indiferença.
A noite descabelada, o acordar mau, as histórias de Mme. Monpalon, a tosse de Concha, o defumador de Zina, reavivavam-lhe a própria e curta história da sua vida, em que estava sempre só no meio de uma porção de gente sem simpatia e de quem também não gostava. Tivera amantes sim, amara sim, e quantas vezes já, sempre contra a vontade! Mas no fundo do coração não guardava uma só recordação de ternura feliz, nem da mãe, nem do primeiro, nem dos outros. Com a maioria dos homens, sentia raiva, raiva que era um apetite de destruição, principalmente quando eles se mostravam seriamente apaixonados. Com Jacques, que nem lhe prestava atenção, media o horror do seu abismo.
— Querido!
Curvou-se, Jacques dormia vestido. Alisou-lhe a mão, grande e for-te, macia. Cheirou-a. Beijou-a. Alisou-lhe depois os cabelos. Beijou-o. O seu hálito! Parecia rosa, parecia o perfume de um ramo de rosas. Ela não o possuía aos vinte e cinco anos, senão depois de vários dentifrícios, de mastigar pastilhas, ela tão jovem e já dispéptica. E ninguém o tinha como Jacques... Tão lindo! Tão lindo... Aspirou longamente o seu hálito, insaciavelmente. Depois, ficou a olhá-lo. Dos negros cílios pendiam-lhe grossas lágrimas. Uma forte vontade de chorar sacudia-a. Nunca possuiria inteiramente seu, aquele ser delicioso. Nem outro de quem gostasse...
Mas, batiam à porta. Era de novo Mme. Monpalon.
— Minha filha, está lá embaixo l'onorevole...
— Já?
— Não acha conveniente?...
— Sim, sim, manda subir.
— Et monsieur? Mme. Concha poderia...
Liana acordou Jacques assoando-se. O jovem levantou-se de um pulo.
— Já. Ainda bem. Passo para onde? - fez habituado.
— Para o quarto da Concha. Ela é amiga.
Jacques desapareceu. Já Arcanjo dos Santos subia a escada. A curiosidade foi mais forte que a prudência. Jacques abriu a porta do quarto de Concha que fechara um instante antes, e bradou:
— Incorrigível!
— Tu aqui?
— Vim procurar-te.
— É boa.
— Palavra.
— Venho da Câmara.
— Votaram?
— Votamos - fez o outro rindo. E depois, batendo-lhe no ombro:
— Sempre conseguiu!
— Passou?
— Passou, passou. Agora é com o Senado. Também por que não me dizer logo que a mamã se interessava?
— Ah! soube? - indagou Jacques corando.
— Pois se ela falou, pessoalmente à Alice... Minha mulher já lhe foi dar a boa notícia. O Grande Chefe, de resto, não fazia questão. E agora nós - concluiu festeiro: - A Alice janta na tua casa e eu aproveito o pretexto da coligação para jantarmos no Leme. Serve?
— Apoiado.
— Então, até já...
Jacques fechou a porta, agarrou Concha, fê-la andar à roda, num contentamento louco.
— Bravo! Bravo! Bravo!
— Que tens tu?
— Consegui uma grande cousa.
— Aposto que foi o Arcanjo a arranjar - disse a espanhola filosófica.
— Foi, sim. Mas por que o dizes?
— Ché! Se tu o enganas pelos dous carrinhos!... É da vida.
E parou súbito, pondo uma toalha à boca. Vinha-lhe outra crise de tosse, e já não era hora de ter tosse.
Era num jardim público, reservado a nobre exploração da caridade pública, em indeciso dia do mês de julho. Afinal, após quatro domingos de chuvas intempestivas, que tinham o mau gosto de começar sábado, a noite, para terminar ao anoitecer dos ditos domingos, realizava-se a grande festa em favor do Dispensário da Irmã Adelaide. O céu estava nublado. Um vento úmido soprava pelas árvores. Mas o longo reclamo dos jornais, a longa expectativa tinham de tal forma enervado a curiosidade, que um temporal desfeito não impediria uma grande venda de bilhetes sem resultado.
Pela manhã os portões do jardim não se abriram. Desde cedo começaram a estacionar em frente carroções trazendo o fornecimento para os botequins e os restaurants. Logo depois do portão havia uma armação de cetim vermelho, que dividia a entrada em dois, tapando a vista dos que passavam na rua. Ociosos, e gente do povo, os passageiros dos tramways paravam ou voltavam-se curiosamente. De cada lado do portão, por trás das grades, havia cubículos, onde eram vendidas entradas. Pregado a um venerável tamarinheiro irradiava um cartaz de três metros do mais brilhante caricaturista contemporâneo representando uma senhora elegante espalhando carinhos a pequenos famintos de pés grandes. E o cartaz, o tapume, os carroções, os carregadores que entravam, tudo indicava o inicio de um dia caritativamente mundano.
Mas que trabalho!
Os rapazes mais elegantes e mais dedicados tinham passado a noite no jardim, dirigindo os trabalhadores e numerando os presentes da grande tômbola, em número superior a dois mil. O Chagas com o seu bom gosto, o Dória e cinco ou seis do mesmo quilate encarregavam-se desse trabalho exaustivo. Havia no meio de tanta inutilidade dádivas de valor, até mesmo jóias. A ilustre Sra. Argemira de Melo e Sousa deixara o local às duas da madrugada. D. Malvina Pedreira tivera um começo de nevralgia, graças a um impertinente golpe de ar. As damas do comité, incansáveis, tinham saído pouco antes da Sr.ª Argemira. E para o fim da madrugada o programa fora definitivamente traçado; todas as bandas militares cedidas pelos comandantes dos corpos, barracas de doces, de buffet, de cartões postais, de flores, de chá, tenda de pitonisa croata, números infantis compostos de corridas a pé, corridas do copo d'água, corridas do ovo com prêmios, concurso de batéis enfeitados sobre os lagos, tômbola às cinco horas, baile ao ar livre no magnífico terraço, e a grande resistência: o teatro. O teatro era dividido em duas partes. Na primeira uma comédia de salão, escrita em francês pelo amador literário Gomensoro, e representada por três das mais distintas senhorinhas e o Belmiro Leão, cuja dicção parisiense era estupenda. A comédia intitulava-se discretamente Ohé! les petites! Depois: Etelvina Gomensoro, née d'Ataíde, em romances franceses; dois atores portugueses, comendadores de S. Tiago, que sabiam vestir casaca; versos de Musset, pela grande atriz francesa; a ária da Boêmia, pelo notável tenor Zenaro; as canções da Judic, pela atriz portuguesa. A noite, os fados portugueses, pela excepcional Etelvina Gomensoro e uma orquestra de bandolins de cem meninas (eram de fato oitenta e três), vestidas de branco, com uma fita azul a tiracolo. E, como fecho de ouro, os quadros vivos com projeções elétricas, em que figuravam Cristo e a Adúltera, A Samaritana e outros motivos santamente bíblicos.
Essa importante parte da festa era por inteiro obra de Godofredo de Alencar. Mas dera-lhe decerto menos trabalho diplomático que o arranjo das comissões das barracas à Sr.ª de Melo e Sousa. Nomeadas as chefes, com o desejo de não suscetibilizar ninguém quanto ao local, outra dificuldade surgiu, quanto às caixeiras, às vendedoras. Era preciso saber as relações das meninas, as zangas, as amizades. Uma das famílias - precisamente a família do médico milionário, que dera uma forte soma ao Dispensário - tinha tão má vontade das outras, que foi preciso juntá-la num lote a vender cartões postais autografados. Depois, se umas queriam vender doces e vinhos, outras achavam deprimente um tal mister, mesmo por brincadeira.
— São as que têm merceeiros na ascendência! - sentenciava a Muripinim, velha relíquia da monarquia, à velha Ataíde, esmaltada progenitora de Etelvina.
Uma palavra, de resto, bastava para desconcertar uma barraca, e muitas desistiram à última hora, retiradas pelos pais extremosos e pouco civilizados. Quando a Argemira viu a sua lista concluída ainda pensava que era mentira.
As barracas estavam, aliás, muito bem dispostas nas aléias, de emboscada as de flores e cartões; bem à vista as de doces e bebidas. Os números de teatro realizavam-se no próprio tablado junto ao botequim, cujo proprietário prometera, nos últimos momentos, fazer também funcionar o biógrafo nos intervalos da noite, - grátis. Aquelas damas arranjavam tudo grátis. Até o biógrafo.
D. Malvina apareceu no jardim, ás onze horas, julgando ser a primeira. Acompanhavam-na cinco criados. À porta já havia um esquadrão de polícia e uma turma de guardas-civis. No jardim, só uma barraca estava ocupada, a da esposa do médico com as suas respectivas filhas, moçoilas de uma fealdade esplêndida. D. Malvina concorrera com doces feitos em casa. Era a última abencerragem da nossa remota civilização patriarcal. Os grandes cestos que os criados traziam eram de bolos, balas e outras guloseimas familiares. Quando chegou ao buffet não havia nada arranjado. Apenas o Chagas e o filho dos Viscondes de Pereira tomavam vermouth, uma das garrafas oferecidas por conhecida casa comercial, que só oferecera por ser conhecida e solicitada e ter reclamos nos jornais - o que redundava em lucro para o seu negócio. Os dois mancebos estavam em mangas de camisa e desculparam-se vexados.
— Trabalhamos toda a noite!
— Estou que não posso! Mas venha ver, a senhora que tem gosto!
D. Malvina acompanhou-os ao lugar onde teria lugar a tômbola. Era uma azáfama. Meia dúzia de jovens trabalhava a gritar e havia brinquedos e coisinhas dependuradas em toda a volta.
— Vai ser um sucesso, D. Malvina.
— Se Deus quiser. Estou com medo da chuva. O povo tem medo. E até agora nem sombra de sol.
— Não chove, aposto - gritou o Dória. - Já intimei o sol a aparecer. A pouco e pouco, entretanto, iam chegando as senhoras encarregadas das barracas, fazendo os preparativos, "tomando conta", como aconselhava, D. Malvina. Ao meio-dia, já três bandas de música tinham aparecido, três só. Os rapazes que faziam parte da roda e tinham as famílias nas barracas, entravam naturalmente. Uma alegria ainda débil desabrochava com timidez nas aléias úmidas de chuva. As meninas riam na intimidade dos flirts, preparando-se. Era em tudo como nas caixas de teatro, antes do sinal de prevenção para o primeiro ato. A uma menos um quarto saltou de um coupé Godofredo de Alencar, acompanhando o tenor Zenaro. Fora o maior sacrifício da sua vida aproximar-se do tenor, conseguir a sua presença, ele, que odiava os tenores. Zenaro, quarentão com atitudes de efebo, as sobrancelhas avivadas a khol, hesitara, mostrara o seu enorme sacrifício, consentira na publicação do seu célebre nome nos programas, mas, como bom tenor, esperava a promessa de um cachet. Na véspera, desejara experimentar a voz no local, pedindo ao egrégio crítico a gentileza de acompanhá-lo. Godofredo fora buscá-lo. Zenaro queixara-se da umidade. Aceitou o coupé, depois de almoçar, e saltava com um ar de soberano de corte decadente.
— Não está ninguém.
— Estou eu...
— Digo que nenhuma das senhoras veio receber-me.
— Ainda é cedo.
Com a face fechada, o célebre tenor foi até ao botequim, fixou o tablado e exclamou:
— Mas é ali que eu vou cantar?
— Meu caro, você vai fazer uma obra de caridade. Ao seu lado comparecerão grandes artistas.
— Eles virão mesmo?
— Creio que vêm, mesmo porque está toda a sociedade metida na festa.
— Ah! Acho muito desabrigado. A voz perde-se.
— Qual! Experimente.
No momento em que Zenaro se dignava soltar uma nota de sua garganta-tesouro, um tramway passava na rua a toda a velocidade, guinchando as rodas na curva dos trilhos. Zenaro estacou.
— E os tramways param?
— Param - mentiu Godofredo.
— Bem. Então, se o tempo não me fizer mal, virei. Mandam-me buscar?
— Claro.
— É possível, é muito possível que venha. A questão é do tempo. E da minha saúde.
Depois pigarreou, olhou hostilmente aquele lamentável meio de café-cantante com cadeiras de folha e bandeirolas, estendeu a mão:
— A rivederci...
— Até logo.
Godofredo acompanhou-o até a porta, convencido de que o efebo quarentão não voltaria. Acompanhou com uma secreta vontade de sová-lo. A quantas humilhações descia inutilmente! Mas vingar-se-ia, anotaria pelos jornais a decadência daquele tenor de que com tempo perdido, se apaixonavam as mulheres.
Entretanto, na bilheteira o aplaudido cronista recebeu um embrulho e uma carta.
O embrulho eram os petits souvenirs para os artistas, carteirinhas vazias de cinco mil-réis. A carta era da grande atriz francesa, que se desculpava com uma terrível dor de cabeça, por não poder comparecer. A sua raiva secreta, aumentou. Que papel iria fazer? Talvez não viesse ninguém. Estavam os seus créditos de crítico a periclitar, a sua influência na perspectiva de se mostrar nula nos bastidores. Também com aquelas senhoras, que davam carteiras de tal ordem, e não vinham receber um tenor de fama mundial!
Era, porém, uma hora. Ouviu-se uma sineta que soava ao longe. Os portões abriram-se. Um magote de gente precipitou-se. No magote Argemira e Alice, apressadas, com o aspecto de quem falha a cena. Alice contrariada por não poder mostrar um estupendo vestido de rendas brancas, em virtude do tempo.
— Bom dia, diretor dos teatros.
— Então, choverá?
— Que chova a potes. Agora...
— Olha, noutra não me pegam.
Godofredo quis acompanhá-las. Mas o receio de fazer um fiasco, de outros artistas mandarem desculpas, fê-lo parar. Não teria uma festa, teria um dia de aborrecimento e preocupações. A banda de música rebentara a tocar. Ao magote curioso sucedera, entretanto, plena calmaria. Gente passava fora, olhando com desconfiança. Outros chegavam aos guichets da bilheteria e recuavam diante do preço. Os mais ousados, um, dois, de vez em quando, entravam meio acanhados. Eram na maioria gente domingueira, atraída pelos reclamos, mas prevenidos. Imediatamente partiam da feia barraca do médico cinco vendedoras de cartões postais, e da barraca de flores duas meninas armadas de cestinhas, com agonizantes espécies florais. Como não eram gente conhecida, essas meninas muito bem-educadas (quase todas em Sion, quando os pais tinham o alto posto, há tempo) tomavam uma atitude impertinentíssima, e ofereciam as flores ou os cartões, numa frieza de cartel de duelo. Os que entravam, ou esquivavam-se a balbuciar, ou aceitavam de vergonha. As meninas não davam troco e não diziam obrigado, amarrando a cara como se acabassem de receber uma ofensa. Uma delas correu a um sujeito gordo, cheio de brilhantes e malvestido.
— Qual, minha menina, não vou nisso - regougou ele. - Já comprei à porta...
A pequena ficou vermelha. A mãe chamou-a severa.
Godofredo mordia o castão da bengala, assistindo àquela lamentável cena de um bando de esnobinetas tolinhas. Contudo, acercou-se, concordou com elas, ouviu-as. Em ambas as barracas esperavam as boas relações, os conhecidos. As meninas tinham apostado a ver quem havia de fazer maior quantia e contavam com a generosidade dos amigos da família. Apenas. Podiam contar com os flirts. Os flirts, porém, eram grátis, e haviam de ter quantas flores desejassem sem despender vintém.
O dia continuava escuro. Mas, de repente, sem que ninguém esperasse, um raio de sol filtrou-se por entre as nuvens de chuva. Esse imprevisto fez as meninas das barracas soltarem exclamações de alegria, e a todos pareceu que era a vida vindo em auxílio da festa.
De novo recomeçou a entrada em massa. No elemento anônimo havia já personalidades conhecidas: três ou quatro deputados, dois membros do Supremo Tribunal, um grande construtor. Reporters novatos, armados de tiras e lápis, surgiam e iam perguntar a lista das diretoras das barracas. As senhoras gostavam muito de nome no jornal, mas não podiam dar a confiança de uma resposta amável. Eram muito delicadas para tal. Na barraca das feias, as meninas não responderam. Foi a mamã, seca de voz e gorda de corpo.
— Ponha: primeira barraca de cartões postais. Mme. Silva e suas filhas.
— Mesdemoiselles? - indagou o menino informador, esforçando-se por parecer elegante.
— Basta o que lhe disse - regougou Mme. Silva, como se falasse ao seu copeiro, ela que se dava com o dono do jornal de que o petiz era noticiarista.
— E tem vendido muito?
— O senhor não vê que começo agora?
— Desculpe V. Exa..
A feia dama dera delicadamente as costas ao pobre rapaz. Era imprensa! E que metediços! Ainda se fossem os donos do jornal...
Na outra barraca, na das flores, a mesma senhorinha a quem o homem abrilhantado respondera com grosseria, tomou um ar altivo e olhou a promessa jornalística como assombrada que um pequeno gazeteiro tivesse o topete de falar a pessoa da sua importância tão sem respeito. Foi preciso Godofredo prestar as informações. Um dos meninos dos jornais estava furioso.
— Que insolentes.
— É de família, filho.
— Como se chama aquela?
— Zuleika.
— Troco-lhe o nome.
— Fazes bem, porque ela adora o nome nas seções mundanas. É o único meio de seres cumprimentado amavelmente, e se o teu patrão não te puser no andar da rua a pedido do pai. Erra-lhe o nome sempre e passa por ela sem a saudar, encarando-a.
Mas nesse momento entrava Arcanjo dos Santos. As pequenas caíram-lhe em cima. Os reporters foram-se. O pelotão de Mme. Silva avançava. O deputado disse baixo apertando a mão de Godofredo, para as meninas:
— Depois. Não dou agora para não dar também ás feias. - E agarrou do pálido homem de letras.
— Estou receoso. Imagina que venho da casa da Fanga.
— Bem, e então?
— E então é que quase todas as cocottes estão com vontade de vir.
— Que tem isso? Acontece o mesmo em todas as festas de caridade. As cocottes fazem sempre melhor figura. Depois a caridade e as cocottes... Olha a divisa é a mesma: recebe sempre e não olhes de quem...
— Sempre paradoxal! Mas não deixo de estar assustado.
Em razão desse estado, viu o Chagas e repetiu o acontecimento; viu o Pimenta e fez o alegre representante da alegre pátria passar adiante, achando o caso imensamente parisiense. Em dez minutos na roda, os casados com aquelas damas ou pais daquelas meninas ou amantes de fato e de esperança, mas todos freqüentadores da Fanga, souberam que a linda italiana apareceria com os exemplares mais belos do seu colégio. Era uma chegada tão sensacional como a do presidente da República ou a do cardeal. Quando Jacques entrou com Belmiro Leão e Bruno Sá, foi a primeira coisa que lhe disseram.
— Sim senhor! - fez Bruno Sá, sem dizer se achava bom ou mau.
— Estamos no nosso elemento.
— Homem sem princípios!
— Quem almeja os fins não olha a princípios. Ainda assim estamos com a filosofia do meio.
E cada um foi tratar da sua vida. Haviam chegado mais duas bandas de música. A concorrência era agora franca e larga. O portão sorvia ás centenas as diversas classes de que se compõe uma sociedade que se preza. Na aléia preparada para o programa infantil, começava o primeiro páreo de crianças a pé, menores de oito anos, e ganhara longe a filha de Mme. Gouveia, inscrita como prestes a entrar na casa dos oito, mas infelizmente para as concorrentes, maior de dez anos havia seis meses. Nesse trecho do jardim era um brouhaha de pequenos e pequenas, com a viva alegria que os jardins infiltram nas crianças. E já os petizes bem vestidos, mostravam uma educação prometedora, as meninas com pretensões, os rapazes mais insolentes, desses que fingem de filhos de rei e só cedem à ameaça de um puxão de orelhas.
O Dória, que, à última hora, dirigia a criançada, sentia bem o juízo que dele faziam os maiores pelo tonzinho com que a ele se dirigiam. Pobre Dória! Alguns pais e algumas amas mesmo dirigiam-se à sua ex-elegante pessoa como a um bedel carinhoso.
— Ó Dória, cuidado com o Juca...
E os meninos, à primeira necessidade, vinham a ele, imperiosos. Na corrida do copo d'água a filha de Mme. Zurich ainda não divorciada, correu, mas entornou o copo inteiro na sua linda roupa, e chorou furiosa. O Dória teve que acalentá-la, prometendo-lhe uma boneca na tômbola - o Dória que não se dava com o marido da mãe, desde um incidente, ao jogo.
Pelo jardim, porém, nem todos tinham os encargos do arruinado ex-engenheiro. O movimento pelas aléias era difícil e lento. Em cada barraca, organizara-se um ranchinho, o rancho das vendedoras e dos seus respectivos flirts, desde os flirts de que elas gostavam mais até os flirts serventuários, meninos que se encarregavam de pequenos serviços. A excitação do jardim e da turba foi como que propagada por esses focos de elegância. As maneiras um pouco faubourg do princípio, iam num crescendo de feição americana. Havia risos, gargalhadas de troça, segredinhos, passeios de algumas senhorinhas a outros pontos pilotadas pelos rapazes. Quando chegava algum conhecido era o ataque.
— Conselheiro Filgueiras, esta flor!
— Dous tostões.
— Oh! conselheiro.
— Então marque o preço.
— Cem mil-réis.
— Só a flor?
— Exija, tirano do dinheiro.
Uma dúzia de homens ricos e viajados trouxera mesmo maços de notas novas, para dar sem exigir troco. O autor de Smart-Ball, com colete à fantasia do pior gosto, já ficara reduzido à expressão mais simples. No grande buffet, onde estavam as maiorais do comité, os preços chegavam a excessos. E aí, ao lado de Argemira e de D. Malvina e de Luísa Frias, segura a Bruno Sá, Alice dos Santos, lançada sem freio, estava como enebriada do seu triunfo. Um industrial dera-lhe um bilhete de quinhentos por um cálix de porto; um senador, que viera servir-se de uma sandwich, atacado por ela, dissera:
— V. Ex.ª de mim tem o que deseja.
— Em troco de quê?
— Do que desejar.
— Então deixe ver duzentos.
— Tê-los-ei ainda!
— Dê-mos que não se arrepende.
O homem consultou a algibeira, retirou quatro notas de cinqüenta, as últimas com que pretendia comer mais quatro sandwiches e talvez beber um cálix de vinho. Entregou-as. E Alice estendeu-lhe a face.
— Beije!
O senador ficou perplexo. Em torno todos voltavam-se divertidos. Alice ria. Era assim que ela lera num romance. Reproduzia fielmente a cena e obscurecia por completo o provincianismo não dela, mas das outras. O senador, tonto, pousou-lhe os lábios na testa.
— Arcanjo e Deus perdoar-me-ão em nome dos pobres.
Belmiro Leão na algazarra que sucedeu ao beijo, decidiu-se.
— D. Argemira, não acha que os pobres devem ter também?
— Sei lá...
Alice sorria. Ele apertou-lhe os braços. Ela excitadíssima olhou-o com uma chama nos olhos belos.
Mas, caminhando para o terraço a segurar o braço da Malperle viu de repente Jacques. Então quis ousar mais, chamou-o alto, com um ciúme raivoso da linda Malperle de branco-cinza com os seus corais de girl new-yorkense. Jacques ia subir ao terraço, Alice gritou. O lindo rapaz apressou o passo, fingindo não ouvir, desapareceu. Ela ficou com o coração a bater. Belmiro Leão aproximou-se. Era uma confusão tão grande que além dos criados, as próprias senhoras serviam.
No terraço, porém, a cena tornara-se de uma empolgante beleza. Aquele movimento de turba numa confusão de cores surdas, sob o cinza do céu que se ligava na linha do horizonte ao verde-negro do oceano, empolgava. Uma banda militar tocava valsas. A maioria do povo chamada ali para concorrer, apenas com o seu dinheiro, assistia ao valsar de alguns pares elegantes, e era uma delícia ver o Gouveia com um enorme chapéu florido rodopiar pelo braço, leve de um tenente da Marinha, Mme. Zurich deixar-se levar como uma sílfide pelo filho do antigo merceeiro Teotônio, e Gaby Nolasco e Germana Guerra e a Viuvinha Pereira cada uma com seu par distinto na ebriedade do ar livre e da valsa langorosa. Jacques não perguntou a Gina Malperle se dançava. Enlaçou-a, rodopiou. Era uma das suas muitas qualidades: valsava deliciosamente, com autoridade sobre o par. As damas passavam a pequenas coisas animadas por ele. Gina sentia-se possuída, e a valsa era como um rosário de suspiros de gozo.
Entretanto, enquanto na tômbola, o homem de gosto, Chagas, preparava um sorteio genial, Godofredo de Alencar penava com a sua parte teatral, correndo entre a porta e o botequim. As quatro horas a rotunda que forma o bar estava repleta. Os impacientes batiam com as bengalas, as pessoas amigas vinham tomar informações.
— Então, quando se começa?
— Já, vamos começar.
Era que nenhum dos artistas chegara ainda. Godofredo tremia de cólera. O público estava ainda mais impaciente. Então o marido de Etelvina teve a idéia de começar logo a comédia: Ohé! les petites.
— Pelo menos começamos. O público está impaciente.
— Depois é mesmo do programa...
— Boa idéia.
Um quinteto de cordas tocou a ouverture. Godofredo correu à porta. A comédia (ninguém sabia de quem a tomara o Gomensoro) era a história de três meninas, que querem casar com o mesmo rapaz tímido. O rapaz propõe casar com as três. Mas recebe uma carta da prima, mais velha dez anos e prefere-a - porque o seguro morreu de velho... A maioria do público, ignorando o francês, não compreendeu a graça esfuziante dessa obra-prima. Os mundanos bateram palmas. Quase junto ao tablado o Barão Belfort cumprimentava Gomensoro chamando-o à cena. Gomensoro não veio. Era inteiramente do tom. Mas apareceu Godofredo enfim, com os três artistas portugueses. Estava salva, mais ou menos salva a primeira parte. O literato parecia lívido de cólera. Ninguém recebera as artistas, e os amadores de salão, sabendo que eles vinham graciosamente tomavam ares superiores e frios...
— Por aqui, por aqui - fazia ele.
— Ai filho, que complicação!
E as amadoras mundanas olhavam d'alto, sem ao menos agradecer o obséquio da gente da rampa lisboeta. Idiotamente insolentes, pensava o cronista. Mas um dos artistas, deslocado, para se afirmar um pouco, falou alto:
— Ó Godofredo dá-me esta música ao maestro. Faze-me esse favorinho, sim?
E Godofredo enraiveceu mais porque os artistas tratavam-no por tu, à vista da alta sociedade. Assim a sua entrada foi atroz. Quem liqüefez o gelo entre artistas de sociedade e artistas de palco foi Angelina Mora.
A estrela portuguesa trazia um vestido estupendamente rico e punha o face-à-main para olhar as petites do Ohé de Gomensoro com um ar de amadora numa exposição de quadros. Era célebre. Célebre e meia doida como todas as mulheres célebres. Estava convencida de que ia triunfar.
De fato.
Etelvina Gomensoro, née d'Ataíde, cantara apenas versos de Verlaine, música de Debussy, e Angelina Mora, com um talento muito maleável, impunha-se. O público fez-lhe uma ovação. Godofredo, entusiasmado foi beijá-la.
— Tenho uma prenda para oferecer-te.
— É jóia, filho?
— Não, é uma carteira vazia...
— Estas tuas damas de caridade são sempre muito cascas. Apresenta-mas ao menos.
Godofredo tinha receio, mas enganava-se. Desde que Angelina triunfara e a roda de cavalheiros a saudava, o high- life admitia-a logo. Etelvina, para mostrar que não se esquecera dos centros artísticos de Paris, foi encantadora; Gomensoro, a que a prudência diplomática fizera reservado, veio beijar-lhe a mão. E as meninas aproximaram-se sorrindo. Angelina apertou-lhes a mão com intimidade e para uma:
— Sabe que é bonita?
— Bondade sua.
— Linda, mesmo. De estalo! Deixe dar-lhe um beijo! - E precipitou-se, ardente.
A noite descia já sobre as árvores. Uma das lâmpadas elétricas sacudiu-se e a luz branca explodiu, fixou-se. Imediatamente outras lâmpadas abriram. O jardim de súbito se encantara de luzes. Ao mesmo tempo uma fanfarra tocou, e as bandas começaram o hino nacional.
— O presidente! - gritou Godofredo.
— O presidente!
Várias vozes repetiram a palavra mágica. A multidão precipitou-se. Era realmente S. Exa. que chegava para dar maior brilho à festa. O comité, Arcanjo, Jacques, Malperle, estava à porta para recebê-lo. Os grandes nomes da política, da indústria e da finança, dependentes de gestos seus, mostravam um sorriso amável. E a multidão seguia-o como na rua se acompanha um andor.
Godofredo só pôde apanhar a comitiva perto do lago onde, sem concorrência, uma pequena barraca vendia sorvetes e balas. O senhor presidente resolvera visitar todas as barracas tendo para cada uma vendedora a frase de gentileza justa. Era aristocraticamente democrata. Intimidadas, as vendedoras nada lhe ofereciam. S. Exa. sorria e pedia:
— Uma flor...
Todos queriam ter o prazer de oferecer uma flor, ou mesmo um ramo de flores, ao detentor das concessões e dos dinheiros públicos, ao senhor do progresso do país. Ele, porém, discretamente, deixava nos açafates uma nota nova e agradecia ainda por cima. Chagas reparou que eram bilhetes da Caixa de Conversão de cem mil-réis e foi somando, ao lado. No buffet, um momento pararam. S. Exa. com um flute de champagne na mão, disse algumas frases sobre a caridade, cumprimentou Mme. de Melo e Sousa, cuja família era uma das nobres tradições do país, saudou com respeito íntimo, Alice dos Santos. Estava, precisamente, ao lado do grande chefe político, que se curvava para Luísa Frias. Jacques, bem perto, teve uma inspiração:
— Apresenta-me ao presidente - disse a Arcanjo, tão alto, que S. Exa. ouviu, voltou-se sorrindo.
O deputado também sorriu. D. Malvina ria.
— V. Exa. a permite? o Dr. Jacques Pedreira, filho do ilustre Dr. Justino Pedreira.
— Já formado? Tão moço! Meus parabéns. Sou muito amigo do seu pai.
— Foi a admiração por V. Exa. que me fez desejoso de apresentar a V. Exa. os meus cumprimentos.
— Ah! muito obrigado - disse o estadista presidente, olhando-o com simpatia.
E a visita continuou. Mas Arcanjo, com receio, notou que não tinha apresentado Jacques ao Grande Chefe, e o Grande Chefe vira. Era mau para ele Arcanjo, era mau para Jacques. Uma desconsideração talvez... Então, apanhou Jacques pela aba do frack. E para o homem importante, de que dependiam a sua reeleição e o seu reconhecimento, assim como a reeleição, e o reconhecimento de todos os seus colegas, chamou:
— General, aqui tem um seu admirador.
O general voltou o olho apenas, sorriu superior.
— Conheço já o menino. É filho do Justino? Um dos nossos amigos.
Jacques sentiu-se à vontade e sorrindo:
— Papai fala tanto do senhor e o Arcanjo conversa tanto a seu respeito, que eu já de muito lhe quero bem.
Aquilo saíra-lhe naturalmente, sem esforço. Ele próprio admirou-se, vendo o olhar grato do Arcanjo. O hábito da sociedade e o contato com a política já o faziam mentir com uma segurança deliciosa. O Grande Chefe é que não respondeu, acostumado à ambrosia da lisonja.
O presidente dirigia-se para o teatrinho. Havia um lugar reservado, com tapete sobre a areia, para S. Exa. e os ministros. Só três ministros haviam comparecido. Mas os lugares foram todos ocupados. Imediatamente, fez-se ouvir o hino, e em seguida o pano subiu, deixando ver trinta e cinco meninas (afinal tinham comparecido só trinta e cinco das cem) vestidas de branco e azul e armadas de terríveis bandolins. Iam tocar fados, essa emocionante cantilena, essencialmente nacional no pais irmão. E com os plongeons do Rambouillet e todo o chiqué das grandes artistas, Etelvina Gomensoro, née d'Ataíde, surgia para cantá-los.
Jacques ficara entre Gina Malperle e uma pequena morena, com um olhar de maravilha, que tremia, olhando-o. Era a filha da Viúva Monteiro, Lina Monteiro, inteligente, bastante morena, sem dinheiro, sem proteção, que se agarrava à sociedade considerada por uns semivirgem, considerada por outros uma infeliz. Jacques que já beijara a Malperle na nuca e juntava a sua perna à dela, foi se deixando pender para Lina Monteiro. A jovem, cujos olhos ainda pareciam maiores, tremia e deixava aproximar-se o mancebo. Naquele momento, era provável que muitos fizessem o mesmo. Jacques fixou-lhe a medalha modesta que ela trazia à guisa de pendentif.
— Que olha? - fez ela tímida.
— A sua medalha.
— É feia, não?
— Estou-lhe com inveja.
— Ah!
— Queria ser medalha, essa medalha.
— Ah!
— Sim, para estar onde ela está.
Mas os fados bisados tinham acabado e iam ter lugar os quadros vivos, a nota sensacional. Apagaram-se repentinamente as luzes. Era como no cinematógrafo. Jacques agarrou sem hesitar a mao de Lina Monteiro, que parecia querer ser pegada e deixou que a Malperle lhe caísse no braço, curvando-se, excitando-o com o seu cheiro capitoso. Outros, talvez, estivessem fazendo o mesmo. Houve um tremolo no quinteto e apareceu o primeiro quadro: a "Caridade", um anjo estendendo a mão a uma criancinha, que devia ter fome e estava quase nua. Era a filha de Mme. Gouveia, a que continuava a não ter oito anos, já tendo passado dos dez. O presidente bateu palmas. Todas as autoridades civis e militares também. Os projetores elétricos apagaram-se e a orquestra tocou. Em seguida foi a "Samaritana", segundo o Veroneso, assegurava o Chagas. A "Samaritana" de azul, com o costume oriental dava, de beber por uma bilha ao Cristo, que era o Dória, o Dória, em pessoa, mostrando os seus belos músculos. A Samaritana era Alice, extasiada. Esse quadro causou sensação. O último, porém, eletrizou. Era mais ou menos, segundo o mármore de Bernardelli, "Cristo e a Adúltera". Alice estava apenas um pouco mais vestida, mas mostrava uma admirável composição de medo, agachada aos pés do Deus Homem, e o Deus Homem estendia a destra num gesto definitivo. O Dória parecia mais do que Deus.
Entretanto, nesse momento, para os lados da tômbola em que se procedia ao sorteio, entre o formigamento das crianças, Fanga, Liana, Concha, a d'Amboise e outras cocottes surgiam para tomar champagne em companhia de Jorge de Araújo que as trouxera num dos seus automóveis. O filho dos Viscondes de Pereira logo que as viu precipitou-se.
— Viva a gente de gosto!
— Com que então você na tômbola? - indagou Jorge. - A apostar que fazes tratantada.
— Deixa de brincadeira.
— Ora! Então os melhores objetos não ficam para a comissão?
— Talvez, por sorte - sorriu o outro cínico.
— Arranja ao menos um leque para a d'Amboise.
— Espera. Tomo o champagne, e é já. Que número é o seu?
Mas nesse momento Bruno Sá passou apressado. Jorge chamou-o. O elegante cavalheiro não atendeu. Logo depois assomaram na escada do terraço o marido de Mme. Zurich, e Belmiro Leão que o acompanhava gesticulando.
— Ainda um escândalo - fez o Pereira. - A Zurich estava dançando escandalosamente.
— Dizem que tem muito mau comportamento - fez a Fanga.
E o grupo emborcou os copos de champagne.
Só, por entre os grupos, simples espectador, o Barão Beffort passeava. Gostava mais de ver só, o Barão. E a festa linda, como o céu se alimpara e havia um esplêndido luar, tomava um aspecto inédito.
Era no conjunto, um misto de encanto de feira, de impalpável luxúria, de contrariedades enervadas, de promiscuidades confusas. No alto do céu lavado, a lua derramava um luar de oiro calmo e sereno. Embaixo, a poeira levantada pelo movimento intenso, fazia como a atmosfera do jardim, onde as árvores pareciam saudosas do quieto silêncio. Nos tabuleiros de relva, a luz do astro punha reflexos e infiltrações de opala. Em alguns, repuxos coloridos de verde, vermelho, roxo, atiravam ao ar a fantasia cambiante de plumas d'água irisadas. Nos lagos de um sujo esverdinhado, os batéis enfiorados de copinhos multicores pousavam com um ar de mágica e de legenda. Pelas aléias, pespontadas pela luz das lanternas de cor, acesas na palpitação das grandes lâmpadas elétricas, a turba movia-se policroma e agitada: chapéus, gazes, cabeças nuas, paletot, capas, uma confusão de corpos a passar devagar ou a correr, enquanto um rumor feito de mil rumores, de sons metálicos das bandas, de gritos, risos, frases perdidas, conversas multiplicadas, subia ao ar aberto em clamor. Nas grandes festas, em que há multidão, sempre em dado momento, estala um surdo incêndio de apetites, de animalidade que a civilização retém a custo. É o momento turbilhão das pequenas licenças, dos olhos acesos, dos apertos febris, dos desejos imediatos, que nem sempre se realizam. Então, por um fenômeno de projeções odicas, como que o ambiente, as cousas imóveis, o inanimado, as luzes, as árvores, o ar se embebem de sentimento geral, e há como um frenesi de posse final, mesmo nos menos aptos e nos mais fracos. É o fim dos bailes, é o fim das kermesses. Era o fim também para aquela festa de caridade e de mundanice.
Realmente, depois dos quadros vivos, o presidente da República, acompanhado da sua casa civil e militar, retirava-se. Com ele saíram os políticos de monta. Depois dele sairiam os grandes mundanos. O comité, Godofredo, Arcanjo, vinha trazer sua excelência até o portão. O primeiro magistrado da Nação dizia gravemente palavras de cumprimento estudadas pela manhã. Estava encantado. Quando passou o portão, em frente ao parque estendia-se no percurso da tua inteira a força de linha, de calças vermelhas, tendo por trás a turba curiosa. Um toque de clarim varou o ar. Cem caixas rufaram a um tempo. Na semitreva um pavilhão nacional adejou. Uma fila de automóveis, com os refletores possantes projetados em triângulo de sangue estacou mesmo em frente ao portão. S. Exa. mandou arriar a capota do seu. Os trintanários empertigados faziam a continência. Depois, com um gesto airoso subiu, sentou-se. O general que o acompanhava entrou também para o veículo, que logo rodou macio e lento. Ao mesmo tempo rompeu o hino nacional, que se propagou, cresceu, acompanhou o automóvel, explodiu na rua inteira o seu clangor triunfal.
— Viva o presidente! - berrou um sujeito.
— Viva! - responderam algumas vozes.
O comité, intimamente orgulhoso mas achando ridículo o patriotismo, tinha um sorriso de satisfação irônica. Para aquelas damas e aqueles cavalheiros, os homens de Estado só eram compreendidos com a significação de lhes dar lucro ou o brilho oficial. No torvelinho da saída o barão deu com o Chagas e Arcanjo.
— Magnífico, hem? - exclamou o deputado vegetarista. - O presidente esteve chic. Deu para mais de três contos em notas novas.
— Não aumentes. Acompanhei-o e somei. Foram só dous contos e quatrocentos - clamou o Chagas.
— E achas pouco?
— Também pelo que lhe custa...
O barão apenas sorriu. Godofredo tomava-lhe o braço.
— Partamos. Estou esgotado! Um dia inteiro a suportar esta gente.
— Com efeito, estiveram todos...
— Todas as senhoras, que fingem de caridade à custa dos outros.
— Sim, todas... Mas falta uma, meu caro, a única de verdade, que lhes serviu de pretexto.
— Qual? - fez o literato.
— A Irmã Adelaide.
— Homem com efeito, foi a que não veio. É que não era este o seu lugar.
E os dous homens caminharam, enquanto a turba golfava do portão, no alarido dos cocheiros dos automóveis, das buzinas, dos retintins elétricos, dos tramways, das corridas desencontradas, dos gritos, das exclamações...
Dois dias depois da grande festa, Jacques Pedreira encontrou, alegres e d'automóvel, Jorge de Araújo e Godofredo de Alencar. O interessante jovem passara agradavelmente. Ao sair de casa, fora ver a simples e ingênua Lina Monteiro. Em seguida tivera uma terrível cena de ciúmes e reconciliação com Alice dos Santos. Depois fizera uma alta na casa da Fanga, a ser olhado pela Liana, e acabara no chá a trabalhar o seu flirt com Gina Malperle, a filha do eterno cônsul do Cobrado. Trabalhar era o termo justo que Jacques ouvira dar ás conquistas amorosas, e esse trabalho, o único que o seduzia, dava-lhe até cansaço.
— Belo dia? - indagou o literato.
— Razoável... - sorriu Jacques com ares fatigados.
— Negócios?
— ... De mulheres.
Godofredo ergueu as mãos num protesto: Jorge riu francamente. Jacques sentia-se feliz. Certo, tão lindo jovem não tinha tenção de ficar com qualquer das damas que o distinguiam: duas já conhecidas e duas virgens. Apenas no momento conservava-as, balançando a vontade entre a paixão das mulheres e o flirt das meninas - posto que talvez fosse exagero chamar a Malperle de menina.
E assim, satisfeito, quantas mulheres viessem, quantas poderiam amá-lo que a todas procuraria ser gentil. Ele sabia trabalhar...
— As mulheres, Jacques, são apenas um veículo... - começava Godofredo.
— Deixa-o falar - interrompeu Jorge. - Nós vamos a elas. Queres vir?
— Onde?
Jorge e o cronista iam assistir da caixa ao espetáculo de uma companhia portuguesa. Como acontece todos os anos durante o inverno, tinham aparecido a substituir o teatro nacional várias companhias lusitanas de todos os gêneros.
A que fazia mais dinheiro era a de opereta, devido talvez às coristas e às atrizes, quase todas novas e complacentes. A timidez do brasileiro no capítulo mulher é avaliada pela procura e o interesse mantidos pelas companhias de opereta portuguesa. Estão mais à vontade? Será só por isso? Tudo é mistério, e neste caso um feliz mistério para ambas as partes.
Seria um crime entretanto dizer a companhia freqüentada apenas por tais atrações carnais.
A companhia tinha um velho repertório de velhas operetas francesas, inacabáveis operetas lisboetas e antiguíssimas revistas de uma estupidez verdadeiramente incomparável. E tinha também a estrela masculina, o grande ator cômico Salústio Pedro que, nessa noite representava uma das suas coroas de glória: os Sinos de Corneville. Era na estação o seu segundo beneficio, porque Salústio Pedro, além de sócio do empresário nos lucros, além de um ordenado mensal de tenor do Metropolitan, recebia ainda a importância integral de duas récitas, uma oferecida pela empresa em homenagem ao seu talento, outra arranjada pelos amigos em honra ao seu gênio dramático. Essas visitas ao Brasil, além de concertarem assaz as finanças de Salústio, davam-lhe uma dupla autoridade reflexa. Assim, em Portugal, Salústio exclamava:
— O Brasil, fez-me uma apoteose!
E no Brasil:
— Portugal encheu-me de louros!
Daí as amiudadas visitas e as aclamações e os aplausos mesmo... Podia não ser uma estrela. Mas era bem um cometa familiar e prático.
O teatro estava aliás repleto. Uma banda militar tocava no jardim, que de jardim, sendo um modesto pátio sem árvores, só tinha o nome. Alguns admiradores haviam ornamentado a platéia de galhardetes e festões. Nos fins dos atos soltavam da galeria pombos brancos. Quando Jacques entrou com os seus amigos, terminava o primeiro ato. A multidão suarenta trocava opiniões críticas sobre o magnífico ator tantas vezes aclamado. E Jacques sentia-se como na Câmara inteiramente ignorado e desconhecido, porque esse público era de todo diverso do público que freqüentava os teatros onde ia. Na bilheteria e no escritório da empresa, Godofredo e Jorge tinham sido festejados. Ele, ninguém via.
— Que gente! Ainda não encontrei uma pessoa conhecida.
— É outro meio - explicou Jorge.
— Pois claro - concluiu Godofredo. - Onde viu você uma família elegante freqüentar um teatro onde se fala português? Quando vem é com vergonha, como se estivesse a praticar uma ação feia.
— Pelo menos desagradável.
— Desagradável por que, se ainda não viste nada? - inquiriu azedo o cronista, que tinha uma predileção inexplicável pelos portugueses. - Vamos à caixa. Anda daí, deixa a elegância no jardim.
Foi assim levando o jovem. Saberia para onde o levava? Decerto, não. Levemente cometemos ações que são gravíssimas. E muito ser-nos-á perdoado de levar os outros sem saber onde, quando ignoramos mesmo onde nos levam, as mais das vezes, os próprios passos. Jacques nunca tinha entrado numa caixa de teatro, a não ser no Lírico, em dia de festa de celebridade estrangeira. Mas portou-se bem. O movimento era por exceção enorme. Entravam centenas de admiradores de Salústio Pedro, gente do comércio, homens com brilhantes nos dedos e nas gravatas, caixeirinhos trêfegos, comendadores respeitáveis. Os carpinteiros passavam com os cenários, gritando. Da bambolina desciam panos velhos, e já, sobre um chapéu alto caíra por acaso um maço de cordas. Os habitantes de Comeville, representados por uma dúzia de homens feios, de calção, e por umas quinze raparigas de saiote curto, misturavam-se nos corredores estreitos à massa suarenta dos admiradores. Godofredo e Jorge abriam passagem para o camarim de Salústio, atopetado de idólatras. O camarim estava também ornamentado e cheio de presentes, de dádivas, de recordações: cartões postais com fotografias e assinaturas de colegas, menos brilhantes com certeza; aparelhos para diversas necessidades humanas em prata, em tartaruga, em marfim, caixas de charutos, bengalas, gravatas, anéis, piteiras, uma caixa de vinho, dois presuntos de Lamego, um prato de bacalhau frito.
Date liliam... Salústio, comprido e magro, estava radiante. Já começava a abraçar sem saber o nome das pessoas que dele recebiam tal prova de intimidade. Foi quando Godoftedo bradou:
— Há lugar para mais alguns abraços?
A essa voz Salústio, para mostrar aos demais a sua familiaridade com o grande cronista e o jovem milionário fez logo um claro na onda admirativa.
— Vocês? Entrem! Entrem!
— Quero apresentar-te também um admirador: o meu amigo Jacques Pedreira.
— Oh! senhor doutor!... - exclamou trêmulo de gozo a glória cênica, posto que Jacques não lhe tivesse dito uma palavra.
E obrigou os três a sentar. Fazia no pequeno quarto um calor de fornalha. Todos suavam. Salústio tomava para aqueles amigos o seu grande ar de Mounet, do trololó, inteiramente enfarado das admirações públicas.
— Que querem vocês? Fatigo-me! Realmente! Afinal, boa gente no fundo... - E voltando-se para Jacques, que sem dar por ele olhava o próprio perfil no espelho ao fundo: - Não o temos visto por cá, senhor doutor...
— Com efeito... - murmurou Jacques louco por se ver fora dali. E voltou-se porque sentia que, à porta, alguém o olhava. O camarim de Salústio era dividido ao meio. Na primeira metade Salústio recebia. Na outra vestia-se. Acabava ele de desaparecer na outra, quando Jacques deu pelo olhar. E de fato, olhavam-no. Era uma pequena gordinha, com dois grandes olhos negros, uma boca polpuda posto que um tanto cínica. Nada tinha de excepcional, e agradava. Jorge chamou-a.
— Não posso entrar no camarim - fez ela.
— Deixe ver a mão, então...
— Tome lá...
E, rindo muito, com uma curiosidade meio envergonhada:
— Quem é este senhor que cá nunca veio?
— Este é um príncipe.
— Então cá a República também tem príncipes?
Era de uma pequena estupidez deliciosa. A estupidez das mulheres é sempre deliciosa, tanto mais quanto essa falta de percepção não lhes prejudica em nada a ciência do amor que é sempre de revelações. Tinha dezoito anos; talvez seis de carreira no que vulgarmente chamam a perdição. Era meia louca, uma impulsiva, com súbitas paixões. E ria. Os homens também riam. Com as mulheres quase sempre os homens riem sem motivo. Jacques meio corado, respondeu:
— Eles brincam. Não sou príncipe.
— Pois é que o comia por tal.
— Hein?
— Os príncipes devem ser assim bem postos e bonitos.
Desapareceu rindo. Godofredo pôs-se a rir. Jacques julgou aquela sociedade lamentavelmente reles. Reles e curiosa. Um tanto agradavelmente curiosa. Mas aparecia o contra-regra a chamar o gênio teatral, e os três cavalheiros tiveram que deixar o camarim.
Na caixa pesava um silêncio de catedral. Andavam todos em bicos de pé; vagos seios preventivos como amarravam os menores gestos no temor de romper a peso geral. Os coristas sentados no chão, por trás do pano do fundo, conversavam quase ao ouvido um do outro. Os carpinteiros tinham desaparecido. Tudo parecia em êxtase; e ouvia-se distintamente a voz de Salústio dominando a platéia com a sua tremenda tragédia do segundo ato da opereta. O costureiro do notável cômico e mais o contra-regra traziam para o bastidor, um lençol e um manto negro.
Para que isso? - indagou Jacques.
— Ora! - respondeu Godofredo. - Isso é para levantar o Salústio quando ele cair esgotado no fim do ato. Não te rias. O segundo ato dos Sinos é a obra-prima desse gênio. Se não fingir que não pode dar um passo, Salústio julga não ter representado bem. Um chiqué como qualquer outro. Todas as noites é assim. Vais ver a entrada dele amparado pelos coristas. É melhor do que todo o ato visto de fora.
Mas Jorge metera-se no camarim da atriz que fazia Rosalinda, e Godofredo desapareceu também. Nas caixas esses movimentos de dispersão não deixam de ser comuns.
Jacques por exemplo, ia acompanhar Godofredo, quando viu inteiramente deitada no poeirento tapete da antecâmara de Corneville, a rapariga que o achara bonito. Aí, ficou perplexo. Que fazer? Falar-lhe, dizer duas frases vagas e superiores ou passar fingindo não ver? Ele nunca tinha má vontade para com as mulheres. Essa porém não lhe agradava. Não! Não! Nada de coristas portuguesas... Que diriam os seus amigos! E as senhoras então! Deu a volta em torno da cena também em bico de pé para não perturbar o velho Tio Gaspar, que escondia o seu oiro. A cena era fechada. Não podia assim ver o velho tio, mas ouvia-o. Salústio rouquejava; devia estar terrível. Que aborrecimento! E homens como Godofredo e Jorge iam a tais lugares e divertiam-se!
Resolveu sair assim, na ponta dos pés, quando esbarrou com a pequena que ria.
— O meu príncipe não se escamou?
— Eu - disse ele meio sério - por quê?
Ao mesmo tempo habituado ao salão da casa da Fanga pensava enojado na desbocada linguagem da portuguesa. E, certo por isso e porque não sabia o que fazer, estendeu-lhe a mão. Ela aceitou-a com sofreguidão. Jacques tinha as mãos grandes, macias e velutíneas e largas e bem tratadas. As dela eram pequenas, sem perfeição e sem excesso de limpeza. O contraste agradou. Ficou com a mão do mancebo entre as suas. E alisava-a.
— Gosto muito de mãos grandes e finas. Não é do comércio, pois não?
— Não - fez com um sorriso ironicamente superior o jovem indolente.
— Logo se vê...
Ergueu aquela mão, passou-a pelo pescoço. Jacques estava atônito. Aos vinte anos, com o seu temperamento, seria difícil dizer que não desejaria continuar. Mas, ao mesmo tempo, sentia-se ridículo. Um carpinteiro de resto passara só com o desejo de interromper a cena, e as coristas olhavam.
— Como te chamas? - perguntou ela. E sem esperar a resposta: - Sabes que me agradas. Agradas-me muito, muito. Eu é que não, hem? Também com esta cara, gajas não te hão de faltar e até do fado liró...
Ele conservava-se com um sorriso vago. Então ela puxou-o com fúria e sugou-lhe no pescoço, de surpresa, um grande beijo de carne. Jacques agarrou-a pelas axilas, para se desvencilhar, e os seus dedos tocaram os seios que a pequena tinha excitantes.
— Tenha modos, rapariga.
— Tenho vontade de ti, meu bom.
— Eu é que não posso; não vim cá para isso...
Ela mirou-o subitamente digna:
— Se pensas que é comédia, estás a ler. Isto é cá do peito e não interesse. Tu mesmo não tens cara de dar senão pancadas. És dos meus. - E rindo: - O velho não vem hoje; se quiseres espera-me à saída.
Mas nesse momento ouviu-se na cena um estrondo, que ecoava em gargalhadas na platéia.
A pequena correu. Toda gente corria de resto alucinada e as perguntas e as respostas cruzavam-se entre exclamações, sem que ninguém conseguisse se fazer compreender.
Um vento de pavor enchia o ambiente. A catástrofe em cena, como nas tragédias gregas, prenunciava o fim da noite inteiramente catastrofal. Era apenas isto: a falta de cuidado de um contra-regra estragara a grande cena de Salústio!
Como ninguém ignora, há nos Sinos de Corneville um pedaço em que o Tio Gaspar rola para as janelas as velhas armaduras sem desconfiar que elas estão recheadas de vivos. No meio dessa cena a que Salústio emprestava um sopro shakspeareano, quando o grande ator cômico fazia a platéia tremer de pavor arrastando uma das armaduras, quebrou-se o eixo, e a armadura desabou no soalho vomitando o personagem escondido.
Um grande riso rompeu, Salústio perdera todos os seus efeitos! Ninguém mais se entendeu. Quando foi a entrada do coro, entraram apenas três homens e três damas cornevilleanas. O costureiro e o contra-regra disputavam-se, com palavrões, alto. Mulheres corriam, os homens tinham perdido a cabeça: pedidos de silêncio partiam de todos os lados aumentando o ruído. De repente, porém, a platéia rompe em aplausos frenéticos.
— Desçam o pano! Desçam o pano! - gritavam.
O pano desceu afinal. O costureiro e o contra-regra, mais morto que vivo correram com o lençol e o manto para apanhar Salústio, exausto no soalho, como era costume. As palmas continuavam febris na platéia, e da cena vinham sujeitos em todas as direções. O personagem medroso que tão inopinadamente deixara a armadura, apareceu com o braço luxado e a perna em sangue, sem que ninguém dele se apercebesse. Rosalina entrou sem atenções. O senhor de Corneville passou indignado. O barulho era pandemônico. Só de repente parou, quando apareceu, terrível e desmaiado, o corpo de Salústio Pedro. O grande artista vinha assim mostrando como o possuía a arte. Quando, porém, sentiu estar fora do palco, deu um pulo de acrobata, pôs a mão na aura magra, ganiu furioso:
— Cambada de cães! Quem foi que preparou a armadura? Cambada! Cães! Cães! Esmurro todos! Estragar a minha cena, na noite do meu beneficio!
Estava em pleno delírio. Passou por Jacques, sem o ver, vociferando. Ia pela caixa, de novo invadida pelos admiradores, um temporal de impropérios. Jacques viu Godofredo que saía.
— Mas o que houve, homem?
— O que houve? Houve que o grande Salústio perdeu a sua cena!
E desceu às gargalhadas - gargalhadas que no pátio de entrada, porteiros, bombeiros e músicos da orquestra já tinham.
Jacques porém no jardim, sentia-se hesitante. Partiria ou esperaria? Afinal era um rapaz, aquele beijo não lhe parecera desagradável e não havia nada de mal em ir passar uma hora, com uma criatura inferior. Mas ao mesmo tempo lembrava-se dos seus amigos.
E aquilo parecia-lhe quase vergonhoso. Indagou entretanto de Godofredo.
— Aquela corista?...
— A Maria?
— Essa...
— Dizem que é um temperamento. Tem um velho.
— Cara, então?
— Para o velho, decerto. De resto não conheces tu outra pessoa. E o Florimundo, o Florimundo do Carlos Chagas...
Quando se deseja satisfazer uma secreta vontade, todas as coisas podem acabar por ser argumentos favoráveis à satisfação... Para Jacques, a pequena portuguesa, desde que era mantida por um velho que assentava à mesa da Fanga e ia ás recepções de sua mãe, já não lhe parecia tão ordinária. Godofredo continuava.
— Contam que já esfaqueou um homem.
— Então, assim ardente?
— Ai! filho, como as portuguesas! - suspirou o original cronista.
— Se fôssemos cear com ela?
— Deus me livre. É absolutamente estúpida. Mas para que ceia? Queres também essa?
— Eu não...
— Elas é que querem? Ai! felizardo!... Mas, por isso mesmo, a ceia é inútil. A ceia foi feita para os que vão se possuir sem se amar. É uma espécie de retardamento. Depois é impossível ceares. O Jorge leva a primeira atriz, e uma primeira atriz jamais se sentará à mesa com uma corista.
— De fato...
— Só o lembrar que há oito anos passados também era corista dá-lhe verdadeiras nevralgias de estômago. Mas o Salústio... Olha que foi boa, hem?
E partiu a conversar no escritório. Jacques ficou vendo o movimento, afinal meio divertido. Que mundo aquele tão diferente! Decididamente havia muita coisa sobre a terra de que não cuidava na sua vã filosofia. Quando alguém tem uma preocupação, esse alguém é fatalmente hamlético. Jacques, por mais que reagisse, estava também hamlético. Quando o espetáculo acabou, ia saindo com a turba, quando viu Jorge nervoso.
— Vens conosco? Eu espero a Ada. O diabo é que ela demora muito a vestir-se mal. Estas portuguesas! Vestem mal, não se limpam, não se perfumam, não têm chic! oh! que mulheres horríveis!
Jacques teve vontade de perguntar por que, julgando-as tão más, Jorge vinha procurá-las. Mas como tinha a mesma opinião e estava na iminência da mesma culpa, sorriu com ar superior. Jorge, porém, continuava:
— E as partes, os chiqués que elas fazem! Qual, Jacques... Tirem-me das francesas e das italianas e eu sou um homem sem ação.
— Estás contrariado?
— Eu não. E o Godofredo?
— Foi-se.
— É isso. Arranja-me destas coisas e depois raspa-se... Tu, decerto, também não vens?
Há perguntas que indicam a resposta, que a impõem. Jacques, por pouco inteligente, compreendeu e disse:
— Não, vou ao club.
E pensava que filtro teriam aquelas mulheres de teatro, aquelas portuguesas sem perfume, para que Jorge, rico e cheio de mulheres caras, viesse, a contragosto do seu esnobismo, esperar uma delas à entrada da caixa... De resto, aquela espera era lúgubre. Passavam os carpinteiros, os alfaiates, as costureiras, os coristas com uns ares ainda mais lamentáveis cá fora, as coristas que tinham homens à espera, as atrizes envoltas em mantos, retardatários e teimosos admiradores, os atores meio sujos na sombra... Que gente! De repente, Jorge deu um pulo, do banco. Era a atriz que chegava, pequena mulher de voz garota.
— Então, esperou muito?
— Quase nada.
— Estou que não posso. Venha dar-me um caldo.
Jorge fez as apresentações; foram andando os três, saíram. O automóvel esperava.
A atriz subiu; Jorge também e de dentro:
— Não vens?
— Não, até amanhã.
— Bem, não te quero forçar...
Jacques sorriu, cumprimentou. O automóvel rodou. Pela primeira vez vira Jorge, que o levava sempre para as ceias alegres, desejar estar só, cear só com uma mulher.
Era um poder misterioso dessas portuguesas nos brasileiros? E eram brasileiros como Godofredo e Jorge! Sentiu que teria uma infinita vontade de troçá-los, mas infelizmente eram dois homens a quem não poderia fazer pilhérias com impunidade e sem imediato prejuízo. Sorriu, acendeu um cigarro, vendo o movimento dos botequins, pensou gravemente que nunca na sua vida se achara só, à noite, saindo de um teatro de língua portuguesa, na Rua do Senado. E desceu a rua, decidido a ir dormir, quando um passo apressado fê-lo voltar-se. Era ela, a pequena, com um chapelinho sem gosto, uma pelerine, e, para aumentar o horror, com os dedos cheios de anéis de chuveiro, com várias pedras... Misericórdia! Ele, Jacques Pedreira, seria capaz de fazer dois passos com aquela mulher em plena rua? Ela, porém, sorria satisfeita, e a sua boca e os seus olhos eram gulosos.
— Bem se vê que entendes do riscado.
Jacques estacou seco:
— Como?
— Já não é a primeira vez que tens amantes no teatro.
— Quem to disse?
— Vê-se logo... Esperando cá fora, ninguém desconfia e não vão contar ao traste do meu velho.
— Mas estás enganada... - interrompeu Jacques vagamente revoltado com tantas qualidades.
— Ora... Chama a tipóia, anda, chama que estão a olhar para nós. Chama depressa. Tenho sede de ti, meu cravo.
A rapariga devia ser ordinaríssima. O acerto parecia querer ser-lhe desagradável. Jacques estava meio assustado e sem vontade. Como escapar? O carro era a salvação.
Era a única salvação momentânea. Atravessou a rua, meteu-a numa berlinda fechada.
— Para onde?
— Para onde quiseres, menos para a pensão que contam ao velho...
— Diabo.
— Manda bater para a Beira-Mar. Depois vê-se...
Jacques obedeceu, consultando as algibeiras tão bem-feitas e tão escassas. Que criatura!
Ia deixá-la na primeira esquina. Mas quando o carro rodou, Maria já arrancara o chapéu e a pelerine. Estava com uma simples blusa de nanzuque. Atirou-se aos seus lábios, sedenta, murmurando:
— Aperta-me o pescoço, com as tuas mãos... com força meu bom.
Felizmente ainda não houve quem dissesse que todas as mulheres se parecem. Desde Eva, com efeito, ainda não houve duas iguais. Por isso é explicável o amor da poligamia. Desde que os homens são sempre iguais e as mulheres sempre diversas é justiceiro que a curiosidade do homem não se contente só com uma. Ao demais mesmo as mulheres comuns reservam a sua surpresa de modo que de todos os símbolos dos humanos um apenas ignorará a saciedade: Dom João. O sport do amor é o único que não aborrece. Jacques tinha, na sua curta vida, conhecido várias espécies de amor. Aquele caía de chofre e causava-lhe uma impressão inédita. Seria por ser uma mulher de teatro, que apesar de português não deixava de ser teatro? O fato é que ele não tinha ainda tido aquilo. Ela no carro, em simples esboços de posse, entregava-se e tomava, possuía e passava a ser uma coisa dele; uma coisa que aliás seria mentir se não a denominássemos de bem boa. Jacques, nascido para as mulheres e que, ó louco, pretendia conhecê-las já com os seus poucos anos, via-se na obrigação de confessar que as novidades são imprevistas. A mulher ainda é de todos os animais da criação o mais interessante, e se o filósofo disse que a mulher é um meeting de linhas curvas, não há como essas linhas para chegarmos ao ápice das sensações agradáveis. A pequena portuguesa era nature, era comum. Mas ele não sentira nunca assim uma tal sinceridade.
Quando o carro chegava à Beira-Mar, Jacques sentiu que não podia tanger aquele instrumento numa incômoda berlinda de praça, e metendo a mão no bolso das chaves, sentiu que pegava na chave da garçonnière do barão. Como os deuses queriam aquilo! Que providência andava em tudo! Tirou-se então dela e disse-lhe:
— Queres vir comigo?
— Onde?
— A minha casa.
Ele empregava o possessivo para que depois ela tivesse um espanto e o admirasse mais. Ela respondeu:
— Até ás quatro da manhã. Depois tenho de retomar a pensão, saltando pela janela...
E dizia a verdade sem tenção de o espantar. Os homens quase sempre mentem mais que as mulheres. Jacques ria entretanto. Nunca tivera uma mulher que saltasse janelas e o confessasse tão simplesmente.
— Mas por quê?
— Porque se entro tarde, a dona da pensão conta ao velho...
E Jacques sentia que aquela mulher dava-se e tomava mesmo falando. O carro parou quando de novo Maria saltava-lhe aos beijos sobre os olhos. Jacques desceu, abriu a porta. Ela de um pulo estava do trem dentro da casa. Ao fechar a porta Jacques teve a sensação de que cometia um ato de conseqüências desagradáveis. Maria encostou-se um pouco:
— Ai que dor no coração!
Foi a única manifestação do sentimento de previsão que aqueles organismos tiveram.
Ele por espalhafato ligou a eletricidade, fez luz, enquanto fora o cocheiro praguejava por ter recebido pouco. Ela abriu uma gargalhada.
— Ai! que o petiz arma em faéton! Querem ver que é mesmo príncipe?
E subiu, entrou no salão ressabiada, entrou no quarto de cama, quarto cheio de amores, passou para o quarto de banho com um vinco na testa, perguntou para que serviam vários objetos, esteve na casa de jantar, foi até a cozinha. Jacques olhou-a aí e sentia-a no justo meio quando a pequena fez alto a seguinte reflexão:
— Tu és muito gajo.
— É boa. Por quê?
— Por quê? Queres saber? Porque nada disso é teu.
— Hein? - fez Jacques que decididamente não conhecia a percepção, a intuição divinatória do sexo feminino. - Mas por quê?
— És muito dos meus para teres estas coisas. Isso deve ser de algum teu amigo a que exploras. E com milho. Ah! meu cravo, que finório saíste! És bem dos nonos...
— É a terceira vez que dizes que eu sou dos teus! - constatou Jacques com uma ponta de zanga. - Não repita.
Estava vexado que a mulher o tratasse como um igual. Ela porém ria.
— Olha o tolo! Se tivesses coisas destas não gostaria de ti. És do fado liró mas sem cheta. Adivinhei ou não?
Como ele sentisse um palavrão na boca - ele que justiça seja feita, não tinha esses hábitos - ela puxou-o com fúria, sorveu-lhe a boca, rolou com ele por cima da mesa no tapete da casa de jantar, que a eletricidade iluminava intensamente. E o interessante jovem sentia que era outra coisa, que era mais alguma coisa, que eram várias coisas mais...
Se não estivéssemos numa época de exageros poder-se-ia qualificar de vertiginosa a vida de Jacques Pedreira após a memorável festa dada em beneficio do Dispensário da Irma Adelaide e que tão grande prejuízo começava a causar à digna diretora. Porque de fato era uma vida vertiginosa. Não que o interessante jovem assim a desejasse, mas porque assim o resolvera o acaso. Havia o negócio das fibras. O projeto continuava no Senado sem entrar na ordem do dia. Godofredo de Alencar culpava o Grande Chefe.
— Precisas fazer com que Arcanjo peça ao general.
— Não será muito.
— Olha que temos trinta contos.
— Bom, bom - fazia Jacques nervoso à idéia daquele dinheiro e com sérias dúvidas, dúvidas que se acentuavam sem base sobre a maneira de repartir do Godofredo.
De resto, o negócio em elaboração não poderia ser senão um pequeno exercício sem método na sua vida a toda brida. A fatalidade naquele momento sobrecarregava-o de dois sports: o automóvel e a mulher. Tudo na vida é sport. O maior sportsman de todos os tempos foi positivamente Deus, Nosso Senhor. Esse cavalheiro, predestinado de fato, venceu todas as performances e todos os handicaps e, segundo observações inteligentes foi o inventor do puzzle na organização do caos. Não é de admirar que a humanidade, à proporção que mais intimamente conhece Deus, mais esportiva se revele. A corrente contemporânea é particularmente esportiva. Os jornais falam de matches de velocidades. Os termos ingleses surgem a cada corrida ou a cada pontapé; as pessoas andam na rua como quem vem ou quem vai para um desafio ou pelo menos para uma aposta. Jacques, além da corrente pertencia a um grupo que tinha por chefe Jorge de Araújo. Comprou um reloginho para prender ao pulso e foi das velocidades.
Jorge, de resto, protegido das boas fadas, tendo feito uma fortuna enorme em pouco tempo, fino, esperto, com tudo quanto desejava, percorria o período fatal da exacerbação. Tornara-se incontentável, de uma neurastenia a frio. Godofredo assegurava que os automóveis haviam transmitido a sua inquieta alma ao proprietário. O Barão Belfort sorria. O fato é que Jorge sentia a fortuna pequena para os desmandos da existência inteira, e querendo aumentá-la ainda mais rapidamente do que a ganhara, forcejava por tornar atordoadoras as horas de repouso.
Assim aumentava a coleção de automóveis de corrida. Tinha seis. Emprestava aos amigos até. Por essa ocasião o filho do antigo merceeiro Teotônio, o jovem milionário Teotônio Filho, em companhia do pobre Dória, que afinal conseguia ser agente de uma fábrica de França, surgia guiando um automóvel. E no meio, enquanto se acentuava a rivalidade esportiva entre o Jorge e o Teotônio Filho, diariamente, dizendo-se agentes de fábricas automobílicas, aparecia ou um jovem francês perigoso, ou um italiano assustador ou um português palrador.
É incontestável que o automóvel dá muito dinheiro a ganhar. Principalmente a quem neles trabalha pouco, ou não trabalha mesmo nada. O automóvel faz ganhar em maior parte aos intermediários das vendas. Esses jovens vinham para as encomendas do governo, repartiam largamente as comissões e a atmosfera foi em certo momento tal que todos acordaram ser uma vergonha não haver ainda um automóvel-club. Se todos auto-mobilizavam, se todos eram loucos pelo sport, por que não haver um club? E de um momento para outro, o club surgiu mesmo na praia, em frente à Beira-Mar, ocupando um velho prédio familiar. Jacques freqüentava-o, sem aliás lhe encontrar encantos. O club, montado à pressa, tinha como mobiliário mesas repletas de revistas esportivas que ninguém lia, pelas paredes algumas caricaturas inglesas e francesas tratando de cavalos, de pólo, d'automóveis, de cricket e de lawn tennis e umas vagas poltronas, de um modernismo que nem ao Mapple pedia auxílio. À porta era toda noite um carbuncular de faróis de autos e a algazarra da penúltima profissão inventada pela civilização: os chauffeurs que os sportsmen tratavam como antes dos chauffeurs só era possível tratar o seu cavalo ou a sua cocotte. A diretoria, enquanto não se dissolvia o club, falava seriamente nas possibilidades de um circuito.
— Mas por quê?
— Porque é chic.
— E por onde, se não temos estradas?
— É verdade, menino, nem estradas temos...
— A febre tudo transformará! - exclamava Godofredo com ares proféticos, depois de ter apresentado alguns agentes nas secretarias de Estado.
— O que dá forte acaba logo. Antes do circuito o club fecha, e então só resta apelar para a navegação aérea. Só há um sport que ainda não nos cansou: o falar mal da vida alheia...
Entretanto Jacques tomava muito a sério o automobilismo, conhecendo os termos técnicos, exercitando-se a guiar como motorista de Jorge, aquele motorista que ria muito, era boêmio, raptava meninas e nunca chegava à hora. Foi a época das loucuras. Acordava tarde, vestia-se com cuidado, ia um pouco a Lina Monteiro, apreciava a hora de Alice dos Santos, enredava um flirt no chá e entrava a noite de automóvel, com o seu bando, a quem respeitava e a quem nunca dava opinião.
— Vamos jantar no Leme?
— Dando a volta pela Tijuca?
Iam. Quando o barão era do grupo tomava-se champagne desde o começo, um brut Imperiale famoso.
E após o jantar, como era enervante aparecerem no teatro sempre, como as mulheres davam gritos nos carros, divertiam-se sós a dar corridas loucas pela Beira-Mar quase deserta. E era um riso perdido, na ebriedade da rapidez. Os inspetores de veículos pulavam aterrorizados como gafanhotos na nuvem de poeira, raros transeuntes olhavam as máquinas com a cara de quem não compreende. Por fim, o 720-A-E foi assinalado à Inspetoria. Todo dia chegava a intimação para a carteira do motorista. E do grupo era Godofredo com a sua literatura, o encarregado de falar com o senhor inspetor, incapaz de lhe negar qualquer coisa, por causa dessa maldita imprensa que baba pela lei e salta por cima dela sempre. Por esse tempo surgiu enviado de uma fábrica italiana il re dei chauffeurs, o cavalheiro Stanisláo Sfrapini, que conduzia de modo sensacional. A primeira vez que Sfrapini Stanisláo, magro, com a barba em ponta, conduziu o automóvel de corrida com a carrosserie de ville como eles diziam no mais puro português, foi positivamente um assombro. O homem parava quando queria, raspava carruagem propositalmente e por fim, às três da madrugada, sem gasolina fez um percurso de três quilômetros em consecutivos estouros que pareciam uns bombardeios. Godofredo, nessa madrugada quis ser aquele cantor que na Grécia cantava os vencedores das corridas de carro, desde que o progresso não sabe coroar o assombro com a flor da poesia. E Jacques, que pouco se importava com o poeta grego, deu um grande abraço no homem incomparável. Durante uma semana só falou em Sfrapini.
Mas esse entusiasmo automobílico em nada diminuía o fervor pelo amor. O curioso é que o amor, o apetite da pequena portuguesa exerciam nesse lindo rapaz uma influência prodigiosa. Ele fora conduzir a Maria à pensão que ficava numa esquina da Rua dos Inválidos. Vira-a saltar a janela e rir-lhe já de dentro.
Aquela mulher era tão imprevista que Jacques pensava estar a enganar o Florimundo e não a podia largar. Certo, não a procurava. Nem duas vezes foi à caixa. Mas a Maria ensinava-lhe tais coisas ordinárias e enchia-lhe as sextas-feiras com tais sortidas boêmias, que não faltava nunca. Recebeu-a mesmo, além dessa noite semanal em que o Florimundo descansava, uma vez de dia na garçonnière. E foi o dia precisamente em que ela lhe levou de presente uma gravata de seda cor-de-rosa; e foi o dia precisamente, em que tendo ele rido e aos insultos da ofendida Maria por aquele riso Jacques lhe atirou uma tremenda bofetada; e foi o dia precisamente, em que quase estrangulada, rojando no tapete e beijando-lhe os pés, Maria soluçou com a própria alma.
— Meu homem, meu homem...
Era brutal, indispensável e esplêndido. Essa paixão ou que melhor nome tenha não se fazia para Jacques absorvente. Jovens da sua natureza são apenas mais realçados pelas paixões. A Maria dera-lhe como a revelação de ser ele o bruto, o macho. Isso nunca é inconveniente, numa carreira brilhante como a de Jacques. Assim o jovem continuava sempre novo para todas porque aplicava em Alice o que aprendera em Maria, o que lhe tinha mostrado gostar Alice ou o que lhe revelara Liana, para que a portuguesa o chamasse meia louca de porcalhão. E, agindo assim, oferecia um verdadeiro curso às meninas, que não haviam passado do flirt.
Os homens simples ficam admirados e cheios de inveja diante do ser de exceção denominado conquistador. Na maioria das vezes é ele o conquistado, porque a sua arma é dispor de todos os meios, é conversar, é ouvir bem as mulheres e contar-lhes em seguida o que fez com as outras. Quando se conversa ao nível de uma mulher, seja ela honestíssima, tudo é possível e esperar é lucrar. De resto, até com os homens o fato repete-se. Apenas com os homens de que se precisa é muito mais difícil porque eles são infinitamente mais idiotas. Jacques multiplicava o prazer que a sua beleza exercia. A Gina Malperle, filha do cônsul do Cobrado, com o seu ar de girl new-yorkense, declarara um sentimento profundo.
Gina, ninguém se lembrava de perguntar se era de fato casada, solteira, ou viúva. De tanto a verem e de tanto a ouvirem sempre inteligente e moderna os piores maldicentes esqueciam positivamente o seu estado civil. Era de resto o único caso da história de tão fina sociedade, de modo que, sem pensar, acompanhando o tratamento que lhe davam as sessões mundanas dos jornais e o seu respeitável progenitor, todos a chamaram Mlle. Gina. Quereria ela casar? Já teria passado a idade do casamento? O fato é que flertava com alguns rapazes e aborrecera quase todos, considerando-os fúteis.
— Vocês esquecem que eu tenho uma educação americana e que os rapazes da nossa roda lembram muito mais os de Paris! - dizia a rir.
Mas Jacques dominara-a pela segurança, pela tranqüila e fácil certeza com que tomava conta das mulheres, sem lhes ter o menor respeito.
No mesmo dia em que a segurara e com ela dançara empolgando-a, enebriando-a, Gina vira o que ele fizera com a pobre Lina Monteiro, e sabia os direitos de Alice dos Santos sobre o maravilhoso adolescente.
A psicologia do homem que às mulheres agrada ficará sempre por fazer. Eles próprios ignoram a causa da preferência. Mas o coração das mulheres, apesar do excesso de observações e dos romances, ainda é maior enigma. Por mais que Gina refletisse e julgasse Jacques um caso de que devia afastar-se, não lhe era possível ao cabo de prolongadas reflexões, senão desejá-lo mais. Amor? Não.
Um fim oculto? Também não. Jacques, para aquela rapariga prática não podia ser um bom partido. Desejo de entregar-se? Gina Malperle, graças a sua educação americana, não pensava em fazer semelhante tolice. Em todo o seu organismo havia apenas a vontade de ter um pouco do belo adolescente, de subtraí-lo às outras, de fazê-lo sentir a sua influência. Dois dias depois da grande festa, encontraram-se num teatro. Ele vinha de conversar com a Viuvinha Pereira, fazendo-a rir muito, e estivera no camarote da Condessa Rosalina Gomes, que mordia um chocolate como quem morde um lábio. A peça era essencialmente contemporânea: falava-se de coisas afrodisíacas do começo ao fim. No camarote em frente havia Mice dos Santos com a ilustre Sr.ª de Melo e Sousa. A conversação tomou aquele ar de intimidade um pouco maternal que as mulheres não podiam deixar de ter com o lindo mancebo. E o lindo mancebo tinha o costume de contar as suas boas fortunas com um tom ingênuo de criança que narra os seus brincos. Era naturalmente excitante.
— Então, em trabalho? - fez Gina.
— Que trabalho? Não me fale de trabalho porque é cousa aborrecida.
— Mas não é trabalho esse exercício em torno das damas? Ainda há pouco a Pereira ria.
— É porque eu lhe contava como tinha brigado com aquela italiana que ali está na frisa.
— Aquela de cabelo loiro?
— São pintados. Foi há tempos a briga. Atirei-lhe com um prato de sopa.
Gina ria achando aquela confissão de um mau gosto enorme, mas por isso mesmo presa. E como devia ser americana, e como queria reter aquela flor de mocidade, excitava-o.
— Entretanto, há outros camarotes...
— Ah! isso - fez o pequeno - esses camarotes são para o meu flat.
— Seriously? Have you a flat?
— Yes.
Ele chamava de flat, à inglesa, a garconnière do barão. Ela não acreditava. Ele descreveu-a, mais ou menos, olhando a sala. No dia seguinte encontrou-a no baile de Mme. Gouveia, que iluminara os jardins com balões venezianos. Dançaram juntos. Desceram ao jardim, e ele num recanto de árvores, tomou-lhe na boca de súbito um beijo grosso carnudo, tão bom e cheiroso que Gina Malperle não pôde zangar e despegou-se como um pássaro tonto, como se tivesse caído de um paraíso, ainda mastigando o sabor perfumado.
Ao mesmo tempo, como Lina Monteiro morava numa pequena rua próxima da praia, Jacques, ao partir para a cidade, não deixava de dar uma vista d'olhos por lá. E o que o interessava em Una, a menina pobre e desclassificada é que ela era pura, ingênua e imaginava amar para casar. Não era a primeira vez que era enganada, mas também nunca amara assina. Quando via Jacques ela tremia como uma flor ao vento e tudo quanto ele pedisse, ela daria. Não se pode dizer que um homem mente quando ele não calcula e não goza o prazer de mentir. Jacques não mentia a Lina, mas prometia-lhe casamento, convencido de que não casaria depois. Era sempre sincero porque não tinha inteligência para mais.
— O diabo é que agora não posso.
— Peço todo dia a Nossa Senhora por ti. Eu esperaria até o fim da vida! - exclamava essa pobre menina ingênua.
E Jacques ia dali, sinceramente, a casa da Fanga ver a Liana, que cada vez tinha mais influência sobre Arcanjo, ou encontrava um pouco Alice dos Santos. Essas duas criaturas tão diferentes uma da outra, não lhe causavam grandes desejos. Mas Liana era humilde como um cão, chorando sempre e dela muita vez emprestava dinheiro, o que significava que recebia de Arcanjo. E Alice era a boa, a sã, a sempre espontânea Alice, que o queria mesmo, e agora mais, sabendo-o desejado por todas. No quarto de Liana o interessante jovem as mais das vezes dormia, lendo um jornal. Na garconnière do barão, em geral esboçava cenas com Alice que terminavam com tremendas luxúrias, porque ele fazia-a conhecedora do repertório de Maria. Alice tinha surpresas contínuas. Uma vez, em que Jacques lhe apertava o pescoço com vontade de estrangulá-la, ela cerrara os olhos com um tal gozo que ele estacara. E ela murmurou:
— Mais, mais, é bom...
Com grande espanto seu, ele viu que esse seu gesto o excitara também de súbito, e como duas crianças que se descobrem prazeres proibidos passaram uma semana, nesse exercício delicioso. Maria acabou assim sempre presente ás luxúrias do interessante jovem. Era o seu anjo-da-guarda...
Quando acordava, Jacques não deixava de ficar inquieto tanto tinha o que fazer - mesmo porque esses trabalhos tendiam a aumentar. As damas, outras damas, apertavam-lhe a mão com uma significação que só as mulheres, seres por excelência receptivos, sabem dar aos apertos de mão. E havia corridas, havia vários rendez-vous automobílicos depois de ter escorraçado os pretendentes.
Entretanto Jacques imaginava uma solução para essa crise e D. Malvina, recolhida ao quarto, temendo pelo filho a vida de automóveis e mulheres, imaginava conversar seriamente com Argemira. E foi, precisamente essa cena, o prenúncio de vários desastres. Tudo na vida é sport. Na vertigem da corrida nem sempre servem as performances...
Mas, afinal, o caso das fibras ia resolver-se. Evidentemente, Jacques tivera uma decisiva influência na sua realização e notava que Godofredo, só o fazia de agente, apenas de agente. Ao concorrente o cronista aparecia como o autor de todo movimento. Jacques acicatado pelo ar de zanga do poé e com uma talvez vaga desconfiança no homem de letras, quis entrar diretamente em relações com as partes. Godofredo era fraco. A demora irritava sobremaneira o representante do sindicato, um velho e sórdido português judeu João Gomide, que emprestava os dinheiros para essa tentativa aos cofres públicos. Assim, quando se viu sem solução entre Jacques e o Sr. Gomide, o cronista para acalmar as dúvidas de ambos apresentou-os.
O Sr. Gomide, com um sorrisinho voraz e pacifico estabeleceu um papel no negócio: era apenas um agente que tinha de dar contas das despesas a maiores. Das fibras levava apenas uma comissão. Era preciso que o negócio desfibrasse assaz o Tesouro, para que assim Gomide desse comissões. O agente, de resto, tinha um escritório ambíguo, em que se emprestava a juro alto, e era homem de papéis, de recibos, de pequenas assinaturas. "Tudo em ordem" diria procurando explicar. O fato é que entrava em tudo preso a esses salva-vidas e que mesmo se a onda fosse forte pelo menos os salva-vidas iriam com ele.
Na operação de Godofredo as coisas tinham ficado combinadas. Os dois cavalheiros receberiam na aprovação do Congresso a metade da comissão. A outra seria entregue, após a assinatura do presidente. Jacques com a simpatia que os rapazes de sua situação não deixam de ter pelos prestamistas, fingiu para o velho Gomide várias gentilezas. Ao deixar o pequeno escritório equívoco da Rua dos Barbonos, estava certo que desta vez veria dinheiro, não pela sua influência mas pela sorte de Gomide, metido no negócio. E desde esse momento - coisa curiosa! - Godofredo começou a aparecer no seu cérebro numa posição secundária. Dentro em pouco estava no último plano. Dois dias depois na cabeça de Jacques, Godofredo apenas abria a porta da casa do Gomide; e, apesar da importância que a gratidão manda dar aos cavalheiros que nos abrem as portas, nem por isso os cavalheiros deixam de continuar, com prazer nosso talvez, lá, à porta, distantes...
Entretanto a nervosidade de Godofredo aumentava. Era dizer que o caso estava por dias. E estava. Uma segunda-feira o projeto entrava na ordem do dia. Não houve número. Nem na terça. Nem na quarta. Era felizmente a terceira discussão sem que os senadores o tivessem visto. Godofredo teve um trabalhão para obrigar Jacques dividido entre os automóveis e as saias, a ir ter com Alice:
— A Alice fazendo o Senado trabalhar! Não exageres!
— Eu é que nada posso fazer. Uma nota jornalística perderia tudo. O número depende da vontade do Grande Chefe.
Jacques conversou com Alice, contou-lhe a cena do Senado, assegurando que olhando para os senadores só achava alguém capaz de os mover. Ela riu, vaidosa. Na quinta, os senadores estavam todos na sala do café conversando, quando o presidente verificou que infelizmente ainda não havia número. Sábado a concorrência ao recinto foi grande, mas para ouvir uma arenga, explicação pessoal do famoso chefe, que além de dizer tolices, silabava de modo a fazer rir mesmo os contínuos. O jovem encantador, teimando no flirt de Lina Monteiro, e relações cortadas com o pai, via-se apenas com os recursos da sua mãe e com a humilhação de falar a Liana do dinheiro. Por isso estava absolutamente no ponto para compreender o valor de dinheiro, e bater-se pelo dinheiro.
Graças aos deuses, segunda-feira, quando ninguém contava, o grande político reapareceu no recinto do Senado, logo acompanhado pelos senadores que o obedeciam por gestos. O projeto das fibras passou despercebido. Na mesma tarde, Jacques viu Godofredo, que o agarrou.
— Ça y est!
— Passou?
— Enfim!
— Agora é você tratar da sua parte.
— Ah! Jacques, custa muito ganhar dinheiro.
— A quem o dizes...
Jacques não tinha a menor surpresa. Desde o encontro com o Gomide, julgava aquele dinheiro seu. Godofredo porém enchia-o de pasmo.
— O Gomide falou-me num recibo a fazer. É preciso um recibo. Coisa sem importância, espécie de garantia dele junto ao sindicato... De resto documento absolutamente privado... Passas amanhã por lá, só dás recibo pelo dinheiro, e depois repartimos...
— Sim, está bem.
— Não durmas.
O jornalista, muito prudente para se comprometer com documentos, só achara aquele meio para retirar das garras de Gomide a metade da comissão. Aquela confiança, porém, ou era uma prova de que os seus negócios iam muito bem ou era a grande demonstração de simpatia por Jacques. O jovem imaginava entretanto o cronista cheio de dinheiro. No dia seguinte, pois, acordou como sempre, almoçou depois da hora para não se encontrar com o pai, e veio para a cidade, com a pasta de marroquim vermelho debaixo do braço. Saltou na Rua Evaristo da Veiga; bateu no escritório de Gomide. O velho estava, mas custou a abrir, recebendo-o com frieza.
— Então, caro Gomide, que lhe dizia eu? Afinal vencemos!
— Ainda não de todo, senhor doutor.
— A minha parte pelo menos, creio... Uf! custou!
— Tudo custa, senhor doutor!
— Não há dúvida, Gomide.
Houve um silêncio. Já havia antes deles falarem, durante o pequeno diálogo talvez. Por isso quando cessou de ouvir o barulho da própria voz, Jacques sentiu esse silêncio maior, imenso, cheio de várias coisas desagradáveis que nunca são ditas. Ele sentia que tinha de arrancar do velho o que era seu, e estava subitamente resolvido a tudo.
— Godofredo já esteve ca?
— Ontem, logo depois da votação...
— Ah!
Olhou Gomide. O velho não se mexia. Jacques, um pouco nervoso, teve de explicar o que Gomide estava farto de saber.
— Godofredo falou-me que viesse cá receber a primeira quota.
O velho abriu a boca, fechou-a, tossiu, assoou-se.
— O doutor não acharia melhor tudo no fim?
Jacques teve um momento de cólera, logo abafado.
— Creio que não, Gomide. O Godofredo anda embaraçado...
— Palavrinha?
— Palavra. Por mim, não. Isso para mim seria indiferente. Mas Godofredo ficaria contrariadíssimo. Eu sei.
O velho continuava calado. Jacques então com galhardia e um ar despreocupado, que lhe ficava bem, teve uma exclamação triste. Diabo! Se o Godofredo não recebesse aquele dinheiro a sua influência era tão grande que decerto fazia o presidente votar a autorização. E lá se perderiam dinheiros de adiantamentos, trabalhos. Enfim...
— É certo o voto. E o negócio...
— Oh! senhor doutor, é sério...
— Para vocês! Ande, Gomide, deixe cá ver a soma. Não saio daqui, sem a sua última palavra.
O Sr. Gomide tomou um ar pensativo. Depois sentou-se à secretária e escreveu algum tempo. Quando acabou, a sua fisionomia retomara o aspecto comum. Acabara de escrever um documento macabro. Se falhasse a conversão, aquele dinheiro pelo menos voltaria, ou muita gente estaria a aparecer num panamá assustador e reles. Jacques passava o recibo de quinze contos por ele e por Godofredo, comprometendo-se a pagar, a restituí-los com a aprovação do projeto pelo Executivo.
Então qualquer não assinaria. Assim fizera Godofredo, Jacques assinou sem hesitar - porque tinha de tirar dinheiro do velho Gomide. O prestamista chegou a sorrir. Aquela folha de papel valeria dinheiro em qualquer tempo! Quando o rapaz assinou, foi quase humilde, que abriu a burra e contou três maços de dez notas de quinhentos cada um. Jacques recebeu com calma. Como era pouco! Como o dinheiro é poeira! Como quinze contos visíveis, mesmo antes de gastos mostravam-se tristes da sua insignificância! O adolescente meteu-os na bolsa de marroquim vermelho, cumprimentou o velho usurário e saiu. Sentia-se apenas mais ligeiro. E com o desejo de conservação própria que não se conhecia. Querendo atravessar a tua, esperou tempo a deixar passar um automóvel, que vinha longe. Depois verificava o erro de andar com tanto dinheiro. Foi até o escritório. André, de cima, logo que o avistou, começou de fazer gritos de negação.
— Não! Não! - soluçava o contínuo cor de castanha.
— Que há André?
— Não vale a pena subir. O senhor seu pai está em conferência.
Noutra ocasião subiria. Naquele momento satisfez a má vontade de André, mesmo porque não sabia por que lá tinha ido. Foi aliás aí que lembrou ter de dar a Godofredo sete contos e quinhentos. Era desagradabilíssimo. Que ato de generosidade quase criminosa para o seu egoísmo, ainda acrescido por um mês de falta de dinheiro! Mas o diabo é que havia ainda outra metade. De fato, Godofredo arranjara o negócio. Aquela parte do trabalho era sua. A outra seria do literato. E Godofredo devia nadar em oiro, devia ganhar muito. Sim! Evidentemente. Depois não deixava de ser grato ao Alencar, mas aquilo fora só boa vontade d'Alencar para pô-lo dans le train. Havia de conversar com ele. E agradecer-lhe muito. Os romancistas de vez em quando põem os seus personagens a dizer várias coisas e mesmo a pensar. Em seguida chamam a isso psicologia. Um romancista não deixaria de colocar o jovem Jacques, depois de receber os dinheiros do Gomide apenas com a observação do Godofredo. Entrego ou não entrego? A célebre dúvida hamlética? E entretanto Jacques tivera três meses antes talvez dúvida, quando hesitava com a Maria. Mas naquele caso era um absoluto desprendimento. O interessante adolescente pensava aos pedacinhos no caso Godofredo, um caso que lhe parecia passado. Quando resolveu agradecer ao homem de letras, estava na Rua Primeiro de Março diante de um banco. Lembrou-se que lá fora uma vez com Jorge d'Araújo depositar dinheiro. Quem diria que ele também depositaria somas? Entrou pensando apenas na fisionomia dos empregados. Os empregados não o reconheceram nem se admiraram da sua soma - evidentemente ridícula. Jacques depositou quatorze contos e guardou um conto que era bem seu. Oh! Era impossível andar com tanto dinheiro pelas ruas. Diria ao Godofredo quando o encontrasse. Desceu então a Rua do Ouvidor. Na Avenida Teotônio Filho convidou-o para uma corrida à Tijuca num automóvel novo de marca nova. Foi. Jantaram lá no White com a espanhola Concha, a frágil Liana e Arcanjo dos Santos encontrados por acaso. A noite era da portuguesa Maria. Não faltou, tanto mais quanto era uma noite excepcional. No dia seguinte foi vez de Lina Monteiro. Depois do almoço convidou Lina e a Sr.ª Monteiro para um pequeno jantar no Leuse. A velha achava pouco próprio, mas tanta era a sua vontade de ver casada a filha que consentiu.
Jacques veio à cidade, telefonou ao restaurant, estava no chá. Desejava encontrar Godofredo, e ao mesmo tempo não desejava. Isto é: cada vez desejava mais a menos. A tarde tomou um automóvel e foi buscar a pobre menina que o acreditava desde a festa de caridade. O idílio seguia. A Sra. Monteiro estava crente na seriedade do caso. Lina estava certíssima. E ele também estava certo de que tinha uma forte gratidão pela menina. Se lhe dissessem que enganava alguém, logo após a sopa, Jacques ficaria contrariado. O jantar foi pois delicioso. Até a Sra. Monteiro parecia alegre.
Apenas para o fim, entraram o banqueiro Buonavita e Godofredo de Alencar. O literato, que tinha ido cumprimentar as senhoras exclamou:
— Há dois dias que te procuro.
— Oh! Tu... Estive com o homem.
Ia dizer inteiramente a verdade. O seu olhar era leal e puro. A sua fronte lisa. Mas Godofredo fez um gesto e esse gesto quebrou a lealdade de tal forma, que com o mesmo olhar sereno e a mesma fronte - tão idênticas que o cronista psicólogo não teve sombra de suspeita! - Jacques continuou:
— Mas não imaginas o que tem custado. Quer tudo no fim. Já lhe fiz três recibos, que não serviram. É um caso. Enfim prometeu para segunda sem falta. Vamos lá juntos.
— Não, vai lá. Olha que é sério.
— Seríssimo.
E continuou a jantar com a apetecível Lina. Ora o Godofredo! A insistir em qualquer coisa que não era seu! Ele que não fizera nada! Enquanto conversava, olhava o Godofredo e via que o cronista prestava demasiada atenção a sua mesa. Desconfiaria? Deu-lhe uma grande vontade de oferecer-lhe champagne e charutos caros. Apenas Godofredo começara a jantar.. Então ergueu-se e foi pagar a conta à copa, para que não lhe vissem bilhete grande, e levou a família Monteiro ao teatro português - por exotismo. Domingo esteve no prado do Jockey Club com Jorge. Segunda veio cedo para a cidade, desejoso de fazer umas encomendas, quando em plena Avenida se sentiu preso pela mão do cronista.
— Vens de lá! - fazia Godofredo mais pálido.
— Hem! - fez Jacques apanhado de surpresa. - Ah! sim...
Era a cena que no fundo, bem no fundo do seu ser, esperava e temia e desejava ao mesmo tempo desde que vira o Gomide no escritório e o Godofredo cada vez mais secundário. Ficou pálido e frio com medo ao escândalo, ao nome nos jornais, ao ridículo do motivo. Era um esforço para não mostrar que tremia. Aquele medo não podia ser só seu: era uma espécie de medo hereditário; e com ele tremiam o pai, o avô, outros Pedreiras talvez. Mas a cena foi rápida e crispante porque Godofredo estava também, pálido, frio, e tremia.
— Não mintas, menino. Já recebeste.
— Quem to disse?
— O Gomide em pessoa.
— Pois sim, recebi.
— Então, venha a minha parte.
— Ah, sim...
— Gastaste, hein?
— Sim, isto é... aquilo era um pouco meu. Eu precisava muito; estava cheio de contas. Se precisas porém de algum - porque ainda não recebemos a outra parte...
— Preciso sim. Quanto tens?
— Espera, não te exasperes... talvez um conto...
O cronista tinha um esgar de fúria querendo sorrir com calma. Dinheiro é sangue. E batendo com a bengala no asfalto.
— Olha que enganar-me é meio difícil. Só com muito topete, ou sendo um inconsciente como tu. Sabes talvez que nome tem o que acabas de fazer? Há uma palavra exata, uma palavra bonita...
— Godofredo...
— Você fez apenas uma ladroeira, ouviu? uma ladroeira! Está aqui como podia estar na cadeia. Mas não está tudo perdido. Vou trabalhar. E cuidado porque nem sempre os prejudicados são amigos como eu!
E seguiu. Por que Jacques não esbordoou Godorredo? Porque cheio de culpa temia o escândalo. E por que Godofredo não se atirou ao gasganete de Jacques? Porque temia prejudicar o edifício da sua vida com um escândalo. Enganado, ludibriado pelo pequeno que desejara explorar, ao menor grito seria um homem por terra. A civilização e o interesse obrigava-os a recalcar o ódio. Godofredo seguiu quase fora de si. Jacques ficou furioso com um certo gozo no íntimo e continuou a andar. Só havia a ferir-lhe a mente a possibilidade de que toda gente podia saber da sua liberdade para com o Godofredo. Que fazer? Jacques não sabia mais o que fazer. Era sempre assim. Felizmente ergueu os olhos e viu Mmes. Alice dos Santos e Argemira de Melo e Sousa que de dentro de uma vitória com interesse o chamavam.
As corridas de automóveis em que Jacques andava metido, tinham impressionado aquelas damas. Alice e Mme. de Melo e Sousa desejavam uma noite sentir também a sensação de rapidez numa das grandes máquinas de Jorge d' Araújo. Jacques sorria. Argemira explicava.
— Sua mãe levou a semana inteira a falar mal de você. E tanto se referiu aos automóveis, que antes dos conselhos quero fazer a experiência. Mas todas as meninas estão loucas. Alice, vou ver, e se decidirmos é certo que levaremos Ada Pereira...
Jacques sorriu. Os acontecimentos de minutos antes desapareceram de súbito da sua pouco carregada memória. Satisfeito e alegre, não duvidava que seria chegada a vez à viuvinha. E, sem hesitar prometeu para o dia seguinte.
— Nós vamos ao Lírico.
— Dito. Com o Arcanjo?
— Não. Sós.
— Então amanhã.
— Não falte.
— Oh! Por quem me toma, D. Argemira?
Assim, no dia seguinte, lépido e gentil, logo pela manhã telefonou a Jorge de Araújo ameaçando-o com uma noite divina. A comunicação interrompeu antes de terminar. Foi a outro telefone que não ligou. Enervado, tomou um tílburi cuja lentidão quase o faz matar o cocheiro. Naquele cérebro feliz o incidente Godofredo desaparecera, deixando apenas, o interesse pelas corridas com senhoras. Que noite! Acabou por deixar o tílburi, tomando um tramway que o levou até ao escritório do jovem industrial. Não o encontrou. Deixou-lhe um bilhete delirante com três erros de ortografia. E durante o dia telefonou várias vezes, até que à tarde, Jorge apareceu com o seu nervosismo e a sua complacência.
— Sabes que é um aborrecimento enfiar a casaca para ouvir mais uma vez a Aída.
— Chegamos no terceiro ato para não chamar a atenção.
— E não há receios?
— Nenhum!
O milionário concordou. Jantaram em casa de Jorge que parecia preocupado, mordendo o bigodinho à americana, os olhos sem dizer nada, um ar de quem aspira o imprevisto. Depois, como nada tinham a se dizer, avançaram a hora da entrada e chegaram no fim do segundo ato. Era o momento dos cumprimentos. A mesma gente, inexoravelmente aquele todo Rio que já tinham visto tanta vez, lá estava. Nem um desconhecido. A história de cada um podia ser contada pelos outros, e esse cada um podia fazer um volume de histórias. Jorge, enervado com o mal do automóvel confessou-se incapaz de ficar até ao fim. Ia espairecer e depois voltaria. Mas antes era preciso fazer a comédia do convite às grandes damas. Subiram à frisa. Em torno de Mme. de Melo e Sousa a corte juvenil olhando Alice e Ada desdobrava-se. Argemira acolheu-os encantadora.
— Estamos sós, sabem? O nosso deputado doente.
— Grave?
— Oh! uma magraine...
— Quero sair antes do fim - fez Alice dos Santos.
— Ah! minha querida, com esta complicação dos carros. Sabe que viemos de carro hoje?
— Mas é simples - fez Jorge. - Dá-se ao guarda o cartão para mandar o carro embora quando ele chegar, e eu tenho a honra de levá-las em cinco minutos no nosso automóvel, se me permitem...
A encartada ficou sem resposta. Eles também ficaram. E logo que se ergueu o pano Mme. de Melo e Sousa ergueu-se; a senhora do deputado e Ada Pereira também, e saíram com solenidade os cinco.
Estava a noite deliciosa, dessas noites de inverno, sem lua, em que o veludo do céu tem um esplendor imprevisto e a brisa é leve e sensual. O automóvel esperava-as do outro lado da rua. Jacques sentou-se com as três senhoras. Jorge ficou ao lado do motorista, o mesmo de sempre, aquele rapagão lusitano que ria com tanto gosto. As senhoras tinham o ar de que iam pregar uma partida, e logo que o automóvel se moveu começaram a rir. Que pensavam elas do automobilismo de Jorge? O automóvel porém. o famoso 720-A-E já tomara a sua velocidade urbanamente inconcebível. Jorge queria mostrar e o pequeno motorista desejava também pôr em evidência a sua perícia. Na Beira-Mar, onde chegaram um minuto depois talvez, o carro voava numa nuvem de poeira. Era impossível trocar uma palavra. O ar deslocado pela máquina cortava. As mulheres riam excitadas. Jacques dava a Ada Pereira um joelho protetor, sem que Ada pedisse, e para disfarçar resolveu soltar uns gritos, pouco familiares. O chauffeur português voltava-se contentíssimo. Jorge sorria. Mme. de Melo e Sousa achava a sensação inteiramente inédita. Não era uma corrida. Era uma vertigem. Naquele estendal de luz o animal de ferro voava numa densa nuvem de poeira.
Davam assim a segunda volta à praia, quando por eles passou outro grande e poderoso maquinismo. Era Teotônio Filho com o cavalheiro Sfrapini, il re dei chauffeurs.
— O Teotônio! -. gritou Jacques.
— É sim, mas não nos ganha! - berrou o Jorge para trás.
Tornava-se uma questão de honra não ser vencido pelo Teotônio, à vista de senhoras. O automóvel acelerou ainda a marcha e assim correram uns três minutos. As damas despenteadas e com um apetitoso medo, já davam gritinhos. E todo o 720-A-E ficou de repente pasmo vendo que o automóvel de Teotônio parava de repente. Alguma trapalhada. Panne? Antônio diminuiu a marcha. Jorge parou mesmo de todo. E estavam assim, os homens de pé numa posição interrogativa, quando a máquina de Teotônio recomeçou a andar com Sfrapini no guidão.
— Buona sera!
— Que brincadeira é essa?
— Oh! Pensávamos que vocês estivessem sós... - explicou o Teotônio, que só fizera a corrida porque vira mulheres no carro do amigo. E ergueu-se, saltou, veio sondar as distintas damas.
— Demônio! - exclamava Jorge. - Estamos sim, estamos com senhoras. Foi no Lírico. Como não encontravam o carro...
— Oferecemos-lhe o automóvel - interrompeu Jacques - e como elas ouviam falar mal de nós viemos mostrar.
— Que tudo não passa de mentira, pois não é? - fez Teotônio a beijar a mão de Mme. de Melo e Sousa.
Jorge porém não largava o assunto.
— Sim, sim, és de força. Mas olha que não é sério correres com o partido do peso.
Imediatamente, em frente das damas que se interessavam, discutiram tecnicamente peso, carrosserie, carburador, cilindros, raios de rodas, motores, marcas. Apesar da calma aparente, Jorge estava exasperado, e o seu motorista ainda o excitava mais.
— Com este carro, desafio o seu, senhor Teotônio! exclamava o rapaz.
— Deixa-te de prosa, rapaz.
— È un po'difficile... - sorria Sfrapini.
— Era o que se podia ver já! - disse de repente Jorge.
— Com as senhoras aqui?
Jacques porém não tinha muita dificuldade em convencer as senhoras que deviam descer e ficar a ver a aposta alguns minutos. Alice dos Santos, excitadíssima já saltara.
— Eu que não contava com um circuito!
— Vocês são loucos! - fez Mme. de Melo e Sousa, descendo também.
Ada Pereira, muito nervosa, amparou-se a Jacques. A discussão ia acalorada entre os sportsmen. Antônio, o chauffeur de Jorge assegurava que, se o patrão quisesse, mesmo com aquela carrosserie conduziria a máquina, dando distância ao adversário.
— Aposto um conto contra quinhentos mil-réis!
— Seja! - fez branco de cera o Jorge. - Mas sou eu quem dá um conto por duzentos mil-réis.
Era a cena habitual. As senhoras que nunca as tinham visto, estavam cheias de curiosidade. Ada Pereira, Alice e D. Argemira fixaram um momento o jovem motorista de Jorge, que era de fato bonito. A corrida era em cinco voltas e já ele colocara o 720-A-E em linha, airoso e a sorrir. Estavam a dois passos de Pavilhão Mourisco e todos esquecidos dos seus deveres, só tinham nervos para a aposta, porque salvo Teotônio, todos jogavam no automóvel de Jorge e no chauffeur tão confiante e tão forte.
Quando viu os carros prontos, Jorge, com a voz mudada, deu o sinal. As máquinas partiram num súbito arranco. Aquelas seis pessoas em traje de baile perdidas no deserto iluminado da Beira-Mar acompanhavam com o coração aos trancos, febris, nervosos, os rasgões veloces dos automóveis. O mundo não existia bem para eles. Na primeira passagem, o carro de Teotônio vinha à frente. Dois minutos depois, de novo passaram os dois carros, como raios. O de Jorge ia à frente.
— Ganhamos!
— Ganho! É certo.
— É agora!
— É agora!
Ficaram assim trepidando segundos que pareciam séculos. A poeira era como uma enorme nuvem que se tornava brilhante tal a iluminação da Avenida, onde ardiam num brilho de sol todos os candelabros elétricos.
— É agora! - repetiu num grito Alice.
Tinha ao longe a última volta. Era a reta final. Era o desespero. Era só quando os automóveis podiam dar toda força. Num ímpeto colossal esses elegantes viram as duas máquinas a toda. Ao mesmo tempo, partindo do Mourisco, em sentido contrário às duas máquinas, passou um automóvel. Os corações apertaram-se. Antes que qualquer dos presentes pudesse dar uma palavra, ouviu-se um tremendo fragor, todas as lâmpadas elétricas apagaram de súbito, enquanto na semi-sombra passava como uma tromba uma só máquina.
As mulheres gritaram loucas; os homens precipitaram-se. Era a quinhentos metros a máquina de Jorge estraçalhada. Para evitar o encontro com o outro automóvel dera de encontro a um dos candelabros, derrubando-o e quebrando-se. E sob a ruína, os ferros torcidos, as madeiras estaladas, as folhas recurvas, gemendo, com as pernas esmigalhadas e o rosto em sangue, Antônio, o jovem motorista, parecia morto.
Desastre chama desastre, diz a sabedoria popular; como todas as outras coisas populares, foi a sua origem um austero filósofo, uma individualidade superior. Quando pela primeira vez essa individualidade emitiu a frase lapidar, os que o cercavam deviam ter ficado pasmos com a revelação. Depois repetiram, e repetiram tanto através das épocas que verdade tão poderosa chega a parecer mentira, e que a própria natureza faz o possível para contradizê-la. Assim no tempo da tragédia grega os desastres sucediam-se aos desastres. Era preciso que as famílias fossem até muito infelizes para dar tantos desastres aos poetas. Já no tempo do romantismo, o desastre é o desastre sem conseqüências, e finalmente o desastre, nos últimos tempos literários acabou tendo um epilogo, tendo a obrigação quase de um epílogo alegre. É que não há mais como no passado, grandes desgraçados. Ninguém mais acredita senão na felicidade e a felicidade é pelo menos um pouco de quem nela acredita.
Jacques era fatalista. Toda gente é fatalista à falta de ser outra coisa. O desastre do automóvel pareceu-lhe uma continuação do desastre moral com Godofredo, e uma espécie de aviso da Providência.
— Pára! Vê por onde vais! A morte espera-te de emboscada no prazer desenfreado! - dizia com fatos a Providência traduzindo a linguagem simples de D. Malvina Pedreira, digna progenitora de Jacques.
E o jovem acordara cedo, depois de ter dormido poucas horas, num estado de excessiva excitação nervosa. Quantas sensações e quantos horrores na noite anterior! O corpo de Antônio, o sangue, o trabalho para evitar que a policia tomasse o nome das senhoras, o ataque de nervos de Ada Pereira, a recondução das senhoras de carro, porque não queriam mais automóveis - tudo era como o pesadelo hórrido a lhe dizer: previne-te! Como alguns meses antes, deitado naquela mesma cama, após uma recepção de D. Malvina, Jacques sentia o caminho andado. Caminhara, alheara-se de todo da família, largara as amarras, e por pouco que pensasse, via quanto ocultamente, como a maioria dos mortais, apenas para os seus botões, se enxovalhara. Que diriam os jornais? Pela primeira vez. sentiu a necessidade de opinião da imprensa. Pediu ao criado os jornais. A opinião era péssima. Os reporters, os jornalistas, os trabalhadores anônimos daquelas folhas, obrigados indiretamente a servir a casta, a que ele pertencia e que os desprezava, vingavam-se quando havia ocasião, sempre. Jacques engoliu notícias melodramáticas cheias de perversidades, de ódios, de insinuações, de insolências. Eles eram os "indolentes", "aqueles que acreditam a vida dos outros nada", uns pândegos sem alma", "refinados ignorantes do grand-ton", "criminosos vulgares que graças a uma situação ocasional abusavam". Todos os diários começavam por um verdadeiro artigo sobre a continuidade dos desastres e era nesse assunto geral, um apelo à policia, que se incrustavam tão agradáveis epítetos. A narrativa do desastre cada gazeta contava-a de modo inteiramente diverso, mas em todos era de fazer chorar, porque os jornais vinham transbordantes de uma piedade imensa pelo motorista, o humilde, o do povo, sacrificado. Jacques leu que Antônio seguira em estado desesperador para a Santa Casa, e que lá, ao recobrar os sentidos segundos antes de morrer, só tivera para Jorge de Araújo que o acompanhava esta frase extraordinária:
— Perdão, patrão...
O próprio Jacques ficou comovido. E ficaria mais se não constatasse que todos os diários davam os nomes dele e dos seus amigos por extenso, só errando decerto propositalmente, no de Sfrapini que passava a Stradini. Mas, se eles apareciam, as senhoras salvavam-se. E os jornais asseguravam-nas três cocottes das mais estadas nesse mundo de vício e perdição...
— Safa! - exclamou o jovem pondo-se de pé.
Deixou os jornais, foi tomar um banho frio, voltou ao quarto resolvido a sair sem ver os progenitores. Se ficasse era fatal uma grande cena, e depois da cena as visitas que viriam ver os efeitos dos jornais. Vestia-se nervoso quando o criado lhe trouxe duas cartas: uma do deputado vegetarista felicitando-o por ter escapado, outra de Alice. Esta era louca. A encantadora senhora culpava-se de ser a causa de tudo, tinha expressões tais de dor que um momento Jacques teve a ilusão de que também estava ferido, e terminava exigindo que ele fosse vê-la só, só, pelo menos um instante, no ninho na casa do barão. Estaria às duas horas. Queria vê-lo. Fizesse a vontade.
Jacques precisava desabafar e não queria ouvir o pai ou a mãe ao almoço. Acabou de vestir-se com o mesmo cuidado de sempre e saiu pela porta dos fundos, diante dos criados que sabedores do desastre, sorriam com simpatia e cumplicidade. Já não era cedo. Passava muito de uma hora. Perdera tempo com os gazeteiros. À porta teve tempo de receber da Malperle um cartão: "Que horror e que prazer sabê-lo salvo!". Então despachou o chacareiro com um agradecimento e outro bilhete para Lina Monteiro e seguiu.
Entretanto Maria, a pequena corista portuguesa, que entrava para o ensaio no seu teatro ouviu o comentário feito ao desastre. Os jornais tinham-lhe dado tais proporções que até no teatro o caso se lera. Entre algumas prendas de que não fazia uso Maria colocava a leitura. Como ouvisse o nome de Jacques ficou perturbada.
— Jacques? Estava no desastre?
— Sim! É o amigo do Sr. Jorge.
— Ferido?
— Não se sabe!
Ela perdeu inteiramente a cabeça. Era preciso saber. Correu ao ensaiador, pediu que lhe desse uma licença e sem esperar resposta, saiu, meteu-se num trem de praça, mandou tocar para casa de Jacques. Não sabia o que havia de fazer. Apenas sentia uma grande aflição, um grande desejo de ver são, sem ferimentos, o seu homenzinho. E se estivesse ferido iria ao quarto, seria enfermeira, a mãe de Jacques perdoaria... Depois de tamanho desastre só em casa é que poderia estar o rapaz... E no carro, ao trote dos magros cavalos, Maria chorava. Quando o cocheiro parou, não se moveu. Chegando à porta, vinha-lhe o medo de bater na casa honrada, de pôr o seu desejo ao lado do amor de mãe.
— Como deve estar aflita a senhora mãe dele...
E ficou dentro da carruagem ansiada, à espreita, de ver sair alguém, para pedir informações. Que fazer, Senhor dos Passos? Viu que chegavam de instante a instante criados, que chegavam mesmo senhoras e cavalheiros. A sua aflição aumentou. Afinal descobriu o jardineiro, que também entrava.
— O homem, é daí?
— Sim, menina.
— Como está o Sr. Jacques?
— Ele vai bem; saiu há de haver quase uma hora.
— Saiu?
— Palavrinha. Por esta luz...
Maria ficou meio aliviada. Onde estaria o rapaz no dia seguinte a um desastre? Fez o carro voltar. E não tinha nada! Ah! Pequeno de sorte! Como antes chorara, ela agora ria só dentro do carro, e o carro descia a Beira-Mar precisamente no ponto em que outrora chamavam o Flamengo. Maria viu a garçonnière. E de repente veio-lhe um desejo. Quem sabe? Fez parar o cocheiro, saltou, bateu. A princípio devagar. Depois com força. A vizinhança, que tinha em péssima conta o prédio, começou a aparecer vagamente, por trás das janelas, aqui e ali. Um rapaz no segundo andar de certo prédio que parecia destinado a jovens estudantes, sorria, com o pijama por cima da pele. Maria, a pobre mulherzinha, achou que devia continuar a bater. Noutra ocasião ela bateria o dia inteiro em vão. Naquela, porém, infelizmente, as duas almas que lá estavam, estavam muito sobressaltadas para não responder. Jacques não podia ver de cima, estando as janelas hermeticamente fechadas. Desceu à porta, receando qualquer coisa de horrível. Já não tinha segurança, e contava com tudo como se assistisse a seu drama de Shakespeare. Ia espiar pela fresta, enquanto Alice no alto da escada já imagina Arcanjo, a polícia, o fim; quando Maria, agindo apenas para se dar ares, sem certeza alguma, disse de fora:
— Abre, sou eu!
E só quando falou-se é que distintamente ouviu haver alguém por trás da porta. Disse então mais alto:
— Abre!
Jacques temia o escândalo. Voltou ao alto da escada, branco, a ver se encontrava um meio de salvação. Alice, à voz da mulher, compreendera tudo. Veio-lhe, com a certeza, de que não era Arcanjo, uma grande calma. E ao mesmo tempo um desprezo subitâneo por Jacques.
— Até aqui! Não respeitaste nem este lugar!
Jacques estava irritadíssimo - principalmente porque vindo-lhe a extensão da responsabilidade não sabia como resolver os casos melindrosos. Assim, rouquejou:
— Alice, deixa-te de cenas! É uma criatura que me persegue. Há muito tempo.
— E sabe a nossa casa!
— Depois conto, depois explico. Por enquanto, é preciso escapar.
— Não lhe abras a porta, então.
— Ela grita; é ordinária.
— Oh! Jacques. Jacques! Tu...
Olharam-se, ambos sentindo-se culpados, arrependendo-se de várias e muitas coisas que não deviam ter feito, com que já agora era impossível modificar. A voz de Alice tinha uma tal dose de horror que no seu estado de superexcitação, ele, pela primeira vez julgou que devia defender alguém. E com exagero. Seria como se fosse ele próprio.
— Não, Alice. Não há perigo. Estou com o azar mas por mim não sofres nada... Esconde-te. É preciso. Esconde-te. Quando ela subir, sais...
— Que vergonha!
— Ninguém sabe...
— E a vizinhança?
— Não! Não...
À porta, Maria começava a bater freneticamente. Jacques fez um gesto decidido a tomar uma desforra, desceu, descerrou a porta. Maria, que esquecera completamente a causa primeira da sua intempestiva visita, entrou pela abertura exígua como um foguete de bomba.
— Tens cá uma mulher, cão!
Não teve tempo de continuar. Ele lançava-lhe um murro aos queixos. Era para lhe cortar a palavra e para irritá-la. Trepou pois os degraus berrando:
— Covarde! Rufião! Tens sim! Essa desavergonhada vai ver o que é bom.
Jacques, louco de raiva, seguiu-a agarrando-lhe as saias, largando estas para procurar-lhe os pulsos. Ambos subiam aos trancos, erguendo-se, escorregando, loucos de raiva. Como uma ventania, vieram ao salão.
— Quem te autorizou a vir aqui, animal?
— Fomente-se! Vim porque quis. Onde está a perdida?...
— Mulher, não há ninguém! Não me desesperes...
— Veremos.
Ela debatia-se, ele não a podia conter. Continuavam aos safanões, de roldão, ela à frente, ele no seu rastro. No quarto de dormir, onde o barão fizera uma orgia de bons amores cépticos, quase rolaram. Ele puxava-a. Ela desvencilhava-se. Foram de tal forma até ao quarto de banho. Então Jacques que julgava Alice aí escondida e presa do imenso receio de uma catástrofe, agarrou-a pelo braço. Ela ferrou-lhe uma enorme dentada na mão. Deu-lhe com o braço livre. Ela tombou.
— Parto-lhe a cara à fúfia! - berrou.
E como movida por uma mola pôs-se de pé. Então ele atirou-se, e enquanto a mantinha apertando-lhe o pescoço, com a outra mão livre começou a esmurrá-la. Era uma fúria de extraconsciência. Esmurrava escolhendo os lugares onde não se vissem sinais, esmurrava a cabeça e esmurrando a pequena amorosa que soltava uns surdos gritos estrangulados esmurrava Godofredo e os seus insultos, esmurrava a má vontade do pai, esmurrava os deuses culpados do desastre do automóvel, esmurrava a fatalidade menos boa. Via roxo, via tudo lívido, e dava, e continuava a bater a pobre mulherzinha amorosa, como um desafogo.
Mas de repente parou, distendeu os dedos, e o corpo de Maria caiu no soalho, onde as cadeiras haviam rolado. Diante dele, Alice dos Santos, lívida, com um olhar de pavor sem limite, assistia a cena que jamais poderia imaginar, assistia como uma lição. Quando viu o corpo da pobre rapariga por terra, pendeu para ela com infinita piedade.
— Quase a matas! Pobre! É preciso chamar o médico. Que vergonha, Jacques! Bater uma mulher...
— Foi por tua causa...
— Toma o vidro de sais. Dá-lhe a cheirar. Oh! Jacques! Jacques! Nunca pensei...
Depois envolveu-se no espesso véu e desceu. Estava séria. Tremia. Esquecera despedir-se do jovem amante. Os seus dois grandes olhos pareciam ansiosos por ver para além do quadro horrível. Entreabriu a porta. Estava lá à espera o carro de Maria. Meteu-se nele rápida, e antes de chegar a casa, tão perto, pagou ao cocheiro todas as horas em que a outra lá estivera sofrendo por Jacques. Um pouco revoltada contra o destino, a linda Alice via um reverso da vida inteiramente desagradável, e sentia, o mal de ter ido ao lugar d'amor com tal ânsia que recebeu o bom marido com um abraço e chorando...
Jacques, entretanto, mais apalermado, ficara a fazer cheirar o vidro de sais a pequena corista. Ao cabo de certo tempo viu que era preciso alargar os vestidos da pobre rapariga. Então levou-a para a cama, desapertou-lhe a saia, o corpete, soprou-lhe um bochecho d'água no rosto. Depois, como visse, que ela respirava, ajoelhou-se à borda da cama, animou-a. Ela abria os olhos.
— Desculpa, foi sem querer... Estou meio louco. Desde ontem! Muito assustado, muito... Deu-me uma raiva de repente... Não havia ninguém... Hoje, nem vi a mamã... Foi de nervos que aqui entrei...
A rapariga soluçava baixo ao som da voz querida. Jacques tinha uma larga voz de barítono um pouco velada, e que lhe dava qualquer coisa acariciador.
— Que dores na cabeça meu filho! que dores... Olha que foi só por ti, só para te ver que vim... Meu Senhor dos Passos como vai ser agora!
E a custo, malaxada, contundida, mas desgraçadamente feliz, Maria segurava aquela larga mão que a batera e beijava-a devagar, chorando. Jacques para desculpar-se, beijou-a na boca, e como das outras vezes, mais que nas outras vezes, como nunca, eles caíram em pleno gozo, gozando profundamente...
A Jacques, porém, aquela conclusão das pancadas - tal era o estado seu de nervos - não conseguiu acalmar. Ficou tendido como um arco, e largando a pequena mulher falou-lhe com intimidade, pedindo conselho:
— Que achas, Maria? Devo continuar? Devo voltar a casa? Tu sabes toda minha vida. Acabaste sabendo...
Ela era bem portuguesa. Respeitava os pais. Tinha o sagrado respeito da família. Disse que era muito feio não ouvir os pais. E que ele deveria ir logo beijar a mão à mãe, por ter escapado do desastre. Fosse logo. Ela ficaria ainda um pouco deitada. E quando fosse noite, iria só, batendo a porta... Dizia essas coisas rindo tão docemente que no riso se via a lágrima. Era como um fim, uma despedida. Eles sentiam que estava acabado, e ela ia satisfeita, tendo levado a parte do sacrifício, mulher, mulher como Jacques não tivera outra.
O mancebo concertou o desalinho. Estava ainda mais triste. A excitação de dois dias afrouxava num imenso e vago pavor de tudo, da vida, da alegria, do amor. Disse-lhe beijando-a:
— Até logo.
Ela olhou-o longamente.
— Adeus.
E ficou só, chorando. Ele saiu devagar, tomou uma das ruas transversais que vão dar ao Largo do Machado. A tarde morria meio escura. Quando chegou à esquina, viu que o trânsito era interrompido por um grande enterro. Já ia um pouco longe o coche carregado de grinaldas e mais três carros cheios de flores. Mas o acompanhamento era enorme - um acompanhamento interminável, de automóveis com as capotas arriadas, as lanternas acesas e os motoristas de cabeça descoberta. Poucos automóveis deviam ter ficado na praça. Era - Jacques não teve um instante de dúvida - o enterro do Antônio. O rapaz era querido, os jornais haviam exagerado de tal modo o lado sentimental que aquela sociedade fazia a sua apoteose na apoteose do morto humilde. Jacques nervosíssimo parecia ver o motorista com os seus vinte anos, o seu riso, o corpo forte na farda cor de lontra. Ficou à espera que o cortejo passasse. Quase no fim viu num carro, vestido de preto Jorge de Araújo, e a seu lado, também de preto o grande cronista Godofredo de Alencar. Como o carro parasse um instante, Jacques foi até lá, irresistivelmente.
— O pobre Antônio! Que desgraça!
— É - fez Jorge. - Morreu duas horas depois. O Godofredo arranjou para que se não fizesse a autópsia. Era melhor acabar logo. Depois para que deformar mais o pobre rapaz?
E de repente, esse homem frio, esse homem de aço, enquanto Godofredo olhava para outro lado fingindo não ver Jacques, esse homem acostou-se soluçando.
O carro pusera-se em marcha. O mancebo, humilhado e crispado de desagrados ficou até o fim. Aquilo era tão solene que parecia culpá-lo Sentia sobre si uma imensa e vaga culpa, a que sentem quantos não expiam pequenas faltas talvez. Quando não havia mais um só carro e os tramways retomavam o trânsito meteu-se num, recolheu a casa, e como, ao entrar na casa de jantar, na semi-escuridão da tarde a morrer, visse D. Malvina só, teve um arranco. Caiu-lhe nos braços, sujo de uma porção de misérias, soluçando.
— Mamã! Mamã!
A anafada senhora esperara-o o dia inteiro para dizer ao menino coisas tremendas. Mas ao seu soluçante, abraço logo começou de chorar procurando beijá-lo como se ele fosse um petiz. Porque dá-se o caso que as mulheres também são mães.
— Não! Já disse. Não saio! Não estou em casa!
O desastre do automóvel com a repercussão que no primeiro momento lhe haviam dado os jornais, fizera a partida quase imediata de Jorge de Araújo e de Teotônio Filho para a Europa. Jacques, que ficara em casa como um convalescente recebera de Jorge um curto bilhete de despedida e nem fora ao embarque. Soube que no mesmo vapor seguia a Liana, a quem Arcanjo presenteara como um deputado vegetariano e rico pode presentear quando está farto de uma dama. Não respondeu a um só bilhete de Liana. Passava os dias a dormir, aborrecido, com medo de sair e chegara ao extremo de conversar longamente com D. Argemira.
Aquele desagradável acidente chocara-o muito. Para temperamentos como o seu, fetiches, de uma incultura completa e universal, o desastre primeiro de catástrofes é que assombra. Todo homem amado pelas mulheres tem um pouco de mulher na alma. Jacques sofrera mais com aquela desorganização da sua vida do que sofreria talvez com a morte de uma pessoa da família. É que de fato ela saltara a grande vala, no sport, no negócio, no amor. Recomeçar a mesma existência seria perigosíssimo e para tal faltava-lhe a coragem. Enquanto as coisas corriam bem era capaz de todas as audácias e conseqüentemente de todas as inconveniências. Desde que os horizontes se fechavam, voltava a criança, precisava de proteção, tinha um medo vago.
Precisamente dez dias depois da catástrofe é que no seu quarto, de pijama, Jacques dava aquela resposta ao criado que trouxera um bilhete de Lina Monteiro. Oh! Era preciso acabar todas as antigas. Essa rapariga era mesmo a caipora. Depois de a ela mostrar afeto é que seu pai brigara, que fizera aquilo com o dinheiro, que tivera o desastre... No fundo via que só reaveria a boa vontade do Gomes Pedreira se largasse de todo Lina. E começava por julgá-la o azar. De resto não mantinha com as outras senão a mesma recusa insolente. Deixava de responder. Talvez porque não se sentisse bem com a pena na mão. Mas as outras criaturas que lhe tinham prestado atenção vinham a sua casa; e só Lina não vinha...
Quinze dias depois dos acontecimentos, saiu à noite. Vira nos jornais que a companhia portuguesa despedia-se. Maria deixara a garçonnière em ordem e nunca mais dera sinal de vida. Foi por isso vê-la, foi mesmo à caixa. Era um espetáculo entre palmas. Ninguém o conhecia. Como a peça era revista, as coristas mudavam a cada passo de fato. Entretanto a Maria logo que o avistou veio a ele, puxou-o, deu-lhe um longo beijo.
— Foi por mim que vieste?
— Foi.
— Meu bom... Partimos amanhã cedo. Hoje dorme na pensão o velho. Sabes que ainda me dói a cabeça. Mau...
— Então... - fez ele humilhado porque nunca pedira.
— Chegaste tarde. Quando voltar...
Tristemente Jacques voltou a casa. No dia seguinte não saiu. Como não tinha o que fazer pegou num volume de literatura que rolava na copa. Era a história das aventuras de um polícia chamado Nick Carter. O estilo e a imaginação do autor encantaram o cérebro difícil do jovem elegante. Conseguiu com o copeiro os outros inumeráveis volumes. E então regalou-se. Como contasse a Arcanjo amigo da casa as suas impressões, Arcanjo prometeu-lhe outros agentes e ladrões célebres cujas falcatruas também a ele divertiam. Trouxe. D. Malvina estava assombrada. Via seu filho ler e disso "deu parte a Justino, esposo e pai".
De resto, ao passo que com a leitura policial Jacques começava a ficar inquieto com as prováveis conseqüências do seu recibo ao Gomide, era evidente que D. Malvina recorrera a Mme. de Melo e Sousa e a Alice e que as três, mãe, amiga e já não amante conspiravam a seu favor.
Como? Que arranjariam essas três senhoras? Nunca o papel com o qual o Gomide podia na melhor ocasião desfazer todas as suas esperanças. Desde que cometera uma incorreção temia e respeitava a opinião pública. Assim, uma noite na sua casa, chamou Arcanjo.
— Então, depois de Liana, nenhuma outra? - indagou baixo do parlamentar.
— Não. Nem sei como foi aquilo. Ela não era tão boa.
— Oh! Arcanjo.
— Também não quero dizer que me arrependa. Afinal sempre tive um lucro.
— Qual?
— Verificar que a carne e o champagne não me fazem mal. De resto o Godofredo diz que tive outro: saber que o esperanto já era falado na casa de Fanga.
E ria. Jacques não se conteve.
— E o Godofredo, como vai?
— Parece que maravilhosamente. O ministro da Agricultura presenteou-o com uma pérola rosa que pertenceu ao Grão-Duque Miguel, no dia do seu aniversário. E comprou uma casa, ao que consta, nas Laranjeiras. Você também não sai? Que história é essa? Creio que não vai passar a vida inteira em casa.
— Não. Espero as fibras...
— Que fibras? Ah! sim... Ainda não resolveste isso? Sempre me parecia.
— É com o presidente agora...
— Então tens que esperar...
Ele ficou frio. O presidente frio não assinaria. E o recibo do Gomide? Na mesma noite, D. Malvina disse-lhe:
— Sabes que esteve cá a Argemira? Falamos de ti. Precisas ir amanhã almoçar com ela.
Jacques sorriu e foi dormir. Estava mais gordo. Dormia muito.
Com efeito Jacques ao acordar recebeu de Argemira um daqueles irresistíveis bilhetes, que para esse adolescente guloso da vida e de fraco refletir produziam sempre efeito decisivo. Jacques que acabava da ducha e de se fazer friccionar pelo copeiro, para fazer a reação da noite espessa, sentiu-se logo desejado ao receber o bilhete, em papel malva, caracteres finos e sutis. Decerto, a sua Egéria, a sua querida Egéria ia aconselhar-lhe um novo bem. Vestiu-se com apuro. Perfumou-se. Um instante hesitou: devia levar a gravata da cor da camisa ou em destaque como alguns dandies? Essas preocupações assaltavam-lhe a mente, sempre que ia ver a deliciosa Argemira, curiosa como, segundo o barão, uma pequena marquesa do século XVIII. Atribuiu o caso apenas à possibilidade de lá encontrar corações apaixonados. Mas, com o tempo via que aquela senhora, mãe de um rapaz mais velho do que ele, positivamente não lhe desagradava. Era como uma tapeçaria antiga que atrai. Era como não podia dizer- qualquer coisa de instintivo, que a travessura da sua luxúria criança desejava experimentar, sem conseqüências. Por que não? Jacques contava com a visita, imaginando a surpresa. Partiu sem um fim seguro. Partia sempre assim. A premeditação nunca seria uma causa a mais para a condenação dos seus crimes. Mas verificou que conservava aquela boca de morango úmido no lábio glabro, o peito forte, o cabelo repartido em risca, um perfume de água-da-colônia e de sabonete d'alface, à inglesa.
Mme. de Melo e Sousa estava no seu pequeno salão de atmosfera leitosa, vestida de branco, ensaiando a meia voz uma romanza inglesa, gosto que trouxera de Londres - versos ocos e música de Tosti.
— Oh! o desaparecido!
Estendeu-lhe as duas mãos com as suas duas pérolas uma cor de oiro, outra cor-de-rosa, e ficou assim, um tempo sentada, tendo-o de pé.
— Então agora é preciso um bilhete? Não há meio de o ver. Sabe que recebi carta de Gladys. Manda-lhe da Suíça uma edelweiss.
Jacques teve vontade de perguntar o que vinha a ser uma edelweiss, mas conteve a pergunta noutra pergunta:
— E a senhora?
— Eu, meu filho, por aqui...
As mãos despegaram-se, ficaram a olhar-se. Nos olhos de Argemira havia aquele favilar d'oiro dos momentos em que a sua malícia surgia.
— Que belo rapaz, hem? Forte, belo! E sedutor.
— Por quem é, minha conselheira...
— Não diga isso alto. Não diga nada alto.
— Por quê?
— Porque só as mentiras se dizem alto.
E imediatamente começou a falar alto do automobilismo de Jorge que acabara mal, do Arcanjo, que já não era vegetarista - por quê? - dos rapazes da roda que enveredavam no sport.
— O Suzel tem uma amante bonita.
— E insuportável. Está apaixonada por ele.
— E Bruno Sá?
— Outra também insuportável pelo mesmo motivo.
— É então do exercício? Só você...
— Eu agora ninguém...
— Sério?
— Sem a senhora não me atiro a essas coisas.
Evidentemente era um bom rapaz. Com os seus cinqüenta anos em flor, conservados em perfumes, aquela mulher de espírito, sentia uma complacência agradável em estar ali com ele, em satisfazê-lo, bem desejo vago de dar-lhe biscoutos e dar-lhe com beijo a deixar-se beijar e ralhar depois. Que garoto e que querubim!
— Criança!
— A senhora nem sabe como manda em mim. É mais forte do que eu.
— E se eu pedisse que você subisse para Petrópolis?
— Já?
— Parto amanhã. Tenho uma coisa muito agradável.
— Quem é?
— Não digo senão lá.
— É a... Ada Pereira.
— Ora a Ada.
— Diga quem é.
— O menino sabe que tem vinte e três anos, que precisa ser homem, perder essas curiosidades malsãs.
— É discurso?
Ela riu.
— Vai?
— Pois vou. Há muito tempo que não me aborreço.
— Obrigada...
— Não, não é pela senhora, a senhora, D. Argemira, tão boa, tão agradável...
Tomou-lhe a mão, beijou-lhe a pele fina. A mão conservou-se no seu lábio quase apagado a roçar, o que o fez molhar os lábios, ao apertá-los naquele beijo sentiu, sem querer aspirar o perfume, estender o braço, envolver uma cintura. Mas, a ilustre dama que um momento, pendera, recusou, sempre a sorrir, sem demonstrar perceber até onde tinham ido as cousas. Só o seu semblante resplandecia como se tivesse cheirado uma essência de vida. Jacques pôs-se de pé.
— Então o que é?
— É a sua carreira.
— A minha?...
— Sim, meu querido. Arranjamos as coisas. A Alice trabalhou muito junto ao general, o presidente prometeu a seu pai, e fez o possível junto do meu velho amigo o chanceler.
— Então é?
— A diplomacia - fez a ilustre dama erguendo-se. - Preciso ir ver a minha casa lá de cima. Estarei pois em Petrópolis. Tudo depende de tino, da maneira por que te hás de apresentar ao grande ministro. Ele é muito pela mocidade - hélas! - no que eu acho que faz bem. Mas é também muito das primeiras impressões. Tens uma bela figura e sabes ser amável.
— Oh! D. Argemira.
— Com oito dias de trabalho estás nomeado.
Depois, séria:
— Precisas sair daqui, por várias razões e principalmente porque a boa educação não se pode completar num meio tão estreito. Depois que profissão melhor para um rapaz fino, não achas?
— Nunca pensara.
— O que quero, é que venhas a dar um grande diplomata.
Almoçaram finamente, como só na casa de D. Argemira era possível almoçar. Jacques beijou-lhe a mão agradecidíssimo, e de lá saiu depois das duas horas.
Ainda na dúvida, porém, viu que precisava consultar alguém, além das mulheres. Godofredo era um inimigo ainda. Jorge estava fora. Só o barão, aquele curioso tipo que assistia a vida e que decerto devia ter sofrido muito para estar assim sempre só. Jacques consultou o relógio e tomou um automóvel. O barão devia estar na sua partida no CIub da Avenida. Foi lá buscá-lo. E, o encontrou à porta na ocasião em que entrava. O barão teve uma larga exclamação e fê-lo subir.
— Então, que há?
— Venho pedir-lhe um conselho.
— Coisa terrível. Os conselhos servem apenas para não serem seguidos.
— Trata-se da minha carreira.
O barão deixou a sala de jogo e levou-o para uma outra sala escura em que ao fundo se via um bilhar deserto. Era nesse apropriadíssimo local que o club fazia as suas anuais exposições, de pintura. Os raros visitantes que se atrevessem poderiam levar uma opinião preconcebida. Era possível ver o bilhar e talvez algumas poltronas. Quadros é que não. Precisamente havia uma exposição. Os dois homens em atmosfera tão superior, não se aperceberam disso. O barão sentou-se.
— Então? Reaparece...
— Ao contrário.
— É paixão então.
— É enfado, barão, estou farto de mulheres...
O barão estirou as pernas, sorriu com melancolia.
— Não digas mais tais coisas, meu pequeno Jacques. As mulheres são ainda o que conservamos de melhor. Já viste alguém que não fosse feito por uma mulher? Já não digo fisicamente. Falo da formação moral, social. Já viste um homem que não devesse o que é a uma ou a várias mulheres?... Ingênua criança! Mas também todos esses enfados vão-te bem. És belo e és jovem. As que primeiro te perderão serão as próprias mulheres. E assim tal qual és, feito para o amor das mulheres, quando tiveres a minha idade e estas barbas brancas, serás tão feito de amor das mulheres, de tantas lágrimas, de tantos desgostos, de tantos enganos que serás um aborto de felicidade.
— Mas barão...
— Exagero? É para que não tenhas dúvidas.
— E eu tenho, barão. A mãe e D. Argemira parece que me fazem diplomata.
— Só?
— Como só?
— É que podiam fazer-te logo embaixador.
— Então devo aceitar?
— Mas claro. A apostar que não são apenas as duas a interessarem-se? Parte quanto antes. É uma profissão, é a única profissão que te serve. Teu pai começava a estar seriamente incomodado. Depois um homem não é homem senão depois de conhecer a civilização.
Jacques ficou contentíssimo quando via um empenho unânime pela sua felicidade. Deixou o caro barão só à tarde, e ao chegar a casa comunicou a D. Malvina, com alvoroço.
— Sigo para Petrópolis, amanhã, de manhã.
— Então aceitas?
— Era o que eu queria, mãezinha.
Como a partida era no dia seguinte pela manhã, D. Malvina deixou de ir à recepção da Muripinim, encardida relíquia da monarquia, para presidir a arrumação das malas. No outro dia cedo levou-o até a Estação da Gamboa. Jacques subia para Petrópolis como se nunca lá tivesse estado. D. Malvina abraçou-o.
— Pedi por ti, a Nossa Senhora.
E agitou o lenço quando o comboio partiu. Jacques estava comovido. No wagon, apenas ia o viajado marido de Luísa Frias, que tinha casa no alto da Serra. O homem cumprimentara Mme. Gomes Pedreira com respeito. Teve a delicadeza de não perguntar por que Jacques subia ainda no inverno. Era uma conversa fascinadora. Palrava de viagem, de sport, contava anedotas.
Quantas vezes tinha estado em Paris? Viajara toda a Europa, estivera em Carlsbad com Eduardo VII, viajara com algumas senhoras do tom, falara com a Princesa Clementina da Bélgica, conhecia os vícios das duquesas, fora a uma reunião literária da Princesa de Rohan, apertara a mão de Orville Wright, freqüentara o appartment de Santos Dumont, esbanjara dinheiro nas estações da Riviera onde, as paisagens são quase tão bonitas como os cromos que as reproduzem; Lord Asquith interrogara-o em pessoa sobre o país do café, e a Cleo de Merode conversara com ele sobre as pérolas da falecida Wanda de Boneza. Era um homem internacional.
— Linda paisagem!
— A Suíça, já viajou à Suíça?
— Não.
— E nunca atravessou os países balcânicos?
— Francamente...
— Pois tem perdido.
Apesar dessa superioridade de viajante, a sua conversa encantava. Oh! as anedotas sobre a Réjane, o Anatole e de Max, os vícios do de Max.
— Cousas! Cousas civilizadas!...
— E quando volta?
— Pois não sabe? Tenho uma comissão, devo ir, estou até de passagem comprada.
— E por que não parte?
— Ora por quê! A senhora minha mãe que adoeceu gravemente.
— Ah! sim... meus sentimentos.
— Está desenganada.
— Oh!
— Não há mesmo esperança alguma, de salvá-la. Na derradeira conferência, tive que à última hora pedir à companhia o favor de me adiar a passagem. Eu ia no Araguaia...
Deu um profundo suspiro entre raivoso e triste. Depois, desabafando:
— Está para morrer. Morre mesmo. Mas a agonia não acaba, e eu afinal perco, não acha? Porque é impossível embarcar com uma pessoa da família assim. Que diria a boca do mundo?
Jacques sorria admirado desse homem. E saltou em Petrópolis com uma infinita vontade de partir, de também seguir para a Europa.