Anexo:Imprimir/Comentários sobre a Guerra Gálica

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DEDICATÓRIA

À SUA MAJESTADE IMPERIAL

O SENHOR D. PEDRO II

Imperador Constitucional e defensor perpétuo do Brasil.

MUITO ALTO E MUITO

PODEROSO SENHOR:

Não tendo, quando empreendi esta minha tradução em português dos COMENTÁRIOS de Caio Julio César, um dos maiores homens e principais escritores da antiguidade, outro fim mais que o desejo de ser útil à mocidade brasileira que se aplica ao latim, facilitando-lhe a inteligência de um dos primeiros clássicos, por onde se começa nas aulas o estudo prático desta língua, e inspirando-lhe ao mesmo tempo o gosto do estudo comparado, das línguas, que tanto concorre para o pronto desenvolvimento das faculdades do espírito; a ninguém certamente, senão à Vossa Majestade Imperial, o primeiro interessado no progresso intelectual dos brasileiros, o maior protetor das letras entre nós e um dos príncipes mais instruídos deste século, devia eu por justo título dedicá-la.

Sirva-se Vossa Majestade Imperial aceitar a humilde oferta deste livro, o qual, se não é pelo seu valor real digno da proteção de tão elevado patrono, o é sem dúvida pelo fim com que foi escrito, e sincero desejo, de que se acha possuido o autor, de assim prestar tal qual serviço às letras pátrias. A boa sombra com que o há de cobrir o Nome Augusto de Vossa Majestade Imperial, será para o autor, agradecido à honra tão insigne, o maior galardão de seu trabalho, se algum por ele merece.

Sou com o mais profundo acatamento

De V.M.I.

Mui dedicado e reverente súdito

FRANCISCO SOTERO DOS REIS.

Empreendemos e estampamos esta nossa tradução dos Comentários de Caio Júlio César; primò, porque não nos consta que haja em português versão alguma deles, nem boa, nem má, que a dispense; secondò, porque um dos melhores meios de combater a corrupção do idioma, proveniente de péssimas traduções do francês, é seguramente fazer versões do latim, língua mãe do português, na qual se pode restaurar o estilo com bons fundamentos do dizer; terciò, porque julgamos prestar serviço à mocidade brasileira, facilitando-lhe a inteligência de um dos primeiros clássicos latinos, adotado geralmente nas aulas para uso dos principiantes.

A obra que passamos do latim para o pátrio idioma, foi escrita por uns dos maiores homens de toda a antiguidade conhecida, desde os tempos em que a história deixou de envolver-se em fábulas, as quais, por mais bem explanadas que sejam, rodeiam de trevas os fatos os mais simples, gerando confusão em nosso espírito.

Caio Júlio César, o primeiro ditador perpétuo de Roma, ou melhor, o primeiro imperador romano, depois que esta palavra começou a designar o soberano, foi grande nas armas, grande nas letras, grande na ciência de dirigir homens em geral, reunindo num e o mesmo sujeito três qualidades eminentes em qualquer época da civilização humana, das quais uma só basta para formar o grande homem, e cercá-lo de bem merecida celebridade no seu século e no porvir.

Como capitão só tem iguais, através de tantos séculos como os que se contam da civilização grega e romana até nós, em Alexandre Magno de Macedônia, e Napoleão Primeiro de França, sendo mui superior a Pompeu que lhe disputou o império e a celebridade, e a nenhum dos três pode ser equiparado em talentos militares, posto tivesse no seu tempo o nome de grande.

Como homem de letras foi um dos literatos mais abalizados de Roma no tempo que mais nela floresceram as letras latinas, rival de Cicero na oratória, e, no gênero de história a que se dedicou, um dos primeiros, pois ainda ninguém que se propusesse historiar os próprios feitos, o excedeu no decurso de tantos séculos. Pelo contrário, Xenofonte que lhe serviu de modelo na sua famosa "Retirada dos Dez Mil", foi, com ser historiador de grande mérito, por ele igualado, se não excedido.

Como político e estadista poucos se lhe assemelham. Não pretendemos certamente estabelecer comparações, que nem a diversidade dos tempos, nem a das circunstâncias comportam, mas é sabido que o império de Alexandre Magno se desmoronou por sua morte, assim como o de Napoleão Primeiro com sua queda, e o de César permaneceu muito séculos intacto. Do primeiro, dividido e retalhado entre os generais de Alexandre, apenas restou o domínio dos gregos na Ásia e no Egito até as conquistas dos romanos; do segundo, inteiramente dissolvido, apenas o influxo latente em França e na Itália, o qual, obrando surdamente até predominar, produziu o Império Francês do imperador Napoleão Terceiro, e, ultimamente, o reino de Itália do rei Victor Emanuel; o terceiro, porém, só se dividiu e desmoronou depois que Constantino transferiu a série da monarquia para Constantinopla, ou longos anos depois de sua fundação.

Que César foi o fundador do Império romano propriamente dito, ou do império com um chefe político e supremo, não há a menor dúvida; pois o domínio de Sila não foi senão o triunfo da aristocracia de que ele era chefe, sobre o democracia de que era chefe Mario, e não o domínio pessoal de um só como o de César; nem Sila faccionário, feroz e sanguinário, assim como Mario, é para ser em coisa alguma comparado com César.

A supremacia contrabalançada, exercida por Pompeu, assemelha-se muito mais à de Sila, que a que foi depois exercida por César e seus sucessores, porque Pompeu era simplesmente o chefe da aristocracia como Sila, e não o chefe da nação como hoje diríamos, e o foi em realidade César quando suplantou seu contendor, sujeitando a seu domínio todo o orbe romano.

O triunfo de César não foi o triunfo da democracia em que se ele apoiou para chegar ao poder supremo, mas o triunfo de um homem sobre as instituições que só ficaram existindo de nome; nem foi como chefe de partido que os conjurados da nobreza o apunhalaram no senado, mas como usurpador da soberania nacional, e destruidor da liberdade romana que acabou com o seu domínio.

O primeiro e principal distintivo da soberania pessoal entre os Imperadores romanos depois de César foi a TRIBUNITIA POTESTAS, ou o título de tribuno do povo, como para indicar que em nome e por delegação do povo obravam, subsistindo aparentemente todos os cargos da antiga república, que sob a influência e o bom querer dos mesmos eram distribuídos aos cidadãos romanos, assim como um fantasma de senado, mero instrumento dos caprichos imperiais.

Percorra-se a história de todas as idades desde os tempos mais remotos até nós, e o grande vulto de César, general, historiador e político, sobressairá sempre nela, não simplesmente como o de um homem extraordinário, mas como o de um prodígio de gênio!

Sob o modesto título de COMENTÁRIOS, ou de simples Memórias, deixou-nos o primeiro Imperador romano uma sucinta, bem delineada e ainda mais bem escrita história das guerras que empreendeu, rivalizando nela com os grandes modelos de Grécia e Roma. em pureza de linguagem, primor de estilo, veracidade, clareza, eloquência, sem desfigurar o seu trabalho com as fábulas que algures deturpam a história de Tito Livio, nem impregná-lo do fel que reçuma por vezes na de Tacito. E tanto é isso mais para admirar que compôs os seus Comentários durante uma vida agitadíssima, no meio dos acampamentos e trabalhos militares, ao estrepito das armas, de que se viu sempre cercado, não lhe consentindo sua morte prematura pôr-lhes a última lima, como sem dúvida o faria, se continuasse a viver mais alguns anos. Por isso desculpa têm assim as faltas, como os descuidos, que neles se notam, sendo que a mor parte dos últimos à ignorância dos copistas deve ainda ser atribuída.

Tais como chegaram até nós, com as feridas que lhes fez a mão da ignorância, e as lacunas ocasionadas pelos estragos do tempo, são os COMENTÁRIOS de César um dos principais monumentos históricos de toda a antiguidade clássica.

Quanto à parcialidade de que é taxado o autor quando historeia a Guerra Civil, por ser chefe do partido contrário ao de Pompeu, e antagonista deste, a sua elevada e perspicaz inteligência como que lhe serve de corretivo, fazendo com que não oculte ele circunstância alguma que lhe seja desfavorável, pelo menos em tudo que respeita à direção, eventualidades e peripécias da guerra, que era o que tinha principalmente em vista descrever, nem ajuíze de seu contendor senão com moderação, e isso só pelas consequências emanadas dos fatos.

Se os escritos são o transunto fiel do homem que os compôs, os COMENTÁRIOS de César dão-nos a justa medida das faculdades superiores e extraordinárias deste homem assombroso, manifestando sua cabal instrução em tudo que se podia saber no seu tempo, seus incomparáveis talentos militares que o colocavam acima de todos os generais contemporâneos e só lhe consentiam rivais no passado e no porvir, seu seguro e fino tato político que lhe aconselhava perdoar aos vencidos enquanto Pompeu e seus tenentes mandavam matar os prisioneiros que faziam, sua grandeza de alma superior aos acontecimentos e só igual à sua ambição, e a nobreza e generosidade de seu caráter que foi ocasião próxima de sua morte.

Todas essas admiráveis qualidades, porém, que o rodeavam de um prestígio irresistível a quanto se punha com ele em contato, foram manchadas por um grande crime, o de haver escravizado sua pátria, crime igual ao cometido por Napoleão I no princípio deste século.

César, na errada crença em que estavam os romanos de que era virtude matar o tirano ou o usurpador, foi punido de sua ambição com vinte e três punhaladas, que, assassinando o homem, não destruiram sua obra, filha da mesma corrupção de Roma, como demonstrou o reinado de seus sucessores, começando em seu sobrinho e herdeiro Otávio Augusto.

Napoleão I, em outros tempos e sob a ordem de outras ideias, o foi da sua pelo longo martírio do exílio de Santa Helena, que, trucidando moralmente o homem, não obstou a que sua dinastia fosse restabelecida no trono de França, e influísse nos destinos do mundo político.

Nem César nem Napoleão I hesitaram nunca em sacrificar milhões de homens aos cálculos de sua ambição, ou, simplesmente, de sua glória. Limitado à Europa, e por momentos ao Egito e à Síria, somente foi mais estreito o teatro do segundo que o do primeiro, que teve por área todo o orbe romano, ou as três partes do antigo continente até onde chegaram as águias de Roma.

Suposto fossem eles mui diversos em caráter, achamos todavia muito mais pontos de semelhança entre esses dois homens, um patrício e da mais alta aristocracia, outro da classe média, os quais sendo ambos particulares, conquistaram à força de gênio o poder supremo e tudo quanto se lhes pôs diante, que entre qualquer deles e Alexandre Magno, que nascendo rei, e na posse do soberano poder, foi um mero conquistador de povos e impérios, comparável, MUTATIS MUTANDIS, a Sesostris e a Ciro.

Ninguém há que, lendo com atenção os COMENTÁRIOS de César, não reconheça nele o primeiro romano a todos os respeitos, ou o mais digno do império do mundo que então se disputava.

Pompeu, o primeiro representante da aristocracia romana, um dos filhos mais mimosos da fortuna, hábil general sem dúvida, mas inferior a sua fama, caráter indefinido e medíocre, só resplandeceu e foi grande enquanto não teve de lutar com o gênio de César, diante do qual se eclipsou.

Quanto à corrupção atribuída a César pelas memórias do tempo, quem estuda seriamente o gênio insondável deste singular ambicioso, capaz de todas as virtudes, enxerga ainda nisso um meio político, de que ele lançou mão, para descer aos homens de uma sociedade gangrenada até a medula dos ossos, como era a República Romana no seu tempo, e dominá-los pelos seus mesmos vícios.

Deixando porém no seu pedestal o grande vulto do primeiro imperador romano, que há de ser sempre admirado enquanto houver memória de homens, venhamos à nossa atual tradução de seus inimitáveis COMENTÁRIOS, para dar a quem importa, a razão do que fizemos, ou não julgamos conveniente fazer.

Traduzimos só sete livros da Guerra Gaulesa conjuntamente com os três da Guerra Civil, e não os Comentários atribuídos a Hircio Pansa e à Ópio, porque nosso fim foi dar ao leitor o transunto fiel, ainda que apagado, do que é sem contradição obra de César, ou do que nos resta de sua eloquente pena, e não a história completa de todas as guerras por ele feitas e concluídas. Nos COMENTÁRIOS escritos de sua mão é que este extraordinário personagem sui generis, que parece crescer com os séculos, se nos mostra em toda a luz, e torna para nós um perfeito objeto de estudo.

Trabalhamos por fazer uma tradução no rigoroso sentido em que deve ser tomada esta palavra, e não uma imitação, e ainda menos uma paráfrase, porque entendemos que qualquer das duas últimas espécies de versão não é de ordinário senão um trivial expediente para fugir às dificuldades, que não raro apresenta o texto de obras compostas em língua morta diversa em sua estrutura de nossos atuais idiomas, e viciadas em alguns lugares por mão intrusa e profana. E se neste árduo empenho formos bem sucedidos a mor parte das vezes, dar-nos-emos por pagos de nosso trabalho; pois não nutrimos a louca vaidade de havê-lo sido todas, tendo de lutar com um dos modelos de estilo histórico da antiguidade clássica.

Sempre achamos sumamente ridículo nas traduções francesas de clássicos latinos a maneira por que figuram os nomes dos povos e lugares, trocando-os por outros modernos, que não são as mais das vezes exatamente os mesmos; o que tanto monta como em assuntos sérios e reais, todo trajado de casaca pantalonas, chapéu e luvas, a um antigo germano, gaulês ou celta, sarmata, etc., quando nos fictícios, ou em nossos teatros, tem o bom senso cuidado de apresentá-los caracterizados com suas vestes e ademanes usuais! Tratámos pois de evitar esta espécie de escolho, conservando os antigos nomes dos povos, cidades, montes, rios, ilhas, bosques e pondo em abreviadas notas os seus equivalentes modernos, unicamente para servir às necessidades da geografia e topografia comparadas. Assim, julgamos conservar a primitiva cor local, e o resaibo de antiguidade, que devem transpirar da versão de uma obra escrita cerca de dezenove séculos atrás, e que procuramos ainda corroborar com o emprego de alguns termos portugueses expressivos, que vão mal indevidamente caindo em desuso, como USANÇA, PODERIO, HONRARIA, HOSTE e outros. Podíamos também em vez de SEQUANOS, BOIOS, HEDUOS, etc., dizer como os modernos, SEQUANESESES, BOIESES, HEDUESES ou HEDUANOS, mas reputámos mais consentâneo ao que requeria a gravidade do assunto manter a forma primitiva de tais nomes, aportuguesando-lhes tão somente a terminação.

Esforçamo-nos por ser sempre precisos e concisos todas as vezes que o pudemos, sem prejuízo do sentido, para compensar com estas virtudes a constante harmonia e consonância do latim, espécie de língua musical, mui diversa neste ponto dos idiomas que falamos hoje, mais próprios para exprimir o movimento e rapidez que a majestade e cadência sustentada dos sons, as quais, quando empregadas a propósito pelos oradores romanos, faziam romper em aplausos o mesmo povo ignorante.

Assim, por exemplo, os verbos que vem ordinariamente no original colocados no pretérito perfeito por causa da harmonia e consonância das respetivas terminações os pusemos nós na tradução as mais das vezes no presente, para dar a precisa rapidez à narração histórica, como em casos tais praticam os nossos bons autores.

Não poupamos entretanto diligência para corresponder no português à harmonia do latim, empregando com preferência, quanto à sintaxe das proposições, a ordem inversa mais análoga à indole da língua que a direta, e adotando, quanto à das palavras, a mais ajustada colocação de complementos dos sujeitos e atributos, que nos foi possível combinar.

No que, porém, respeita à versão do pensamento, e expressão natural ou figurada, nunca achamos menos a língua portuguesa, filha legítima da latina, tanto na estrutura das vozes, como em muitas maneiras de dizer análogas e até idênticas. Assim, se nesta parte se notarem faltas na tradução, a nós unicamente nos devem ser atribuídas, e não ao nosso belo idioma que é um dos mais ricos e abundantes, quer em variedade de construções e idiotismos, quer em cópia da termos expressivos, sonoros e acomodados a todo gênero de assuntos.

Uma das grandes dificuldades das versões do latim para os modernos idiomas é certamente a passagem dos longos discursos indiretos, a que se prestam admiravelmente os infinitivos latinos, dependentes pela mor parte ou de verbos do modo finito ocultos, ou ainda de verbos desse modo e simples substantivos claros, que contenham em si a força dos verbos, DIZER, EXPOR, ANUNCIAR, ou outros análogos, mas julgamos havê-la superado auxiliados com as variadas construções do português, como emprego de infinitivos pessoais, elipses da conjunção QUE, e idiotismos equivalentes aos latinos.

Oxalá que este ensaio que fazemos com a versão dos COMENTÁRIOS de César, superior por ventura às nossas forças, sirva de estímulo aos professores e literatos brasileiros e portugueses para nos enriqueceram com boas traduções do latim e grego, de que é pobríssima a literatura portuguesa, base e parte essencial de nossa nascente literatura.

É engano manifesto supor que as traduções, as dignas deste nome entende-se, são trabalhos meramente secundários, impróprios para ocupar os bons engenhos, e sem influência na literatura de qualquer país, ou que esta só deve constar de obras originais. Há traduções que valem bem excelentes obras originais, e são mui superiores às medíocres, em pureza de linguagem e perfeição de estilo. Tais são, por exemplo, do latim — a tradução ou paráfrase dos Salmos de David pelo padre Antônio Pereira de Souza Caldas; — a tradução de diversas Metamorfoses de Ovidio por Bocage; — a continuação da tradução das mesmas metamorfoses pelo distinto poeta, A. Feliciano de Castilho; — a tradução das obras completas de Virgílio pelo nosso ilustre comprovinciano, Odorico Mendes; — a tradução DE REBUS EMMANUELIS do bispo Jeronimo Osório pelo padre Francisco Manoel do Nascimento; — a tradução do primeiro livro da História de Tito Livio por Barreto Feio; do francês, a tradução dos Mártires de Chateaubriand pelo padre Francisco Manoel do Nascimento; — a tradução da Atalia de Racine pelo padre Francisco José Freire; — as traduções dos Jardins de Delille e das Plantas de Castel por Bocage.

Em traduções como essas que apontámos, iguais em beleza de estilo às melhores obras originais, haverá sempre muito que aprender para os amantes do pátrio idioma e da boa literatura.

A paráfrase dos SALMOS é uma obra prima, superior em rasgos poéticos e inimitável perfeição de estilo a quantas paráfrases de Salmos temos lido em outras línguas, e tão magnífica que eleva o padre Souza Caldas à categoria de um dos primeiros líricos modernos.

A tradução dos MÁRTIRES é um riquíssimo tesouro de linguagem, estilo poético e poesia imitativa, e tão caudal, que, depois dos imortais LUSÍADAS, é por ventura o livro em que o estilo épico se levanta mais alto na língua portuguesa.

Temos lido em outras línguas, algumas traduções das METAMORFOSES mas nenhuma das que vimos, reproduziu ainda as Fábulas de Ovidio com tanta galhardia, graça, naturalidade e harmonia, como a de Bocage. É pena que tão insígne tradutor não nos deixasse mais composições deste gênero, em que primava.

A continuação da tradução das METAMORFOSES por Castilho não é feita com gosto menos apurado, nem em versos menos harmoniosos e naturais, que a de Bocage, seu modelo.

Da tradução das obras completas de Virgílio, a parte que compreende a ENEIDA principalmente, pode passar por uma obra clássica, e nada tem que invejar às boas traduções deste poema feitas em outras línguas.

Suposto seja a literatura portuguesa mui pobre de boas traduções, cumpre, todavia, notar, que essas poucas boas que existem, ou são iguais ou superiores a quanto há de melhor neste gênero em outras línguas; pois nada conhecemos de comparável em língua viva à admirável paráfrase dos SALMOS e à riquíssima tradução dos MÁRTIRES, a não ser a soberba tradução ou imitação do OSSIAN de Macpherson feita em italiano pelo abade Cesaroti.

Nenhum desses insignes tradutores que citamos como outros tantos clássicos, e em cujo número figuram poetas de primeira ordem, julgou degradar-se da justa celebridade que adquiriu por suas composições originais, dando-nos em português, enriquecidas com todos os donaires e galas da língua, as melhores obras de outros engenhos.

Os franceses que, de ordinário, tomamos por modelos de bom gosto em tudo, e cuja língua não é tão própria para verter do latim, como o português, têm nada obstante enriquecido sua literatura, uma das mais ricas em obras originais, com muitas e boas traduções, paráfrases e imitações dos autores gregos e latinos, sem se julgarem decaídos da nomeada e glória de literatos, porque transladam o melhor da literatura clássica para a sua, que com isso mais se opulenta e apura.

Se houvéssemos feito outro tanto, teríamos de certo criado um poderoso corretivo contra os grosseiros e bárbaros galicismos, que nos vão todos os dias introduzindo na língua as detestáveis traduções do francês feitas por gente ignorante, e são um triste documento de quanto as traduções podem influir na literatura, ou de sua grande importância literária.

O desejo de concorrermos com o nosso fraco contingente para inspirar à mocidade brasileira o gosto do estudo comparado das línguas, que não consiste só na teoria, mas também, e especialmente na prática, foi, para bem dizer, o principal motivo que nos impeliu a empreender, depois da publicação das POSTILAS DE GRAMÁTICA GERAL APLICADA À LÍNGUA PORTUGUESA, este novo e mais volumoso trabalho, que, se não corresponder a seu fim por insuficiência nossa, ao menos não será de todo infrutífero para os principiantes no latim, atenta a falta absoluta que se experimenta em português de uma tradução dos COMENTÁRIOS de César.

Para facilitar o estudo a que aludimos, tivemos o cuidado de estampar o texto latino ao lado da tradução portuguesa, poupando assim ao leitor o trabalho de folhear outro livro para confrontar a segunda com o primeiro. Quanto à edição do texto, seguimos geralmente com leve diferença na ortografia a edição feita em Leipzig por Francisco Vehler no ano de 1885, por nos parecer a melhor de todas quantas edições dos Comentários de César consultamos.

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Argumento

Descrição de GÁLIA — c. I — Tentam os helvécios invadi-la mas são derrotados por César em duas batalhas e os restantes compelidos a voltar à patria, donde tinham saído — c. 2-29 — Queixam-se os gauleses a César de Ariovisto, rei dos germanos, que ocupava o território dos Sequanos. Manda César embaixadores a Ariovisto para compor as coisas, mas em vão. c. 30-36. Marcha contra ele com as tropas a princípio desanimadas, depois alvoroçadas por exortação sua. Conferenciam os chefes dos dois campos, mas sem resultado algum. Recorre-se, por fim, à fortuna das armas, e recebendo grande perda, fogem os germanos da Gália c. 37-54.

A Gália está toda dividida em três partes, das quais uma é habitada pelos belgas, a outra pelos aquitanios, a terceira pelos que na língua deles se chamam celtas, na nossa gauleses. Diferem todos esses povos, uns dos outros, na língua, nos costumes, e nas leis. Extrema os gauleses dos aquitanios o rio Garona; dos belgas, o Mátrona[1] e o Séquana[2]. De todos eles são os belgas os mais fortes, por isso mesmo que estão mais longe da cultura e polícia da província romana, e não vão lá a miúde mercadores, nem lhes levam coisa que lhes enerve o vigor; e vizinham com os germanos[3], que habitam além do Rim, e com quem andam continuamente em guerra. Por esta mesma causa excedem também os helvecios[4] em valor aos mais gauleses; pois contendem com os germanos em refregas quase quotidianas, quando ou os repelem de suas fronteiras, ou nas próprias fronteiras desses fazem a guerra, A parte ocupada pelos gauleses tem princípio no rio Rodano; limite, no Garona, no Oceano, e nas fronteiras dos belgas; toca também no Rim pelo lado dos sequanos[5] e dos helvecios; e inclina ao setentrião. Os belgas[6] começam nas extremas fronteiras da Gália; estendem-se até a parte inferior do Rim; e olham para o setentrião e o sol nascente. A Aquitania extende-se do rio Garona aos montes Pirineus e à parte do Oceano que beija a Espanha e olha por entre o ocaso do sol e o setentrião.

Foi Orgetorix o maior potentado entre os helvecios por sua linhagem e riquezas. Levado da ambição de reinar, fez uma conjuração da nobreza, no consulado de Marco Messala e Marco Pisão, e persuadiu à sua cidade[7] que saísse do país com todas as forças, dizendo ser facílimo assenhorearem-se os helvecios do império das Gálias, visto como em valor excediam a todos os mais gauleses. E persuadiu-lho tanto mais facilmente, que de todos os lados se vêm os helvecios estreitos[8] pela natureza do lugar; de uma parte, pelo Rim, mui largo e profundo rio, que os extrema dos germanos; de outra, pelo Jura, monte altíssimo, que se interpõe entre eles e os sequanos; de outra enfim, pelo lago Lemano[9] e rio Rodano, que deles extrema a nossa província. Originava-se daí poderem estender-se menos, e menos facilmente fazer guerra aos vizinhos; o que, para gente tão belicosa, era ocasião de grande mágua. Atentando pois, no seu tão avultado número, e na tão transcendente glória de seus feitos militares, reputavam acanhado seu território, que se extendia duzentos e sessenta mil passos em comprimento e cento e oitenta mil em largura.

Compenetrados disto, e movidos da autoridade de Orgetorix, resolveram aprestar o que respeitava à emigração, comprando quanto mais bestas e carros, fazendo quanto mais sementeiras para não faltar pão na jornada, e estabelecendo paz e amizade com as cidades[10] vizinhas. Assentando bastar-lhes para isto um biênio, confirmam por lei a emigração para o terceiro ano. A levá-lo a efeito designa-se Orgetorix que se encarrega da negociação com as cidades vizinhas. Partido neste pressuposto dentre os seus, a Castico, filho de Catamantaledes, sequano de nação, cujo pai fora rei dos sequanos muitos anos, e honrado com o título de amigo pelo Senado do povo romano, persuade assuma na sua cidade a realeza dantes exercida por seu pai; também a Dunorix, heduo[11] de nação, irmão de Diviciaco, o maior potentado então entre os seus, e mui popular, persuade tente o mesmo, dando-lhe sua filha em casamento. Demonstra-lhes ser mui fácil realizar a empresa, sendo ele rei dos helvecios que ninguém contestava serem os mais poderosos dos gauleses, assegurando-os de que com seus cabedais e exércitos lhes havia conciliar a realeza a eles. Induzidos por este discurso, dão promessa e juramento entre si, esperando poder, com a usurpação da soberania, assenhorear-se da Gália toda por meio dos três mais poderosos e valentes povos dela.

Denunciado aos helvécios, obrigam-no eles, conforme a usança, a defender-se preso: condenado, era a pena ser queimado vivo. No dia designado para a defesa, faz Orgetorix cercar o tribunal de todos os seus até dez mil, bem como de grande número de clientes e devedores, e por eles exime-se violentamente da obrigação de responder em juizo. Pretendendo a cidade indignada sustentar o seu direito pelas armas, e apelidando para isso os magistrados multidão de homens dos campos, morre neste meio tempo Orgetorix não sem suspeita, na opinião dos compatriotas, de se haver dado morte a si.

Depois da morte dele resolvem-se nada obstante os helvecios a emigrar, como tinham assentado. Quando se julgam para isso aparelhados, põem fogo a todas as suas cidades em número de doze, as suas aldeias no de quatrocentas, aos mais edifícios particulares, e a todo o trigo que não haviam de levar consigo, para que, tirada a esperança de regresso à patria, se achassem mais hábeis a arrostar todo gênero de perigos, provendo-se cada um de farinha e vitualhas para três meses. Aos rauracos[12], tulingos[13] e latobrigos[14], vizinhos seus, persuadem que, queimadas suas cidades e aldeias, emigrem conjuntamente com eles; e aos boios que tendo passado o Rim, e invadido o território norico[15], conquistaram Noreia, associam-nos a si como aliados.

Havia somente dois caminhos, pelos quais podiam sair de casa[16]; um através dos sequanos[17], estreito e difícil, por entre o monte Jura e o rio Ródano, por onde mal passariam carros um a um; ficava-lhe porém à cavaleiro o monte altíssimo, em modo que dos desfiladeiros podiam mui poucos embargar-lhes o passo: o outro pela nossa província, muito mais fácil e expedito, pois que, por entre as fronteiras dos helvecios e as dos alobroges[18] de pouco pacificados, corre o Ródano que em alguns lugares se vadeia. Extrema cidade dos alobroges e vizinha às fronteiras dos helvecios é Genebra que por uma ponte a estes se liga. Aos alobroges, por que ainda não pareciam bem dispostos em favor dos romanos, supunham ou haver de mover ou forçar a lhes concederem passagem por suas terras, Aparelhado tudo para a partida, designam o dia em que se haviam de reunir todos na margem do Rodano. Era esse o quinto antes das Calendas de abril (28 de março), sendo cônsules Lucio, Pisão e Aulo Gabinio.

Comunicado a César o intentarem eles fazer passagem pela nossa província, dá-se pressa a partir de Roma, e, encaminhando-se à grandes jornadas para a Gália ulterior, chega a Genebra. Ordena as maiores levas de soldados pela província toda, porque só havia nela uma legião; e manda cortar a ponte de Genebra. Sabedores da chegada dele, deputam-lhe os helvecios os mais nobres da cidade, a cuja frente vinham Nameio e Verucloecio com esta embaixada: "Que tencionavam passar pela província sem fazer mal, pois nenhum outro caminho tinham, e lhe pediam o permitisse de bom grado." César, que tinha em lembrança haverem os helvecios morto ao cônsul Lucio Cassio, desbaratado e feito passar por baixo de jugo o seu exército, não vinha na permissão; nem tão pouco acreditava que forças hostis se abstivessem de, em sua passagem pela província, ofender e fazer mal. Contudo, para dar espaço a se reunirem as levas que ordenara, respondeu aos embaixadores que tomaria tempo para deliberar, e viessam pela resposta nos idos de abril (a 13 desse mês).

Entrementes, com a legião que consigo tinha e as levas chegadas da província, desde o lago Lemano por onde corre o Rodano, té o monte Jura, que extrema os sequanos dos helvecios, levanta em espaço de dezenove mil passos uma muralha de dezeseis pés de alto, guarnecida de um fosso. Concluída a obra, dispõe por ela presídios em castelos fortificados, para mais facilmente poder tolher-lhes o passo, se, seu mau grado dele, tentassem passar. Quando chegou o dia aprazado aos embaixadores, e voltaram a saber da resposta, declarou-lhes formalmente que, segundo o costume e exemplo do povo romano, a ninguém podia conceder passagem pela província, acrescentando que, caso tentassem fazê-lo por força, estava aparelhado para vedar-lho. Decaídos desta esperança, fazem os helvecios diversas tentativas para romper, uns em canoas unidas e jangadas fabricadas em grande número, outros pelos vaus do Rodano, onde a profundidade do rio é menor, ora de dia e mais vezes de noite; repelidos, porém, quer pela resistencia da fortificação, quer pelas armas e bravura dos soldados, desistem por fim da empresa.

Restava o caminho através dos sequanos, por onde não podiam, mau grado destes, passar em razão dos desfiladeiros. Não podendo obter por si o consenso dos sequanos, enviam embaixadores ao heduo Dunorix, para que, por intercessão sua, lho alcance deles. Era Dunorix mui acreditado com os sequanos por sua largueza e popularidade, e amigo dos helvecios, porque tinha casado com a filha de Orgetorix dessa cidade, e ambicionando a realeza entre os seus favorecia empresas arriscadas, para ter quanto mais cidades ligadas a si por benefícios, Encarrega-se, pois, da negociação, e alcança dos sequanos permissão para passarem os helvecios pelas fronteiras deles[19], fazendo com que se dêm reféns reciprocamente: os sequanos, para que aos helvecios não tolham o passo; os helvecios, para que passem sem fazer mal, nem ofender.

Comunicado a César o tencionarem os helvecios fazer passagem pelas fronteiras dos sequanos e heduos[20] para as dos santones[21], que não distam muito dos tolosates[22] cidade situada na província, entendia que, se tal acontecesse, havia de ser com grande perigo do sossego da província, que teria por vizinha em campos sumamente ubertosos a essa gente belicosa e inimiga do povo romano. Assim, prepondo o seu lugar tenente Tito Labieno à fortificação que fizera, parte para a Itália a toda a pressa, alista ali duas legiões, tira de seus quartéis mais três que invernavam nos arredores de Aquileia, e com estas cinco legiões marcha para a Gália pelos Alpes, caminho mais curto. Aí tentam os centrones[23] graiocelos[24], e caturiges[25] embargar o passo ao exército, ocupadas as alturas. Depois de os rechaçar em muitos recontros, de Ocelo[26] que é o extremo da província citerior, chega com sete dias de marcha às fronteiras dos voconcios[27] na província ulterior; daí abala com o exército para as dos alobroges; dos alobroges para os segusiavos[28] que são os primeiros além do Rodano ao sair da província.

Já haviam os helvecios transposto as gargantas e fronteiras[29] dos sequanos, e chegados às dos heduos devastavam-lhes os campos. Não podendo defender-se a si e seus haveres, mandam os heduos embaixadores a César implorar-lhe auxílio nestes termos: "Que eles sempre tinham servido ao povo romano de maneira que, sendo quase expectador o nosso exército, não deviam ser seus campos talados, seus filhos cativados, suas cidades conquistadas." Ao mesmo tempo os heduos ambarros, amigos e consangüíneos dos heduos, fazem a César sabedor que eles, despovoada a campanha, dificilmente repeliriam das cidades a força dos inimigos. Da mesma forma os alobroges, que tinham aldeias e possessões além do Rodano, fugindo buscam amparo em César, demonstrando que, além do solo do terreno, nada mais lhes resta. Comovido com tais estragos, não espera César que, consumidas todas as fortunas dos aliados, penetrem os helvecios até os santones.

É o Arar[30] um rio, que pelas fronteiras dos heduos e sequanos se dirige o Rodano com placidez tal, que não se pode distinguir com a vista para qual das duas partes corre: passavam-no os helvecios em jangadas e pontes de barcas. Sabedor pelos exploradores de terem eles já passado três partes das tropas além deste rio, e testar quase a quarta aquém deles, César, partindo dos arraiais na terceira vela da noite com três legiões, alcança aos que ainda não haviam transposto o rio; e atacando-os de improviso, quando embaraçados e desprevenidos, faz neles grande mortandade, fugindo e acolhendo-se o restante aos vizinhos bosques. Chamava-se Tigurino[31] este cantão, sendo que toda a cidade Helvecia em quatro cantões se acha dividida. Este mesmo, o único que saira da pátria em tempo de nossos país, havia morto o cônsul Lucio Cassio, e feito passar por baixo de jugo o seu exército. Assim ou fosse caso, ou providência dos deuses imortais, a parte da cidade Helvecia que ocasionou insígne calamidade ao povo romano, foi também a primeira a sofrer o castigo. Nisto não só vingou César a pública ofensa, mas ainda a particular, porque na mesma batalha em que mataram a Cassio, haviam também os tigurinos morto ao seu lugar tenente Lucio Pisão, avô de Lucio Pisão, sogro dele, César.

Para poder alcançar as restantes tropas dos helvecios, manda, depois desta batalha, fazer uma ponte no Arar, e por ela passa o exército. Abalados com tão repentina vinda, vendo fizera César num dia o que mal tinham eles conseguido em vinte, o passar o rio, enviam-lhe os helvecios embaixadores, a cuja frente se notava Divicão, antigo caudilho seu na guerra contra Cassio. Falou ele a César nesta substância: "Que, se o povo romano fizesse com os helvecios paz e amizade, haviam os helvecios de ir para onde, e permanecer aonde o quisesse César; mas, se persistisse em guerreá-los, tivesse em lembrança o antigo desastre do povo romano, e o valor dos helvecios — Por haver de improviso atacado um cantão, quando os que tinham passado o rio não podiam socorrer os seus, nem se ensoberbecesse ele tanto, nem os desprezasse a eles, que mais haviam aprendido de seus passados a combater com denodo, que a armar ciladas e traições — Não fosse, pois, ocasião para que o lugar em que haviam feito alto, servisse de monumento no porvir, tomando nome da calamidade dos romanos e destruição de seu exército."

A isto respondeu César: "Que não lhe restava a menor dúvida, porque conservava muito em lembrança o que mencionavam os helvecios, e tanto mais, quanto menos causa dera a tal o povo romano, que, se tivesse consciência de havê-los ofendido, facilmente se acautelaria; — fora porém enganado, porisso mesmo que, não tendo praticado coisa de que se houvesse de arrecear, não julgava dever temer sem fundamënto — Mas, ainda quando quisesse esquecer a antiga ofensa, podia também apagar da memória as recentes, de tentarem passar a força pela nossa província, e devastarem o território aos heduos, ambarros e alobroges? — Quanto a se gloriarem tão insolentemente de sua vitória, e admirarem de haver ele por tanto tempo suportado a ofensa impunemente: que os deuses imortais, para ser mais dolorosa a mudança de fortuna aos homens, costumavam às vezes conceder aos maus, que queriam castigar, maior soma de felicidades e impunidade mais duradoura; que, nada obstante, se lhe dessem reféns para fiança de que haviam de cumprir o prometido, aos heduos satisfação das ofensas a eles e seus aliados feitas, e igualmente satisfação aos alobroges, ele faria com eles paz e amizade." Divicão replicou: "Que os helvecios tinham aprendido de seus passados, não a dar, mas a receber reféns, como bem o sabia o povo romano." E com isto retirou-se.

No seguinte dia levantam campo. Faz César outro tanto; e para observar a marcha do inimigo, manda diante toda cavalaria, havida da província, dos heduos e seus aliados, em número de quatro mil homens — Pica esta com demasiado ardor a retaguarda inimiga, e travando combate com a cavalaria dos helvecios em lugar desvantajoso, caem poucos dos nossos. Ensoberbecidos por terem com quinhentos de cavalo rechaçado tamanha força de cavalaria, entram os helvecios a fazer-nos rosto mais desassombradamente, provocando muitas vezes com sua retaguarda aos nossos da vanguarda, Vedava César aos seus o pelejar, contentando-se por então com tolher ao inimigo a possibilidade de rapinar, forragear e despovoar a campanha. Assim marcharam cerca de quinze dias, não medeiando mais de seis mil passos entre a retaguarda do inimigo e a nossa vanguarda.

No entanto, todos os dias requeria César aos heduos o trigo que tinham solenemente prometido; pois, achando-se a Gália, como antes se disse, situada sob o setentrião, não só não estavam maduras as messes por amor do frio, mas nem ainda abundava assás forragem nos campos. Do trigo, porém, que fazia transportar em barcos pelo Arar, não podia ele utilizar-se, por haverem os helvecios, de quem se não queria apartar, desviado a marcha do Arar. Remetiam-no os heduos de dia para dia; o trigo, segundo eles, estava-se aprontando, transportando, vinha chegando. Vendo tamanha demora, e achar-se iminente o dia em que convinha medir trigo aos soldados, convoca os principais gauleses, dos quais contava grande número no seu campo, e entre esses a Divicaco e Lisco que exercia o cargo de vergobreto, magistratura suprema e anual, que tem sobre os seus poder de vida e morte; acusa-os gravemente, porque, não podendo comprar-se, nem tão pouco colher-se nos campos, o não socorriam com trigo em ocasião tão urgente, tão próximos do inimigo, quando principalmente movido em grande parte pelas súplicas deles é que empreendeu a guerra; e queixa-se amargamente de estar sendo abandonado.

Abalado com este discurso de César, expõe Lisco o que antes calara: "Que havia alguns particulares que por sua grande autoridade com o povo tinham mais poder, que os mesmos magistrados; e esses tais com discursos sediciosos despersuadiam a multidão de concorrer com trigo, dizendo que, uma vez que não podiam ser senhores da Gália, deviam os heduos preferir aos dos romanos o jugo dos gauleses, não duvidando que, vencedores dos helvecios, não houvessem os romanos de extorquir aos heduos a liberdade conjuntamente com o resto da Gália; — que pelos mesmos que não tinha força para coibir, era o inimigo informado de nossos planos e quanto se passava nos arraiais; — e só ele sabia com que risco, obrigado da necessidade, comunicava isto a César, e por isso guardara silêncio, enquanto lhe fora possível."

Bem via César ser por este discurso de Lisco indicado Dunorix, irmão de Diviciaco; não querendo, porém, que isto se aventasse em presença de muitos, despede a assembléia à pressa e retendo a Lisco, inquire dele, particularmente, o que dissera na reunião. Fala este mais livre e desassombradamente. Informa-se secretamente de outros e acha conforme a verdade:

"Ser Dunorix sumamente audaz, mui acreditado com o povo por sua liberalidade, desejoso de nova ordem de coisas, e muitos anos arrematante por baixo preço das portagens e mais rendas dos heduos, porque licitando ele, ninguém mais ousava fazê-lo, havendo com isso não só acrescentado sua fortuna particular, mas ainda adquirindo imensos cabedais para despender em larguezas e acercar-se sempre de grande força de cavalaria sustentada a sua custa; — ser mui poderoso assim entre os seus, como nas vizinhas cidades, e tanto que casou a mãe entre os bituriges[32] com o maior potentado dali[33], a si com mulher helvecia, e a irmã por parte de mãe e parentes em outras cidades; — mui afeiçoado aos helvecios e grande seu beneficiador por sua afinidade com eles, hostil por interesse próprio a César e aos romanos, pois fora com a vinda deles diminuido seu poderio, e restituído o irmão Diviciaco a antiga autoridade e honraria; sendo que, se ficassem mal os romanos, concebia suma esperança de ser rei com o auxílio dos helvecios, e, no dominio romano, não só perdia essa esperança, mas até a de conservar o poder que tinha." Inquirindo descobre também César: "Ser o princípio da derrota da cavalaria, no combate havido poucos dias antes, obra de Dunorix que comandava a cavalaria mandada pelos heduos a César; pois com a fuga dessa se aterrara a demais."

Acrescendo, pois, a estas suspeitas os fatos incontestáveis de ter proporcionado passagem aos helvecios pelas fronteiras dos sequanos, fazendo para isso com que se dessem reféns reciprocamente, de o haver praticado não só sem consentimento, mas nem ainda conhecimento de César e da cidade, e ser acusado pelo magistrado dos heduos, julgava haver assás fundamento ou para puni-lo ele mesmo, ou para ordenar à cidade que o punisse. A isto, porém, repugnava uma única coisa, que era ter encontrado em Diviciaco devoção suma para com o povo romano, benevolência extreme para com sua pessoa, egrégia lealdade, justiça e moderação; receava sobretudo ofendê-lo com o suplício do irmão. Assim, antes de tentar coisa alguma, manda chamar a Diviciaco; e, removidos os intérpretes quotidianos, por Caio Valerio Procilo, homem principal da província da Gália, amigo e confidente seu, se abre com esse, expondo tanto o que em sua presença se dissera de Dunorix na assembléia dos gauleses, como o que se referira deste em particular, e pede-lhe instância, não leve a mal, ou que ele lhe castigue o irmão, ou que ordene a cidade o faça.

Abraçando a César com muitas lágrimas, entrou Diviciaco a suplicar-lhe, nada ordenasse de grave contra o irmão, dizendo sabia ser tudo aquilo verdade, e ninguém concebia disso maior dor que ele, pois sendo o mais poderoso entre os seus e no resto da Gália, quando o irmão o era mui pouco por sua mocidade, o havia com seu crédito elevado, do que agora abusava este, não só para cercear-lhe a autoridade, mas até para perdê-lo; comovia-se, nada obstante, com o fraternal amor e a opinião dos homens; pois se alguma coisa grave viesse ao irmão da parte de César, ninguém de certo acreditaria que, sendo tal sua amizade com César, deixara de nisso ter também parte, donde resultaria ficar-lhe adversa a Gália toda. Prosseguindo ele em suas instâncias todo banhado em pranto, toma-lhe César a dextra, consola-o e pede-lhe, ponha termo às suplicas; porque tão singular amizade lhe votava, que tanto a ofensa da república, como a sua, ao seu querer e pedido dele de mui bom grado as remitia. Manda chamar a Dunorix, repreende-o em presença do irmão, enumerando os agravos que de seu procedimento tinham ele César e a cidade, admoesta-o a evitar toda a suspeita para o futuro, e acrescentando que por amor do irmão, Diviciaco, lhe perdoava o passado, põe-lhe vigias para saber o que faz e com quem fala.

No mesmo dia sabendo dos exploradores haver o inimigo acampado junto a um monte a oito mil passos de nossos arraiais, faz examinar a natureza do monte e sua subida em torno. Vindo no conhecimento ser fácil, à terceira vela da noite manda o lugar tenente pro pretor[34], Tito Labieno, com duas legiões e os guias conhecedores do caminho ocupar a cumiada ao monte, expondo-lhe de antemão seu plano. À quarta vela da noite, tendo enviado diante a cavalaria, marcha em pessoa ao inimigo pelo mesmo caminho que este tomara. Publio Considio que passava por militar mui experimentado, e servira no exército de Lucio Sila, e depois no de Marco Crasso, é mandado diante com os exploradores.

Ao romper d’alva, ocupada por Labieno a cumiada do monte, e distante César do inimigo mil e quinhentos passos, sem que fosse pressentida, nem sua vinda, nem a de Labieno, como depois soube dos cativos, corre Considio à desfilada anunciar-lhe estar pelo inimigo ocupado o monte, que desejara o fosse por Labieno, e havê-lo conhecido pelas armas e insígnias gaulesas. Conduz César suas tropas para um vizinho monte, e as forma em ordem de batalha. Labieno, como lhe fora ordenado, não combatesse, enquanto não visse as tropas de César perto do campo inimigo, para que dessem juntamente nele de todos os lados, senhor do monte abstinha-se de atacar, aguardando os nossos. Alto dia, enfim, veio César a saber dos exploradores, acharem-se não só os nossos de posse do monte, mas terem os helvecios levantado campo e haver-lhe Considio, cortado de terror, anunciado como visto o que não vira. Segue esse dia ao inimigo com o costumado intervalo, e acampa a três mil passos dele.

No seguinte, como faltavam sós dois dias para medir trigo ao exército, e não distava de Bibracte[35], a maior e a mais bem provida cidade dos heduos, senão dezoito mil passos, julgou dever entender no provimento de víveres, e desviando-se dos helvecios marchou em direitura à Bibracte. É isto logo denunciado ao inimigo pelos transfugas de Lucio Emilio, decurião da cavalana gaulesa[36]. Os helvecios, ou por entenderem que os romanos se retiravam cortados de temor, mui principalmente porque senhores das alturas os não haviam atacado na véspera, ou por confiarem poder tolher-lhes o provimento de víveres, mudada a resolução e a marcha, entram a picar e provocar a nossa retaguarda.

Em o notando, manda César a cavalaria sustentar o ímpeto dos inimigos, e marcha com suas tropas[37], para um vizinho monte. No meio deste, forma três linhas com as quatro legiões veteranas; no cume, posta à cavaleiro destas as duas legiões de próximo alistadas na Gaba citerior[38], e tropas auxiliares, enchendo todo de homens o monte; e ordena sejam as bagagens reunidas num ponto, e este defendido pelos que estavam postados nas alturas. Seguindo-o com todos os seus carros, reúnem também os helvecios num ponto as bagagens; e repelindo cerrados nossa cavalaria, sobem a investir nossa primeira linha ordenados em falange.

Removido primeiramente o seu, depois os cavalos de todos, para que, igualado o perigo, tirasse a esperança de fuga, exortando os seus, trava César a batalha. Arremessando os pilos do alto, rompem facilmente os soldados a falange aos inimigos; rota esta, arremetem contra eles espada em punho. Grande embaraço para a peleja era aos gauleses[39] o haverem-lhes os pilos varado e ligado de um golpe muitos escudos[40], de modo que, encurvado o ferro, o não podiam arrancar, nem pelejar assás comodamente, impedida a esquerda, e sacudindo constantemente o braço, desejavam muitos arrojar o escudo da mão, e pelejar a corpo descoberto, Afinal, desangrados pelas feridas, entram a recuar, retirando-se para um monte daí mil passos. Ganho o monte, e subindo trás eles os nossos, os boios e tulingos, que em força ao redor de quinze mil homens fechavam o exército inimigo, e compunham o corpo de reserva, atacando os nossos na investida pelo flanco aberto, começam de involvê-los, o que notado dos helvecios, que se haviam retraído ao monte, carregam de novo, e restauram a batalha. Fazem então frente os romanos para duas partes, opondo aos vencidos e retraídos a primeira e segunda linhas, a terceira aos que atacavam pelo flanco.

Assim combate-se encarniçadamente, indecisa largo tempo a vitória. Não podendo por fim sustentar o impeto dos nossos, acolhem-se uns ao monte como haviam começado a fazê-lo, passam-se outros a seus carros e bagagens; pois, combatendo-se desde uma hora da tarde até véspera, ninguém em todo esse tempo viu costas ao inimigo. Pelejou-se ainda até alta noite juntos às bagagens, porque fazendo dos carros tranqueiras, arremessavam do alto dardos contra os nossos e deles os feriam através das rodas com zagaias e zargunchos. Depois de combater-se largo espaço, apoderam-se os nossos de carros e bagagens, sendo aí aprisionados a filha e um dos filhos de Orgetorix. Restaram desta batalha uns cento e trinta mil homens, que marchando constantemente essa noite toda, chegaram em quatro dias às fronteiras dos lingones[41], sem que os nossos os pudessem seguir, demorados pelas feridas dos soldados e sepultura dos mortos. Preveniu César aos lingones, que os não socorressem com trigo, nem outra alguma coisa, declarando-lhes que, se o fizessem, os teria na mesma conta que aos helvecios. Três dias depois, os segue em pessoa com todas as tropas.

Forçados a render-se pela necessidade de tudo, deputam-lhe os helvecios embaixadores, que o encontram no caminho, lançam-se-lhe aos pés, e lhe pedem paz com muitas súplicas e lágrimas, Mandados aguardá-lo no lugar, aonde então estavam, obedecem. Depois de aí chegar, exige-lhes César reféns, armas, escravos para eles fugidos. Enquanto estas coisas se procuram e apresentam, mete-se de permeio a noite; e cerca de seis mil homens do cantão chamado Verbigeno[42], ou temendo ser supliciados, depois de entregues as armas, ou induzidos da esperança de salvação, porque em tamanha multidão de rendidos esperavam ou poder sua fuga ser oculta, ou totalmente ignorada, abalando à prima noite dos arraiais dos helvecios, marcham para o Rim e confins dos germanos.

XXVIII

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Mal o sabe, ordena César àqueles por cujas terras foram, que os procurem e reconduzam se querem com ele justificar-se. Obedecido, aos reconduzidos tem em conta de inimigos; a todos os mais, depois de entregues reféns, armas transfugas, os toma debaixo de sua proteção. Aos helvecios, tulingos[43] elatobrigos[44] determina, voltem aos países, donde haviam partido; e porque, destruídas absolutamente as novidades, nada tinham em casa com que ocorrer à fome, ordena aos alobroges lhes forneçam trigo e a eles mesmos, restabeleçam as cidades e aldeias queimadas. Fá-lo principalmente por não ficarem devolutas as terras dos helvecios, para que, por amor da fertilidade do solo, não passassem das suas para elas os germanos que habitam além do Rim, vizinhando assim com a província da Gália e os Alobroges. Quantos ao boios, solicitando os heduos guardá-los em suas fronteiras, por serem mui esforçados, lho permite; e estes lhes concedem terras, e depois os mesmos foros e liberdade de que gozavam.

Foram nos arraiais dos helvecios encontradas e levadas a César, tábuas escritas em caracteres gregos, as quais continham a relação nominal dos que haviam saido da pátria, tanto homens em estado de pegar em armas, como meninos, velhos e mulheres. Perfaziam os helvecios o número de duzentas e sessenta e três mil cabeças; os tulingos, o de trinta e seis mil; os latobrigos, o de quatorze mil; os rauracos, o de vinte e três mil; os boios o de trinta e duas mil. O número total dos que podiam pegar em armas era de noventa e dois mil, e o dos de todos os sexos e idades, de trezentos e sessenta e oito mil. O total dos que depois voltaram à patria foi, segundo o censo ordenado por César, de cento e dez mil.

Terminada a guerra dos helvecios, vieram os principais de quase todas as cidades da Gália dar parabéns a César, significando-lhes que, posto entendessem ter o povo romano debelado os helvecios por antigas ofensas deles recebidas, fora todavia isso não menos útil à terra da Gália, que aos romanos; porquanto haviam os helvecios abandonado seu país em estado mui florescente com desígnio de assenhorear-se da Gália por conquista, e escolher para residência a comarca que de toda ela julgassem a mais oportuna e fértil, fazendo as demais cidades tributárias suas. Pediram-lhe levasse a bem convocarem uma reunião de toda Gália[45], para dia aprazado, pois tinham requerimentos a fazer-lhe de acôrdo comum. Outorgado, marcam o dia da reunião, e obrigam-se com juramento a não divulgá-lo, senão a quem por deliberação comum fosse resolvido.

Despedida a reunião, os mesmos principais das cidades, que tinham estado com eles antes, tornaram a vir ter com César, pedindo-lhe uma conferência secreta sobre a sua particular, e a salvação comum dos gauleses. Impetrado[46], lançam-se todos aos pés de César, conjurando-o com lágrimas: "Que não importava menos ficar em segredo o que lhe iam revelar, do que alcançarem o que desejavam; porquanto, se não houvesse segredo, ficavam expostos a suportar as maiores angústias." Orou por eles o heduo Diviciaco nestes termos: "Que em duas facções estava a Gália toda dividida, de uma das quais tinham os heduos o principado, e da outra os arvernos[47]; e, disputando-se elas a supremacia muitos anos, acontecera socorrerem-se os arvernos e sequanos de germanos mercenários; e, passando destes primeiramente o Rim uns quinze mil, depois mais, quando em sua barbária e ferocidade foram tomando gosto a fertilidade da terra, polícia e abundâncias dos gauleses, existiam ora na Gália cerca de cento e vinte mil — Que com esses haviam primeira e segunda vez travado batalha os heduos e seus apaniguados, e recebido vencidos grande calamidade, perdendo toda nobreza, todo senado, toda cavalaria, pelas quais batalhas e perdas alquebrados se viram eles, dantes os mais poderosos da Gália por seu esforço, aliança e amizade com os romanos, forçados a dar aos sequanos em reféns os mais nobres da cidade, obrigando-se com juramento a não exigir os reféns, nem implorar auxílio ao povo romano, nem recusar viver sob o perpétuo jugo e sujeição dos mesmos — Que de toda a cidade dos heduos era ele o único que nunca pudera ser induzido a jurar, nem dar seus filhos em reféns, sendo porisso obrigado a fugir da cidade e ir à Roma implorar auxílio ao senado, visto como nem por juramento, nem reféns se achava ligado — Mas ainda pior sucedera aos sequanos vencedores do que aos heduos vencidos, porque o rei dos germanos, Ariovisto, em suas fronteiras deles[48] fizera assento, ocupando-lhes a terça parte das terras, as melhores da Gália, e os mandava agora sair de outra terça parte, por lhe haverem chegado vinte e quatro mil harudes[49], aos quais era mister preparar terras e mansão — Que dentro em poucos anos aconteceria serem expulsos da Gália todos os gauleses, e passarem o Rim todos os germanos, pois nem o terrão germano era para comparar em bondade com o gaulês, nem este com aquele bárbaro costume de viver — Que, depois de vencer os gauleses em Magetobria[50], se tornara Ariovisto tão soberbo e tirano, que exigia em reféns os filhos dos mais nobres, e os castigava com todo gênero de tormentos, quando não obedeciam a seu menor aceno ou vontade; e era bárbaro, iracundo, violento, a ponto de não poder seu jugo ser mais tempo suportado — Se César e os romanos lhes não valessem, teriam os mais gauleses de emigrar, como os helvecios, em procura de outras terras e habitações, remotas dos germanos, fosse qual fosse a fortuna que os aguardasse; e, se suas queixas chegassem aos ouvidos de Ariovisto, tinham certeza que havia ele de acabar em tormentos a todos os reféns — Que, com sua autoridade e a do exército, sua recente vitória, e o nome romano, podia César fazer com que não passasse o Rim maior multidão de germanos, e pôr toda Gália à coberto das violências de Ariovisto."

Depois deste discurso de Diviciaco, entram todos os que estavam presentes, a pedir auxílio a César com grande pranto. Nota, porém, César que só os sequanos não faziam como os mais, mas olhavam para a terra, cabisbaixos e tristes. Admirado inquire-lhes a causa: E nada responderam os sequanos, permanecendo calados na mesma tristeza. Perguntando-lho mais vezes, sem lhes poder arrancar palavra, responde o mesmo heduo Diviciaco: "Que tanto mais miserável e grave era, que a dos mais, a condição dos sequanos, porque sós nem ainda ocultamente ousavam queixar-se, nem implorar auxílio, temendo a crueldade de Ariovisto ausente, como se presente fosse; pois os mais podiam subtrair-se-lhe fugindo, os sequanos, porém, que o haviam recebido em suas terras, e cujas cidades estavam todas em poder dele, tinham de suportar-lhe todas as cruezas.

XXXIII

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Inteirado disto, anima César os gauleses, prometendo-lhes tomar o negócio a peito, pois grande esperança concebia que, demovido por seus beneficios e autoridade, havia Ariovisto pôr termo às iniquidades. Depois disso impeliam-no a chamar o negócio a si, tomando-o na devida consideração, outros valiosos motivos, dos quais era o principal ver sob o jugo germano escravizados os heduos, tantas vezes honrados pelo senado com o nome de irmãos e consanguíneos, e os reféns destes em poder de Ariovisto e dos sequanos; o que, sendo tamanho o poderio dos romanos, reputava mui desairoso à si e à república. Via por outro lado ser perigoso para os romanos acostumarem-se, pouco e pouco, os germanos, a passar o Rim, e afluir, em grande multidão na Gália; porque estes bárbaros não se haviam por certo de conter em sua ferocidade, que, depois de ocupar a Gália, não invadissem, como os cimbros e teutões, a nossa província e daí a Itália, principalmente sendo o Ródano a única extrema entre os sequanos e a província; ao que entendia dever quanto antes ocorrer-se. Demais, tais espíritos e sobranceria se havia o mesmo Ariovisto arrogado, que já não era para tolerar.

Julgou, pois, conveniente mandar embaixadores a Ariovisto, pedir-lhe escolhesse lugar acomodado para conferenciarem; porque tinha a tratar com ele negócio de suma importância, tanto a República, como a ambos. A esta embaixada respondeu Ariovisto: "Que se ele necessitasse o que quer que fosse de César, iria procurá-lo; assim, se César lhe queria alguma coisa, viesse ter com ele — Demais, não ousava ir sem exército às partes da Gália ocupadas por César, nem podia reunir exército sem grande abastecimentos e aparatos — Muito se admirava, porém, que tivesse ou César ou o povo romano de ver absolutamente com a sua Gália por ele conquistada."

Recebida tal resposta, manda-lhe César nova embaixada concebida nestes termos: "Que, pois, obrigado por tamanho benefício seu e do povo romano, como ser em seu consulado honrado pelo Senado com o título de rei e amigo, lhe retribuía por todo agradecimento a ele e ao Senado, recusar-se a uma conferência, sem a menor consideração com sua pessoa, nem com o bem público, eis o que dele exigia: — primeiro, não passar mais aquém do Rim multidão alguma de homens para a Gália; depois, restituir os reféns que tinha dos heduos, e permitir aos sequanos restituirem livremente os que dos mesmos também possuíam; nem empecer, nem fazer guerra aos heduos e seus aliados — Que, se nisso viesse, César e o povo romano teriam com ele perpétua paz e amizade: senão, não havia César desprezar os agravos dos heduos, pois decretara o Senado no consulado de Marco Messala e Marco Pisão, que todo o que tivesse o governo da província da Gália, protegesse os heduos e mais amigos dos romanos, quando fosse possível fazê-lo sem gravame da República."

A isto respondeu Ariovisto: "Que era direito da guerra imperar o vencedor à bel prazer sobre o vencido; nem segundo o ditame de outrém costumava o povo romano fazê-lo mas por alvedrio seu; e se ele não prescrevia aos romanos a maneira, por que haviam de usar de seu direito, não deviam também os romanos estorvá-lo quando usava do seu — Que os heduos, tendo tentado a fortuna das armas, tornaram-se, depois de vencidos, tributários seus; e grande injustiça praticava César, agorentando-lhe com sua vinda os rendimentos, — Que não havia de restituir os reféns aos heduos, nem fazer-lhes guerra a eles e seus aliados, enquanto persistissem no concertado, pagando-lhe o tributo anual; mas, se o não fizessem, de nada lhes havia de valer o nome fraterno do povo romano. E quanto a dizer César, que não desprezaria os agravos dos heduos, ninguém combatera com ele sem ficar destruído; esperimentasse-o, quando quisesse, e conheceria qual era o valor dos germanos invencíveis e adestrados nas armas, a ponto de se não abrigarem debaixo de teto por espaço de quatorze anos."

XXXVII

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Na mesma ocasião em que esta resposta se transmitia a César, chegavam-lhe embaixadores não só dos heduos, mas também dos trevicos[51]: — Queixavam-se os heduos, de nem ainda com reféns poderem comprar a paz de Ariovisto, pois estavam as suas fronteiras[52] sendo assoladas pelos harudes, recentemente transportados à Gália: — Os treviros, de haverem acampado junto à margem do Rim, com ânimo de passar o rio, os cem cantões dos Suevos[53], capitaneados pelos irmãos, Nasua e Cimberio. Gravemente comovido com isto, entende César que não há tempo a perder, porque se às antigas tropas de Ariovisto se reunisse o novo enxame dos suevos, menos facilmente poderia resistir-lhes. Assim, feito as pressas provimento de víveres, dirige-se a grandes marchas contra Ariovisto.

XXXVIII

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Tendo avançado caminho de três dias, recebe aviso de que marchava Ariovisto com todas as tropas a ocupar Vesonção[54], a maior cidade dos sequanos, e havia ganho três jornadas além de suas fronteiras. Entendia César dever a todo custo prevenir tal ocupação: porquanto havia nesta cidade suma abundância de tudo que é mister para a guerra, e era ela tão fortificada por sua situação, que oferecia a maior possibilidade de fazer prolongar a campanha, porque o rio Dubis[55], torneando-a como à volta de compasso, a cinge quase toda, e o espaço por ele não compreendido, de cerca de seiscentos pés, é fechado por um alto monte cujas raízes são de um e outro lado, beijadas pelas margens do rio. Fazendo do monte cidadela, prende-o a cidade uma muralha. Para aqui se dirige César a grandes marchas noite e dia, ocupa a praça[56], e a guarnece de tropas.

Enquanto se demora poucos dias em Vesonção para abastecer-se de víveres, inquerindo os nossos e apregoando os gauleses e mercadores, serem os germanos de grande corpulência, incrível esforço e exercício em armas, à ponto de não poderem os gauleses suportar-lhes no combate nem a catadura nem o olhar sequer, apoderou-se tal terror do exército, que não pouco perturbava o entendimento e ânimo a todos. Nasceu este, a princípio, dos tribunos dos soldados, prefeitos e outros, que acompanhando a César por amizade, quando partiu de Roma, deploravam a gravidade do perigo, por não terem grande prática da guerra. Deles pediam a César permissão de retirar-se, inventando algum pretexto honesto para fazê-lo; deles ficavam por vergonha, para evitar a suspeita do medo. Estes porém não podiam compor o rosto, nem por vezes reter as lágrimas: escondidos nas tendas, ou choravam sua má fortuna, ou deploravam com os amigos o perigo comum. Pelo campo todo se faziam testamentos. Com as vozes e o temor desses, aos poucos se iam turbando os mesmos que grande experiência tinham da guerra, soldados, centuriões e oficiais de cavalaria. Os que queriam parecer mais corajosos, diziam temer, não o inimigo, mas os desfiladeiros e imensos bosques que se interpunham entre eles e Ariovisto, ou a carência de provisões pela dificuldade dos transportes. Alguns até prediziam a César que, quando mandasse levar campo e estandantes, o soldado lhe não havia de obedecer nem desalojar, possuído de temor.

À vista de tamanho pânico, faz César uma reunião de oficiais em que são admitidos os centuriões de todas as graduações[57]; e extranha-lhes severamente entenderem dever pesquisar, ou examinar para onde, ou com que fim fossem dirigidos, acrescentando: "Que tendo em seu consulado Ariovisto solicitado a amizade do povo romano com todo empenho, porque razão se supunha deixaria tão sem fundamento de permanecer nela? — Que ele César estava persuadido de que, apreciando sua proposta e a equidade das condições oferecidas, não havia Ariovisto de enjeitar-lhe a amizade nem a dos romanos — Caso, porém, fosse tão furioso e insensato, que nos declarasse guerra, que era o que temiam? Ou porque deixavam de confiar no próprio valor, ou na perícia do general? — Que em tempo de nossos pais fora este inimigo experimentado, quando, com não menor glória do exército, que do general, derrotara Caio Mano os Cimbros e Teutões; e ainda há pouco o fora em Itália, na guerra dos escravos germanos, já então auxiliados com alguma tática militar de nós aprendida — Daí se podia conhecer quanto valia a constância, pois aos que algumas vezes temeram desarmados, os venceram depois armados e vencedores. Que estes finalmente eram os mesmos germanos, muitas vezes combatidos, e não poucas vencidos, até em sua própria casa, pelos helvecios que não puderam todavia resistir ao nosso exército; e os que se deixavam impressionar da derrota e fuga dos gauleses, deviam ver que Ariovisto, fatigando-os com a procrastinação da guerra, encerrado muitos meses nos arraiais e paues, sem dar cópia de si, e acometendo-os de súbito, quando já debandados desesperavam a batalha, mais os vencera por estratagema, que valor; — mas nem esse mesmo esperava que nosso exército se deixasse surpreender pelo ardil, que lhe sortira bom efeito com bárbaros inexperientes — Que os que disfarçavam o temor com a carência de viveres e os desfiladeiros do caminho, obravam arrogantemente, parecendo ou desconfiar da capacidade do general ou prescrever-lhe o dever — Que tinha muitos a peito o abastecimento do exército: pois os sequanos, leucos[58], e lingones[59], lhe forneciam trigo, e já as messes estavam maduras nos campos; do caminho seriam eles próprios em breve os juizes. Quanto a não obedecerem, nem levarem estandartes[60], nada com isso se movia; porque sabia terem-se os generais a quem não obedecera o exército, ou infelicitado perdendo batalhas, ou maculado com criminosa avareza: — que de sua limpeza de mãos dava testemunho sua vida inteira, de sua felicidade a guerra contra os helvecios — Que assim o que havia de fazer daí a dias, ia fazê-lo já, que era levantar campo na quarta vela da próxima noite, para saber quanto antes o que podia mais com eles, se o pudor e o dever ou o medo — E se ninguém o quisesse seguir, havia, nada obstante, marchar só com a décima legião, e essa lhe serviria de coorte pretoriana." Era esta a legião a que César mais comprazia, e em cujo valor mais confiava.

Maravilhosa foi a mudança operada nos ânimos por este discurso, que fez nascer em todos sumo alvoroço e ardor guerreiro. A décima legião foi a primeira que, pelos tribunos dos soldados, rendeu graças a César, por haver dela formado ótimo conceito, e confirmou estar prontíssima a marchar. Depois, também as demais legiões, por intermédio dos tribunos dos soldados e centuriões das primeiras graduações, lhe deram satisfação nestes termos: "Que nunca duvidaram, nem temeram, nem reputaram seu o comando, mas do general." Aceita a satisfação, e por Diviciaco, o gaulês de sua maior confiança, explorado o melhor caminho para levar o exército por campos com um rodeio de mais de sessenta milhas, parte na quarta vela da noite, como determinara; e ao sétimo dia de marcha não interrompida, sabe dos exploradores distarem das suas as tropas de Ariovisto coisa de vinte e quatro milhas.

Ciente da vinda de César, envia-lhe Ariovisto embaixadores a dizer: "Que convinha em ter a conferência dantes pedida, porque havendo César chegado para mais perto, contava podê-lo fazer sem risco." Não rejeitou César a proposta; e já supunha Ariovisto tornado a melhor conselho, pois oferecia de boamente o que recusara rogado, e concebia grande esperança de que em atenção aos benefícios dele e do povo romano recebidos, e à vista da equidade do que lhe exigia, havia desistir da pertinácia. Foi para daí a cinco dias marcado o da conferência. E como neste ínterim se enviavam recíprocas embaixadas, exigiu Ariovisto que César não levasse infantaria alguma à conferência, porque receava ciladas da parte deste, mas fossem ambos acompanhados de cavalaria, sendo que de outra forma não havia de vir. César que desejava remover todo e qualquer obstáculo à realização da conferência, mas não ousava confiar sua salvação à cavalaria gaulesa, entendeu ser o mais conveniente tirar-lhe os cavalos, e montar com eles a décima legião que era a de sua maior confiança, para, em caso de necessidade, contar com socorro quanto mais amigo; o que feito, disse não sem graça um soldado desta: "Que César fazia mais do que prometia, pois tendo prometido fazer da décima legião guarda pretoniana, a alistava na cavalaria."

Havia uma vasta planície, e nela um cômoro assás grande. Distava o lugar, quase espaço igual de ambos os acampamentos. Para ali se dirigiram a conferenciar, como estava convencionado. César postou sua legião montada a duzentos passos deste cômoro. A cavalaria de Ariovisto fez alto a distância igual. Chegados aí, exordiou César, mencionando os benefícios seus e do Senado a Ariovisto, como fora honrado com o título de rei e amigo, e magnificamente remunerado, o que a bem poucos coubera em sorte, pois tinham os romanos por usança concedê-lo unicamente aos mais assinalados serviços; — e todos esses favores conseguira por mera liberalidade sua e do Senado, porque não tinha motivo justo, nem plausível, para solicitá-los, Representou-lhe mais quão antigos e justos eram os fundamentos da amizade dos romanos com os heduos, de quais, quantos, e quão honoríficos decretos do Senado haviam estes sido objeto, e como em todo tempo, ainda antes de procurarem nossa amizade, exerceram a supremacia na Gália — Que era uso e costume do povo romano o querer que seus aliados e amigos não só nada perdessem em seus foros, mas fossem ainda acrescentados em preponderância, dignidade, honraria. Como pois se havia tolerar fosse arrancado aos heduos o que trouxeram com sua amizade quando se aliaram aos romanos? Apresentou depois as mesmas condições que havia proposto por seus embaixadores — Que não fizesse guerra nem aos heduos, nem a seus aliados; restituísse os reféns; e, se não podia mandar parte dos germanos para seu país, não consentisse passarem o Rim outros de novo."

A isto pouco respondeu Ariovisto, espraiando-se sobre seu mérito e virtudes nesta substância: "Que não de motu próprio, mas rogado e convidado pelos gauleses, se aventurara a passar o Rim, deixando pátria e parentes não sem grandes esperanças e promessas; que tinha na Gália domicílio e reféns concedidos pelos mesmos, e pelas leis da guerra percebia o tributo que aos vencidos costumavam impor os vencedores — Que não fora ele quem fizera guerra aos gauleses, mas os gauleses a ele, vindo atacá-lo e acampando contra ele todas as cidades da Gália[61]; — e essas numerosas tropas foram todas por ele destroçadas e vencidas numa batalha — Se queriam fazer nova experiência, estava pronto a pelejar; mas se queriam paz, era iníquo recusarem o tributo que até aí haviam pago — Que a amizade do povo devia ser-lhe de honra e proveito, não prejuízo; e neste presuposto a solicitara — Se o povo romano lhe tirasse os tributários, remitindo-lhes o tributo, de tão boamente lhe havia de enjeitar a amizade, como a procurara — Quanto a passar a Gália multidão de germanos, o fizera para amparar-se, não para atacar a Gália; e disso era testemunho o não ter vindo, senão rogado, e o não ter atacado, mas repelido o ataque — Que primeiro, que os romanos, viera ele à Gália; pois nunca dantes havia nosso exército transposto os limites da província romana. Que era o que lhe queria? porque penetrava em seus domínios? — Que esta Gália era província sua, bem como aquela outra nossa; e assim como lhe não devia ser permitido invadir nossas fronteiras, assim também éramos injustos intrometendo-nos em sua jurisdição — Quanto a serem os heduos apelidados irmãos pelo Senado, não era ele tão bárbaro e inexperiente do que ia pelo mundo, que não soubesse que nem os heduos auxiliaram aos romanos na guerra contra os alobroges, nem os romanos aos heduos na que estes com ele e os sequanos tiveram — Que o ter César exército na Gália com capa de amizade, suspeitava ser para oprimi-lo, e se dali se não retirasse com o exército, havia tê-lo em conta, não de amigo, mas de inimigo; pois faria, se o matasse, coisa agradável a muitos nobres e principais de Roma, como sabia dos mensageiros que lhe os mesmos enviavam, e podia com isso comprar a proteção e amizade de todos eles: — ele porém, se César se retirasse, deixando-lhe a livre posse da Gália, havia remunerá-lo, fazendo sem trabalho nem risco do mesmo César todas as guerras que quisesse feitas[62].

Muito discorreu César para mostrar não poder desistir da pretenção, por não ser próprio dele e do povo romano desamparar aliados beneméritos, nem ser a Gália mais de Ariovisto do que dos romanos. Que por Quinto Fabio Maximo foram vencidos os arvernos e rutenos[63], a quem perdoara o povo romano sem os reduzir a província, nem impor-lhes tributo — Se convinha atender à antiguidade, o império romano era o mais justo na Gália; se à autoridade do Senado, a Gália a quem permitira vencida reger-se por suas leis, devia ser livre.

Emquanto isto se passa na conferência, é César avisado de que os cavaleiros de Ariovisto se chegavam para perto do cômoro, e cavalgando contra os nossos, lhes arremessavam pedras e dardos. Põe César termo ao dizer, e retirando-se para os seus, ordena-lhes nem um só tiro façam aos inimigos. Pois, posto via haver de ser sem risco da legião escolhida o combate com a cavalaria, entendia contudo não dever travá-lo, para que, rechaçados os inimigos, não se dissesse depois haverem sido cercados na conferência com quebra da fé pública. Mal se espalhou pelo vulgo dos soldados com que arrogância se houvera Ariovisto, pretendendo vedar-nos a Gália, ter sua cavalaria atacado os nossos, e ser isso causa de romper-se a conferência, maior foi ainda a alacridade e o ardor de pelejar, que se apoderou do exército.

Dois dias depois manda Ariovisto esta embaixada a César: "Que desejava tratar com ele do que começara a tratar-se, e não fora ultimado; — e ou marcasse dia para nova conferência, ou, senão, lhe deputasse algum lugar-tenente seu." Não julgou César dever ter outra conferência, mui principalmente por não se poderem abster os germanos na passada de fazer tiros aos nossos. Deputar-lhe um lugar-tenente dos seus fora expô-lo a grande risco entre tais bárbaros. O que pareceu mais conveniente, foi enviar-lhe Caio Valerio Procillo, filho de Caio Valenio Caburo, moço de excelentes partes, cujo pai fora por Caio Valerio Flaco agraciado com o foro de cidadão romano, pois não só era de sua inteira confiança, e sabedor da língua gaulesa, já mui familiar a Ariovisto, pelo longo uso, mas não dava também na pessoa ocasião aos germanos de desrespeitar-nos, e juntar-lhe por colega Marco Mecio[64] que fora hóspede de Ariovisto. A estes, pois, ordenou fossem saber o que lhe ele queria, e lho viessem relatar. Assim que os viu no acampamento, entrou Ariovisto a bradar diante de seu exército: "Porque é que vinham a ele? Se não eram espias?" E sem lhes permitir explicar-se os manda carregar de cadeias.

XLVIII

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Levanta no mesmo dia o campo e o vem assentar junto de um monte a seis mil passos dos arraiais de César. No seguinte, passa suas tropas para além dos arraiais de César, acampando dois mil passos diante dele, para cortar-lhe o provimento de trigo e vitualhas, transportado dos sequanos e heduos[65]. Desde esse dia conserva César suas tropas ordenadas em batalha em frente dos arraiais por outros cinco sucessivos, oferecendo a Ariovisto ocasião de pelejar, se o quisesse fazer. Em todos eles contém Ariovisto o exército nos arraiais, escaramuçando quotidianamente com a cavalaria. São os germanos mui exercitados neste gênero de peleja.

Tinham seis mil cavaleiros, e outros tantos peões mui velozes e valentes, singularmente escohidos por cada cavaleiro para guarda sua. Com esses andavam os cavaleiros nas refregas, a esses se retraiam; esses ao menor perigo acorriam; se algum caía do cavalo gravemente ferido, logo o socorriam; se era mister avançar muito, ou retroceder a toda pressa, tão exercitada era neles a celeridade, que, agarrados às crinas dos cavalos, os igualavam na carreira.

Como viu encerrar-se Ariovisto nos arraiais, César, para lhe não ser mais tempo tolhido o provimento de víveres, escolheu além do em que estanciavam os germanos, lugar asado a acampamento, cerca de seiscentos passos destes, e para lá marchou com o exército formado em três linhas. À primeira e segunda linhas ordenou se conservassem em armas; à terceira, fortificasse arraiais. Distava do inimigo o lugar coisa de seicentos passos, como fica dito. Para ali mandou logo Ariovisto uns dezeseis mil homens expeditos com toda cavalaria, no intuito de com tais tropas obstar a fortificação, aterrando os nossos. Ordenou nada obstante César que duas linhas fizessem rosto ao inimigo, e a terceira concluísse a obra. Fortificados os arraiais, aí deixou duas legiões e parte dos auxiliares, reconduzindo as quatro restantes aos arraiais maiores.

No seguinte dia tira César suas tropas de ambos os arraiais, como dispusera; e adiantando-se um pouco dos maiores, as forma em batalha, oferecendo ao inimigo ocasião de pelejar. Vendo que nem assim saía a campo, reconduziu o exército à quartéis pela volta de meio dia. Então, finalmente, mandou Ariovisto parte de suas tropas atacar os arraiais menores, e de ambos os lados se combateu encarniçadamente até véspera. Ao pôr do sol reconduziu Ariovisto as tropas a quartéis, depois de causado e recebido muito dano. Inquerindo dos cativos o motivo por quê Ariovisto não aceitava a batalha, soube César ser costume entre os germanos declararem as mães de família por meio de sortilégios e vaticínios, quando convinha ou não dar batalha; e diziam essas: "Não ser permitido aos germanos vencer, se antes da lua nova a dessem."

Um dia depois guarnece César ambos os arraiais com força suficiente, e formando à vista dos inimigos todos os auxiliares em frente dos arraiais menores, para ostentação de número, por ter poucas legiões comparativamente à grande multidão daqueles, marcha em pessoa sobre o campo inimigo com o exército em três linhas. Obrigados então da necessidade tiram por fim os genmanos suas tropas dos quartéis e as ordenam em batalha por nações, mediando igual intervalo entre harudes[66], marcomanos[67], triboces[68], vangiones[69], nemetes[70], sedusios[71], suevos[72], e para tolher qualquer esperança de fuga, circundam toda a hoste[73] de veículos e carros, donde as mulheres com as mãos postas pediam chorando aos soldados que avançavam, as não deixassem cair na escravidão dos romanos.

Prepondo a cada legião um lugar-tenente seu e um questor, para testemunharem o valor de cada um, trava César a batalha com sua ala direita por notar que o inimigo estava menos firme desse lado. Com tal fúria investem os nossos ao sinal dado, e tão galhardamente correm os inimigos a encontrá-los, que não tiveram aqueles espaço de vibrar pilos contra estes. Omitidos os pilos, peleja-se a espada, recebendo os germanos o ímpeto destas ordenados em falange à sua usança. Houve muitos soldados nossos que, saltando por sobre as falanges[74], arrancavam-lhes os escudos com as mãos e feriam por cima. Desbaratada e posta em fuga a ala esquerda do inimigo, apertava a sua direita vigorosamente com os nossos assoberbados da multidão. Observa-o o moço Publio Crasso, general da cavalaria, por andar mais expedito, que os que se achavam na refrega, e envia a terceira linha a socorrer os nossos em aperto.

Restaurada por esta forma a batalha, voltaram costa todos os inimigos, e não pararam na fuga, senão quando chegaram à margem do Rim cerca de cinqüenta mil passos deste lugar. Aí, mui poucos, ou a passar o rio a nado, confiados nas próprias forças, se aventuraram, ou em canoas que por acaso encontraram, se salvaram[75]. Deste número foi Ariovisto, que fugiu numa barquinha que estava amarrada à margem. Alcançados dos nossos com a cavalaria, todos os mais foram mortos. Duas mulheres teve Ariovisto, uma sueva, que trouxe comsigo da pátria; a outra norica, irmã do rei Vocião, com a qual casou na Gália, enviada pelo irmão: ambas pereceram nesta fuga. De duas filhas que houve delas, uma foi morta, a outra aprisionada. Caio Valerio Procilo, eniquanto é pelos guardas arrastado na fuga com três cadeias, encontra-se com o próprio César que perseguia o inimigo à frente da cavalaria; e não é a este menor prazer, que a mesma vitória, ver tirado de mãos hostis, e salvo, a um dos homens mais honrados da província da Gália, amigo e hóspede seu, em que com sua perda agorentasse coisa alguma a fortuna de tanta satisfação e regozijo. Dizia ele haveremse três vezes feito sortilégios em sua presença, a ver se seria logo queimado vivo, ou reservado para outra ocasião, e dever aos sortilégios a salvação. É do mesmo modo encontrado Marco Mecio, e apresentado a César.

Divulgada além Rim[76] a notícia desta batalha, entram a regressar a pátria os suevos acampados à margem deste. Deles aterrados, e acossados pelos Ubios que habitam perto do rio e lhes vão no encalço, são mortos muitos na retirada. Terminadas duas das maiores guerras em um só estio, conduz César o exército aos sequanos[77] a quartéis de inverno, um pouco mais cedo do que o requeria a estação; e prepondo Labieno a esses quartéis, parte para a Gália citerior a reunir as juntas da província[78].

  1. O Mame.
  2. O Sena.
  3. Os alemães.
  4. Os suíços.
  5. Os de Franche-Comté.
  6. Os belgas estão aqui pelo país que habitavam; pois é como se César dissesse o Belgio ou a Bélgica. É a metonímia do conteúdo pelo continente, mui vulgar nos autores latinos.
  7. O coletivo, cidade, está aqui tomado na acepção de nação. Considerado porém em sua acepção genuina. é a metonimia do continente pelo conteúdo, ou a cidade pelos cidadãos.
  8. Estreitos por estreitados, ou apertados, é vulgar nos clássicos portugueses.
  9. O lago de Genebra.
  10. Cidades, por estados, repúblicas, nações, na acepção em que os romanos tomavam este termo.
  11. Natural de Autuo.
  12. Os de Bale.
  13. Os de Dutlingen.
  14. Os de Brisgau.
  15. A Baviera.
  16. Casa, por pátria ou país: é a sinédoque da parte pelo todo.
  17. Os de Franche-Conté. Através dos sequanos, isto é, do Sequanio ou da Sequonia. É a metonímia de conteúdo pelo continente.
  18. Os saboianos
  19. Fronteiras, pelo território; é a sinédoque da parte pelo todo.
  20. Os de Autun.
  21. Os de Saintogne.
  22. Os de Toulouse.
  23. Os de Tarantaise.
  24. Os de Briançon.
  25. Os de Enibrum e Gap.
  26. Exiles.
  27. Os de Vaison.
  28. Os de Lion.
  29. As fronteiras pelo território ou a parte pelo todo.
  30. La Saôme, ou Sóna.
  31. O cantão de Zurich.
  32. Os do Berri.
  33. Dali, do país dos bituriges, ou do Biturigio, o atual Berri. Os bituriges pelo Biturigio é a metonímia do conteúdo pelo continente.
  34. Aqui é o primeiro dos legados das legiões, com quem o proconsul reparte seus cuidados.
  35. Autun.
  36. Na turma ou companhia, que tinha trinta cavaleiros, os primeiros de cada decúria chamavam-se decuriões.
  37. Suas tropas, isto é, as legiões romanas, pois quase toda cavalaria era gaulesa ou auxiliar.
  38. A Lombardia.
  39. Os helvecios eram também gauleses, como já fica dito.
  40. O pilo era arma de arremesso, que o soldado romano trazia presa ao sago, ou farda, por uma correia, e tirava a si quando havia ferido o inimigo.
  41. Os de Langres.
  42. O cantão de Berne.
  43. Os stuliglanos.
  44. Os de Brisgau.
  45. Reunião de toda a Gália em lugar de reunião de todos os gauleses, ou dos que os representavam. É a metonímia do continente pelo conteúdo, ou ainda a sinédoque do todo pela parte.
  46. Impetrado, por sendo isto impetrado, é proposição participio elítica como outorgado, no capítulo precedente, e condenado, no cap. IV. É uma locução concisa que dá vigor e animação ao dizer.
  47. Os Auvernheses
  48. Fronteiras, por, território como em outros lugares.
  49. Os de Constancia.
  50. Mgstat.
  51. Os de Treves.
  52. As fronteiras estão aqui pelo país. É a sinedogue da parte pelo todo.
  53. Os cem cantões de Suevos estão pelos Suevos tirados dos cem cantões de que se compunha este povo. Temos aqui a metonímia do continente pelo conteúdo, e a sinedoque da parte pelo todo.
  54. Besanção.
  55. O rio Doubs.
  56. Praça forte, ou cidade murada, é a verdadeira significação de oppidum. Preferimos na tradução, cidade a praça, porque o segundo nome sem antecedente que o determine, oferece equívoco.
  57. Desde o Centurio posterior do trigésimo manípulo até o Centurio prior do primeiro, havia sessenta graduações a percorrer. Cada legião compreendia dez coortes, cada coorte três manípulos, cada manípulo duas centúrias. A legião romana no tempo de César era de 6.000 homens.
  58. Os lorenos.
  59. Os de Langres.
  60. Levarem estandartes, por levantarem estandartes, assim como se diz "levar âncora", por levantar âncora.
  61. As cidades estão aqui pelas tropas dos povos que as compunham, como depois explica César, pondo na boca de Ariovisto, e essas tropas foram todas destroçadas, etc. É a metonimia do continente pelo conteúdo, ou, debaixo de outro ponto de vista, a sinedoque do todo pela parte.
  62. Todas as guerras que quisesse feitas, isto é, que fossem feitas. Há nos clássicos, e com especialidade Fr. Luiz de Souza, diversos exemplos desta espécie de elipse.
  63. Os de Ruergne.
  64. Outras edições trazem Marco Tido.
  65. Os sequanos e heduos estão aqui pelos respectivos países.
  66. Os de Constança.
  67. Os de Boemia.
  68. Os de Strasburgo.
  69. Os de Maiença.
  70. Os de Vormes.
  71. Os de Spira.
  72. Os de Suabia.
  73. Hoste, termo antiquado, que cumpre restabelecer, porque significando o exército inimigo, e por extensão qualquer exército, ou divisão dele, em ordem de batalha, não tem correspondente na língua. Em muitos casos pode este termo verter bem o acies dos latinos. Por ex.: prima, secunda, tertia acies, primeira, segunda, terceira hoste; isto é, linha, coluna, divisão, em ordem de batalha. O termo batalha, tomado figuradamente à maneira dos clássicos, supriria neste caso hoste, mas não na acepção de exército em geral, em que o tomamos.
  74. Eram tantas as falanges, quantas as nações, porque os germanos se haviam ordenado em batalha por nações, como fica dito.
  75. Não nos sendo possível conservar no primeiro período a mesma consonância do original, colocando no fim de cada proposição os verbos no pretérito perfeito, por se não prestar facilmente o português a esta espécie de harmonia que tanta beleza e majestade dá ao latim; procuramos todavia fazê-lo no segundo em que menos repugnante nos pareceu este torneio de frase.
  76. Além Rim, assim como se diz, além Tejo, além Douro, além mar.
  77. Os sequanos, pelo Sequanio ou país que habitavam.
  78. Juntas de justiça ou juntas em que o governador da província distribuía justiça às partes.

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Argumento

Conjuram-se todos os Belgas contra o povo romano afora os Remos, cuja cidade, Bibracte, liberta César do cerco, enviando-lhe socorro c. 1-10. Indo-lhes ao encalço, vence os Belgas na retirada c. 11. Aceita a rendição dos Suessiões, Belovacos e Ambianos; debela os Nervios que resistiam com vigor conjuntamente com os Atrebates e Veromanduos c. 12-28. Da mesma forma os Aduatucos c. 29-33. Vence Publio Cassio os Armoricos c. 34. Ações memoráveis depois da pacificação dos Belgas, c. 35.

Achando-se César na Gália citerior a invernar, como acima mostramos, chegam-lhe freqüentemente rumores e logo participação de Labieno de se haverem os Belgas, a terça parte da Gália, segundo fica dito, conjurado contra o povo romano, e dado reféns entre si, sendo as causas da conjuração: primeiro, receiarem que, pacificada a Gália Céltica, fosse nosso exército conduzido a eles; depois, serem solicitados por alguns gauleses, deles porque assim como não queriam que os germanos se estabelecessem na Gália, assim levavam a mal que nosso exército nela invernasse e permanecesse; deles, porque inconstantes e levianos desejavam nova ordem de coisas; deles, ainda, porque na Gália são os reinos vulgarmente ocupados pelos mais poderosos e abundantes em cabedais para ter gente a soldo, o que menos facilmente podiam conseguir no domínio dos romanos.

Abalado com estas notícias e comunicações, alista César duas novas legiões na Gália citerior, e no princípio do estio manda o seu lugar-tenente Quincio Pedio marchar com elas para o interior da Gália. Começando a haver abundância de forragem nos campos, dirige-se em pessoa ao exército, e encarrega os Senões[1] e mais gauleses que vizinhavam com os Belgas, de observarem o que passava entre eles, e fazerem-no sabedor de tudo. Informam-no todos a uma voz que se juntavam forças, concentrando-se exército num ponto. Não hesita, então, em marchar contra os Belgas. Feito provimento de víveres, levanta campo, e chega a eles em coisa de quinze dias.

Chegando ali de improviso e mais depressa que toda suposição, os Remos[2] que dentre os Belgas são os mais vizinhos da Gália[3], deputam-lhe a Iccio e Andocumborio[4], os mais notáveis da cidade, com esta embaixada: "Que se punham a si e seus haveres sob a proteção e soberania do povo romano; pois, não tendo entrado na conjuração dos mais Belgas, estavam prontos a dar-lhe reféns e executar quanto ordenasse, bem como a recebê-lo em suas praças fortes e socorrê-lo com trigo e o mais de que houvesse mister; — que os outros Belgas conjuntamente com os germanos que habitavam aquém do Rim, se achavam todos em armas; — e tanta era a animosidade de todos esses, que nem ainda aos Suessiões[5], irmãos e consangüineos seus, que tinham as mesmas instituições e leis, o mesmo governo e magistrado, que eles, puderam dissuadir de tomar parte na conjuração.

Inquerindo deles, quais e quantas cidades se achavam em armas, e de que forças dispunham, colhia em resultado procederem os Belgas pela mor parte dos germanos, que passando antigamente o Rim, e estabelecendo-se na Gália convidados pela fertilidade do solo, expulsaram os gauleses, que habitavam estes lugares; e serem os únicos que, em tempo de nossos pais, repeliram de suas fronteiras os teutões e cimbros, que assolaram toda Gália, originando-se daí arrogarem-se grande crédito e nomeada na milícia. Do número deles diziam os Remos saber ao certo, porque, ligados por parentesco e afinidade, tinham conhecimento de quantas tropas prometera cada povo para esta guerra na reunião comum dos Belgas: — Que dentre todos eram os Belovacos[6] os mais bravos, acreditados e numerosos, podendo apresentar cem mil guerreiros; e destes haviam prometido sessenta mil homens escolhidos, exigindo para si a administração geral da guerra: — Que os Suessiões, vizinhos seus, possuidores de vasto e fertilíssimo território, os quais tinham sido governados, ainda em nossos dias, pelo rei Diviciaco, o maior potentado da Gália, senhor de grande parte destas regiões bem como da Britania[7], e o eram agora pelo rei Galba, a quem por sua justiça e capacidade fora de comum acordo conferido o comando das forças reunidas, contavam doze praças fortes, e prometiam cinqüenta mil homens: — Que os Nervios[8], os mais ferozes e distantes dentre os Belgas, outro tanto; os Atrebates[9], quinze mil; os Ambianos[10], dez mil; os Morinos[11], vinte e cinco mil; os Menapios[12], sete mil; os Caletos[13], dez mil; os Velocasses e Veromanduos[14], outro tanto; os Aduatucos[15], dezenove mil; os Codrusos, Eburões, Ceresos e Pemnanos[16], chamados geralmente germanos, quarenta mil.

Depois de haver exortado os Remos, dirigindo-lhes um discurso amigável, ordena César venha à sua presença todo o senado, e lhe sejam dados em reféns os filhos dos principais da cidade; o que tudo é fielmente cumprido em dia marcado. Mostrando com muito empenho ao Heduo Diviciaco quanto importava à causa e salvação comum fazer diversão nas forças inimigas, para não se ter de combater com tanta multidão a um tempo; e que podia isso conseguir-se, se os Heduos com as suas invadissem o território dos Belgas, talando-lhes a campanha, o despede de junto a sua pessoa com tais instruções. Vendo que marchavam contra ele todas as tropas reunidas dos Belgas, e tendo aviso tanto dos exploradores que expedira, como dos Remos, de que já não estavam longe, deu-se pressa em passar o exército além do rio Axona[17], e aí acampou. Tinha esta posição a vantagem de fortificar um dos lados do campo com a margem do rio, tornar seguro dos inimigos tudo quanto ficava por trás dele, e fazer com que dos Remos e mais cidades[18] pudessem a ele transportar-se provisões sem risco. Havia no rio uma ponte; põe-lhe guarnição; e na margem oposta do mesmo deixa com seis coortes o seu lugar-tenente, Quincio Titurio Sabino; e os seus arraiais, manda fortificá-los com trincheira de doze pés de altura, e fosso de dezoito de profundidade.

Distava destes arraiais oito mil passos a cidade dos Remos de nome Bibracte[19]. Começam de assaltá-la os Belgas em sua marcha com grande fúria. Com dificuldade se sustenta ela nesse dia. Têm os belgas o mesmo sistema de atacar praças que os Gauleses; cercam-lhes as muralhas em toda extensão de multidão de homens, que entram de todos os lados a atirar pedras contra o muro até o despojar de defensores, deformando-se em testudem[20], arrombam as portas e derrocam o muro. Era isso, então, fácil pôr por obra, pois ninguém podia permanecer no muro, fazendo tiros com pedras e dardos uma tamanha multidão. Pondo a noite termo ao assalto, Iccio, que comandava a praça, o Remo de maior distinção e popularidade, entre os seus, um dos embaixadores que vieram a César propor pazes, manda-lhe aviso: — Que se lhe não enviasse socorro, não se poderia defender mais tempo.

Servindo de guias os mesmos correios de Iccio, a meia noite manda-lhe César um socorro de frecheiros Numidas e Cretenses e fundibularios Baleares. Com a vinda destes não só cresceu nos Remos o ardor de resistir pela confiança na defesa, como pelo mesmo motivo abandonou os inimigos a esperança de apoderar-se da praça. Assim, demorando-se pouco tempo à vista dela, depois de talar a campanha aos Remos, e incendiar-lhes os lugares e edifícios vizinhos, marcham com todas as forças aos arraiais de César, e a menos de dois mil passos colocam os seus, os quais, a julgar pelas fogueiras e fumarada, abrangiam o espaço de mais de oito mil.

A princípio resolveu César sobr’estar na batalha, já pela multidão[21], já pela apregoada bravura dos inimigos. Ia, porém, diariamente experimentando nos recontros da cavalaria o valor dos mesmos, como a ousadia dos nossos. Como viu não lhes serem os nossos inferiores, num lugar fronteiro aos arraiais oportuno por sua natureza para formar o exército em batalha, sendo que o monte onde acampava, levantado aos poucos da planície, tanto se estendia por davante, quanto podia ocupar um exército ordenado em batalha, oferecendo escarpaduras de ambos os lados, e de leve acuminado na frente terminava docemente em planície, feito antes de um e outro lado do monte um fosso transversal de quatrocentos passos com castelos nas extremidades, guarnecidos de tormentos, para que na refrega os inimigos cuja multidão era tamanha, não involvessem os nossos pelos flancos, deixando nos arraiais as duas legiões de próximo alistadas[22], para em caso de necessidade ter socorro à mão, ordena em batalha as seis restantes[23]. Tirando suas tropas dos quartéis as formam também os inimigos em batalha.

Havia entre o nosso e o exército inimigo uma lagoa não grande. Aguardavam os inimigos por que os nossos a passassem; estavam porém os nossos sob as armas para atacá-los, quando embaraçados começassem a fazê-lo. Travavam-se neste meio tempo combates de cavalaria entre os dois exércitos. Como nem uns nem outros tentassem a passagem, levando os nossos o melhor num recontro de cavalaria, reconduziu César os seus a quartéis. Marcham logo dali os inimigos ao rio Axona, o qual demorava por trás de nossos arraiais, como fica demonstrado. Encontrando aí[24] vaus, por eles tentam passar parte das tropas no intuito de tomar o castelo comandado pelo lugar-tenente Quincio Titurio e cortar-nos a ponte; e não o conseguindo, de talar a campanha dos Remos, a qual nos era de grande utilidade para a sustentação da guerra, e tolher-nos o abastecimento de viveres.

Ao sabê-lo por Titurio, transpondo a ponte com toda a cavalaria, Numidas leve-armados, fundibulários e frecheiros, marcha César ao encontro do inimigo. Combate-se aí encarniçadamente. Acometendo aos Belgas embaraçados no rio, fazem os nossos neles mortandade grande; aos que audaciosamente tentavam passar por cima dos corpos dos seus, repelem-nos com um chuveiro de dardos; aos que primeiro haviam passado, acabam-nos, cercando-os com a cavalaria. Perdendo a esperança de conquistar Bibracte e passar o Axona, vendo que não abandonavam os nossos suas vantajosas posições para pelejar, e começando a experimentar falta de viveres, reúnem-se os inimigos em concelho, e deliberam voltar cada qual ao seu país, para acudir de todos os pontos em defesa comum dos que fossem primeiramente atacados pelo exército romano, porque, podendo tirar a subsistência de seus abundantes recursos, melhor era combater na própria casa, que na alheia. A este parecer, além de outros motivos, levou-os também o saberem que Diviciaco e os Heduos se aproximavam das fronteiras dos Velovacos. Impossivel fora[25] persuadir-lhes demorarem-se mais tempo, e não correrem em socorro dos seus.

Depois de tomada esta deliberação, saindo dos arraiais na segunda vela da noite com grande estrépito e tumulto, sem ordem nem comando certo, e desejando cada qual ser da dianteira e chegar mais depressa à casa, fizeram com que a partida se assemelhasse à fuga. Sabendo-o logo pelos espias, e receiando ciladas, por ignorar a causa da retirada, conteve César nos arraiais tanto o exército como a cavalaria auxiliar. Ao romper dalva, sendo-lhe tudo confirmado pelos exploradores, para demorar-lhes a marcha da retaguarda, manda diante a cavalaria às ordens de seus tenentes Quincio Pedio e Lucio Aurunculeio Cotta; e fá-la seguir depois por três legiões ao mando de Tito Labieno. Acometendo estes a retaguarda inimiga, e acompanhando-a muitos mil passos, fazem grande mortandade nos que fugiam: pois, resistindo os derradeiros e sustentando bravamente o ímpeto dos nossos, os dianteiros que se julgavam livres de perigo, e não eram retidos por necessidade nem comando algum, ouvindo o clamor dos combatentes, rompiam as fileiras, e punham a salvação na fuga. Assim, sem o menor risco, matam os nossos tanta multidão de inimigos, quanta permitiu o espaço do dia, e terminando a carnificina com o pôr do sol, recolhem-se aos arraiais, como lhes fora ordenado.

Um dia depois, antes que os inimigos se recobrassem do terror e fuga, abala César com o exército para as fronteiras[26] dos Suessiões que vizinham com os Remos, e, avançando a marchas forçadas, chega a Novioduno[27]. Tentando tomá-la de assalto na passagem, por lhe constar achar-se balda de defensores, em razão da largura do fosso e altura do muro, o não pôde conseguir, se bem a defendessem poucos. Assentando arraiais, faz construir mantas de guerra[28], e aparelhar todo o necessário para sitiá-la. Neste comenos entra de noite na praça multidão de Suessiões escapos da derrota. Concluídas de pronto as mantas, e feito o terrado[29] com as competentes torres, assombrados com o gigantesco de tais obras, por eles nunca vistas, nem conhecidas de nome sequer, mandam embaixadores a César propor-lhe o renderem-se, e obtêm a sua conservação, intercedendo os Remos.

Recebendo em reféns os principais da cidade[30] juntamente com dois filhos do mesmo rei Galba, e de posse de todas as armas da praça, aceita César a submissão dos Suessiões, e marcha contra os Belovacos que se haviam passado com seus haveres para Bratuspancio[31]. Achando-se com o exército cerca de cinco mil passos desta cidade, saem dela todos os anciões, e estendendo as mãos para ele, significam-lhe com palavras que vinham pôr-se debaixo de sua proteção e domínio, nem faziam guerra aos romanos. Da mesma forma, ao chegar à praça e assentar dos arraiais, extendendo as mãos do muro, entram meninos e mulheres a suplicar-lhe paz a seu modo.

Por eles intercede Diviciaco, que licenciando as tropas dos Heduos, depois da retirada dos Belgas, voltava para junto de César, e fala nesta substância: "Que em todo tempo haviam os Belovacos sido amigos e aliados da cidade[32] dos Heduos, mas impelidos por seus cabecilhas que espalhavam suportarem os Heduos, escravizados por César, todo gênero de afrontas e indignidades, fizeram guerra ao povo romano desquitando-se de seus aliados — E agora, cônscios de haverem sobre sua cidade atraído grande calamidade, tinham os impulsores da guerra fugido para Britania — Que imploravam a notória clemência de César não só os Belovacos, como os Heduos por eles: pois, usando de clemência com seus protegidos, havia César de aumentar o crédito dos Heduos entre todos os Belgas, de cujas tropas e recursos costumavam ajudar-se na guerra."

Em honra de Diviciaco e por amor dos Heduos, promete César tomá-los sob sua proteção e conservá-los; mas como era cidade de grande autoridade entre os Belgas e sobresaía em multidão de homens, exige-lhes seiscentos reféns. De posse destes e de todo armamento da praça, marcha daí para as fronteiras[33] dos Ambianos, que se submetem sem demora. Eram com estes comarcãos os Nervios, de cuja índole e costumes informando-se, colhe em resultado: "Não terem com eles entrada alguma mercadores, pois não consentiam lhes levassem vinho nem outros objetos de luxo, com que julgavam entorpecerem-se os ânimos e enervar-se o vigor; — serem mui rudes e bravos; — censurarem e acusarem os mais Belgas por se haverem submetido aos Romanos, renegando o pátrio valor; — e blasonarem de que não haviam mandar embaixadores a César, nem aceitar composição alguma."

Indo pelas fronteiras destes com três dias de marcha, é informado pelos cativos de estar o rio Sabis[34] não mais de dez mil passos distante de seus arraiais; acharem-se todos os Nervios acampados além deste rio, e aguardarem, aí, a vinda dos Romanos, fazendo causa comum com eles os Atrebates e Veromanduos, vizinhos seus, os quais haviam atraído a seu partido; esperarem ainda pelas tropas dos Aduatucos que já vinham em marcha; e haverem depositado as mulheres, e os que eram pela idade inúteis para combater, num lugar onde, por causa dos lagos, não podia penetrar o exército.

À vista disso, manda César adiante exploradores e centuriões escolher lugar próprio para arraiais. Dentre os Belgas submetidos e restantes Gauleses acompanhavam-no muitos nesta expedição, dos quais uns certos, como depois se soube dos cativos, observando a marcha ordinária de nosso exército nesses dias, fogem de noite para os Nervios, e persuadem-nos de que, medeiando grande quantidade de bagagens entre legião e legião, era coisa de nonada atacar a primeira legião quando entrasse no lugar dos arraiais, ainda sob cargas, achando-se distantes as outras que, derrotada ela, e saqueadas as bagagens[35], não ousariam resistir-lhes. Favorecia ainda o alvitre o emaranhado das selvas, porque não possuindo cavalaria a cuja sustentação nunca se dedicaram, e fortes só por sua infantaria, para impedir as incursões da cavalaria dos vizinhos, golpeavam os Nervios as árvores ainda tenras que curvavam para o chão, e entremeiando com plantas de espinhos os espaços entre os ramos que àquelas nasciam dos lados, formavam sebes que apresentavam na fortaleza a aparência de muros, por onde não só se não podia entrar, mas nem ainda enxergar. Contando com este obstáculo à marcha de nosso exército, entenderam dever abraçar o conselho.

Era o lugar, pelos nossos escolhidos para arraiais, um monte que desde o cimo vinha igualmente descendo até o rio Sabis, de que atrás falamos: cerca de duzentos passos do rio, nascia outro monte que ia parelhamente subindo[36], fronteiro e contrário a esse, por baixo descoberto, e no alto coberto de bosques a não poder a vista penetrar-lhe dentro. Tinham-se os inimigos ocultos nestes bosques; no descoberto avistavam-se ao longo do rio poucas guardas de cavalaria. Era a profundidade do rio de perto de três pés.

Seguia César com todas as tropas, precedido por sua cavalaria; mas a ordem e o teor da marcha eram diversos dos que foram pelos Belgas denunciados aos Nervios, Ao aproximar-se do inimigo, conduzia na forma do costume seis legiões expeditas, com as bagagens no couce, guardadas pelas duas legiões, de próximo alistadas, as quais fechavam a marcha. Atravessando o rio, empenham-se nossos cavaleiros, fundibularios e frecheiros, em luta com a cavalaria dos inimigos[37]. Acolhendo-se essa aos seus nos bosques, e voltando novamente de lá para atacar os nossos e não ousando estes persegui-la além do espaço descoberto, demarcavam neste meio tempo o lugar dos arraiais, e começavam de fortificá-lo as seis legiões primeiramente chegadas. Mal dão fé de nossas primeiras bagagens aqueles que se ocultavam nos bosques, (era esse o sinal entre eles convencionado para o ataque), na mesma ordem de batalha em que se achavam postados, voam com todas as tropas, e arremetem contra nossa cavalaria. Repelida e desordenada esta na primeira investida, correm com incrível rapidez ao rio, a ponto de se verem a um tempo inimigos nos bosques, inimigos no rio, inimigos a braços com os nossos; e subindo pelo monte acima com a mesma rapidez, acometem os arraiais, precipitando-se sobre os que estavam ocupados em fortificá-los.

Tudo isto tinha César a fazer a um tempo: mandar hastear o estandarte[38] anunciador da batalha, tocar alarme, chamar os soldados ocupados nas fortificações, recolher os que tinham ido mais longe por materiais[39], ordenar o exército em batalha, exortá-lo e dar a senha[40]. A mor parte destas coisas impediam-nas a brevidade do tempo e a crescente aluvião e incursão dos inimigos. A tais dificuldades eram único remédio a ciência e prática dos soldados que adestrados nas precedentes batalhas, podiam prescrever-se não menos acertadamente o que convinha fazer, que recebê-lo de outros; porquanto proibira César a todo lugar-tenente seu retirar-se da obra e de sua legião, antes de concluída a fortificação dos arraiais. Assim, à vista da celeridade e vizinhança dos inimigos já sem dependência de ordem executavam eles por si que importava.

Ordenando o necessário, corre pois a exortar os soldados, por onde lhos depara o acaso; e chegando à décima legião, só lhe dirige estas palavras — Que retenha a lembrança do antigo valor, conserve-se firme, e sustente galhardamente o ímpeto dos inimigos. E como estes já estavam a alcance de tiro, dá o sinal do combate. Correndo depois à outra parte para o mesmo fim, acha já o soldado empenhado na luta. Tamanha foi a estreiteza do tempo, e tal o ardor do inimigo no atacar, que não houve espaço para acomodar insígnias[41], nem pôr capacetes, nem tirar capas a escudos[42]. A qualquer parte que ia ter o soldado, ao deixar o trabalho da fortificação, alinhava-se junto aos primeiros pendões que encontrava, para não perder tempo em procurar os seus.

Formado o exército em ordem de batalha mais segundo a natureza do lugar, o declive do monte, e a necessidade presente o requeriam, que segundo a ciência e tática militar, sendo que em diversas legiões cada uma resistia ao inimigo em parte diversa, e que, como fica dito, metiam-se de permeio sebes densíssimas, interceptando a vista entre aquelas, não era possível colocar reservas a propósito, nem dar providências onde e como era mister, nem a todas transmitir ordens de um só. Assim, em posição tão excepcional, eram também vários os sucessos da batalha.

Colocados como se acharam na ala esquerda, os soldados da nona e décima legiões, arremessando os pilos do alto, precipitavam no rio os Atrebates cansados da carreira e desangrados pelas feridas, pois lhes haviam esses cabido em sorte; e perseguindo-os com as espadas nos rins, matavam grande número deles, embaraçados ao tentarem-lhe a passagem. Não duvidando, depois, atravessar o rio, e avançar em lugar desigual, convertiam eles novamente à fuga aos inimigos, que voltando rosto, renovavam o combate. Da mesma forma, em outra parte, outras duas diversas legiões, a undécima e oitava, rechaçando os Veromanduos que lhes faziam frente, descendo do alto, pelejavam nas mesmas margens do rio. E, então, desguarnecidos quase inteiramente os arraiais pela frente e parte esquerda, ocupando a ala direita a legião duodécima e não longe dela a sétima, os Nervios, comandados por seu supremo caudilho Boduognato, feitos num corpo arremetem todos contra este único ponto, deles no empenho de envolver as legiões pelo lado aberto, deles no de ganhar o lugar cimeiro do campo.

Ao mesmo tempo nossos cavaleiros e peões armados a ligeira, que sendo conjuntamente rechaçados no primeiro assalto, como fica dito, acolhiam-se ao abrigo dos arraiais, encontrando inimigos pela frente, fugiam de novo para outra parte; e os criados do exército[43], que avistando da porta decumana[44] e do cimo do monte[45] os nossos passarem o rio vencedores, tinham saído a prear, vendo depois andarem inimigos nos arraiais, desatavam também a fugir. Ouvia-se igualmente o clamor e frêmito dos que acompanhavam as bagagens, e tomavam aterrados para outro lado. Abalado com isto, a cavalaria dos Treviros, que tem entre os Gauleses opinião de mui esforçada, e vinha em auxílio de César, enviada por sua cidade, vendo encherem-se os arraiais de multidão de inimigos, estarem em aperto e quase cercadas as legiões, fugirem derramadamente em todas as direções creados, cavaleiros, fundibularios e Numídas, voltava para os seus, dando nossas coisas por perdidas e levando consigo a notícia de havermos sido derrotados, e acharem-se os inimigos de posse de nossos arraiais e bagagens.

Depois de haver exortado a décima legião, passa César à ala direita, onde vê os seus assoberbados pelo inimigo, e cerrados com os estandartes num lugar, embaraçarem-se no combate uns aos outros os soldados da duodécima legião, mortos todos os centuriões da quarta coorte juntamente com o alferes, tomado o estandarte, mortos ou feridos quase todos os centuriões das demais coortes, e entre esses trespassado de muitas e graves feridas o valorosíssimo primipilar[46] Publio Sextio Baculo, a ponto de não poder suster-se, mostrarem-se os restantes remissos, e retirarem-se da peleja, evitando os tiros, alguns dos da retaguarda abandonados a si; não cessarem de vir inimigos subindo pela frente, nem de apertar por um e outro lado; e acharem-se as coisas no último apuro, sem haver socorro de que se pudesse lançar mão; tomando então o escudo de um soldado da retaguarda, pois não trouxera o seu, avança para a primeira linha, e manda os soldados carregarem sobre o inimigo, abrindo as fileiras, para melhor se poderem servir das espadas. Recobrados com sua vinda esperança e ânimo, porque ainda em tal extremidade desejava cada um mostrar-se corajoso diante do general, retarda-se por um pouco o ímpeto dos inimigos.

Vendo achar-se da mesma forma assoberbada a sétima legião, que estava postada perto, recomenda César aos tribunos dos soldados façam juntarem-se pouco e pouco as legiões, e atacarem o inimigo reunidas. Depois de executada a manobra, podendo auxiliar-se uns aos outros, e não temendo ser cercados pelo inimigo, entram a resistir mais ousadamente, e a pelejar com maior ardor. Neste comenos eram os soldados das duas legiões, que na retaguarda guardavam as bagagens, vistos pelo inimigo do cimo do monte dobrar o passo à notícia da batalha; e Tito Labieno, depois de senhor dos arraiais inimigos, observando das alturas o que se passava nos nossos, mandava-nos em socorro a décima legião, que conhecendo pela fuga dos cavaleiros e criados em que extremidade estavam as coisas, e quanto risco corriam as legiões, os arraiais e o general, punha toda diligência na celeridade da marcha.

Tamanha foi a mudança operada com a vinda desses, que os mesmos nossos que haviam caído crivados de feridas, renovavam o combate, apoiando-se nos escudos[47]; os criados, ao ver o terror nos inimigos, até inermes os atacavam armados; e os cavaleiros, para a troco de esforço resgatar a vergonha da fuga, por toda parte combatiam na frente dos legionários. Mas, ainda na última esperança de salvação, tanto valor mostravam os inimigos, que, caídos os primeiros, vinham-lhes por sobre outros, que pelejavam de cima dos corpos desses, acumulando cadáveres sobre cadáveres, para como de um comoro[48] atirar dardos contra os nossos, e reenviar-lhes os pilos interceptados: de modo que não é de admirar se homens de tal coragem ousaram, no acometer, passar tão largo rio, galgar tão altas ribanceiras, e subir a lugar tão empinado, sendo que tamanha intrepidez facil tornava o dificílimo.

XXVIII

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Dada esta batalha e destruído quase inteiramente o povo e nome dos Nervios, os anciãos que conjuntamente com meninos e mulheres se achavam, como dissemos, acantoados nos esteiros e lagoas, ao receber a notícia dela, como nada julgassem defeso a vencedores, nem seguro para vencidos, por acordo comum dos que restavam, mandam embaixadores a César, e lhe fazem sua submissão. No mencionar a calamidade da cidade diziam ver-se reduzidos de seiscentos a três senadores e de sessenta mil apenas a seicentos homens capazes de pegar em armas. Mostrando-se misericordioso com miseráveis e suplicantes, os conserva César com todo cuidado, permitindo-lhes usarem de suas terras e cidades, e ordenando aos vizinhos proibissem aos seus ofendê-los e prejudicá-los.

Os Aduatucos, que acima dissemos virem com suas tropas em marcha a socorrer os Nervios, voltaram do meio do caminho, ao saber desta batalha; e abandonando todas suas cidades e castelos, se passaram com tudo o que era seu, para uma praça admiravelmente fortificada pela natureza; pois tinha por todos os lados em roda altíssimas rochas talhadas a pique, oferecendo unicamente por um deles uma subida doce de cerca de duzentos passos, a qual haviam cingido de duplicado altíssimo muro, colocando neste, moles de grande peso e traves aguçadas. Descendiam esses dos Cimbros e Teutões que, ao passar à nossa província e à Itália, tinham aquém do Rim deixado uns seis mil homens de guarda às bagagens, que não podiam levar consigo. Estes, depois de mortos aqueles[49], perseguidos muitos anos pelos vizinhos, ora atacando numa parte, ora defendendo-se em outra, feita por último a paz com todos, escolheram este lugar para seu domicílio.

À primeira chegada de nosso exército faziam eles freqüentes sortidas, contendendo com os nossos em pequenas refregas; fechados depois por uma circunvalação de doze pés, vinte cinco mil em circunferência, com muitos castelos fortificados, continham-se dentro da praça. Quando, concluídas as mantas de guerra, e construído o terrado, viram levantar-se ao longe uma torre, a princípio perguntavam do muro, zombando de nós, para que se fazia tamanha máquina a tamanha distância? com que mãos ou forças confiavam homens de tão pequena estatura, (somos geralmente desprezados dos Gauleses por nossa estatura pequena comparativamente à sua), assentar contra o muro uma torre de tão enorme peso?

Quando porém a viram mover-se e apropinquar-se aos muros, abalados com tão novo e extraordinário espetáculo, enviam a César embaixadores a propor pazes nestes termos: "Que julgavam ser não sem auxílio divino o fazerem os romanos guerra, podendo mover com tanta presteza máquinas de tamanha altura, para combater de perto; — que ao domínio dos mesmos se submetiam a si e quanto lhes pertencia, implorando, se César por sua notória clemência resolvesse conservar os Aduatucos, uma única coisa, que era o não serem despojados das armas, porque tinham por inimigos a quase todos os vizinhos, que lhes invejavam o valor, e dos quais se não podiam defender sem armas; — e se a tal extremidade haviam de ser reduzidos, melhor lhes era acabarem logo às mãos dos Romanos, que serem mortos a tormento por aqueles, entre os quais costumavam dominar.

A isto respondeu César: "Que mais por costume seu, que pelo merecerem eles, havia conservar-lhes a cidade, se se rendessem antes do ariete tocar no muro[50], não podendo, porém, ser aceita a submissão sem prévia entrega das armas; — que faria por eles o mesmo que fez pelos Nervios, pois havia determinar aos vizinhos não contendessem com os submetidos ao povo romano." Levada aos seus esta resposta, replicaram que executariam quanto lhes fosse ordenado. Arrojando, então, do muro no fosso fronteiro à praça tamanha quantidade de armas, que os montões delas quase igualavam a mor altura do muro e do terrado, mas retendo oculta cerca de terça parte, como depois se verificou, patenteadas as portas, estiveram de paz todo o dia.

XXXIII

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Pela volta da tarde manda César fechar as portas, fazendo sair da cidade os soldados, para que com a noite não praticassem algum desacato contra os habitantes. Estes, porém, concertado de antemão, como se evidenciou, o plano de traição, por julgarem que, depois de sua submissão, os nossos ou não haviam de fazer a guarda do campo, ou pelo menos haviam fazê-la mal, deles com as armas que retiverem ocultas, deles com escudos de cascas de árvores e vimes tecidos, que tinham à pressa coberto de couro conforme a brevidade do tempo, na terceira vela da noite, por onde a subida para nossas fortificações parecia menos árdua, arremetem subitamente da praça com todas as suas forças. Dado à pressa o alarma por meio de fogos, segundo anteriores ordens de César, para ali se corre dos próximos castelos; e com tanta bravura pelejam os inimigos, quanta era de esperar de homens resolutos que combatiam em caso extremo e lugar desigual, contra os que lhes faziam tiros das trincheiras e torres, e quando toda esperança de salvação estava posta só no valor. Mortos até quatro mil deles, são os restantes repelidos para dentro da praça. No seguinte dia, depois de arrombadas as portas, não resistindo já ninguém, e introduzidos os nossos, manda César vender em almoeda tudo quanto existia dentro da praça. O número total dos vendidos, segundo as relações apresentadas pelos compradores, foi de cinqüenta e três mil cabeças.

Entrementes, por Publio Crasso, que com uma legião tinha mandado para as partes dos Venetos[51], Unelos[52], Osismos[53], Curiosolitas[54], Esuvios[55], Aulercos[56] e Redones[57], povos vizinhos do Oceano, é feito sabedor de que todas essas marítimas cidades se haviam submetido ao poder e domínio dos Romanos.

Pacificada assim toda Gália, tal foi a nomeada desta guerra que grassou pelos bárbaros, que até nações que habitavam além do Rim, enviaram embaixadores a César, obrigando-se a dar-lhe reféns e cumprir quanto ordenasse. Como, porém, tinha pressa de ir à Itália e ao Ilirico[58], adiou ele para o princípio do próximo estio a resposta a tais embaixadas; e levando as legiões a quartéis de inverno entre os Carnutes[59], Andes[60] e Turones[61], cidades vizinhas do teatro da guerra, pôs-se a caminho para Itália. Foram por esta campanha decretados, em vista de suas comunicações, quinze dias de suplicações[62], o que antes dele ainda a nenhum general havia acontecido.

  1. Os de Sens.
  2. Os de Reims.
  3. Da Gália Celtica.
  4. Outras edições trazem Antebrogio.
  5. Os de Soissons.
  6. Os de Beauvoisis, Oise.
  7. A Inglaterra, ou Grã-Bretanha.
  8. Os de Hainaut, vale do Sambre.
  9. Os de Artois.
  10. Os de Amiens, vale do Soma.
  11. Os de Saint-Omer.
  12. Os de Brabant, ducado de Cleves.
  13. Os de Caux.
  14. Os de Verin, e Vermandois.
  15. Os de Narnur.
  16. Os de Cologne, Liége, Buillon e Luxemburgo.
  17. O rio Aisne.
  18. Cidades, por povos, repúblicas, países, no mesmo sentido em que está Remos.
  19. Bibracte, Bievre, distinta da Bivracte dos Heduos, Autum.
  20. Testudem; para fazer a testudem que apresentava a figura de uma tartaruga, formavam em quadrado, conservando-se em pé a primeira fileira do lado dos inimigos, curvando-se as outras até a derradeira que punha joelho em terra, e levantando cada soldado sobre a cabeça o escudo apoiado contra os dos vizinhos, avançavam assim até às muralhas da praça; algumas vezes uma segunda fileira de soldados trepava sobre a primeira, e por cima desta espécie de teto chegava à altura dos muros.
  21. Do exposto no c. 4 pode-se conjecturar que o exército belga era de 300 mil homens; e o de César, constante de oito legiões e da cavalaria auxiliar, de 50 a 55 mil.
  22. Veja-se o c. 2 deste livro.
  23. Não nos sendo possível, a não querermos dar uma simples imitação de toda a passagem, dividir sem inconveniente este extenso período tão cheio de incidentes intimamente ligados, tratámos de apanhar o estilo para evitar a confusão. Os periodos desta natureza harmoniosos e claros no latim onde as relações das palavras são determinadas pelos casos, tornam-se de ordinário empeçados e obscuros nas linguas sem casos, como o português e suas análogas.
  24. Nesse lugar do rio.
  25. Fora, por seria; forma de condicional mui usada pelos clássicos, e abandonada depois porque se confundia com o pretérito, mas que cabe neste lugar, e ainda hoje se emprega em muitos casos.
  26. Fronteiras, por território.
  27. Novon, ou como querem outros, Soissons.
  28. Mantas de guerra, espécies de casinholas movediças, a cujo abrigo aproximavam-se os sitiantes da praça para minar-lhe as muralhas. Tinha cada uma 16 pés de comprido, 8 de alto, e 7 de largo. Eram construídas de madeira leve com teto sólido para resistir às pedras lançadas pelos sitiados. Cobriam-nas com couros frescais por amor do fogo; e reunindo muitas de frente, formavam com elas uma como galeria rondante.
  29. O terrado, montão de terra, calçada factícia mais ou menos elevada, feita para que as torres pudessem ser aproximadas da praça em terreno unido. Havia no alto das torres uma plataforma donde os soldados faziam tiros contra os sitiados.
  30. Da cidade, isto é, do país, da república.
  31. Beauvais, ou segundo outros, Gratepenche.
  32. Da cidade, isto é, da república dos Hedues.
  33. Fronteiras por território.
  34. O Sambre.
  35. Saqueadas as bagagens, convém não confundir bagagens com cargas na linha acima. ainda sob cargas: o primeiro termo designa as bagagens do exército em geral, as equipagens, as máquinas, etc.: o segundo, a bagagem particular de cada soldado isto é, além de suas armas, estacas para formar trincheiras, um machado, viveres para quinze dias, e às vezes para um mês.
  36. Não tendo o português termos correspondentes aos latinos, declivis (inclinado para baixo) e addivis (inclinado para cima), empregámos para bem exprimir o pensamento do autor, os verbos freqüentativos, vir descendo, e ir subindo, que aliás comunicam muita animação ao dizer.
  37. A cavalaria dos Atrebates e Veromanduos, que se haviam reunido aos Nervios, sendo que as forças dos últimos constavam de infantaria.
  38. Mandar hastear o estandarte: este estandarte em latim, Vexillum, era uma pequena bandeira vermelha que se içava sobre o pretório ou tenda do general, quando havia batalha, como sinal para correr às armas.
  39. Por materiais: isto é, por terra, troncos de árvores, cespedes, para a fábrica das trincheiras, antes muros dos arraiais, os quais eram verdadeiras praças fortes; se pusessemos, por fachina, não traduziríamos, o aggeris petendi causa, porque fachina é menos compreensivo que materiais.
  40. Dar a senha: a senha não se transmitia, como entre nós, de viva voz, mas escrita em taboazinhas que os centuriões se passavam uns aos outros.
  41. Ornatos ou distintivos dos oficiais superiores.
  42. Os soldados romanos tinham envoltórios de peles para conservar os escudos em bom estado.
  43. Os críados do exército: serviam os soldados, e não eram hóspedes nas armas, porque faziam os mesmos exercícios e combatiam quando era necessário.
  44. Da porta decumana: a porta decumana por onde ordinariamente se serviam os criados, era oposta à pretoriana e ficava no fundo do campo.
  45. Do cimo do monte: o monte ou cerro em que se achavam colocados os arraiais.
  46. Primipilar, era o centurião da primeira centúria, o primeiro depois dos tribunos; assistia ao concelho de guerra e tornava-se cavaleiro de direito.
  47. O escudo dos legionários, scutum, tinha quatro pés de altura.
  48. O original diz ex tumudo, isto é, de um oiteiro. Empregámos neste caso a comparação, para como de um comoro atirar dardos, etc., por nos parecer que o português não comporta o arrojado da metáfora do texto.
  49. Os Cimbros e Teutões exterminados por C. Muno.
  50. Antes do aríete tocar no muro: entre os antigos, desde que o ariete tinha tocado no muro da praça sitiada, não era mais permitido entrar em ajuste com os sitiantes; se a praça era tomada, tudo quanto nela se continha, material, homens, mulheres, meninos, pertencia aos vencedores como despojo da guerra. O ariete ou vai-vem, era uma máquina de guerra que consistia numa enorme trave guarnecida em sua extremidade com uma cabeça de carneiro de ferro ou bronze, e suspensa a uma forte armação de madeira com cadeias de ferro, e grossos cabos. Punham-na em movimento a força de braços. Cem e às vezes mais soldados com o socorro dos cabos a puxavam para trás, e impeliam para diante de encontro ao muro da praça, onde feria com grande violência, abalando-o.
  51. Os do Morbian.
  52. Os do departamento da Mancha.
  53. Os de Caraix, na Bretanha.
  54. Os de Guingamp.
  55. Os da diocese de Seez (Orne).
  56. Os de Maine.
  57. Os de Renes.
  58. A Iliria.
  59. Os de Chartrain.
  60. Os de Anjou.
  61. Os de Turena.
  62. Quinze dias de suplicação: segundo comunicação do general vitorioso, eram pelo senado ordenadas suplicações, durante as quais os templos permaneciam abertos dois, três e quatro dias; os quinze dias concedidos a César são uma brilhante exceção. Nesses dias havia banquetes públicos, a que assistiam as estátuas dos deuses deitadas sobre leitos; daí o nome, lectisternium, (lectus, leito, e sternere, deitar) dado a tais banquetes.O Senado em corpo ia sacrificar ao templo de Júpiter Capitolino.Empregámos aqui o termo suplicações, e não preces, não só porque o primeiro verte melhor, suplicatio, que tem força ativa, e vale o mesmo que o suplicar, como porque o segundo se confundiria no soar das vozes com as preces que a nossa Santa Igreja manda celebrar, confusão que ainda na aparência cumpre evitar.

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Argumento

O lugar-tenente de César, Servia Galba, subjuga certas nações dos Alpes sitas para as partes dos Alobroges, derrotando-as em uma sortida quando rebeladas lhe cercavam os arraiais C. 1-6. Rebelam-se ao mesmo tempo, retendo nossos oficiais, os Armoricos, isto é, os Venetos, mas são afinal domados por Césarem combate naval C. 7-16, O lugar-tenente de César, Titurio Sabino, vence os Unelos C. 17-19. Crasso, os Aquitanios C. 20-27. Guerreia César os Morinos e Menapios em quanto lho permite a boa estação, conduzindo com a volta do mau tempo o exército a quartéis de inverno C. 28-29.

Partindo para a Itália, enviou César a Servio Galba com a duodécima legião e parte da cavalaria a subjugar os Nantuates[1], Veragros[2], e Sedunos[3], que, das fronteiras dos Alobroges, lago Lemano e rio Rodano, extendem-se até às cumiadas dos Alpes. Fê-lo no intuito de estabelecer livre passagem pelos Alpes, por onde os mercadores transitavam com grandes riscos e portagens[4]. A este permitiu-lhe invernar com a legião naqueles lugares, se o julgasse conveniente. Feliz em diversos recontros, depois de tomar muitos castelos, e receber embaixadores e reféns de todos esses povos, resolveu Galba, feita a paz, colocar duas coortes entre os Nantuates, e invernar com as restantes na aldeia dos Veragros, chamada Octoduro[5], que demora num vale com planície não grande, e altíssimos montes em roda. Como esta se achasse dividida em duas partes por um rio, uma delas concede aos gauleses, a outra, que fortifica com trincheira e fosso depois de abandonada por eles, a destina às coortes para quartéis de inverno.

Depois de passados muitos dias da estação invernosa, e expedida ordem de ser para ali transportado trigo, é de repente certificado pelos exploradores de haverem os Gauleses abandonado de noite a parte da aldeia, que lhes fora assinada, e acharem-se os montes a cavaleiro ocupados por grandíssima multidão de Sedunos e Veragros. Estas eram as causas de tomarem os Gauleses a súbita resolução de renovar a guerra e oprimir-nos: primeiramente, desprezarem a legião por seu pequeno número de soldados, achando-se ela incompleta pelo desfalque das duas coortes, e de muitos que tinham sido mandados destacadamente por víveres; depois, julgarem também que, quando corressem dos montes sobre o vale e nos fizessem tiros na arrancada, nem sequer o primeiro ímpeto lhes poderia ser sustentado pelos nossos, em razão da desigualdade do lugar. Acrescia doerem-se que lhes fossem tirados os filhos a pretexto de reféns, e persuadirem-se que os romanos, não tanto por amor do trânsito, como com vistas no perpétuo domínio, tentavam ocupar as cumiadas dos Alpes, incorporando estes lugares à sua província limítrofe.

Recebendo esta notícia, sem estar ainda concluída a obra dos quartéis e fortificações, nem assás providenciado o abastecimento de trigo e vitualhas, (pois feita a submissão e entregues os reféns, nada julgava ter a temer dos Gauleses), dá-se Galba pressa a convocar concelho e entra a requerer os pareceres dos vogais, Aí[6], sobrevindo contra a opinião tão repentino perigo, notando-se já repletas de multidão de armados quase todas as alturas, e não se podendo contar com socorro, nem abastecimento de víveres, fechados os caminhos, emitiam-se, perdida quase toda outra esperança, pareceres desta natureza: "Que, abandonadas as bagagens, e feita a sortida, se buscasse a salvação nos mesmos caminhos, por onde tinham vindo." À maior parte pareceu, todavia, conveniente que, reservado este remédio para caso extremo, se defendessem no entanto os arraiais e aguardasse o resultado.

Mal sobrado depois disto um breve espaço para colocar e dispor o mais necessario à defensão, entram logo os inimigos, a sinal dado, a correr de todas as partes dos montes, e a despedir para a trincheira chuveiros de cantos e arremessões[7]. A princípio resistiam os nossos vigorosamente com forças intactas, não perdendo o emprego de um só tiro feito do alto[8]; quando alguma parte dos arraiais parecia estar em aperto por desfalque de defensores, a ela acudiam, dando-lhe auxílio; mas levavam o pior no jogo, porque os inimigos cansados do longo pelejar retiravam-se do combate, sendo revezados por gente de fresco e outro tanto não podiam eles fazer, sendo que em razão de seu pequeno número não tinham faculdade de arredar pé do posto uma vez ocupado, para recobrar forças, não só os cansados, mas nem ainda os feridos.

Durando a luta mais de seis horas, e falecendo já aos nossos não só forças, mas também tiros, e apertando mais fortemente os inimigos que, por irem os nossos afrouxando, começavam a fazer brecha na trincheira e a entupir o fosso, e estando as coisas no último apuro, o primipilar Publio Sextio Baculo, que dissemos haver crivado de feridas na batalha com os Nervios, e igualmente o tribuno dos soldados Caio Voluseno, militar de grande experiência e bravura, correm a Galba, e convencem-no de que a única esperança de salvação estava em experimentar o remédio extremo, fazendo a sortida. Assim, convocados à pressa os centuriões, ordena aos soldados que, interrompendo por um pouco o pelejar, se limitem a aparar os tiros do inimigo, e a refocilar-se da fadiga; depois, arremetendo dos arraiais ao sinal dado, ponham toda esperança de salvação só no valor.

Executam o determinado; e rebentando subitamente por todas as portas[9], aos inimigos nem dão tempo de conhecerem o que se operava, nem de reunirem-se para a resistência. Assim, trocadas as cenas, aos que vinham na esperança de senhorear os arraiais, matam-nos, envolvendo-os de todos os lados, e mortos mais da terça parte de trinta mil destes bárbaros, (tantos constava haverem atacado o campo), aos restantes aterrados convertem-nos à fuga, não lhes consentindo parar nas mesmas alturas. Desbaratados e desarmados todos os inimigos, recolhem-se os nossos a seus entrincheiramentos. E porque, depois desta batalha, não queria tentar mais vezes a fortuna, recordando-se ter vindo a quartéis de inverno com um fim, e haver ela disposto outra coisa, movido principalmente pela carência de trigo e vitualhas, no seguinte dia, depois de mandar incendiar todos os edifícios desta aldeia, começou Galba a regressar à província; e não lhe estorvando, nem demorando a marcha inimigo algum, conduziu a legião salva e intacta aos Nantuates, e daí aos Alobroges, entre os quais invernou.

Como depois disto com todo fundamento julgasse César a Gália pacificada, havendo sido domados os Belgas, expulsos os Germanos, vencidos os Sedunos nos Alpes, e partisse no princípio do inverno para o Ilirico, por desejar também conhecer essas nações e regiões, rebentou súbita güerra na Gália. Eis a causa dela. O moço Publio Crasso invernava com a sétima legião entre os Andes nas vizinhanças do mar Oceano. Havendo aí falta de trigo, a diversos prefeitos e tribunos dos soldados expedira por ele às cidades vizinhas, e entre estes a Tito Terrasidio aos Esuvios, Marco Trebio Galo aos Curiosolitas, e Quincio Velanio com Tito Silio aos Venetos.

Mui grande e ampla é a preponderância dos Venetos em toda costa marítima destas regiões, já porque possuem muitos navios em que costumam navegar para a Britania, já porque excedem os outros povos comarcãos na ciência e prática das coisas náuticas, já porque num mar borrascoso e aberto, salpicado com raros portos, de que estão de posse, têm por tributários seus a quase todos que por ele navegam. Foram esses que deram primeiro o exemplo de prender a Silio e Velanio, porque por eles esperavam recobrar os seus reféns entregues a Cassio. Induzidos pela autoridade desses, segundo são os Gauleses precipitados e levianos em suas resoluções, prendem também os vizinhõs no mesmo presuposto a Trebio e Terrasidio, e enviados embaixadores com presteza, conjuram-se entre si por seus principais[10], obrigando-se a nada fazer senão de acordo comum, e a correr conjuntamente uma e a mesma fortuna; e solicitam às restantes cidades, para preferirem viver na liberdade herdada de seus maiores a suportar o jugo dos Romanos. Reduzida toda a costa a seu partido deles, mandam a Crasso esta embaixada em comum: "Que, se queria recobrar os seus, lhes havia de restituir os reféns."

Informado disto por Crasso, César que estava longe, mandou, no entretanto, ordem, para se construirem galeras[11] no rio Liger[12], que desemboca no Oceano, tomarem-se remeiros da província, e aprestarem-se marinheiros e pilotos. Aparelhado tudo com presteza, logo que o permitiu a estação, dirigiu-se em pessoa ao exército. Conscios de haverem cometido um grande atentado contra si próprios[13], retendo e prendendo os embaixadores, pessoas em todo tempo e entre todas as nações invioláveis e sagradas por seu caráter, resolvem os Venetos e demais cidades, conhecida a vinda de César, preparar guerra correspondente à grandeza do perigo, providenciando principalmente o que respeitava ao uso dos navios, com tanto mais esperança, quanto mais confiavam na natureza do lugar. Sabiam serem as vias terrestres cortadas de lagos salgados, a navegação embaraçosa para os não habituados a ela, pela ignorância dos lugares e raridade dos portos, não se poderem nossos exércitos, em razão da carência de trigo, demorar muito tempo entre eles; e, ainda quando sucedesse tudo contra a esperança, serem todavia senhores do mar por suas esquadras, e não terem os Romanos abundância de navios, nem conhecimento dos parceis, portos e ilhas da costa, em que haviam de fazer a guerra, sendo a navegação em mar fechado[14] mui diversa da que se faz no vastíssimo e imenso Oceano. Concebido este plano, fortificam suas cidades, transportam dos campos cereais para elas e reunem na Venecia, onde constava haver César de fazer primeiro a guerra, quanto mais navios lhes é possível. Trazem a seu partido os Osismos, Lexovios[15], Namnetes[16], Ambiliatos[17], Morinos, Diablintres[18], Menapios; e chamam tropas auxiliares da Bretania, que demora contra estas regiões.

Grandes por certo eram as dificuldades que apresentava esta guerra; mas muitas eram também as considerações que levavam César a empreendê-la: — O escândalo da prisão dos cavaleiros romanos[19], a rebelião depois da submissão e entrega dos reféns, a conjuração de tantas cidades[20], o receio principalmente que deixando impune esta parte[21], a exemplo dela, se rebelassem todas as demais cidades da Gália — Vendo, pois, propenderem quase todos os Gauleses para nova ordem de coisas, serem inconstantes e prontos em recorrer às armas e amando naturalmente a liberdade, aborrecerem os homens a escravidão, resolveu disseminar suas forças, fazendo-as ocupar mais amplo espaço, antes que conspirasse maior número de cidades.

Assim, ao seu lugar-tenente Tito Labieno com a cavalaria manda-o para os Treviros[22] que vizínham com o rio Rim, ordenando-lhe dirija-se aos Remos e mais Belgas para contê-los no dever, e tolha a passagem do rio aos Germanos, que se diziam chamados pelos Gauleses como auxiliares, se a força tentassem fazê-la em barcos. A Publio Crasso com doze coortes legionárias e grande porção de cavalaria expede-o para a Aquitania, afim de embargar a remessa de socorros dali[23] para a Gália Celtica, e o congregarem-se tantas nações. Ao seu lugar-tenente Quincio Titurio Sabino com três legiões destaca-o para os Unelos, Curiosolitas e Lexovios, com o intuito de fazer diversão nessas forças. Ao moço Decimo Bruto prepõe-no à armada, bem como aos navios gauleses, que tinha feito juntar dos Pictões[24], Santones, e mais regiões pacificadas, ordenando-lhe parta para os Venetos, logo que seja possível. Depois disto, para ali se dirige em pessoa com as tropas de pé.

Construídas ordinariamente na extremidade de linguetas de terra[25] e promontórios que entram pelo Oceano, por tal forma se achavam dispostas suas cidades, que não davam acesso à gente de pé, quando enchia a maré, (o que sempre acontece duas vezes no espaço de vinte e quatro horas), nem aos navios, porque, vasando ela, corriam risco de despedaçar-se nos baixos. Assim era o assédio das mesmas estorvado pelo fluxo e refluxo; e quando assoberbados pela grandeza da circunvalação, expelido o mar com aterramentos e molhes levados quase à altura dos muros da praça, começavam a desesperar a salvação, fazendo vir grande número de embarcações, nas quais abundavam, transportavam-se os habitantes com seus haveres a outras cidades vizinhas, onde continuavam a defender-se com a mesma superioridade de posição. Praticavam-no com mais facilidade boa parte do estio, porque nossos navios eram então embaraçados pelas tempestades, e dificílimo se tornava navegar em mar vasto e aberto, com grandes marés, e mui poucos ou nenhuns portos.

Os seus navios eram feitos e aparelhados por este jeito. Tinham os cascos mais chatos do que os nossos, para mais facilmente resistirem aos parceis na baixa-mar; as proas sumamente levantadas, e da mesma forma as popas acomodadas à grandeza dos escarcéus e tempestades. Eram todos construídos de carvalho, e próprios a suportar qualquer embate, com traves transversais[26] de um pé de espessura, seguras com pregos de ferro de uma polegada de grossura, âncoras que se prendiam a correntes de ferro em vez de amarras, e velas de peles bem preparadas ou por falta de linho, ou pelo não saberem manipular, ou, o que é mais verosímil, por julgarem que tantas tempestades, fúria de ventos e peso de navios, não se podiam bem suster e reger com outras velas. Na luta com eles, a única vantagem que tinha nossa armada, era a da celeridade no impulso dos remos; no mais eram eles mais próprios para a navegação destas paragens, e resistiam melhor à violência dos mares e tempestades. Nem podiam nossas galeras empecer-lhes com o rostro[27], (tanta era sua fortaleza!), nem jogar-lhes por sua altura arremessões com boa pontaria; e pela mesma causa menos comodamente se sobjugavam no abalroar. Acrescia que, começando de embravecer o vento, não só mais facilmente, à mercê dele, aturavam o mau tempo, mas encalhavam também nos baixos com menos risco, sem receiar pedras e rochedos, quando os abandonava a maré, acidentes esses todos mui de temer para nossos navios.

Depois de expugnadas muitas praças, vendo ser trabalho baldado, pois não podia com isso obstar a retirada dos inimigos, nem empecer-lhes, resolveu César esperar, a armada. Mal apareceu, e houveram dela vista os inimigos, saem do porto, e lhe fazem rosto uns duzentos e vinte navios seus, mui bem apercebidos e aparelhados de todo o necessário. Nem Bruto, que comandava a armada, nem os tribunos dos soldados e centuriões, a que fora confiada cada galera, estavam assás certos do que convinha fazer, ou que gênero de peleja cumpria adotar; pois sabiam não poder empecer-lhes com o rostro. Armadas as torres[28], tanto as excediam em altura as popas dos navios bárbaros, que não era possível acertar-lhes bem a pontaria de baixo, e os tiros dos Gauleses disparados de cima empregavam-se bem nos nossos. Uma única coisa de grande utilidade havia sido preparada pelos nossos e vinha a ser umas foices mui cortantes, encabadas e pregadas em longos vara-paus, quase à feição das foices murais[29]. Com estas eram apanhados os cabos que prendiam as antenas aos mastros dos vasos inimigos, empuxados e cortados, impelindo-se os nossos à voga arrancada. Cortados esses, caíam as antenas; e estando toda esperança dos navios gauleses nas velas e aparelhos, ficavam eles sem isso completamente desarmados. O mais do combate estava posto no valor no qual eram nossos soldados facilmente superiores, e ainda mais passando-se a ação aos olhos de César e do exército, o qual ocupava todos os oiteiros e alturas, donde havia vista sobre o mar, de modo a não poder ficar oculta nenhuma proeza de vulto.

Derribadas, como dissemos, as antenas, cercando duas e três galeras nossas cada navio desaparelhado, entravam-no nossos soldados mui esforçadamente, e rendiam-no. Vendo por tal forma tomados muitos navios seus sem haver para isso remédio põem os bárbaros toda esperança de salvação na fuga. E virados já os navios na direção do vento, sobreveiu de súbito tanta calmaria, que não foi mais possível mudarem de lugar. Muito contribuiu este acidente para o complemento da vitória; pois atacando-os um a um, os rendiam os nossos, de sorte que, durando o combate quase desde as dez horas do dia[30] até o pôr do sol, mui poucos deles chegaram à terra com o favor da noite.

Com esta batalha ficou terminada a guerra dos Venetos e de toda costa marítima; porquanto toda a mocidade e ainda os homens maduros, em quem se notava ou experiência ou alguma dignidade, haviam a ela concorrido, bem como todos quantos navios tinham coligido de qualquer parte, perdidos os quais, aos que restavam nem ficavam meios de retirar-se, nem de defender suas cidades. Rendem-se pois sem condições a César, que resolveu dar neles um severo exemplo, para que o direito das gentes fosse no porvir melhor respeitado pelos bárbaros. Assim, mandando matar os senadores, vendeu os demais como escravos[31].

Enquanto isto se passa na Venecia, com as tropas que recebera de César, chega Quincio Titurio Sabino às fronteiras dos Unelos. Mandava sobre estes Viridovix, que exercia o poder supremo em todas as cidades rebeladas, donde reunira grandes forças e bastimentos. Dentro em poucos dias matam os Aulercos[32], Eburives[33] e Lexovios a todos seus senadores, porque se opunham à guerra, e fecham as portas, fazendo causa comum com Viridovix, a quem por cima disto se reune de diversas partes da Gália grande multidão de gente perdida e ladrões, distraídos da agricultura e trabalho quotidiano, pela esperança do saque e paixão da guerra. Provido de tudo continha-se Sabino nos arraiais, não obstante haver Vindovix acampado a duas milhas de distância, e oferecer-lhe todos os dias batalha com as tropas formadas, de modo que não só já era ele desprezdo pelos inimigos, mas até não poucas vezes mordido de nossos soldados. Tal foi a opinião de terror espalhada a seu respeito, que já os inimigos ousavam aproximar-se às nossas trincheiras. Obrava porém assim, por julgar não dever o lugar-tenente, principalmente estando ausente o general, arriscar batalha contra tamanha multidão de inimigos, senão em lugar vantajoso e ocasião oportuna.

Confirmada esta opinião de temor, dentre os gauleses auxiliares que consigo tinha, escolhe um homem hábil e astuto, e com grandes donativos e promessas persuade-lhe passe aos inimigos, insinuando-lhe o que convinha fazer. Este, logo que a eles chega como transfuga, põe-lhes diante dos olhos o temor dos Romanos, os apertos em que se acha César entre Venetos[34], e não estar Sabino longe de partir ocultamente com o exército na seguinte noite, afim de levar-lhe socorro. Mal o ouviram, clamam todos a uma não se dever perder tão bela ocasião, e ser conveniente marchar logo dali aos arraiais romanos. Muitas eram as causas que a isso impeliam os Gauleses: — a hesitação de Sabino nos dias passados, a confirmação dada pelo transfuga, o não haverem providenciado assás o suprimento de víveres, a esperança da guerra venética, e o acreditarem facilmente os homens o que desejam — Movidos por elas não deixam sair do concelho a Vinidovix e mais caudilhos[35], sem esses consentirem primeiro em que tomem armas para atacar-nos os arraiais. Obtido o consenso, alvoroçados, como se já tivessem a vitória nas mãos, fazem faxina para entupir-nos o fosso, e marcham sobre nossos entrincheiramentos.

O lugar dos arraiais era eminente, e se ia do plaino levantando aos poucos até cerca de mil passos. A ele sobem correndo para deixar aos Romanos o menor espaço possível de se reunirem e armarem; chegam arquejando. Depois de exortar os seus, dá-lhes Sabino o desejado sinal do ataque, e manda fazer a sortida por duas portas subidamente quando embaraçados os inimigos com as cargas que traziam[36]. Por nossa vantajosa posição, ignorância e cansaço seu deles, bravura e experiência dos soldados adquirida nos passados combates, verificou-se não poderem suportar sequer o primeiro impeto dos nossos, voltando logo costas. Perseguindo-os na fuga embaraçados e fatigados, fazem nossos soldados descançados grande mortandade neles. Alcançados depois pela cavalaria, poucos dos fugitivos chegam a salvar-se. Têm pois a um tempo notícia, Sabino da batalha naval de César, e César da vitória de Sabino. Submetem-se logo a Titunio todas as cidades; porque assim como são por índole alvoroçados e belicosos, assim são os Gauleses pusilânimes para resistir às calamidades.

Quase pelo mesmo tempo chegava Publio Crasso à Aquitania que, como antes se disse, deve pela extensão do território e multidão de homens ser considerada a terceira parte da Gália; e vendo ter de fazer a guerra nos lugares onde poucos anos antes fora morto o lugar-tenente Lucio Valerio Preconino com derrota do seu exército, e donde fugira o proconsul Lucio Mallio, abandonando as bagagens, entendia dever empregar não pequena vigilância. Feito pois provimento de víveres, aparelhados auxiliares e cavalaria, e chamados nominalmente muitos bravos de Tolosa e Narbona, cidades da província romana vizinhas destas regiões, abala com o exército para as fronteiras dos Sonciates[37]. Tendo notícia de sua vinda, juntam estes grandes forças de pé e cavalaria, na qual são mui poderosos, e atacando nosso exército em marcha, travam primeiro combate com a cavalaria; depois, rechassada esta, e perseguindo-a os nossos, mostram subitamente as tropas de pé, que haviam postado em emboscadas num vale, e acometendo os nossos derramados, renovam a batalha.

Peleja-se por largo tempo e encarniçadamente, julgando os Sonciates confiados nas passadas vitórias posta no seu valor a salvação de toda a Gália, e desejando os nossos se visse quanto podiam agir sem o general, sem as demais legiões e com um chefe mancebo. Bem sangrados de nosso ferro, voltam por fim costas os inimigos. Depois de morto grande número deles, começa Crasso incontinenti o assédio da capital dos Sonciates[38]; e apresentando a praça grande resistência, constroe mantas de guerra e torres. Ora tentam os inimigos sortidas, ora fazem minas para destruir o terrado e mantas (no que são peritíssimos os Aquitanios por causa das minas de cobre que exploram); mas logo que entendem nada disso aproveitar-lhes pela vigilância dos nossos, mandam embaixadores a Crasso, pedindo-lhe os receba sob sua proteção. Impetrado com condição de entregarem as armas, executam-no.

Voltada para isto a atenção dos nossos, de outra parte da praça Adiatuno[39], que era o principal caudilho, tenta uma sortida com seiscentos devotados seus, dos que chamam Soldurios[40]. Gozam estes na vida de todos os cômodos conjuntamente com aqueles, a cuja amizade se consagram; correm com eles a mesma fortuna, morrendo, ou matando-se com eles em caso extremo; nem há exemplo de um só destes que tenha recusado morrer, morto aquele por quem se devotara. Levantado clamor desse lado dos entrincheiramentos, e correndo os soldados às armas, aí se combate bravamente, e é Adiatuno repelido para a praça. Alcança nada obstante de Crasso ser contemplado no número dos submetidos.

De posse de armas e reféns, marcha Crasso para as fronteiras dos Vocates[41] e Tarusates[42]. Abalados então com a notícia de se haver uma praça fortificada não só pela natureza, como pela arte, rendido com poucos dias de sítio, entram os bárbaros a expedir embaixadores para toda parte, a conjurar-se a dar reféns entre si e a aparelhar tropas. Mandam também embaixadores às cidades da Espanha citerior, que vizinham com a Aquitania, solicitando dali auxiliares e caudilhos; e chegados esses, empreendem a guerra com grande confiança e multidão de homens. Escolhem-se aqueles caudilhos que, tendo servido constantemente com Quincio Sertorio[43], haviam grangeado reputação de consumados na arte militar. Estes, ao uso dos Romanos, tomam posições, fortificam arraiais e tolhem aos nossos o provimento de víveres. Logo que o notou, vendo não poderem por diminutas dividir-se suas forças, e vagar livremente o inimigo, interceptando-nos a comunicação sem desfalcar seus araiais da necessária guarnição, e dificultar-se-lhe por isso muito o transporte de víveres, e crescerem diariamente as forças hostís, julgou Crasso não dever demorar a batalha. Posto o negócio em concelho, e sendo todos do mesmo sentir, destinou para ela o seguinte dia.

Tirando as tropas de quartéis ao romper dalva, e formando-as em ordem de batalha em duas linhas[44], aguardava a resolução dos inimigos. Estes, posto entendessem haver de combater com vantagem por sua multidão, antiga reputação de bravura e diminuto número dos nossos, julgavam todavia mais seguro obter vitória incruenta, interceptando-nos os víveres com apoderarem-se dos caminhos, e, se os Romanos obrigados da fome tentassem retirada, atacá-los na marcha, quando sobrecarregados e desalentados. Aprovada pelos chefes tal resolução, conservavam-se nos arraiais, enquanto os romanos se achavam ordenados em batalha. Notado isto, e crescendo nos nossos soldados o alvoroço de pelejar com a hesitação e suposto temor dos inimigos, e ouvindo-se vozes de todos que convinha ir-lhes sem demora aos arraiais, depois de exortar os seus, marcha Crasso sobre o campo inimigo conforme o desejo geral.

Aí entupindo uns o fosso, repelindo outros da trincheira os defensores com chuveiro de tiros, e aparentando os auxiliares, em quem Crasso não confiava muito, a demonstração de combatentes com fornecerem pedras e dardos, e transportarem cespedes para o terrado, pelejando da mesma forma os inimigos constante e bravamente, e não desfechando em vão os seus tiros feitos do alto[45], os cavaleiros que haviam torneado o campo inimigo, vêm anunciar a Crasso não ser esse igualmente fortificado por toda parte, e oferecer fácil acesso pelo lado da porta decumana[46].

Depois de exortar os prefeitos da cavalaria, para que com grandes prêmios e promessas excitassem os seus, indica-lhes Crasso o que convinha fazer. Estes, tirando segundo as ordens as coortes descançadas, que haviam sido deixadas de guarda aos arraiais e conduzindo-as com rodeio por caminho mais longo, para não serem vistas do campo inimigo, distraídos com o pelejar os olhos e a atenção de todos, chegam com celeridade àquela parte dos entrincheiramentos inimigos que mencionamos; e feita larga brecha, penetram-lhes dentro, antes de poderem ser vistos ou sentidos. Ouvindo clamor desse lado, combatem os nossos reanimados com novas forças, como quase sempre acontece quando se conta com a vitória. Vendo-se cercados, e totalmente perdidos, entram os inimigos a lançar-se das trincheiras abaixo, e a procurar a salvação na fuga. Perseguidos por nossa cavalaria em campos mui descobertos, de cinqüenta mil que constava terem-se reunido da Aquitania e dos Cantabros[47], salva-se apenas um quarto, recolhendo-se aquela aos arraiais alta noite.

Com a notícia desta batalha a mor parte da Aquitania se rendeu a Crasso, e lhe enviou reféns de proprio motu, contando-se no número dos submetidos os Tarbelos[48], Bigerriões[49], Peianos[50], Vocates, Tarusates, Eluzates[51], Gates[52], Auscios[53], Garumnos[54], Sibusates[55], Cosates[56]. Poucas foram as nações que, por mais remotas, e fiadas na proximidade do inverno, negligenciaram fazê-lo.

XXVIII

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Quase pelo mesmo tempo César, posto estar já o estio a findar, todavia, porque, pacificada a Gália, só restavam em armas os Morinos e Menapios, sem lhe mandar propor pazes, persuadido de que podia semelhante guerra concluir-se com brevidade, conduziu o exército para aquele ponto. Entram esses a fazer a guerra por forma bem diversa dos mais gauleses; pois, vendo que as nações mais poderosas que haviam combatido em campo raso, tinham sido desbaratadas e vencidas, e possuindo uma continuação de selvas e paúis, para lá se passam com o que era seu. Chegando César ao princípio destas selvas e começando a fortificar arraiais, sem darem mostras de si os inimigos, ao tempo em que dispersos andavam os nossos ocupados na obra, voam aqueles subitamente de todos os pontos da mata, e precipitam-se sobre estes. Armam-se os nossos à pressa, repelem-os para as selvas com morte de muitos deles, e seguindo os demais por brenhas emaranhadas, perdem poucos dos seus.

Resolve, pois, César destruir as selvas nos restantes dias; e para que pelo flanco aberto não pudesse o inimigo atacar nossos soldados, quando dispersos e descuidados, a madeira cortada a ia voltando toda contra aquele, e amontoando-a de cada lado a modo de trincheira. Feito em poucos dias grande espaço desbastado com incrível celeridade, e estando já os nossos senhores do gado e últimas bagagens[57] do inimigo, que se entranhava por selvas ainda mais densas, seguiram-se dias tão tempestuosos, que foi forçoso interromper a obra, não podendo o soldado em razão das contínuas chuvas conservar-se mais tempo sob as peles[58]. Assim depois de assolar a campanha e incendiar aldeias e edifícios, reconduz César o exército, levando-o a invernar entre os Aulercos, Lexovios e mais cidades[59], que haviam feito a guerra de próximo.

  1. Povo de Narboneza, no Chablais e Baixo-Valais, sobre o lago Lemano e Rodano.
  2. Povo da Narboneza, no vale superior do Rodano, ao S. E. dos Nantuates.
  3. Pequeno povo da Narboneza, no centro do Valais, só a margem direita do Rodano.
  4. Portagens, direitos exigidos para o transporte das mercadorias.
  5. Julga-se ser Martigny, no Valais.
  6. Ai, no concelho.
  7. Arremessões: o texto latino traz, gaesa, dardos todos de ferro; mas não tendo o português termo correspondente, servimo-nos de arremessões, que compreende todo o gênero de arma de arremesso, e por conseguinte, dardos de ferro.
  8. Do alto: de cima da trincheira.
  9. Por todas as portas: os arraiais romanos, tinham quatro portas; a primeira, chamada pretoria ou pretoriana, era a mais próxima ao pretorium, ou tenda do general, e fazia de ordinário face aos inimigos; a segunda, colocada na parte oposta, era a decumana; as duas outras abriam-se sobre as faces laterais, uma à direita, outra à esquerda.
  10. Os chefes das nações.
  11. Navios de remo próprios para combate, em latim naves longae, por oposição aos vasos de transporte, chamados Mb>naves onerariae ou vectoriae.
  12. O rio Loire.
  13. Atentado que podia, e devia reverter contra eles.
  14. Em mar fechado: isto é, no Mediterrâneo, em que costumavam navegar os romanos.
  15. Os do atual distrito de Lisieux.
  16. Os de Nantes.
  17. Pequeno povo da Bélgica, que ocupava, ao que se crê, o território de Orchias.
  18. Os do Maine.
  19. Mais grave se tornava ainda o atentado por serem os embaixadores cavaleiros romanos, ou nobres.
  20. Cidades, no sentido de povos, nações, estados, assim como nos outros dois lugares deste capítulo.
  21. Esta parte, isto é, esta parte da Gália, ou dos povos da Gália.
  22. Para os Treviros: os Treviros estão aqui pelo país que habitavam, assim como nos lugares abaixo, os Remos e mais Belgas, os Unelos, Curiosolitas, Lexovios, Pictões, Santones e Venetos.
  23. Dali, desse país ou povos.
  24. Um dos povos mais consideráveis da Aquitania, entre os Bituriges-Cubi, os Lemovices e o Oceano, ao norte dos Santones e ao meio dia do curso inferior do Loire.
  25. Na extremidade de linguetas de terra e promontórios: há muitas destas pontas na costa da Bretanha. Promontório distingue-se de lingueta de terra ou ponta em ser o primeiro mais vasto e elevado, que a segunda.
  26. Com traves transversais: a original traz, transtra, bancos de remeiros no sentido ordinário; mas esta acepção é inadmissível aqui, porque no capítulo seguinte César diz que os navios Gauleses punham toda sua esperança nas velas e aparelhos. César descreve certamente o arcabouço do convés dos navios inimigos, inteligência a que aliás se presta a definição que dá Festo da palavra transtra: — Tigna, quae ex pariete in parietem porriguntur.
  27. Com o rostro: os navios romanos de combate tinham na proa um esporão de bronze, com que arrombavam os navios inimigos, quando, encontrando-os com violência, os tomavam de lado.Adotamos o termo latino, rastro, que já vem aliás nos dicionários portugueses, porque designa muito melhor a espécie de arma de que se trata, que o nosso esporão. Da mesma forma, no cap. 8 do livro II, adotámos do latim, tormento, máquina bélica de arrojar pedras, por nos parecer que o termo português, trabuco, não exprime exatamente o mesmo.
  28. Armadas as torres: estas torres se levantavam de repente sobre os navios romanos, por meio de peças movediças. É o turres excitare, este meio não podia servir contra os navios dos Venetos, cujas popas ficavam a cavaleiro das torres.
  29. Quase à feição das foices murais: estas foices serviam para arrancar as pedras do muro da praça sitiada. Empregavam-nas aqui, encabando-as em longos varapaus, longuriis.
  30. A hora quarta, desde a quarta hora do dia diz o original, o que, segundo nossa maneira de computar o tempo, corresponde às dez horas do dia.
  31. Como escravos, ou sub corona, o que era infamante, porque os prisioneiros de guerra eram vendidos, sub hasta, em hasta pública. O português não tem expressão correspondente à latina.
  32. Um dos principais povos da Lugdunense, vizinhos dos Carnutes.
  33. Os de Evreux.
  34. Os Venetos tomados pela Venecia.
  35. Vê-se daqui quão precaria era a autoridade dos chefes entre os gauleses.
  36. Os feixes da fachina.
  37. Os Sonciates habitavam o distrito de Nerac e o vale de la Bayse.
  38. Leitoure.
  39. Outras edições trazem Adcantuano.
  40. Soldarios: querem alguns que daí venha a palavra soldados.
  41. Os Vocates ocupavam o atual distrito de Bazas (Gironda).
  42. Os Tarusates habitavam o vale do Adour (Landes).
  43. Na guerra que sustentou em Espanha, Sertorio tirou grande número de auxiliares da Aquitania.
  44. A ordem de batalha dos Romanos era ordinariamente em três linhas, triplice acie, Crasso contravém a este costume para estender um pouco mais a sua frente de batalha, e porque não tinha confiança nos auxiliares para deixá-los nos flancos, como se praticava.
  45. Da trincheira.
  46. Porta decumana: a porta de detrás, ou a mais retirada do inimigo. César emprega o termo latino, porque os Aquitanios tinham fortificado arraiais à maneira dos Romanos.
  47. Povos da Biscaia. Os Cantabros estão aqui pela Cantabria, ou pelo país que habitavam.
  48. Os de Baiona.
  49. Os de Bigorre.
  50. Os de Mauleon.
  51. Os de Condom.
  52. Os de Lectuore.
  53. Os de Auch.
  54. Os de Saint-Gaudens (Haut-Garone).
  55. Os de Saint-Sever (Landes).
  56. Os de Dax (Landes).
  57. As últimas bagagens: as bagagens que seguiam a retaguarda do exército dos bárbaros.
  58. Sob as peles: isto é, sob as tendas, pois estas eram feitas de peles; e daí a expressão, tendere pelles, ou simplesmente tendere, armar tendas. As contínuas chuvas tornavam necessário ao soldado o abrigo das barracas, hibernacula.
  59. Cidades, na acepção de povos, nações.

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Argumento

Perseguidos pelos Suevos, que são sumariamente descritos, os Germanos Usipetes e Tencteres invadem os Menapios, e avançando daí até os Eburões e Condrusos, são por César derrotados com grande estrago. Deles se salvam entre os Sugambros, retirando-se para além Rim — c. 1-15. Passa César o Rim, construindo nele uma ponte, castiga os Sugambros, liberta os Ubios e volta à Gália c. 16-19. Parte dos Morinos para Britania; e com dificuldade desembarcado o exército e subjugada parte da ilha, regressa à Gália c. 20-36. Reduz os Morinos à submissão c. 37-38.

No inverno que se seguiu, durante o consulado de Cn. Pompeu e M. Crasso, os Germanos Usipetes e Tencteres[1] passaram o Rim em grande multidão não longe do mar, onde desagua o mesmo rio. Foi causa da emigração o verem-se oprimidos pelos Suevos, que os vexavam muitos anos com guerra, e os não deixavam lavrar a terra. De todos os Germanos são os Suevos os mais poderosos e guerreiros. Afirma-se possuirem cem cantões, de cada um dos quais tiram mil homens todos os anos para fazer guerra aos vizinhos. Os demais permanecem nos cantões, e se sustentam a si e aquel’outros. Estes no seguinte ano pegam em armas pelo seu turno, permanecendo aquel’outros nos cantões. Assim nem se interrompe o trabalho da agricultura, nem o da milícia, A terra é comum entre eles, e não se demoram mais de um ano num lugar para agricultá-la. Não fazem muito uso do trigo; vivem principalmente de leite e carne de seu gado, e são grandes caçadores: o que, já pelo gênero de alimento, já pelo quotidiano exercício, já pela liberdade de vida, (pois a nenhuma obrigação e disciplina adstritos obedecem unicamente a sua vontade), não só lhes cria grandes forças, mas os torna ainda homens de corpulência descomunal. E tanto se endurecem nestes habitos, que em clima frigidíssimo nenhum outro vestido trazem além de peles, cuja curteza lhes deixa descoberta boa parte do corpo e lavam-se nos rios.

Dão entrada a mercadores, mais para terem a quem vender as presas feitas na guerra, que por desejarem comprar-lhes o que quer que seja. De cavalos importados do exterior, com que tanto se deleitam os Gauleses, comprando-os por alto preço, não usam os Germanos; mas aos que nascem entre eles, pequenos e disformes, afazem-nos com quotidiano exercício aos mais rudes trabalhos. Nas pelejas eqüestres apeiam-se muitas vezes para combater a pé, adestrando os cavalos, a que em caso de necessidade voltam com rapidez, a permanecerem quedos no mesmo lugar. Nada é para eles tão desairoso e aviltante, como o usar de selas. Assim, ainda que poucos sejam, não hesitam em acometer qualquer força de cavalaria montada em cavalos selados. Proibem absolutamente a entrada do vinho, por julgarem que com ele se enervam e efeminam os homens para o trabalho.

Reputam a maior glória da nação o existir em volta dela quanto mais dilatado espaço de terra inculto, como indício de lhes não poderem as demais cidades[2] suportar o jugo. Assim, de um lado afirma-se terem cerca de seiscentos mil passos de campos incultos nas imediações. Do outro demoram os Ubios, cidade outrora ampla e florescente para Germanos, e os mais conversáveis e policiados destes povos, por isso que tocam no Rim, têm freqüente trato com mercadores, e estão em razão da vizinhança afeitos aos costumes gauleses. Havendo vexado com guerra muitos anos, nunca conseguiram os Suevos fazê-los emigrar, por causa das grandes forças da cidade, mas enfraqueceram-nos abateram muito, constituindo-os tributários seus.

Nas mesmas circunstâncias se acharam os Usipetes e Tencteres acima mencionados, que, suportando muitos anos a agressão dos Suevos, se viram por último obrigados a emigrar e vagando três anos por diversos lugares da Germania, vieram ter ao Rim, na região habitada pelos Menapios, que possuíam campos, edifícios e aldeias em uma e outra margem dele. Aterrados com a invasão de tamanha multidão, transportaram-se os Menapios das habitações, que tinham além do rio, para a outra margem, e dispostos presídios aquém, vedavam aos Germanos o passá-lo. Estes, porém, depois de tentado tudo, não podendo passar a força descoberta por falta de embarcações, nem fazê-lo às ocultas por causa das guardas dos Menapios, simulam regressar para suas antigas habitações e terras. Depois de feito caminho de três dias, voltam de novo[3] a cavalo sobre seus passos, desandado em uma noite todo caminho andado, e caem de improviso sobre os Menapios desapercebidos, pois certificados pelos exploradores da partida dos Germanos se haviam sem receio trasladado para suas aldeias da parte dalém. Senhores das embarcações com morte destes, antes que os Menapios, que habitavam da parte daquém fossem de tal sabedores, atravessam o rio, e apoderando-se-lhes das possessões, alimentam-se o resto do inverno com os víveres nela encontrados.

Informado disto e temendo a inconstância dos Gauleses, que são prontos a mudar de resolução, e inclinados a novidades, julga César não dever confiar neles. Tal é a curiosidade destes povos, que não só obrigam os viajantes a parar, ainda contra a vontade, para inquirir deles o que ouviram dizer ou sabem, mas o mesmo vulgo cerca os mercados nas cidades, para dizerem de que terra vêm e o que aí se passa. Movidos por estes rumores e ditos tomam muitas vezes resoluções sobre negócios de grande monta, das quais têm em breve de arrepender-se, sendo que dão peso a notícias sem fundamento, inventadas quase sempre pelos que as dão, unicamente com o fim de comprazer-lhes.

Conhecendo-lhes o fraco, e para se não ver depois a braços com guerra mais séria, parte César para o exército mais cedo que de costume; e verifica, ao chegar, ser real o que suspeitara; isto é, haverem algumas cidades mandado embaixadas aos Germanos, para avançarem das margens do Rim, assegurando-os de que encontrariam preparado tudo quanto pudessem necessitar. Levados desta esperança, adiantam-se eles mais desassombradamente, e chegam até às fronteiras[4] dos Eburões e Condrusos, clientes dos Treviros. Convocados então os principais Gauleses, julga César dever dissimular o que sabia; e lisongeando-os e animando, exige-lhes socorros de cavalaria, e resolve marchar contra os Germanos.

Feito provimento de trigo, e reunida a melhor cavalaria auxiliar, dirige-se com o exército àqueles lugares, onde ouvia dizer acharam-se os Germanos. E distando daí poucos dias de marcha, chegaram-lhe embaixadores da parte destes, cujo discurso se resumiu nesta substância: "Que nem os Germanos atacariam primeiro os Romanos, nem recusariam tão pouco medir-se com eles, se fossem provocados, pois observavam o costume, transmitido por seus maiores, de resistir, sem recorrer às súplicas, a quem quer que lhes fazia guerra — Era porém de saber terem vindo contra sua vontade, e expulsos da pátria; — se os Romanos lhes quisessem a aliança, seriam bons amigos; mas nesse caso, ou lhes assinassem terras, ou lhes consentissem ocupar as que possuiam pelas armas; — que só aos Suevos, aos quais nem os mesmos deuses imortais podiam ser parelhos, cediam o passo; e mais ninguém havia no mundo, a quem não pudessem vencer.

A isto respondeu César o que pareceu conveniente, mas foi a conclusão de sua resposta: "Que não podia ter com eles amizade, enquanto permanecessem na Gália; — nem era razão ocuparem fronteiras[5] alheias os que não souberam defender as próprias, nem havia na Gália terras algumas devolutas que, sem prejuízo de terceiro, pudessem ser dadas, principalmente a tamanha multidão; — era-lhes, porém permitido, se quisessem, residirem nas fronteiras do Ubios, que lhe tinham enviado embaixadores a queixar-se das agressões dos Suevos, e implorar-lhe auxílio: — que isso ordenaria ele aos Ubios."

Tornaram-lhe os embaixadores que tudo levariam ao conhecimento dos seus, e, tomado sobre isso acordo, voltariam ao cabo de três dias, pedindo-lhe que entretanto se não avizinhasse mais deles. Nem ainda isto disse César poder conceder. Sabia haverem dias antes mandado grande parte da cavalaria aos Ambivaritos[6] além do Mosa[7], para fazer presas e provisões de vitualhas; daí ajuizava interporem tal demora para aguardá-la.

O Mosa provém do monte Vosego[8], que demora nas fronteiras[9] dos Lingones; recebendo depois o braço do Rim, chamado Walis forma a ilha dos Batavos[10]; e, coisa de uns oitenta mil passos abaixo dela, entra no Oceano[11]. O Rim porém tem sua origem entre os Leponcios[12], habitantes dos Alpes; corre largo espaço arrebatado pelas fronteiras dos Nantuates, Helvecios, Sequanos, Mediomatricos[13], Tribocos, Treviros; quando se aproxima ao Oceano, divide-se em multiplicados canais, formando muitas e grandes ilhas, cuja mor parte é habitada por povos ferozes e desconversáveis, a cujo número pertencem os que exclusivamente vivem, segundo se crê, de pescado e ovos de pássaros; e vai ter ao Oceano por muitas bocas.

Distando César não mais de doze mil passos do inimigo, voltam na forma convencionada os embaixadores, que, encontrando-o em marcha, suplicam-lhe com muita instância, não avance mais. Não o podendo conseguir, pedem-lhe, mande ordem à cavalaria que marchava na vanguarda, para não atacar, e lhes dê faculdade de enviarem embaixadores, aos Ubios, sendo que, se os principais e o senado destes lhes confirmassem com juramento a promessa de recebê-los, fariam o que propunha César; e solicitam o espaço de três dias para levá-lo a efeito. Bem via César ser tudo isso um mero temporizar, para que com a delonga dos três dias lhes voltasse a cavalaria ausente; disse, todavia, que avançaria esse dia só quatro mil passos por amor da agua, e se apresentassem no seguinte em grande número, para ele conhecer do que lhe requeriam. Manda, entretanto, ordem aos prefeitos[14], que tinham tomado a dianteira com a cavalaria, para não provocarem o inimigo, e, se acaso fossem provocados por este, sustentarem o ataque até ele chegar com o exército.

Mal porém avistam os inimigos nossa cavalaria constante de cinco mil homens, posto não fossem mais de oitocentos de cavalo, por não haverem ainda voltado os que tinham ido além Mosa forragear, precipitam-se in continenti sobre os nossos, que nada receiavam, por ser este um dia de tréguas a pedido dos próprios embaixadores Germanos, que pouco antes tinham deixado a César, e introduzem entre eles a confusão e a desordem. Resistindo depois estes já ordenados, põem pé em terra a sua usança, e ferindo as barrigas dos cavalos aos nossos, que eram derribados, os convertem a fuga entrados de terror tal, que não pararam senão à vista de nosso exército, que vinha desfilando[15]. Foram mortos neste combate setenta e quatro dos nossos, e entre eles um varão esforçadíssimo, Pisão o Aquitanio, de preclaríssima linhagem, cujo avô honrado com o título de amigo pelo Senado havia sido rei na sua cidade[16]. Socorrendo este ao irmão envolvido pelos inimigos, conseguiu salvá-lo; mas, derribado do cavalo ferido, e defendendo-se valorosíssimamente, caiu por fim no meio da multidão hostil traspassado de muitas feridas. Ao observá-lo de longe, o irmão que já estava fora da refrega, correu a toda bride e oferecendo-se aos inimigos foi igualmente morto.

Depois deste recontro entendia César não dever mais ouvir embaixadores, nem aceitar propostas de quem com a paz na boca fazia guerra traiçoeira de emboscadas. Esperar porém que se aumentassem as forças ao inimigo com a volta de sua cavalaria para atacá-lo, reputava ser da última demência; e conhecedor por outro lado da inconstância dos Gauleses, via quanto crédito já tinham os inimigos num combate ganho com esses, a quem não convinha dar tempo para tomarem qualquer acordo. Firme neste presuposto, e comunicada a seus tenentes e questor a resolução em que estava de não demorar a batalha um só dia, sobrevem coisa mui apropositada; porquanto, usando da mesma perfídia e dissimulação, vieram no seguinte dia pela manhã os Germanos em grande número conjuntamente com seus principais e anciãos ter com ele aos arraiais, já para justificar-se, ao que diziam, de haverem no dia antecedente travado batalha com os nossos contra o convencionado, e o que eles mesmo tinham pedido, já para conseguir uma prorogação de tréguas por meio de enganos. Folgando de os ter em seu poder, manda César prendê-los, tira as tropas dos quartéis e ordena à cavalaria, ainda aterrada da recente peleja, o vá seguindo na retaguarda.

Ordenado o exército em três linhas e feita com rapidez uma marcha de oito milhas, chega à vista do campo inimigo, antes de poder ser sentido pelos Germanos. Aterrados subitamente a um tempo, quer pela celeridade de nossa vinda, quer pela ausência dos seus, sem espaço para deliberar, nem armar-se, ficam estes sem saber dar-se a concelho, se será mais conveniente ir ao encontro do inimigo ou defender o campo, ou buscar a salvação na fuga. Manifesta-se seu terror pelo frêmito e concurso. Incitados pela perfídia do dia antecedente, assaltam-lhes os nossos soldados o campo. Aí[17] os que conseguem armar-se, resistem, por algum tempo, combatendo entre carros e bagagens; mas a restante multidão, meninos e mulheres, (pois tinham vindo e passado o Rim com todos os seus) entra a fugir a cada passo. Despede-lhes César no encalço a cavalaria.

Ouvindo clamor na retaguarda, e vendo serem mortos os seus, atiram os Germanos com as armas, deixam as insígnias militares, e fogem do campo. Chegando ao confluente do Mosa e Rim já reduzidos por grande mortandade, e não tendo mais para onde fugir, lançam-se os que restam ao rio, e nele perecem assoberbados do terror, do cansaço, e da violência da corrente. Os nossos, inteiramente livres do temor de tamanha guerra, pois orçava por quatrocentos e trinta mil o número dos inimigos, recolhem-se aos arraiais sem perda de um só, e com bem poucos feridos. Dá César aos que mandara prender, a faculdade de se retirarem. Receiando porém os suplícios e cruezas dos Gauleses, cujos campos haviam talado, imploram-lhe esses a graça de ficar com ele. Concede-lhes permissão de o fazerem.

Concluída a guerra dos Germanos, resolve César passar o Rim por muitos motivos. Era dos mais valiosos o querer que os Germanos, os quais via serem tão facilmente impelidos a passar-se à Gália, temessem também por suas coisas, sabendo que não só podia, mas ousava o exército do povo Romano transpor este rio, Acrescia ainda o ter-se a parte da cavalaria dos Usipetes e Tencteres, que atravessára o Mosa para forragear, e não havia assistido à batalha, acolhido, depois da fuga dos seus, além do Rim nas fronteiras[18] dos Sugambros[19], a quem se unira. Mandando César exigir dos Sugambros a entrega dos que lhe havia feito guerra a ele e à Gália, responderam esses: "Que era o Rim limite do império do povo romano; — e se César não julgava justo passarem-se os Germanos à Gália contra a vontade dele, com que direito queria exercer jurisdição e soberania além Rim?" Os Ubios, porém, únicos dos Transrenanos, que tinham enviado embaixadores a César, e haviam contraído com ele amizade, dando-lhe reféns, pediam encarecidamente: "Que lhes levasse auxílio, pois estavam sendo gravemente oprimidos pelos Suevos; — ou se os negócios da república lhe não permitissem fazê-lo, transportasse somente o exército à outra margem do Rim; — e já lhes seria não pequeno auxílio e esperança para o futuro; porquanto, depois de expulso Ariovisto e pelejada a última batalha, tão grande se tornara o nome de César e tal a reputação de seu exército, ainda entre as nações mais remotas da Germania, que podiam estar em segurança só com a autoridade e aliança do povo romano." Prometiam grande número de embarcações para o transporte do exército.

Pelas causas mencionadas determinara César passar o Rim; mas fazê-lo em barcas nem reputava ser assás seguro, nem próprio da sua e dignidade do povo romano. Assim, posto que, por causa da largura, rapidez e profundidade do rio, oferecesse grande dificuldade o construir nele uma ponte, julgava todavia dever empreendê-lo, ou aliás não passar o exército. Tal era a estrutura da ponte que delineou. Mandava juntar, com intervalo de dois pés entre si, dois madeiros de pé e meio de espessura cada um, tanto acuminados por baixo, e proporcionados em comprimento a profundidade do rio. Introduzidos neles com máquinas e enterrados a pancadas de maço[20], não perpendicularmente à maneira de pilares, mas com pendor e inclinação no sentido da corrente, mandava da mesma forma, a quarenta pés de distância, colocar da parte inferior, voltados contra a violência e ímpeto do rio, outros dois fronteiros a esses, juntos de igual modo. Estes quatro madeiros, em cujos vãos se entravava por cima outro transversal de dois pés de espessura, eram de cada lado atracados nas extremidades com duas fortes chapas de ferro, que vindo cravar-se na parte oposta, ficava a obra tão firme e tal, que quanto maior era a força da corrente, tanto mais se consolidava. Sobre travessões tais assentava todo o vigamento na direção de uma à outra margem do rio, e sobre aquele a contextura de barrotes e pranchas. E para mais segurança enterravam-se na parte inferior do rio botareus inclinados que, ligando-se à obra, lhe servissem de contra-forte para quebrar a violência da corrente, e bem assim outros, em pequena distância acima da ponte, os quais a serem impelidos pelos bárbaros troncos de árvores e navios para destruir a obra, a protegessem, diminuindo-lhes a força.

Concluída a obra dez dias depois que a madeira começara a ser transportada, verifica-se a passagem do exército. Deixando uma forte guarnição em cada uma das entradas da ponte, marcha César para as fronteiras[21] dos Sugambros. Chegam-lhe, no entanto, embaixadores de muitas cidades, pedindo paz e amizade, Responde-lhes benignamente, exigindo-lhes reféns. Os Sugambros porém mal souberam estar se construindo a ponte, tinham por conselho desses Tencteres e Usipetes, a quem deram acolheita, abandonado suas fronteiras, e fugido para os bosques e solidões, levando consigo quanto possuiam.

Havendo-se demorado poucos dias nas fronteiras[22] deles, depois de incendiar-lhes os povoados com os edifícios, e cortar-lhes os pães nos campos, retira-se César para as dos Ubios, e assegurando-lhes auxílio, no caso de serem atacados pelos Suevos é pelos mesmos Ubios informado: "Que os Suevos, depois que por seus exploradores souberam estar se fazendo a ponte, convocado concelho à sua usança, mandaram por toda parte aviso aos seus, para emigrarem das cidades, depositarem filhos, mulheres e haveres nas selvas, e juntarem-se os que podiam pegar em armas num ponto central do território, onde convinha aguardar os Romanos, e dar-lhes batalha." Ciente de tudo, e reputando conseguidos os fins, porque resolvera passar o exército, quais eram, inspirar terror aos Germanos, castigar os Sugambros, libertar os Ubios da opressão, e ter com uma estada de dezoito dias além Rim feito assás para glória sua e utilidade da república, volta à Gália, e corta a ponte.

Restando pequena parte do estio, sendo que nestes lugares, por demorar toda Gália[23], ao setentrião, começam os invernos mui temporãos, empreendeu todavia César passar a Britania; pois em todas as guerras dos Gauleses notava serem dali ministrados auxílios a nossos inimigos; e, quando a estação não fosse apropriada para fazer guerra, reputava ser já de grande utilidade somente o penetrar na ilha[24], observar-lhe os diversos habitantes, conhecer-lhe as localidades, os portos, as entradas; coisas essas quase inteiramente ignoradas dos Gauleses, Até então ninguém se arriscava a ir lá, a não serem mercadores; esses mesmos não conheciam dela mais que o marítimo, e as regiões, que olham para as Gálias. Assim, por mais que se informasse de bom número de mercadores que convocara, nem podia saber com certeza quão grande era a ilha, nem quais e quantas nações a habitavam, nem por que modo guerreavam, ou que leis e costumes tinham, nem quais os seus portos mais acomodados para receber uma armada de navios maiores.

Para conhecê-lo, antes de efetuar a jornada, julga conveniente ali enviar primeiro com uma galé[25] a Gaio Voluseno, ao qual determina que, examinadas as coisas se torne a ele quanto antes. Dirige-se depois com todas as tropas aos Morinos[26], por ser o trajeto deste ponto para Britania o mais curto; e aí manda juntarem-se os navios de todas as regiões vizinhas, bem como a armada, que havia feito construir no precedente estio para a guerra dos Venetos. Entrementes, conhecida e comunicada pelos mercadores esta sua resolução aos Britanos[27], chegam-lhe embaixadores de muitas cidades[28] da ilha, prometendo-lhe reféns e obediência. Ouvindo-os e tratando-os benignamente, exorta-os a permanecerem no propósito e despedindo-os para os seus, com eles envia juntamente a Comio, que fizera rei dos Artebrates vencidos, e cujo valor e prudência prezava, criatura sua, e mui acreditado naquelas paragens, recomendando-lhes visite quanto mais cidades e as disponha a aceitar a aliança dos Romanos, assegurando-lhes que brevemente iria ele em pessoa visitá-las. Voluseno, observados os lugares da costa, quanto lhe foi possível, pois não ousava sair da galé, nem confiar-se a tais bárbaros, volta a César dentro de cinco dias, e relata-lhe quanto viu e notou.

Emquanto César se detem nestes lugares, aguardando os navios, chegam-lhe embaixadores de boa parte dos Morinos, escusando-se de haver por inexperiência e ignorância de nossos costumes feito anteriormente guerra aos Romanos, e prometendo cumprir quanto lhes ele ordenasse. Resultando vir muito a propósito tal incidente, pois, nem lhe convinha deixar inimigos na retaguarda, nem podia entrar em campanha por causa da estação, nem entendia dever antepor ocupações de pouco momento à jornada da Britania, exige-lhes um grande número de reféns; e apresentados estes, aceita-lhes a submissão. Colegidos e reunidos oitenta navios de carga, quantos julgava suficientes para transportar duas legiões, distribui o que tinha de navios de guerra, por seu questor, seus tenentes, e pelos prefeitos. Sobrando ainda dezoito navios de carga, que, em razão de ventos ponteiros, se conservavam a oito mil passos deste lugar, sem poder demandar o mesmo porto, os destina ao transporte da cavalaria. Aos seus tenentes Quincio Titurio Sabino e Lucio Aurunculeio Cota encarrega-os de levarem o resto do exército aos Menapios[29], e cantões dos Morinos, donde lhe não tinham vindo embaixadores; ao seu tenente Publio Sulpicio Rufo manda-o guardar o porto com guarnição suficiente.

Ordenado isto, e obtida monção favorável, leva ferro quase a terceira vela da noite[30], mandando marchar a cavalaria para o porto ulterior[31], aí embarcar e segui-lo. Não empregando esta assás diligência, quase pela quarta hora do dia[32] abica ele só com os primeiros navios na Britania, onde viu cobertos de tropas em armas todos os oiteiros. A natureza do terreno era tal, que os tiros feitos das alturas alcançavam a praia. Reconhecendo não ser o lugar asado para um desembarque, conserva-se sobre ferro até à hora nona[33], a espera do resto dos navios. Convocando neste meio tempo a concelho os seus tenentes e os tribunos dos soldados[34], expõe-lhes quanto colhera de Voluseno, bem como quanto convinha pôr por obra, e recomenda-lhes que, conforme o exigir o plano do ataque, e sobre tudo a guerra marítima, tão cheia de súbitos e imprevistos acidentes, obrem o mais a seu alvitre segundo a ocasião. Dissolvido o concelho, e com o favor do vento e maré levadas âncoras ao sinal dado, vai surgir com toda armada a sete mil passos deste lugar em litoral aberto e plano.

Mas os bárbaros, conhecido o intento, mandam diante a cavalaria, com os carros de combate[35], de que faziam grande uso nas batalhas, e seguindo com o resto das tropas, opõem-se ao desembarque dos nossos. Era neste a maior dificuldade a vencer o demandarem os navios muita água por alterosos, e o terem os soldados de, sem conhecimento local, com as mãos impedidas, e sob o grave peso das armas, saltar a um tempo n&rsqo;água, firmar-se no meio das vagas, e pelejar com os inimigos, que, com membros livres e perfeito conhecimento dos lugares, faziam tiros ousadamente, e picavam contra nós os cavalos adestrados. Aterrados com isto, e sem prática alguma de semelhante gênero de peleja, não mostravam os nossos o mesmo alvoroço e ardor, de que costumavam possuir-se nos combates a pé firme.

Ao notá-lo, ordena César que as galés, cuja forma era desusada para os bárbaros[36], e o movimento mais pronto e fácil, se destaquem alguma coisa dos navios de carga, e postando-se contra o flanco descoberto dos inimigos, a tiros de fundas, setas e tormentos[37], os repilam e desalojem. Foi isso de grande utilidade aos nossos; porquanto os bárbaros, aterrados já com a figura dos navios, já com o mover dos remos, já com o desusado jogar dos tormentos, retêm-se e começam de recuar um pouco. E hesitando ainda nossos soldados, principalmente por amor da profundidade do mar, o porta-águia da decima legião, suplicando aos deuses lhe convertam o arrojo em proveito da mesma legião: "Saltai à agua, camaradas, disse, se não quereis entregar a águia aos inimigos[38]. Quanto a mim farei por certo o que devo à república e ao meu general." E ao proferir estas palavras, atira-se do navio n&rsdquo;água, e vai dirigindo a águia para os inimigos. Estimulando-se então entre si a impedir uma tal deshonra, saltam do navio todos os soldados. Observando-os dos navios vizinhos e seguindo-lhes o exemplo, marcham também os demais aos inimigos.

De ambas as partes se combate renhidamente, Os nossos, todavia, por não poderem ordenar-se, nem permanecer firmes, nem seguir seus estandartes, agregando-se ao primeiro deparado, à medida que iam saltando dos navios, andavam sobremodo perturbados; os inimigos, ao contrário, que conheciam todos os secos, como viam sairem alguns dos navios destacadamente, picavam contra esses os cavalos, e os atacavam quando embaraçados, cercando muitos a poucos, e fazendo-lhes tiros pelo flanco aberto quando aglomerados. Ao observá-lo manda César encher de soldados as lanchas das galés, assim como as mexiriqueiras da armada e levar socorro aos que via em aperto. Mal firmam pé em terra, arremetem os nossos contra os inimigos, e os rompem, pondo-os em fuga, mas sem poder ir-lhes no encalço, por não haver a cavalaria conseguido fazer o trajeto e aportar à ilha. Nesta expedição foi só o que faltou à antiga fortuna de César.

Derrotados na batalha, mal chegaram a recobrar-se da fuga, deputaram a César embaixadores a propor pazes, comprometendo-se a dar-lhe reféns, e executar quanto ordenasse. Com os embaixadores veiu juntamente o Artrebate Comio, que acima dissemos haver sido por César mandado diante à Britania. Enviado em caráter de orador[39] para levar as instruções do general, prenderam-no os bárbaros logo ao desembarcar, carregando-o de cadeias; puseram-no em liberdade, depois da batalha; e no propor das pazes lançaram à conta da multidão toda culpa do atentado, suplicando indulto para o erro cometido. Queixando-se de lhe haverem feito guerra sem motivo, sendo que por seus embaixadores lhe tinham de próprio motu mandado pedir paz ao continente[40], declarou nada obstante César que concedia o perdão do erro, e exigiu-lhes reféns. Destes deram logo parte, prometendo entregar em poucos dias o resto que viria de paragens mais distantes. Mandaram, no entanto, voltar os seus aos campos; e concorrendo de diversos pontos, começaram os cabeceiras do povo de recomendar-se a César a si e suas cidades[41].

XXVIII

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Assentada por esta forma a paz quatro dias depois que se chegara à Britania, largaram do porto superior com vento brando os dezoito navios que, segundo fica dito, transportavam a cavalaria. Aproximavam-se já da Britania, e eram avistados dos arraiais, quando sobreveio de súbito tamanha tormenta, que nenhum deles pode seguir derrota, impelidos uns para o mesmo lugar, donde haviam partido, e outros para a parte inferior da ilha, jacente ao pôr do sol, onde correram grande risco de perder-se; porque, assoberbados por vagalhões quando sobre ferro, viram-se em noite tempestuosa forçados a fazer-se ao largo, e a demandar o continente.

Aconteceu ser na mesma noite lua cheia, dia das maiores marés no Oceano; o que era dos nossos ignorado[42]. Assim, não só a um tempo a maré enchia as galés em que César transportara o exército, e que varara em terra, mas também a tempestade destroçava os navios de carga, que estavam ancorados, sem terem os nossos meio de os marear, nem socorrer. Ficando dèspedaçados muitos deles, e os mais sem amarras, nem âncoras e aparelhos, inúteis para a navegação, houve, como era de crer, grande consternação em todo o exército. Porquanto nem nos restavam outros navios para reconduzir-nos e faltava tudo o que era necessário para os reparar; acrescendo que, por se julgar conveniente passar o inverno na Gália, não havia feito provisão de trigo para passá-lo nestes lugares.

Em vista disto, os caudilhos Britanos, que tinham vindo procurar a César conferenciam entre si; e vendo não só faltarem aos Romanos cavalaria, navios e bastimentos, mas, avaliando também o pequeno número de soldados pelo acanhado dos arraiais, os quais eram ainda menores por haver César transportado as legiões sem bagagens, assentam em rebelar-se para tolher-nos o provimento de trigo e vitualhas, prolongando a campanha até o inverno, porque vencendo-nos ou cortando-nos regresso. ninguém mais, pensavam eles, iria à Britania atacá-los. Assim, rebelando-se de novo, entram a retirar-se aos poucos dos arraiais, e a apelidar os seus dos campos.

César, posto que lhes não conhecia os projetos, contudo, já pelo destroço de seus navios, já por terem eles suspendido a entrega dos reféns, suspeitava haver de realizar-se o que aconteceu. Assim, preparava recursos para todas as eventualidades, seja passando quotidianamente trigo dos campos para os arraiais, seja reparando com a madeira e o cobre[43] dos arruinados os navios que lhe restavam, seja transportando do continente o que era para isso mister. Desta arte, pondo os soldados a maior diligência em tudo, conseguiu que exceto doze perdidos, todos os mais navios ficassem em estado de navegar.

Enquanto isto se passa, indo como de costume a forragear uma das duas legiões, denominada sétima, sem haver até então suspeita alguma de guerra, permanecendo parte dos insulares nos campos, e vindo outros a miude aos arraiais, os que estavam de guarda às portas do campo, participam a César avistar-se maior nuvem de pó, que de ordinário, para aquela parte aonde avançara a legião. Suspeitando o que era, isto é, terem os inimigos empreendido nova tentativa de ataque, leva César comsigo contra aquela parte as coortes que estavam de guarda às portas[44], ordenando que das restantes duas as substituissem neste serviço e as demais se armassem e o seguissem. Adiantando-se um pouco dos arraiais, observa acharem-se os nossos assoberbados de inimigos, sustentando-se com dificuldade, e a legião cerrada, exposta a um chuveiro de tiros dirigidos de todos os lados. Porquanto, ceifado o trigo de todas as partes menos uma, suspeitando viriam os nossos para este lugar, como aconteceu, e escondendo-se nos bosques durante a noite, caem os inimigos de improviso sobre os nossos, quando dispersos, e depondo as armas, se ocupavam em ceifar, matam-lhes alguns, e introduzem a confusão nos restantes mal ordenados, cercando-os com sua cavalaria e carros de guerra.

XXXIII

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Eis a maneira como pelejam dos carros. Correm com eles a princípio por toda parte, atirando dardos, e desordenando as mais das vezes as fileiras hostis só com o terrorizar dos cavalos e estrepitar das rodas; introduzindo-se depois pelos esquadrões de cavalaria, saltam dos carros e combatem a pé. Os cocheiros no entanto retiram-se aos poucos da refrega, e colocam os carros de modo que, quando se vêm apertados pelos inimigos, têm os essedários[45] pronta retirada para os seus. Assim apresentam eles nas batalhas a mobilidade de cavaleiros com a firmeza de peões e tanto se adestram com o uso e exercício quotidiano, que nas mesmas ladeiras e precipícios habituam-se a conter os cavalos a desfilada, governá-los com facilidade e desviá-los a correr pelo temão, firmar-se no jugo, e tornar dali aos carros com rapidez extrema.

Aos nossos desordenados com este súbito cometimento socorre César mui a propósito; porquanto, com a vinda dele, o inimigo cessa de atacar; os nossos recobram-se do terror. Julgando, depois disto, inoportuno provocar o inimigo e combatê-lo, conserva-se em armas no seu posto, e ao cabo de algum tempo, reconduz as legiões a quartéis. Enquanto isto se passa, e estão os nossos ocupados, retiram-se os insulares, que trabalhavam nos campos. Por muitos dias contínuos sucedem-se temporais, que retêm os nossos nos arraiais, e vedam ao inimigo o agredi-los. Neste comenos expediam os bárbaros para toda parte emissários sobre emissários, que propalassem qual era o pequeno número dos nossos, e demonstrassem quanta proporção se lhes oferecia a todos de fazerem presa, e libertarem-se para sempre do jugo, expulsando os romanos dos arraiais. Reunida por este meio grande multidão de peonagem e gente de cavalo, vêm, afinal, sobre os arraiais.

Posto que via César haver de acontecer o mesmo, que nos dias precedentes, serem os inimigos rechaçados e evitarem o perigo com a fuga, contudo, tendo conseguido uns trinta de cavalo, que consigo transportara o Artrebate Comio, pouco antes mencionado, ordena as legiões em batalha em frente dos arraiais. Travada a peleja, não podem os inimigos sustentar por muito tempo o ímpeto dos nossos, e voltam costas. Seguindo-os, quanto lhos permitem a carreira e as forças, matam os nossos a muitos deles; depois, destruídas e incendiadas as habitações em largo espaço, recolhem-se aos arraiais.

No mesmo dia vieram a César embaixadores da parte dos inimigos a pedir pazes. Duplicou-lhes César o número de reféns, dantes exigido, e ordenou lhe fossem estes levados ao continente, porque, aproximando-se o equinócio, não julgava dever arriscar-se a navegar de inverno em navios mal reparados. Havendo deparado monção favorável, fez-se de vela pouco depois da meia noite e chegou ao continente com todos os navios a salvo. Destes, dois de carga não puderam tomar os mesmos portos, que os outros, e foram surgir um pouco mais abaixo.

XXXVII

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A trezentos soldados que haviam desembarcado destes navios, e se dirigiam aos arraiais, cercam-n’os a esperança de presa e em número não mui avultado a princípio os Morinos que César deixara pacificados, quando partiu para Britania, e intimam-lhes que deponham as armas, se não queriam morrer. Defendendo-se eles formados em orbe[46], aglomeram-se logo ao clamor hostil cerca de uns seis mil homens. A esta notícia despede César dos arraiais toda a cavalaria em auxílio aos seus. Entrementes, sustentam os nossos o ímpeto dos inimigos pelejando valorosíssimamente por mais de seis horas, e matam a muitos deles, recebendo poucas feridas. Mas mal se mostrou nossa cavalaria, voltam os inimigos costas, atirando com as armas. Faz-se neles grande mortandade.

XXXVIII

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No seguinte dia expede César a Tito Labieno com as legiões chegadas da Britania contra os Morinos rebelados, que não tendo aonde se refugiassem por haverem secado os paúes, que no precedente ano lhes serviram de valhacouto, caem quase todos em poder de Labieno, Mas os seus tenentes Quincio Titurio e Lucio Cota, que tinham marchado com as legiões para as fronteiras[47] dos Menapios, depois de lhes haver talado a campanha, cortado o trigo, e incendiado as habitações, por se terem os inimigos acoutado em bosques densíssimos, regressam a ele César, que coloca todas as legiões em quartéis de inverno entre os Belgas. Duas cidades[41] da Britania unicamente lhe mandam ali[48] reféns, transcurando as demais fazê-lo. Por estas expedições decreta o Senado em vista das cartas de César vinte dias de suplicações.

  1. Os Usipetes e Tencteres parecem ter ocupado o vale do Lipe na sua confluência com o Rim e parte da margem direita deste.
  2. Cidades, no sentido de povos, nações, tanto neste como nos dois lugares abaixo.
  3. Voltam de novo, em Latim "rursus reverterunt", com a única diferença de estar o verbo latino no pretérito. M. Ozaneaux, comentador distinto, censura esta espécie de repetição que se dá em Latim e em todas as línguas, mas sem fundamento plausível neste caso; porque ela tem cabimento quando se quer chamar melhor a atenção sobre qualquer volta, como pratica César com a dos Usipetes e Tencteres, que haviam feito uma partida simulada, e dá mais força ao discurso.
  4. Fronteiras, por território.
  5. Fronteiras, no sentido de território, tanto aqui como mais abaixo: é a sinedoque da parte pelo todo.
  6. Os Ambivaritos, ocupavam uma parte do Brabante.
  7. O Meusa.
  8. A cadeia dos Vosges.
  9. Fronteiras, por território, tanto aqui como nos outros lugares deste capítulo.
  10. A ilha dos Batavos chama-se hoje Betaw, e abraça grande parte da Gueldre e da Holanda meridional.
  11. Os Lepontinos, hoje habitantes do Saint-Gothard.
  12. Apartamo-nos neste lugar da edição de Ochler, por nos parecer melhor a lição de outras edições relativamente ao curso dos dois rios descritos.
  13. Os Mediomatricos habitavam o atual departamento do Mosela.
  14. Título particular aos comandantes de cavalaria.
  15. Agmen em latim é o exército em marcha; não tendo o português termo correspondente, empregámos o circunlóquio, do exército que vinha desfilando, o qual com o auxílio do verbo freqüentativo nos parece exprimir bem a idéia.
  16. Cidade no sentido de nação, república.
  17. No campo.
  18. Fronteiras, na acepção de território, país, terras.
  19. Os Sugambros ou Sicambros demoravam na margem direita do Rim, ao meio-dia dos Tencteres e ao norte dos Ubios.
  20. Maço, em latim, Fistuca, máquina para enterrar madeiros. Consiste num maço de peso considerável, que se levanta com ajuda de cordas a uma armação sólida, e se deixa depois cair com força sobre os madeiros, que se querem enterrar.
  21. Fronteiras, por território, país.
  22. No mesmo sentido que acima.
  23. Toda Gália está aqui por extensão, ou abuso, porque nem toda Gália, demora ao setentrião ou norte, mas só a maior parte dela: neste sentido é catacrese, tropo mui vulgar nos autores latinos, Encarada debaixo de outro ponto de vista pode também ser a sinédoque da parte pelo todo.
  24. César por informaçaes vagas previu ser a Britania ou Inglaterra uma ilha; pois só mais tarde no reinado de Domiciano, ou 90 anos depois de Jesus Cristo, é que os romanos fizeram a volta da Britania com uma armada, e reconheceram ser ela uma ilha.
  25. A galé, em latim navis longa, era navio de guerra.
  26. Os Morinos estão aqui pelo país que habitavam.
  27. Os Bretões, ou os povos que habitavam então a Inglaterra.
  28. Cidades, por povos, nações, tanto aqui como no lugar mais abaixo.
  29. Os povos pelo país que habitavam.
  30. À meia noite pouco mais ou menos, porque a noite era dividida pelos romanos em 4 velas ou vigílias de 3 horas cada uma.
  31. Porto ulterior: julga-se que este porto, e o vizinho que César chama superior no cap. 28, demoravam na situação de Bolonha sobre Mar (passo de Callais).
  32. Às dez horas do dia.
  33. Às três horas da tarde.
  34. Convoca a concelho unicamente os oficiais mais graduados.
  35. Carros de combate, em latim essedum, ou esseda; eram carros ligeiros de duas rodas, dos quais os Bretões usavam nos combates. O texto traz, essedarios, os que combatem de tais carros; para evitar circunlóquios, sendo o termo pouco usado entre nós, pomos aqui os carros pelos que deles combatiam ou o continente pelo conteúdo.
  36. Os Britanos não conheciam as galés, ou navios de guerra, porque só haviam sido até então visitados por navios mercantes.
  37. Máquinas de guerra que se levavam nos navios, para atirar pedras e lanças.
  38. A legião que perdia sua águia ficava desonrada.
  39. Com privilégios de embaixador, Orator, e legatus, são sinônimos em latim, quando se trata do desempenho de alguma comissão encarregada pelo soberano, ou seu lugar-tenente.
  40. A terra firme, isto é, a Gália.
  41. 41,0 41,1 Cidades, no sentido de nações, estados, repúblicas.
  42. Os romanos conheciam então mui imperfeitamente os fenômenos das marés, porque suas navegações quase se não estendiam além do Mediterrâneo, onde as marés se fazem sentir muito menos que no Oceano.
  43. Os antigos na construção de seus navios empregavam o cobre com preferência ao ferro, para os pregos, para a proa, etc.
  44. Havia quatro coortes de guarda, cada uma a uma porta dos arraiais.
  45. Essedarios, os que combatiam dos carros de guerra, que entre os Britanos se denominavam, essedum ou esseda, este nome já vem no dicionário de Constancio.
  46. A formatura em orbe dos romanos correspondia, menos na forma, à formatura em quadrado, ou ao batalhão quadrado dos modernos, para resistir de todos os lados ao inimigo.
  47. Fronteiras, pelo território.
  48. Ali, isto é, para o Belgio ou Bélgica.

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Argumento

César ordena que se apreste na Gália uma poderosa armada; e dirigindo-se ao Ilirico, contém os Pirustes no dever c. 1. De volta à Gália, compõe as perturbações entre os Treviros, castiga a Dunorix c. 2-7, e passa de novo à Britania c. 8-11, cuja descrição faz c. 12-14, e onde é bem sucedido na guerra com os insulares c. 15-22. Depois de seu regresso, rebela-se a mor parte dos Gauleses, exterminando-lhe os Eburões os tenentes Sabino e Cota com a legião c. 23-37. Os Nervios com os Aduatucos e Eburões atacam vigorosamente os arraiais de Q. Ciceco c. 38-48. São derrotados por César c. 49-51. Os Senões e os Treviros maquinam, no entanto, novas rebeliões; mas, morto Induciomaro, fica a Gália um pouco mais sossegada c. 52-58.

No consulado de Lucio Domicio e Apio Claudio[1], ao retirar-se dos quartéis de inverno para Itália como costumava todos os anos, ordena César aos tenentes seus, que prepusera as legiões, intendam em construir durante o inverno o maior número de navios possível, e em reparar os velhos. Determina o tamanho e a forma dos vasos. Para podê-los carregar, e varar em terra com presteza, fá-los um pouco mais rasos, que os de que nos servimos em nosso mar[2]; e sabendo serem as vagas menores no Oceano em razão de contínuo movimento das marés, para o transporte das bagagens e quantidade de bestas, um pouco mais largos que os que empregamos em outros mares. Ordena sejam todos de vela e remo, ao que muito se presta o serem pouco alterosos. Manda vir de Espanha tudo o que era necessário para aparelhá-los[3]. Terminadas as juntas da Gália citerior[4], dirige-se ao Ilírico, por ter notícia de que estava sendo a fronteira da província devastada pelos Pirustes[5]. À sua chegada ali, ordena às cidades que alistem soldados designando lugar para se eles reunirem. A esta nova, mandam-lhe os Pirustes embaixadores a dizer que nada do que houve, fora feito por consenso da cidade, assegurando-lhe que estavam prontos a dar-lhe satisfação por toda e qualquer forma. Aceitando-lhes a escusa, exige César reféns, determinando que lhe sejam trazidos em dia aprazado, e declarando-lhes que, se o não cumprissem, lhes havia de fazer guerra. Trazidos estes no dia marcado, como determinara, nomeia árbitros dentre as cidades para avaliarem o dano causado, e regularem a indenização.

Regulado isto, e terminadas as juntas, volta à Gália citerior donde parte para o exército. A sua chegada ali, percorrendo todos os quartéis de inverno, acha prontos, por singular diligência dos soldados, e quando havia penúria de tudo, cerca de seicentos navios de transporte das dimensões mencionadas, e vinte oito de guerra[6], sem faltar muito para serem todos lançados ao mar em poucos dias. Louvados os soldados, e os encarregados da comissão, mostra quanto importa fazer, e manda reunirem-se todos no porto Iccio, donde sabia ser o trajeto para a Britania o mais cômodo, por demorar ela aí cerca de trinta mil passos do continente. Deixando para isto o que lhe pareceu conveniente de soldados, marcha com quatro legiões expeditas[7] e oitocentos cavalos para as fronteiras[8] dos Treviros, que se mostravam desobedientes, recusando vir às reuniões, e eram denunciados de solicitar os Germanos d’além Rim.[9]

Dentre todas as da Gália é esta a cidade mais poderosa em cavalaria: toca, como dissemos, no Rim. Disputavam-se nela o poder supremo dois cabecilhas, Induciomaro e Cingetorix. O segundo, mal constou a chegada de César e das legiões, veio ter com este, asseverando que, fiéis à aliança romana, permaneceriam no dever ele e os seus, e o informou de tudõ que ia pelos Treviros[10]. O primeiro, porém, reunia cavalaria e infantaria, e mandando os que pela idade não podiam pegar em armas, ocultarem-se na floresta das Ardenas, que se extende espaço imenso por entre os Treviros desde o Rim té entestar com os Remos, dispunha-se a fazer guerra. Mas depois que alguns principais da cidade, movidos não só da amizade de Cingetorix mas ainda do terror de nosso exército se apresentaram a César, e entraram a fazer-lhe requerimentos sobre seus negócios particulares, visto como em nada podiam assentar sobre os da cidade, receiando ser abandonado de todos, enviou-lhe também esta embaixada: "Que não quisera até então apartar-se dos seus, nem vir logo ter com César, para mais facilmente conter a cidade no dever, afim que, com a retirada de toda a nobreza, não cometesse a plebe alguma imprudência: — mas agora que tinha a cidade em seu poder, viria aos arraiais romanos, se César o permitisse, e poria debaixo da proteção deste tanto a sua particular, como a fortuna da cidade."

Posto que César soubesse do motivo por que Induciomaro mandava dizer isto, e se desviava do propósito, contudo, para não ser obrigado a passar o estio entre os Treviros, depois de preparado tudo para a guerra da Britania, ordena que venha ele aos arraiais com duzentos reféns. Apresentados esses, e entre eles o filho e todos os parentes do mesmo Induciomaro, designados de antemão por seus nomes, César o consola[11] e exorta a permanecer no dever; chamando, nada obstante, à sua presença, os principais Treviros, os concilia um por um com Cingetorix, já por entender que era ele disso merecedor, já por julgar que muito convinha ser o mais autorizado entre os seus quem tão boa vontade lhe mostrava. Muito sentiu Induciomaro ver-se amesquinhado em preponderância entre os seus; e sendo-nos já dantes desafeto, inda mais com essa dor se exacerbou.

Determinado isto, passa-se César com as legiões ao porto Iccio, Aí sabe que sessenta navios, fabricados entre os Meldas[12], não puderam seguir derrota em razão do mau tempo que os repeliu, e voltaram ao porto, donde haviam partido; acha os mais, prontos a navegar e aparelhados de tudo. Reune-se no mesmo ponto a cavalaria da Gália toda em número de quatro mil homens conjuntamente com os principais das cidades[13]. Destes a mui poucos, em cuja fidelidade tinha inteira confiança, resolvera César deixar, e aos demais levá-los consigo como reféns, pois receiava alterações na Gália durante sua ausência.

Estava juntamente com os outros o Heduo Dunorix, de quem acima se fez menção. A este principalmente desejava ter consigo, porque o conhecia ávido de alterações[14] e de mando, bravo, e mui acreditado entre os Gauleses. Acrescia a isto haver ele dito na assembléia dos Heduos que César queria fazê-lo rei da cidade[15]; o que os Heduos não levavam a bem, mas não ousavam dirigir-se a César para recusar, ou conjurá-lo que o não efetuasse. Soubera-o César de seus hóspedes. A princípio entrou Dunorix a empregar todo gênero de rogativas para ser deixado na Gália, ora alegando temer o mar por não habituado a navegar, ora ser impedido por motivos religiosos. Depois que viu denegado obstinadamente o seu pedido, e perdida toda esperança de alcançá-lo, começou a solicitar os principais da Gália; e, chamando-os de parte um por um, os exortava a permanecerem no continente; aterrava ao mesmo tempo, insinuando que não era sem fundamento ser a Gália despojada de toda a nobreza, pois era certamente plano de César, mandá-lo matar depois de transportados à Britania, por arreceiar fazê~lo em presença dos Gauleses; dava aos demais sua palavra, e exigia a deles, de não fazerem o que julgassem de utilidade à Gália, senão de acordo comum. Isto é por muitos denunciado a César.

Ao fato de tudo, César que tinha em muita consideração a cidade[16] dos Heduos, entendia dever reprimir e desviar a Dunorix por toda e qualquer forma; e vendo-o ir por diante no desatino, providenciar, para que lhe não empecesse a ele, nem à república romana. Assim, havendo-se demorado vinte e cinco dias neste lugar, porque o vento Coro[17], que costuma soprar a mor parte do tempo nestas paragens, embargava a navegação, esforçava-se por contê-lo no dever, fazendo-lhe observar todos os passos. Encontrando finalmente monção favorável, dá ordem para embarcarem os soldados[18] e a cavalaria. Mas enquanto estavam todos com isso ocupados, ia-se Dunorix retirando dos arraiais com a cavalaria dos Heduos sem César o saber. Mal é avisado, suspende César a partida, pondo tudo de lado, e manda segui-lo por grande parte da cavalaria, ordenando fosse reconduzido, e no caso de resistir e desobedecer, morto; pois nada certamente obraria de bom em ausência quem lhe as ordens menoscabava em presença. Intimado, entrou ele a resistir e a recorrer às armas, invocando a proteção dos seus, e bradando ser livre e cidadão de nação livre. É então cercado e morto, voltando entretanto para César toda a cavalaria dos Heduos.

Depois disto, deixando no continente a Labieno com três legiões e dois mil cavalos para guardar o porto, prover nos bastimentos, conhecer do que se passasse pela Gália, e resolver segundo o tempo e caso requeressem, César, com cinco legiões e número de cavalos igual ao que ficava no continente, faz-se de vela ao pôr do sol, favorecido do Abrego[19] que soprava brandamente; mas acalmando o vento perto da meia noite, não pôde seguir a derrota; e arrebatado para longe pela violência da maré, avista ao amanhecer a Britania, que deixara para a esquerda. Seguindo, então, de novo, a mudança da maré, força remos para tomar a parte da ilha, aonde no passado estio reconhecera ser melhor o desembarque. Foi aqui muito de louvar a constância dos soldados, que com pesados navios de carga conseguiram, sem interrupção no trabalho de remar, igualar a carreira das galés. Aportou César na Britania com todos os navios quase pelo meio dia, sem haver vista do inimigo nessa paragem; mas, como logo soube dos cativos, depois de alí reunido em grande número, aterrado pela multidão dos navios, que com as embarcações ligeiras e particulares que muitos haviam feito para cômodo seu, eram mais de oitocentos vistos a um tempo, tinha-se ele retirado da praia, e acolhido às alturas.

César, desembarcado o exército e escolhido lugar para os arraiais, como soube dos cativos aonde se haviam concentrado as tropas dos inimigos, deixando junto ao mar dez coortes com trezentos cavalos, para, sob o comando de Quincio Atrio, guardarem os navios, marcha contra aquelas na terceira vela da noite, receiando tanto menos por estes, que os deixava ancorados em praia docemente inclinada e aberta. Adiantando-se com sua cavalaria e carros de combate até junto a um rio[20], começam estes a embargar-nos o passo, atacando-nos das alturas. Rechaçados por nossa cavalaria acoutam-se nos bosques, ao abrigo de um lugar admiravelmente fortificado pela natureza e arte, preparado de antemão, ao que parecia, para alguma guerra civil; pois tinha fechadas todas as avenidas pela derruba de muitas árvores. Pelejando dispersos por entre o arvoredo, vedavam aos nossos o ingresso nos entrincheiramentos. Mas os soldados da sétima legião, ordenando-se em testudem, e igualando o terrado aos entrincheiramentos, tomam o lugar, e os expelem dos bosques, recebendo poucas feridas. Vedou, porém, César, o persegui-los na fuga, já porque não conhecia a terra, já porque, consumida grande parte do dia, queria aproveitar o resto na fortificação dos arraiais.

Na manhã do seguinte dia expediu a perseguirem os fugitivos os soldados legionários e a cavalaria, divididos em três corpos. Pouco tinham estes avançado, avistando-se ainda dos arraiais as últimas fileiras, quando chegam alguns cavaleiros a noticiar a César da parte de Quincio Atrio, que na passada noite quase todos os navios haviam sido destroçados e lançados à praia pela violência de uma grande tempestade, a que nem âncoras e amarras, nem marinheiros e pilotos puderam resistir; — e que do encontro de uns com outros vasos lhes resultara a todos gravissimo estrago.

Com esta notícia expede César ordem para serem chamadas as legiões e sobrestarem na marcha; dirige-se depois aos navios, e observa com seus olhos quase o mesmo, que lhe fora comunicado pelos correios e cartas, haverem-se perdido uns quarenta vasos, podendo os demais ser reparados com grande custo. Escolhe para isso os artífices das legiões e ordena, venham outros do continente. Escreve a Labieno, faça construir quantos mais navios pelas legiões, que tinha consigo. Posto que fosse de muito trabalho e fadiga, acha nada obstante ser o mais conveniente varar todos os navios em terra e compreendê-los em um só entrincheiramento com os arraiais. Nisto gasta cerca de dez dias, trabalhando os soldados dia e noite. Varados em terra os navios e mui bem fortificados os arraiais, deixa de guarda àqueles as mesmas tropas, que dantes e parte para o lugar donde viera, Ao chegar ali, acha já reunidas de todas as partes muito maiores forças de Britanos, e por acordo comum investido do comando delas e da suprema autoridade nas coisas da guerra a Cassivelauno, cujas fronteiras[8] são extremadas das cidades[21] marítimas pelo rio chamado Tamesis[22], cerca de oitenta mil passos do mar. Tinha este tido anteriormente contínuas guerras com as demais cidades; mas os Britanos, aterrados com nossa vinda, o haviam levantado por caudilho supremo.

A parte interior da Britania é habitada pelos povos, que é tradição constante entre os mesmos serem oriundos da ilha; a marítima, pelos que vieram da Bélgica a prear e guerrear nela, (quase todos estes conservam as denominações das cidades[23], donde eram oriundos), e concluídas as expedições aí permaneceram e começaram a lavrar a terra. Há na ilha infinita multidão de homens, muitíssimos edifícios quase semelhantes aos dos Gauleses e grande quantidade de gados. Fazem ofício de moeda o cobre e uma espécie de dados de ferro. Nas terras do sertão há estanho; nas da costa, minas de ferro, bem que pouco abundantes; o cobre é importado. Há, como na Gália, todo gênero de madeira, menos faia e abeto. Não é permitido aos Britanos comerem lebre, galinha, nem pato; mas criam-nos para prazer seu. O clima mais temperado, que na Gália, sendo que é menos intenso o frio.

A ilha é de forma triangular, e apresenta um dos lados contra a Gália. Um dos ângulos dele, jacente em Cancio[24], aonde, de ordinário, aportam todos os navios da Gália, olha ao nascente; o outro, ao meio-dia. Tem este lado cerca de quinhentos mil passos. O outro inclina à Espanha e ao poente. Contra esta parte está a Hibernia[25], metade menor, ao que se estima, que a Britania; mas o trajeto de uma à outra é igual em tamanho ao da Gália à Britania. A meio caminho demora a ilha chamada Mona[26]. Consta, além disso, haver outras ilhas menores, aonde escrevem alguns autores serem noite no inverno trinta dias contínuos. Em nossas indagações nada encontramos a tal respeito; e só verificamos com certos relógios d’agua[27] serem as noites mais breves, que no continente[28]. A extensão deste lado é, segundo a opinião dos tais, de setecentos mil passos. Está contra o setentrião o terceiro lado, ao qual nenhuma terra corresponde; mas por um ângulo olha principalmente à Germania. Estima-se em oitocentos mil passos a sua extensão. Assim toda a ilha tem vinte vezes cem mil passos de circunferência.

De todos estes povos os mais policiados são os que habitam Cancio, região toda marítima; pois pouco diferem dos Gauleses em costumes. Os do sertão pela mor parte não semeiam trigo; vivem de leite e carne, e vestem-se de peles. Todos os Britanos pintam-se com pastel, o que lhes dá uma cor azulada, e os torna de horrível aspecto na peleja; usam cabelos compridos, e rapam todo o corpo exceto a cabeça e o lábio superior. As mulheres são comuns entre eles aos dez, e aos doze, principalmente a irmãos com irmãos, e a pais com filhos; mas os filhos delas pertencem àqueles que primeiro as receberam.

Os cavaleiros e essedários inimigos travaram renhido combate com nossa cavalaria em marcha, levando, todavia, esta, o melhor por toda parte; mas, mortos muitos deles, perseguindo com mais ardor o restante, perderam os nossos alguns dos seus. Passado algum tempo, achando-se os nossos desprevenidos e ocupados em fortificar os arraiais, rebentam os inimigos subitamente dos bosques, e atacam vigorosamente os que estavam guardando o campo. Mandando César duas coortes de reforço e as primeiras[29] de duas legiões, como estas se ordenassem em batalha, deixando pequeno intervalo de uma a outra, rompem por meio deste, aterrados os nossos com o novo gênero de peleja, e põem-se a salvo. Neste recontro é morto o tribuno dos soldados, Quincio Laberio Duro; e eles, enviadas mais coortes, são, afinal, repelidos.

Dando-se este novo gênero de combate à vista de todos e em frente dos arraiais, entendeu-se serem os nossos pouco aptos para semelhante guerra, por causa do peso das armas, pois nem podiam perseguir os que fugiam, nem arredar pé de junto aos estandartes, bem como achar-se a cavalaria exposta a grande perigo, porque os Britanos fugiam as mais das vezes de caso pensado, e conseguindo desviar os nossos das legiões, saltavam dos carros, e combatiam a pé em lide desigual. Os combates de cavalaria ofereciam risco igual para nossos cavaleiros, tanto na retirada, como na avançada. Acrescia o não pelejarem cerrados, mas dispersos e com grandes intervalos, deixando dispostas as reservas, a que se acolhiam, e donde, revezando-se sucediam aos cansados outros de fresco intactos.

No seguinte dia prostam-se os inimigos em cerros longe dos arraiais, mostrando-se em pequeno número, e provocando nossos cavaleiros mais frouxamente, que no precedente. Mas pela volta do meio dia, mandando César três legiões com a cavalaria a forragear sob o comando do lugar-tenente Caio Trebonio, voam repentinamente de toda parte contra os forrageadores a pouca distância dos respectivos estandartes e legiões. Atacando-os bravamente, os repelem, os nossos; enviada em socorro, vendo as legiões no couce, não deixa de os perseguir a cavalaria, que faz neles grande mortandade, sem lhes dar tempo de se reunirem, tomarem posições, nem saltarem dos carros. Depois desta derrota, retiraram-se incontinenti os auxiliares que lhes haviam vindo de diversos pontos, e os inimigos se nos não apresentaram mais com forças superiores.

Conhecendo-lhes o intento, marcha César com o exército para as fronteiras[8] de Cassivelauno e chega ao rio Tamesis, o qual só em um lugar, e isso com dificuldade, se vadeia. Ali observa acharem-se postados em ordem de batalha na outra margem do rio as tropas inimigas. A margem porém estava guarnecida de paliçadas de paus ponteagudos, e ao fundo do rio, de outras iguais puas encobertas pela água. Sabido isto dos cativos e transfugas, faz César avançar a cavalaria, e ordena que as legiões a sigam. Com tal celeridade e galhardia se houveram os nossos, tendo unicamente a cabeça fora d’agua, que os inimigos não podendo sustentar o impeto das legiões e da cavalaria, abandonaram a margem e se puseram em fuga.

Despedindo o grosso das forças, depois de haver, como fica dito, perdido a esperança do competir conosco em campo raso, e conservando consigo cerca de quatro mil essedários, observava Cassivelauno a nossa marcha, e desviando-se alguma coisa dos caminhos, ocultava-se em lugares emaranhados e selváticos, e nas paragens, por onde sabia havermos de passar, compelia homens e gados dos campos para os bosques. Quando nossa cavalaria se espalhava pelos campos para saquear e forragear, despedia dos bosques os seus essedários por todas as avenidas e sendas, e a atacavam com muito risco dela, tolhendo-lhe com semelhante terror a faculdade de divagar a larga. Não restava a César outro recurso, senão fazer com que esta não se destacasse para longe das legiões que iam marchando, e só empecesse ao inimigo, talando-lhe a campanha e incendiando as casas, tanto quanto podiam avançar os legionários em sua pesada marcha.

Neste interim os Trinobantes[30], a cidade[31] pela ventura a mais poderosa destas regiões, donde era o adolescente Mandubracio, que tinha vindo à Gália solicitar a proteção de César, e cujo pai, rei da sobredita cidade, fora morto por Cassivelauno, escapando ele mesmo à morte pela fuga, mandam embaixadores a César, prometendo render-lhe obediência para fazer quanto ordenasse, e pedindo-lhe protegesse a Mandubracio contra os ataques de Cassivelauno, e lho enviassem para governá-los e ser rei da cidade. Exige-lhes César quarenta reféns com trigo para o exército e manda-lhes Mandubracio. Deram-se pressa em cumprir o ordenado, remetendo o número de reféns e o trigo exigidos.

Protegidos os Trinobantes contra todo gênero de violências da soldadesca, os Icenos, Cangos, Segonciacos, Ancalites, Bibrocos, Cassos[32], se submetem também a César, enviando-lhes deputações. Deles sabe o mesmo achar-se não longe deste lugar a praça forte de Cassivelauno, defendida por bosques e paúes, para a qual se havia passado número assás avultado de homens e gados. Chamam os Britanos praça forte um bosque emaranhado, o qual guarnecem de tranqueira e fosso, e aonde costumam refugiar-se para evitar as incursões do inimigo. Para lá se dirige César com as legiões. Deparando o lugar mui bem fortificado pela natureza e arte, começa todavia de atacá-lo por duas partes. Fazem-nos os inimigos rosto por um pouco, mas não podendo suportar o ímpeto de nossos soldados, fogem por outra parte da praça. Encontra-se nela grande quantidade de gado, e muitos dos bárbaros são apanhados e mortos na fuga.

Enquanto isto se passa nestes lugares, expede Cassivelauno para Cancio, região vizinha ao mar, como dissemos, instruções a quatro reis que nela imperavam. Cingetorix, Carvilio, Taximagulo, Segovax, ordenando-lhes[33] que, reunindo todas as forças, atacassem de improviso nosso acampamento naval[34]. Ao apresentarem-se eles em volta deste[35], fazem os nossos uma sortida, matam a muitos dos inimigos, aprisionam-lhes o famoso caudilho Lugotorix, e reconduzem os seus a quartéis sem perda. À notícia de um tal desastre, Cassivelauno que tantas derrotas e devastações de território experimentara abalado principalmente pela defecção das cidades[23], manda a César embaixadores, sendo medianeiro o Atrebate Comio, a render-lhe obediência. César, que determinava passar o inverno no continente por amor das repentinas alterações da Gália, e via poder a continuação da guerra absorver o pouco que restava de estio, exige reféns e marca o tributo, que devia a Britania pagar cada ano ao povo romano, proibindo a Cassivelauno o empecer a Mandubracio e aos Trinobantes.

De posse dos reféns, reconduz o exército ao mar e acha reparados os navios. Postos estes em nado[36], já por ter grande número de cativos[37], já por se haverem inutilizado alguns transportes com a tempestade, determina repassar o exército em duas viagens[38]. E caso singular! De tantos navios, em tantas viagens, tanto este como o ano passado, nenhum dos que transportavam soldados se perdeu; mas dos que, depois de desembarcados os soldados do primeiro trajeto, vinham vazios do continente, e dos que mandara construir Labieno em número de sessenta, bem poucos aferraram o porto, esgarrando quase todos. Depois de haver esperado algum tempo em vão, para não perder a monção por estar eminente o equinócio, impelido da necessidade embarca os soldados menos folgadamente, e largando com mar bonança na segunda vela da noite, poja em terra ao romper dalva, conduzidos todos os navios a salvamento.

Depois de varar os navios em terra, e assistir as juntas Gauleses em Samarobriva[39], por haver este ano carência de trigo em razão da seca, viu-se obrigado a colocar o exército em quartéis de inverno por outro modo, que nos precedentes anos, distribuindo as legiões por muitas cidades[40]. Uma legião que devia ser conduzida para os Morinos[41] deu-a ao lugar-tenente Caio Fabio; outra que o devia ser para os Nervios, a Quincio Cicero[42]; a terceira que o devia ser para os Esuvios, a Lucio Roscio; a quarta mandou-a com Tito Labieno invernar entre os Remos nos confins dos Treviros; três estabeleceu-as no Belgio, prepondo-lhes seu questor Marco Crasso e tenentes Lucio Munacio Planco e Caio Trebonio. Uma legião, que de próximo alistara além Pó, e cinco coortes, as expediu para os Eburões, cuja máxima força existe entre o Mosa e Rim sob a autoridade de Ambiorix e Catuvolco; e a estes soldados prepôs os seus tenentes Quincio Titurio Sabino e Lucio Aurunculeio Cota. Distribuindo por tal forma as legiões, julgou poder mui facilmente ocorrer à deficiência de trigo. Os quartéis de inverno de todas essas legiões, afora a que por Lucio Roscio devia ser conduzida para um país mui pacífico e sossegado, continham-se numa área de cem mil passos. Determinou, entretanto, demorar-se na Gália até ter certeza do estabelecimento das legiões e da fortificação dos respectivos quartéis.

Havia um gaulês de ilustre linhagem entre os Carnutes, de nome Tasgecio, cujos antepassados tinham sido reis na sua cidade[43]. César, a quem ele prestara assinalados serviços em todas as guerras, lhe tinha por seu reconhecido valor e lealdade restituido a dignidade de seus avós. Reinava ele já há três anos contando numerosos inimigos na sua cidade, quando por estes foi morto. É o fato levado ao conhecimento de César. Receiando que, por serem muitos os comprometidos no atentado, a cidade se rebelasse a impulso deles, manda a Lucio Planco marchar à pressa do Belgio com uma legião para os Carnutes[44], invernar entre eles, prender os conhecidos matadores de Tasgecio, e remeter-lhos. Neste comenos é por todos os seus tenentes e questor, aos quais confiara as legiões, certificado de haverem chegado a seus quartéis de inverno, e feito os respectivos entrincheiramentos.

Cerca de quinze dias depois que se estabeleceram em quartéis de inverno, deu-se o começo de uma súbita revolta e defecção, ocasionado por Ambiorix e Catuvolco, que, acorrendo em princípio às fronteiras de seu reino ao encontro de Sabino e Cota, e levando-lhes trigo para o acampamento, impelidos depois por correios do Treviro Induciomaro, insurrecionaram os seus, e caindo de repente sobre os lenhadores da legião, vieram com grandes forças atacar-nos os arraiais. Tomando armas a pressa sobem os nossos à trincheira, e expedindo por uma parte do campo os cavaleiros espanhóis, levam o melhor no recontro da cavalaria. Desesperando o bom sucesso, fazem os inimigos retirar os seus do assalto; e gritando, então, a seu modo, pedem, saia algum dos nossos a conferenciar com eles, pois tinham a propor sobre o interesse comum coisas com que esperavam poder terminar-se a desavença.

São enviados a conferenciar com eles, o cavaleiro romano Caio Arpinio, amigo de Sabino, e um certo Quincio Junio, espanhol, já dantes acostumado a ser por César enviado a Ambiorix. Fala-lhes Ambiorix nesta substância: "Que grande devedor se confessava de César por benefícios dele recebidos, pois o libertara do tributo, que aos Aduatucos, vizinhos seus, costumava pagar, e lhe restituira seu filho e o do irmão, que, enviados em reféns a esses, haviam sido por eles escravizados e acorrentados; — nem atacara nossos arraiais por impulso ou vontade própria, mas obrigado por sua cidade[45], pois era de natureza tal seu poder, que a multidão não tinha sobre ele menos jurisdição que ele sobre a multidão[46]. Que sua cidade empreendia a guerra, na impossibilidade de resistir à repentina conjuração dos gauleses; — e o provava com a sua mesma fraqueza, porque não era tão inexperiente, que confiasse poder com suas forças vencer o povo romano — Mas era plano comum a toda Gália; e este era o dia marcado para atacar ao mesmo tempo todos os quartéis de inverno de César, afim de não poder uma legião vir em auxílio de outra — E era quase impossível recusarem Gauleses sua cooperação a Gauleses, principalmente quando se tratava de recobrar a liberdade comum. Que tendo satisfeito ao que dele exigia o amor da pátria, mostrava-se agora reconhecido aos benefícios de César, avisando e suplicando a Titurio em nome da hospitalidade, que atendesse a sua e a salvação dos soldados. Que numerosas tropas de Germanos mercenários haviam transposto o Rim, e alí estariam em dois dias — Aos mesmos[47], portanto, cumpria resolver, e, isto, antes de o presentirem os vizinhos, se seria mais conveniente tirar os soldados destes quartéis para fazerem junção ou com Cicero ou com Labieno, dos quais um estava distante cerca de cinqüenta mil passos, o outro pouco mais — Que prometia, e o asselava com juramento, haver de dar passagem franca por suas fronteiras[48] — Que fazendo-o, atendia não só ao interesse de sua cidade[49], que ficava assim aliviada do peso dos quartéis do inverno, mas mostrava-se também grato a César pelos obséquios recebidos. Depois de haver dito isto, retira-se Ambiorix.

XXVIII

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Arpineio e Junio referem aos lugar-tenentes quanto ouviram. Perturbados com o repentino caso, estes, posto o aviso partisse de um inimigo, julgavam todavia não ser para desprezar, e deixavam-se maiormente impressionar porque mal era de crer que a ignóbil e humilde cidade dos Eburões[50] fizesse de motu próprio guerra ao povo romano. Põem pois o negócio em consulta, e suscita-se entre eles grave controvérsia. L. Aurunculeio e muitos dos tribunos dos soldados e centuriões mais graduados eram de opinião, que não convinha obrarem coisa alguma de afogadilho, nem retirarem-se dos quartéis de inverno sem ordem de César. De poder se resistir, diziam, em arraiais fortificados às massas dos Germanos, por grandes que fossem, era prova o haverem os nossos repelido com muito esforço o primeiro assalto dos inimigos, ferindo rijamente neles: que não se sentia falta de víveres e podia neste meio tempo vir socorro, já dos arraiais vizinhos, já de César — Em conclusão que podia haver de mais inconsiderado e vergonhoso, que resolver negócio de tanta monta por alvitre de um inimigo?

Sabino, ao contrário, bradava que haviam de fazê-lo tarde, quando com a junção dos Germanos se reunissem maiores forças inimigas, ou quando alguma calamidade se tivesse experimentado nos próximos quartéis de inverno. Que breve era a ocasião de deliberar — Reputava a César partido para a Itália; pois, se assim não fosse, não teriam os Carnutos tomado a resolução de matar a Fasgecio, nem estando César presente, viriam os Eburões aos arraiais com tanto menosprezo nosso. Que montava partir o aviso de um inimigo? — O que ele considerava era o fato em si: que ficava próximo o Rim; exasperados estavam os Germanos com a morte de Ariovisto, e com nossas passadas vitórias; ardia, recebidas tantas afrontas, a Gália reduzida ao império do povo romano com extinção de sua antiga glória militar. Quem se persuadiria enfim, que Ambiorix, se não existisse o fato, se abalançaria a dar semelhante aviso? Que seu parecer era seguro por qualquer dos dois lados que se encarasse: — pois, a realizar-se alguma desgraça, haviam de chegar sem perigo à próxima legião; — e, a ligar-se toda a Gália com os Germanos, na celeridade estava posta a única via de salvação. Qual seria, porém, o resultado do parecer de Cota, e dos mais que do seu dissentiam? Se não havia nele perigo atual, havia de certo a fome a temer com a prolongação do cerco.

Travada a disputa com razões de um e outro lado, e impugnado acremente Cota e os centuriões mais graduados, Vencei, diz Sabino, já que o quereis e isto em voz bem alta, para que o ouvisse grande parte dos soldados, nem eu sou homem que me deixe grandemente aterrar com ameaças de morte por vossa parte; estes o saberão; e se alguma adversidade acontecer, te tomarão contas; pois, se não foras tu, poderiam, reunidos depois de amanhã aos próximos quartéis de inverno, sustentar com os mais o comum caso de guerra, e não se veriam lançados e desterrados para longe dos mais, com certeza de perecer pelo ferro e pela fomes.

Levantam-se do concelho: abraçam os oficiais um a outro, instam com eles, que não levem as coisas a perigoso extremo com sua dissenção e pertinácia: que o negócio, ou ficassem ou partissem, não apresentaria dificuldade, uma vez que todos concordassem e assentassem num único alvitre; na dissensão, ao contrário, nenhuma salvação descortinavam. Prolonga-se a disputa até meia noite. Cota finalmente dá as mãos, vencido: triunfa a opinião de Sabino. Marca-se a partida para o romper d’alva, O resto da noite é gasto em vigílias, vendo cada soldado o que era seu, o que podia levar consigo, e o que era forçado a deixar do necessário para invernar. Como que se excogita tudo, para permanecerem não sem perigo, e aumentarem o perigo, já com a languidez, já com as vigílias do soldado. Ao romper d’alva partem dos arraiais, como se estivessem persuadidos, na extensíssima ordem da marcha entravada de grande bagagens, de que partia o conselho, não de inimigo, mas de um homem amicíssimo — Ambiorix!

Mas os inimigos, mal lhes presentiram a partida pelo frêmito noturno e vigólias, dispostas emboscadas nas selvas por duas partes em lugar oportuno e oculto, até cerca de dois mil passos aguardavam a chegada dos Romanos e como o mais do exército descesse a um grande vale, mostraram-se repentinamente de uma e outra parte do vale, e entraram a apertar com os da retaguarda, a tolher a subida aos dianteiros, e a travar combate em lugar mui desvantajoso aos nossos.

XXXIII

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Então, finalmente, Titurio, que nada havia providenciado de antemão, se apressava, corria, dispunha as coortes, isto ainda assim timidamente, e como se parecesse faltar-lhe tudo; o que de ordinário acontece aos que tomam conselho na mesma conjuntura. Mas Cota, que pensara poderia isto acontecer na marcha, e não fora porisso autor da partida, em nada faltava à salvação comum, e desempenhava o ofício, já de general no apelidar e esforçar os soldados, já de soldado no pelejar. Sendo que, em razão da longa ordem de marcha, não podiam ocorrer a tudo por si, e providenciar o que se devia obrar em toda parte, mandaram os dois generais abandonar as bagagens, e formar em círculo. E esta resolução, ainda que não é para censurar em caso tal, teve, todavia, mau resultado, seja diminuindo a esperança aos nossos soldados, seja tornando os inimigos mais alvoroçados no pelejar, visto conto parecia ela conseqüência de grande temor e desesperança. Aconteceu além disso o que era necessário acontecesse, abandonarem os soldados as signas em grande número, apressar-se cada um a ir buscar e tomar das bagagens o que tinha de mais caro, e encher-se tudo de clamor e pranto.

Aos bárbaros, porém, não faltou o acordo. Mandaram seus caudilhos proclamar por todo o exército, que ninguém abandonasse o posto, pois sua deles era a presa, e reservado lhes estava quanto houvessem de deixar os Romanos: assim tudo pusessem na esperança da vitória. Eram os nossos iguais em valor e número na peleja; e, dado que desamparados do general e da fortuna, no valor, nada obstante, punham toda esperança de salvação, e quantas vezes avançava cada coorte, grande era o número de inimigos, que por esse lado caia. Atentando nisto, manda Ambiorix proclamar aos seus, que arremessem dardos de longe, não se cheguem perto, e cedam naquela parte, contra a qual avançarem os Romanos (pois pela leveza de suas armas e quotidiano exercício não haviam de receber dano), mas os persigam de novo, ao recolherem-se aqueles para junto das respectivas signas.

Observado mui cuidadosamente este preceito, quando saia qualquer coorte do círculo, e atacava, tornavam os inimigos a fugir velocíssimamente. Necessário era, entretanto, que ficasse esta parte descoberta e se recebessem dardos pelo lado aberto. Quando começavam a voltar outra vez para o lugar, donde tinham saído, viam-se cercados, tanto pelos que haviam fugido, como pelos que estavam próximos; mas se queriam guardar o posto, nem se deixava lugar ao valor, nem cerrados podiam evitar os dardos arremessados por tamanha multidão. Assoberbados por tantos incômodos, recebidas muitas feridas, resistiam, todavia, e consumida grande parte do dia, combatendo-se desde o romper d’alva até às duas horas da tarde, nada praticavam, que deles fosse indigno. Então a T. Balvencio, que fora o ano passado promovido a primipilar, homem valoroso, e de grande autoridade, são com uma arma de arremesso atravessadas ambas as coxas; Q. Lucanio, da mesma graduação, é morto, combatendo mui denodadamente para salvar o filho, que estava cercado; o lugar-tenente L. Cota é ferido na boca com um tiro de funda, enquanto anima as coortes e fileiras.

Abalado com isto, Q. Titurio, ao ver ao longe Ambiorix, animando os seus, envia-lhe o seu língua Gneo Pompeio a rogar-lhe que o poupe a ele e os soldados. Ambiorix respondeu: Que, se Titurio queria falar-lhe, podia fazê-lo, pois esperava se conseguiria da multidão o que dizia respeito à salvação dos soldados; ao mesmo porém nenhum mal se lhe faria, e nisso empenhava a sua palavra. Com esta resposta procura Titurio a Cota ferido, afim que, se este o levasse a bem, se retirassem do conflito, e falassem conjuntamente a Ambiorix, porque contava alcançar dele a salvação de ambos e a dos soldados. Recusa Cota ir falar a um inimigo em armas e nisso persevera.

XXXVII

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Faz-se Sabino acompanhar dos tribunos militares e centuriões mais graduados, que tinha no momento em volta de si, e ao chegar perto de Ambiorix, é mandado depôr as armas, o que executa, ordenando aos seus, pratiquem o mesmo. Neste interim, enquanto trata com Ambiorix, e a discussão é por este de propósito alongada, é pouco a pouco cercado e morto. Então proclamam os bárbaros a vitória a seu modo, levantando desconcertada grita, e investindo contra os nossos, rompem-lhes as fileiras. Aí é L. Cota morto em combate, bem como a maior parte do exército. Os restantes acolhem-se aos arraiais donde tinham saido. E destes o porta-águia, L. Petrosidio, vendo-se assoberbado de grande multidão inimiga, atira com a águia para dentro da trincheira, e é morto em frente dos arraiais, combatendo mui esforçadamente. Os que tinham conseguido entrar, mal sustentam a investida até a noite; e no decurso desta, perdida a esperança de salvação, matam-se todos entre si até o último. Poucos que haviam escapado da batalha, chegam por caminhos incertos, através dos bosques, aos quartéis de inverno de T. Labieno, e informam a este do sucedido.

XXXVIII

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Ensoberbecido com esta vitória, parte incontinenti Ambiorix com a cavalaria para os Aduatucos, que vizinhavam com o seu reino; e, ordenando à infantaria que o siga, nem dia, nem noite interrompe a marcha. Exposto o negócio, e sublevados os Aduatucos, chega no seguinte dia aos Nervios, aos quais exorta a não perderem a ocasião de libertar-se para sempre, e vingar-se nos Romanos das afrontas recebidas, mostrando que haviam sido mortos dois lugar-tenentes, e perecera uma grande parte do exército; — que era difícil ser destruída a legião, que invernava com Cicero, sendo opressa repentinamente: assegura-lhes para isso o seu apoio. Com este discurso persuade facilmente aos Nervios.

Assim, enviados imediatamente correios aos Ceutrones, Grudios, Levacos, Pleumoxios, Geodunos[51], os quais todos estão na sua dependência deles, reunem o maior número de tropas que podem e voam aos arraiais de Cicero, a quem não havia ainda chegado a fama da morte de Titurio. Aconteceu também a este, o que era inevitável, e foi, que alguns soldados, que andavam pela mata, fazendo lenha, e cortando madeira para a fortificação, foram surpreendidos com a repentina chegada da cavalaria. Envolvidos estes, começam Eburões, Nervios, Aduatucos, e aliados e clientes de todos eles, a assaltar a legião com numerosas forças. Correm os nossos incontinenti às armas e sobem à trincheira. Com dificuldade se sustenta este dia[52], por que na celeridade toda esperança punham os inimigos, e, alcançada mais esta vitória, confiavam seriam sempre vencedores.

São logo por Cicero enviadas cartas a César com promessas de grandes prêmios aos que as levassem. Cercados todos os caminhos, são interceptados os portadores. Da madeira transportada para a fortificação levantam-se de noite até cento e vinte torres com incrível rapidez; conclui-se o que parecia faltar à obra de entrincheiramento. No seguinte dia assaltam os inimigos aos arraiais com muito mais forças reunidas; cegam o fosso. Resistem os nossos pela mesma forma que no antecedente. Faz-se depois o mesmo nos restantes dias. Em nenhuma parte da noite se interrompe o trabalho; nem aos doentes, nem aos feridos, se dá faculdade de descançar. Apresta-se de noite tudo o que é necessário para repelir o assalto do dia seguinte; aprontam-se muitas azagaias tostadas, e grande número de pilos murais; põem-se tabolados nas torres; tecem-se ameias e parapeitos de grades para a muralha. O mesmo Cicero, homem de saúde delicadíssima, nem ainda o tempo noturno se reserva para repouso, a ponto de ser obrigado a poupar-se pelas vozes expontâneas e concurrência dos soldados.

Então os caudilhos e principais dos Nervios, que tinham alguma entrada e relações de amizade com Cicero, dizem que lhe querem falar. Dada a permissão de o fazerem, referem o mesmo, que Ambiorix havia dito a Titurio: "Que achava-se toda a Gália em armas; que haviam os Germanos passado o Rim; e estavam sendo atacados os quartéis de inverno de César e seus tenentes." Acrescentam a notícia da morte de Sabino; apresentam por prova a Ambiorix: "Que estavam muito enganados, se esperavam auxílio dos que corriam igual perigo; mas — tal era disposição de seu ânimo deles para com Cicero e o povo romano, que nada recusavam, senão o ônus dos quartéis de inverno, pois não queriam ficasse inveterado tal costume: que lhes era lícito a Cicero e aos seus retirarem-se livremente dos quartéis de inverno, e partirem sem medo para onde quisessem." A isto respondeu novamente Cicero: — "Não ser costume do povo romano receber proposta alguma de inimigo armado: que depusessem as armas, servissem-se de sua mediação e enviassem embaixadores a César, pois esperava, atenta a eqüidade deste, haverem eles de alcançar quanto desejavam."

Repelidos desta esperança, os Nervios cingem os quartéis de inverno com um entrincheiramento de onze pés de alto, e um fosso de quinze de fundo. Tinham aprendido de nós estas coisas, já com a prática dos anos precedentes, já ensinados por certos prisioneiros, que haviam feito do exército; mas, sem cópia de instrumentos próprios para isto, viam-se obrigados a cortar os cespedes em volta com os gladios, e a tirar a terra com as mãos e com os sagulos[53]. E por aí se pôde conhecer a sua imensa multidão; porquanto em menos de três horas levaram a efeito uma fortificação de quinze mil passos de circunferência, e nos restantes dias entraram, ensinados pelos mesmos prisioneiros a preparar e fabricar torres até à altura de nossa trincheira, foices e testudes[54].

No sétimo dia de sítio, soprando um vento fortíssimo, entraram com fundas a arremessar balas ferventes de argila em brasa e dardos inflamados, contra as barracas de nossos soldados, que eram, ao modo Gaulês, cobertas de palha. Estas ganharam imediatamente fogo, e o comunicaram com a violência do vento a todas as partes dos arraiais. Avançando com imenso alarido, como se já tivessem a vitória nas mãos, começaram os inimigos a chegar torres e testudes, e a escalar a trincheira. Mas tamanho foi o esforço de nossos soldados, e tal sua presença de espírito, que, abrasados pelas chamas, assoberbados por uma infinidade de projetís, e certos de estarem ardendo todas as suas bagagens e haveres, nenhum deles se moveu da trincheira para ir até lá, ou quase para lá olhou, antes todos combateram encarniçada e denodadamente. Este dia foi mais prejudicial aos nossos; teve, contudo, em resultado, ficar ferido e morto muito maior número de inimigos, porque, cerrando-se em volta de uma mesma trincheira, os últimos dentre eles não permitiam retirada aos primeiros. Cessando um pouco as chamas, e havendo eles em certo lugar aplicado uma torre, que tocava na trincheira, os centuriões da terceira coorte retiraram-se do lugar em que estavam e fizeram igualmente retirar os seus: depois com acenos e vozes convidaram os inimigos a entrar mas nenhum deles ousou fazê-lo. Foram então derribados com pedras arremessadas de toda parte, e queimou-se a torre.

Havia nesta legião dois mui esforçados centuriões, que já se aproximavam das primeiras graduações, de nomes, T. Pulão e L. Voreno. Andavam estes em perpétuas competências de qual seria o preferido, e contendiam todos os anos com inimizades sobre os primeiros lugares. Destes, no maior ardor do combate junto às trincheíras, diz Pulão: Por que é que hesitas, Voreno? ou que ocasião esperas para mostrar o teu valor? este dia será juiz de nossas competências. E ao dizer isto, salta fora das trincheiras, e arremete contra aquela parte em que os inimigos pareciam mais cerrados. Nem tão pouco Voreno se deixa ficar dentro, mas segue-o pelo receio de parecer somenos na geral opinião. Restando medíocre espaço, vibra Pulão o pilo contra os inimigos, e atravessa um da multidão que corria ao seu encontro; enquanto alguns protegem com os escudos o ferido que expirava, todos arremessam dardos contra o inimigo, e tiram-lhe a possibilidade de voltar. É o escudo traspassado a Pulão, e fica-lhe o dardo preso no boldrié. Este caso desvia-lhe a bainha, demora-lhe a mão direita no arrancar da espada, e o deixa embaraçado no meio dos inimigos que o cercam. Acode-lhe o inimigo Voreno, indo em seu socorro neste aperto. Logo toda a multidão se volta contra este abandonando Pulão. Atacando de improviso, combate Voreno de perto à espada, e morto um, consegue repelir por um pouco os mais; mas, enquanto aperta com mais ardor, cai, faltando-lhe o pé, num lugar inferior. A este cercado pelo seu turno socorre igualmente Pulão, e ambos com sumo louvor recolhem-se sãos e salvos para as trincheiras, deixando a muitos mortos no campo. De tal sorte provou a fortuna a um e outro, quer na competência, quer no combate, que, sendo um inimigo do outro, levou socorro e salvação a seu inimigo, sem que se pudesse decidir qual o mais valoroso.

Quanto mais pesado e áspero de dia para dia se tornava o cerco, principalmente porque ferida grande parte dos soldados, mui reduzido se achava o número dos defensores, tanto mais amiudados, cartas e correios, eram enviados a César; e deles surpreendidos, eram mortos a tormento à vista dos nossos soldados. Havia nos arraiais um Nervio, de nome Verticão, nascido de família honesta, que logo no princípio do cerco havia fugido para Cicero, e prometera ser-lhe fiel. Este persuade a um escravo seu com promessa de liberdade e grandes prêmios, que leve uma carta de Cicero a César. Ele a leva ligada no dardo, e Gaulês anda por entre Gauleses sem mover suspeita e chega a César. Dele se sabe o perigo que corria Cicero e a legião.

César, recebida a carta pela undécima hora do dia, (às 5 da tarde), despacha logo um correio ao questor Crasso, cujos quartéis de inverno nos Belovacos[55] distavam dele vinte cinco mil passos, ordenahdo-lhe faça marchar a legião a meia noite, e venha incontinenti ter com ele. Parte Crasso com o correio. Expede outro a C. Fabio, ordenando-lhe conduza a legião às fronteiras[56] dos Atrebates, por onde devia ele próprio fazer a sua marcha. Escreve a Labieno, que, se o puder fazer sem inconveniente, venha com a legião às fronteiras[57] dos Nervios. A restante parte do exército, que estava um pouco mais longe, julga não dever esperá-la. Reune cerca de quatrocentos de cavalo dos próximos quartéis de inverno.

À terceira hora do dia, (ás 9 da manhã), certificado da vinda de Crasso pelos batedores, avança nesse dia uns vinte mil passos. Deixando uma legião a Crasso, o prepõe a Samarobriva[58], porque aí deixava as bagagens do exército, os reféns das cidades[59], o arquivo, e todo o trigo que mandara transportar, para passar o inverno. Fabio com a legião, segundo fora ordenado, o encontra também em marcha, sem muita demora. Labieno, sabido o caso de Sabino e o morticínio das coortes, e marchando contra ele todas as tropas dos Treviros, receioso de, em fazendo uma partida dos quartéis de inverno com visos de fuga, não poder resistir aos inimigos, ensoberbecidos principalmente com a recente vitória, responde a César, narrando-lhe quanto risco havia em tirar a legião dos quartéis de inverno, bem como o desastre ocorrido nos Eburões[60], e o achar-se toda a cavalaria e infantaria dos Treviros acampada a três mil passos dos seus arraiais.

XLVIII

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Aprovando o parecer de Labieno, César, ainda que desapontado na esperança das três legiões, voltava às duas, na celeridade com tudo punha o único auxílio da comum salvação. Chega com marchas forçadas às fronteiras[61] dos Nervios. Aí conhece dos cativos o que vai pelos arraiais de Cicero, e a que extremidade têm ali chegado as coisas. Persuade, então, com grandes prêmios a um da cavalaria gaulesa que leve uma carta a Cicero. Remete-a escrita em grego, para que, no caso de ser interceptada, não fossem nossos planos conhecidos dos inimigos[62]. Se não poder penetrar dentro, recomenda ao portador, que atire para a fortificação dos arraiais uma tragula[63] com a carta presa na correia. Manda-lhe dizer nesta que vinha em marcha e estava a chegar com as legiões concluindo por exortá-lo a conservar o antigo valor. O Gaulês, receioso do perigo, atira a tragula como lhe fora recomendado. Esta ficou casualmente pregada a uma torre, sem que ninguém desse por isso durante dois dias; no terceiro é vista por um soldado, tirada e levada a Cicero. Ele, depois de lida a carta, a recita aos soldados reunidos, enchendo a todos de grande alegria. Via-se então ao longe o fumo dos incêndios: o que expelia toda dúvida da vinda das legiões.

Os Gaulêses, sabido o caso pelos exploradores abandonam o cerco, e marcham com todas as forças contra César. Tinham em armas cerca de sessenta mil homens. Cicero, recorrendo ao mesmo canal, torna a pedir a Verticão o gaulês, de que acima tratamos, afim de levar outra carta a César; e recomendando ao portador cautela e presteza, escreve a César que os inimigos haviam abandonado o cerco, e dirigiam toda a multidão contra ele. Recebendo esta carta pela meia noite, dá César conta dela aos seus, e os esforça a pelejar. No seguinte dia levanta campo ao romper d’alva, e tendo avançado cerca de quatro mil passos, avista a multidão dos inimigos da banda da’lém dum vale e duma ribeira. Era mui arriscado combater contra tamanhas forças em lugar desvantajoso; então, sabendo estar Cicero livre do cerco, julga conveniente demorar a marcha. Faz alto, e fortifica arraiais no lugar mais vantajoso, que se lhe depara; e a estes, ainda que de si pequenos, e apenas de sete mil homens, sobre tudo sem bagagens algumas, os aperta ainda assim o mais que pode, estreitando-lhes as ruas[64], afim que pareçam muito desprezíveis aos inimigos. Entretanto, expedindo exploradores em diversos sentidos, manda examinar por onde lhe seja possível passar o vale mais comodamente.

Travados este dia pequenos combates eqüestres junto a água, conservam uns e outros as suas respectivas posições: os Gauleses, porque esperavam maiores forças, que ainda não tinham chegado; César, para, com a simulação de temor, atrair os inimigos à posição a ele favorável, afim de pelejar aquém do vale em frente dos arraiais; e, não o podendo conseguir, de passar com menos risco o vale e a ribeira por caminhos explorados. Ao romper d’alva aproxima-se dos arraiais a cavalaria inimiga, e trava combate com a nossa. César ordena de proposito à nossa que ceda, e se retire para os arraiais: manda ao mesmo tempo alteiar por toda a parte a trincheira dos arraiais, obstruir as portas, correr, ao fazê-lo, de uma à outra parte, e agir com simulação de temor.

Convidados por tudo isto, traspassam os inimigos suas tropas, postando-se em lugar desvantajoso; ao retirarem-se também os nossos da trincheira, chegam eles para mais perto, despedem dardos de todas as partes para dentro da fortificação, e mandam por pregoeiros proclamar em volta do campo — Que a todo Gaulês ou Romano, que quisesse passar para eles, ser-lhe-ia permitido fazê-lo antes da terceira hora do dia (das 9 da manhã), não o sendo mais depois disso — E por tal forma chegaram a desprezar aos nossos, que, por lhes parecer, achando-se cada uma das portas dos arraiais aparentemente obstruída por ordens de cespedes, não poderem romper por essa parte, entram uns a arrancar os paus da trincheira com as mãos, outros a cegar os fossos. Então César, feita a sortida por todas as portas, e despedida a cavalaria, põe prestesmente os inimigos em fuga, a ponto que nem um só ousa fazer alto para resistir, mata grande número deles, e a todos os despoja das armas.

Receiando segui-los mais longe, porque se metiam bosques e pântanos de permeio, e via não haverem eles abandonado suas posições sem grande perda, chega no mesmo dia aos arraiais de Cicero com todas as suas tropas a salvo. Admira a construção das torres, máquinas de guerra e fortificações dos inimigos; formada a legião, verifica não haver um só de cada dez soldados, que deixe de estar ferido: de tudo isto ajuiza, que risco se havia corrido, e com que esforço se tinha obrado. Louva a Cicero pelo serviço prestado, bem como a legião, dirigindo-se, em particular, a cada um dos centuriões e tribunos dos soldados, que sabia por informações do mesmo mais se haverem distinguido em bravura. Dos cativos sabe o caso de Sabino e Cota com mais individuação e certeza. No seguinte dia expõe aquele desastre em pública reunião, consola e esforça os soldados, mostrando-lhes que a perda recebida por culpa e temeridade do lugar-tenente devia ser suportada de melhor ânimo, porque havendo sido compensada pelo benefício dos deuses imortais e valor dos mesmos, não tinham os inimigos motivo para alegria duradoura, nem os nossos, para dor mais prolongada.

Entretanto, a Labieno chega pelos Remos com incrível rapidez a fama da vitória de César, pois, estando distante cerca de sessenta mil passos dos arraiais de Cicero, e chegando César a estes depois da nona hora do dia, (depois das 3 da tarde), antes da meia noite lhe rebentava as portas dos arraiais o clamor, com que os Remos lhe exprimiam a significação e os parabéns da vitória. Levada esta fama aos Treviros[65], Inducionaro, que se dispunha a atacar os arraiais de Labieno no dia seguinte, foge de noite, e reconduz as suas tropas. Reenvia César a Fabio com a legião aos seus quartéis de inverno, e resolve invernar ele mesmo com três legiões distribuidas por três quartéis nas vizinhanças de Samarobriva, e porque tantos eram os movimentos na Gália, passar o inverno todo com o exército. Por quanto espalhada a notícia da morte de Sabino, quase todas as cidades da Gália, expedindo correios e embaixadas para diversas partes, tratavam de empreender a guerra e examinavam, fazendo reuniões noturnas em lugares ermos, que plano convinha adotar, e onde devia esta começar. Nem se passava tempo algum do inverno sem cuidado para César, que não cessava de receber avisos dos projetos e da agitação dos Gauleses. É entre os demais avisos informado pelo lugar-tenente, L. Roscio, que prepusera a décima terceira legião, de que grandes tropas de Gauleses daquelas cidades[66], ditas da Armorica, se haviam reunido para atacá-lo e não estavam distantes mais de oito mil passos dos seus quartéis de inverno; mas que, sabida a notícia da vitória de César, tinham feito uma retirada com visos de fuga.

Mas César, chamando à sua presença os principais de cada cidade, ora atemorizando-os, com dizer que sabia o que se tramava, ora exortando-os, conseguiu reter no dever grande parte da Gália. Os Senones[67], todavia, cidade mui principal e acreditada entre os Gauleses, havendo resolvido em concelho matar a Cavarino, rei seu posto por César, e cujo irmão Moritasgo reinava, quando César veio à Gália, bem como em outras eras reinaram seus passados, e havendo-o perseguido até às fronteiras, em razão de o ter ele pressentido e fugido, o expeliram do reino e da pátria; e enviando embaixadores a César para dar-lhe satisfação, e mandando este vir à sua presença todo o senado, recusaram obedecer. Tanto pôde com homens bárbaros haver quem os excitasse a guerra, e tanta mudança produziu isso nas vontades de todos, que, se excetuarmos os Heduos e os Remos, os quais sempre César teve em particular estimação, os primeiros por sua antiga e constante amizade para com o povo romano, os segundos pelos recentes serviços prestados na guerra gaulesa, não houve quase cidade alguma que nos não fosse suspeita. Não sei se seja tanto para admirar, que se doam mui gravemente, não por outros motivos, como e mui principalmente, por terem, quando a todos os povos sobresaiam em valor guerreiro, decaido desse conceito a ponto de suportarem o jugo do povo romano.

Em nenhum tempo do inverno, porém, cessaram os Treviros e Induciomaro de mandar embaixadores além Rim, solicitando cidades, prometendo dinheiro, e asseverando "que, morta grande parte de nosso exército, apenas restava uma pequena parte". Não se deixou todavia cidade[68] alguma dos Germanos persuadir a passar o Rim, pois diziam: "que, tendo experimentado duas vezes a fortuna, uma na guerra de Ariovisto, outra na passagem dos Tencteros, não haviam de tentá-la mais". Decaido desta esperança, entrou sem embargo Induciomaro a reunir tropas, a exercitá-las, a aprestar cavalos dentre os vizinhos, e a atrair a si de toda a Gália com grandes recompensas os desterrados e condenados. E tanta autoridade adquiriu com isto na Gália, que de toda parte lhe chegavam embaixadas, solicitando seu favor e amizade em público e particular.

Como viu que se corria a ele expontaneamente, sendo de uma parte os Senones e Carnurtes instigados pela consciência do crime, e preparando de outra os Nervios e Aduatucos guerra aos Romanos, nem lhe haviam de faltar tropas de voluntários, ao adiantar-se de suas fronteiras, convoca um concelho armado. Eis a usança com que se começa a guerra entre os Gauleses; reunem-se por lei comum todos os moços púberes armados, e o que dentre eles chega por último de todos, é morto à vista da multidão com todo gênero de tormentos. Neste concelho, a Cengetorix, cabeça da outra facção, e genro seu, que acima mostramos ter seguido a César e haver-lhe sido fiel, o declara inimigo e confisca-lhe os bens. Feito isto, declara no concelho, que convidado pelos Senones, Carnutes e outras cidades mais, havia de marchar para ali pelas fronteiras[69] dos Remos, assolando-lhes os campos, mas que antes de o fazer, havia de atacar os arraiais de Labieno. Ordena o que cumpre executar.

Estando em arraiais mui fortificados pela natureza e pela arte, nada tinha Labieno que temer por si e pela legião; pensava em não deixar escapar ocasião de empreender um feito notável. Assim, inteirado por Cingetorix e seus parentes do discurso, que Induciomaro proferira no concelho, expede correios às cidades vizinhas, e de todas convoca cavaleiros; marca-lhes dia certo para se reunirem. Quase quotidianamente vagava Induciomaro com toda a cavalaria à vista dos arraiais, seja para conhecer a posição destes, seja para bravatear ou atemorizar; os seus cavaleiros as mais das vezes todos atiravam dardos para dentro do entrincheiramento. Continha Labieno os seus na fortificação, e, em tudo que podia, aparentava visos de crescente temor.

Continuando Induciomaro a aproximar-se cada dia dos arraiais com mais desprezo, introduziu Labieno uma noite os cavaleiros das cidades vizinhas já convocados, e por meio de vigias reteve os seus nos arraiais com tanto cuidado, que não pôde ser isso anunciado ou levado aos Treviros. Entretanto, aproxima-se Induciomaro dos arraiais na forma costumada, e aí consome grande parte do dia; seus cavaleiros atiram dardos, e provocam os nossos a combate com muita afronta de palavras. Não respondendo os nossos, retiram-se pela tarde, quando julgam conveniente, dispersos e separados. De repente despede Labieno por duas partes toda a cavalaria, ordenando-lhe que, espantados e afugentados os inimigos, (como era de prever acontecesse), acometam todos unicamente a Induciomaro, e proibindo-lhe ao mesmo tempo que a nenhum outro firam antes de o verem morto, pois não queria que escapasse, ganhando espaço com a demora da perseguição dos outros; promete grandes recompensas aos que o matassem; envia coortes em auxílio da cavalaria. Confirma a fortuna a plano do homem, e acometendo todos a um só, é Induciomaro surpreendido e morto no mesmo vau do rio[70], e sua cabeça trazida aos arraiais: na volta perseguem e matam os cavaleiros a quantos inimigos podem. Sabido isto retiram-se todas as tropas dos Eburões e Nervios, que se achavam reunidas e depois deste fato teve César a Gália um pouco mais quieta.

  1. No ano de Roma 700, 53 anos A.C.
  2. No Mediterrâneo, mar essencialmente romano.
  3. De Espanha é que os romanos tiravam o esparto, junco mui forte, de que se serviam para fazer cabos.
  4. A Gália cisalpina, ou Lombardia; César tinha sob seu poder não só a Gaba cisalpina, mas a transalpina e a Ilíria.
  5. Povo da Albânia, segundo o maior número de comentadores.
  6. Galés, ou navios longos.
  7. Expeditas; isto é, sem bagagens.
  8. 8,0 8,1 8,2 Fronteiras, por território.
  9. Cidade, no sentido de nação, estado, república, tanto neste como nos mais lugares deste capítulo.
  10. Treviros, aqui, e nos lugares abaixo, assim como Remos, estão pelos respectivos países.
  11. Consola-o, assegurando-lhe que seu filho e parentes nada sofrerão.
  12. In Meldies. Tal é a lição dos melhores manuscritos. Dois povos tinham na Gália este nome: 1o.) os Meldas, pequeno povo que habitava o país de Meaux; 2o.) os Meldas, tribo dos Menapios na Bélgica, nos artedores de Bruges. Ainda admitindo que César fale dos primeiros, que habitavam o interior, pode-se conceber que fossem construídos navios em seu país e conduzidos ao mar pelo Marne e Sena. Não é pois necessário substituir, Meldis, por Belgis, como fazem algumas edições.
  13. Cidades, no sentido de nações, estados, repúblicas.
  14. Alterações, no sentido de desordens, sedições, comoções populares, é freqüente em nossos clássicos.
  15. Cidade, no scntido de nação, povo.
  16. Cidade, no sentido de nação, república.
  17. Vento do noroeste.
  18. Os soldados legionários e a cavalaria dos aliados.
  19. Vento do sudoeste.
  20. Supõe-se ser o rio de Flour, que passa por Cantorbery, e se acha a 4 léguas de Douvres.
  21. Cidades, por nações, tanto aqui como mais abaixo.
  22. O rio Tâmisa.
  23. 23,0 23,1 Cidades, por nações.
  24. O país de Kant.
  25. A Irlanda ao oeste da Inglaterra.
  26. A ilha de Man entre a Inglaterra e a Irlanda.
  27. Clepsidras. A clepsidra era um relógio, em que se media o tempo pela quantidade de água que corria.
  28. Na Gália.
  29. As primeiras coortes eram as coortes escolhidas de cada legião.
  30. Povo de Middlessex.
  31. Cidade, por nação tanto aqui como nos lugares abaixo.
  32. Todos esses povos eram de Essex e países circunvizinhos.
  33. Cassivelauno tinha sido nomeado generalíssimo das forças Britanas, e como tal dava ordens aos quatro reis.
  34. O entrincheiramento que fez César para defesa dos navios varados em terra, e das tropas destinadas a guardá-los.
  35. Acampamento.
  36. Postos estes em nado, tanto valia a expressão latina, deductis his, Deducere naves, pôr navios em nado, opõe-se justamente em latim a subducere naves, varar navios em terra.
  37. Prisioneiros reduzidos a escravidão.
  38. Em dois comboios, por duas vezes.
  39. Amiens.
  40. Cidades, no sentido de repúblicas, estados.
  41. Os povos de que se trata neste capítulo, estão pelos respectivos países.
  42. Era irmão do grande orador romano.
  43. Cidade, no sentido de nação.
  44. Os Carnutes, pelo respectivo país.
  45. Cidade, no sentido de nação, tanto aqui como nos lugares abaixo.
  46. Já em outra parte ficou demonstrado quáo precária era a autoridade dos caudilhos Gauleses.
  47. Sabino e Cota.
  48. Fronteiras, por território: é uma sinédoque da parte pelo todo.
  49. Cidade, no sentido de nação, república, etc.
  50. Eburões, povo da Bélgica a NE. dos Aduaticos ou Tungros.
  51. Povos que habitavam na costa da Bélgica, e ao meio dia das bocas do Escalda.
  52. Isto é, este dia de assalto.
  53. Espécie de pequeno capote, ou curta veste Gaulesa, como se infere do diminuitivo latino, sagulum. Era listado de várias cores.
  54. Não se trata aqui da manobra militar, chamada testudem, por nós descrita na nota ao cap. 6 do L. II, mas de uma máquina de guerra, espécie de galeria rolante, ao abrigo da qual o inimigo se aproximava da muralha, ou trincheira, para derrocá-la.
  55. Os habitantes pelo território: é a metonímia do conteúdo pelo continente.
  56. As fronteiras pelo território: é a sinédoque da parte pelo todo.
  57. A mesma sinédoque.
  58. Hoje Amiens.
  59. Isto é, das pequenas repúblicas gaulesas.
  60. A derrota dos quartéis de inverno situados nos Eburões.
  61. As fronteiras, pelo território.
  62. Seja que já alguns Gauleses soubessem o latim, seja que o mandassem traduzir pelos seus escravos, ou prisioneiros romanos, se fosse escrita em latim.
  63. Era uma arma de arremesso com uma correia na extremidade, como se depreende da passagem, Conservamos-lhe aqui o mesmo nome gaulês, que quase sempre lhe dá César, para melhor distinguir num caso especial esta arma, a que em outros damos o nome genérico de dardo, ou ainda de azagaia. Tanto usava dela a cavalaria, como a infantaria.
  64. Tinham os arraiais oito ruas; cinco ao comprido, e três transversais.
  65. Povo da Bélgica ao N. dos Mediomatricos, no grão ducado de Luxemburgo.
  66. Cidades, por nações como acima.
  67. Povo que habitava a bacia do Yone.
  68. Cidade, por nação, como precedentemente.
  69. Fronteiras por território.
  70. Mosa, que extremava os Remos dos Treviros.

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Argumento

César, prevendo maior movimento na Gália, aumentou as tropas c. 1. Rendidos os Nervios, Senones e Carnutes, subjuga os Menapios c. 2-6. Labieno debela os Treviros c. 7-8. César passa novamente o Rim c. 9, e oferecendo-se-lhe ocasião de comparar os costumes da Gália com os da Germania, descreve uma e outra nação c. 10-28. Provocados de balde os Suevos, volta aos Eburões c. 29-33, e enquanto lhes tala a campanha, os Sugambros atacam os arraiais de Cicero, e fogem com medo de César que se aproxima c. 34-42. Assolados os campos dos Eburões, e encerrada a asesmbléia da Gália, parte para a Itália a reunir as juntas c. 43-44.

Contando por muitos motivos com maior movimento na Gália, resolve César encarregar de fazer levas de soldados aos lugar-tenentes M. Silano, C. Antistio Regino, T. Sextio; pede ao mesmo tempo a Cn. Pompeio, proconsul[1] residente junto a Roma com autoridade militar, por assim o exigir o interesse público, ordene que se reunem as signas e marchem para o exército da Gália, os que alistara na Gália Cisalpina sob juramento de cônsul, julgando importar muito ao nosso crédito na Gália, atual e futuro, parecerem tão grandes os recursos da Itália, que, no caso de algum revés, fossem as perdas não só prontamente reparadas, mas o fossem ainda com maiores forças. Fazendo Pompeio a concessão ao bem público e à amizade, e concluindo os seus as levas com presteza, organizaram-se, e chegaram três legiões antes de terminar o inverno e duplicou-se assim o número das coortes perdidas com Titurio, mostrando César, quer na celeridade, quer nas forças, quanto valiam a disciplina e os recursos dos Romanos.

Morto Induciomaro, como mostramos, é o poder conferido a seus parentes pelos Treviros. Não desistem eles de solicitar os Germanos comarcãos, prometendo dinheiro. Encontrando algumas cidades[2] dispostas a segui-los, confederam-se com elas por juramento recíproco, e dão-lhes reféns por fiança do dinheiro; compreendem também a Ambiorix na confederação. Sabido isto, e vendo preparar-se guerra por toda parte, acharem-se em armas os Nervios, Aduatucos e Menapios, com todos os Germanos daquém Rim, não acudirem os Senones ao chamado sobre entrarem na conjuração com os Carnutes e cidades comarcãs, e serem os Germanos solicitados com freqüentes embaixadas pelos Treviros, resolveu César fazer a guerra mais cedo.

Assim, sem estar ainda terminado o inverno, reunindo as quatro legiões mais próximas cai de improviso sobre as fronteiras[3] dos Nervios, e tomando-lhes, antes que eles pudessem reunir-se ou fugir, grande quantidade de gado e homens, presa que distribui pelos soldados, e devastando-lhes as terras, os obriga a render-se e dar-hes reféns. Concluída esta expedição com preste za, reconduz de novo as legiões aos quartéis de inverno. Marcada a reunião da assembléia da Gália para o princípio da primavera, como costumava, e comparecendo todos, menos os Senones, Carnutes e Treviros, o que julga começo de guerra e rebelião, deixa de lado todo e qualquer negócio para acudir a este, e transfere a reunião da assembléia para Lutecia dos Parisios[4]. Eram os Parisios vizinhos dos Senones, e tinham com estes constituído uma só cidade[5] em outras eras, mas não entravam nesta conjuração. Exposta a sua resolução do alto do tribunal, parte com as legiões contra os Senones, e ali chega a marchas forçadas.

Sabida a sua vinda, Accão, o principal autor da conjuração, ordena à multidão se encerre nas praças fortes. Quando a isso se dispunham, e antes de o poderem fazer, anuncia-se que os romanos lhes batiam às portas. Desistem da resolução por necessidade, e enviam embaixadores a César, desculpando-se e implorando perdão: fazem-no por intermédio dos Heduos, cuja cidade tinha outrora com eles amizade. Intercedendo os Heduos, de boamente lhes concede César o perdão, e aceita a desculpa; pois entendia dever empregar o estio em ocorrer a guerra iminente, e não em fazer averiguações. Exigindo-lhes cem reféns, os dá a guardar aos Heduos. Mandam-lhe também os Carnutes embaixadores e reféns, servindo-se da mediação dos Remos, em cuja clientela estavam; obtém a mesma concessão. Encerra César a assembléia, e ordena às cidades lhe forneçam cavalaria.

Pacificada esta parte da Gália, põe todo empenho e ardor na guerra contra os Menapios e Ambiorix. Ordena a Cavarino que o acompanhe com a cavalaria dos Senones, para que, ou por seu rancor, ou pela má vontade, que lhe tinha a cidade, não fosse ocasião de alguma sublevação. Feito isto, tendo por averiguado que Ambiorix não havia de aceitar batalha, estuda projetos deste, para frustrá-los. Vizinhavam os Menapios com os Eburões, e, protegidos por perpétuos pântanos e bosques, eram os únicos da Gália que nunca tinham mandado embaixadores a César a pedir-lhe paz. Sabia ter Ambiorix contraído com eles hospitalidade; e haver, pelos Treviros, feito amizade com os Germanos. Entendia dever, antes de lhe fazer a guerra, tirar-lhe aqueles auxílios, afim que, perdida a esperança de salvação, não se fosse ou esconder entre os Menapios, ou reunir com os Germanos dalém Rim. Tomado este acordo, manda as bagagens de todo o exército a Labieno nos Treviros[6], e ordena sigam com elas para lá duas legiões: marcha ele mesmo contra os Menapios com as cinco legiões restantes. Estes, fiados nas dificuldades do terreno, deixam de reunir tropas, e refugiam-se nos bosques e pântanos, levando o que era seu.

Divididas as tropas com o lugar-tenente C. Fabio e o questor M. Crasso, penetra César no país com três corpos de exército por pontes feitas com rapidez, incendeia edifícios e aldeias, e apodera-se de grande quantidade de gado e homens. Reduzidos a tais apuros, mandam os Menapios embaixadores a César pedir paz. Depois de lhes aceitar reféns, declara este que havia tê-los no número de inimigos, se recebessem em suas fronteiras[7], ou a Ambiorix ou a embaixadores seus. Assentando nisto,deixa-lhes de guarnição a Comio Atrebate com a cavalaria e marcha contra os Treviros.

Emquanto César efetuava estas operações, dispunham-se os Treviros, reunidas grandes forças de infantaria e cavalaria, a atacar a Labieno e a legião, que invernava em suas fronteiras[8], e já distavam apenas dele uma marcha de dois dias, quando são informados de terem vindo duas legiões enviadas por César. Colocados arraiais a quinze mil passos de distância, resolvem esperar pelas tropas auxiliares dos Germanos. Sabendo dos projetos do inimigo e contando ter pela temeridade deles ocasião de batê-los, deixa cinco coortes de guarda às bagagens, marcha a encontrá-los com as outras vinte e cinco[9] e fortifica arraiais, metidos mil passos de permeio. Havia entre Labieno e o inimigo um rio de difícil passagem e ribanceiras escarpadas[10]. Não tencionava o mesmo passá-lo e supunha o não passariam também os inimigos. Crescia diariamente a esperança de socorro a estes. Declara ele publicamente no concelho, que, pois corria de plano aproximarem-se os Germanos, não havia de arriscar os seus haveres e os do exército e levantaria campo no seguinte dia ao romper dalva. É isto levado incontinenti aos inimigos, sendo que do grande número de cavaleiros Gauleses alguns havia a quem a natureza impelia a favorecer o partido gaulês. Convocados os tribunos dos soldados e os centuriões mais graduados, expõe-lhes Labieno o seu plano e para mais facilmente dar aos inimigos suspeitas de temor, manda levantar campo com mais estrepito e tumulto, do que é uso entre Romanos. Deu assim à partida visos de fuga. É isto também, em tanta proximidade de arraiais, logo antes do dia conhecido dos inimigos por exploradores.

Mal saía a nossa retaguarda das fortificaçôes, quando os Gauleses, animando—se entre si a não largarem das mãos a esperada presa, como dizerem, que longo era, aterrados os Romanos, esperar pelo auxílio dos Germanos, e não condizia com seus brios deixarem de, com tantas tropas, atacar um tão pequeno corpo de exército, demais a mais quando ia fugindo, e embaraçado, não hesitam em passar o rio e travar combate em lugar desvantajoso. Suspeitando o que havia de ser, Labieno, para atrai-los a todos aquém do rio, adianta-se sossegadamente, usando da mesma simulação de retirada. Mandando depois levar um pouco para diante, e colocar as bagagens numa eminência, diz aos seus: "Soldados, eis a ocasião, que desejastes: tendes o inimigo embaraçado e em lugar desvantajoso; prestai-nos a nós lugar-tenente o apoio do mesmo valor, que muitas vezes prestastes ao general, e suponde que ele está presente e vê o que obrais." Ao mesmo tempo manda voltar as signas[11] contra o inimigo, e ordenar em batalha; e, despedidos alguns esquadrões para guarda das bagagens, dispõe a cavalaria nos flancos. De repente os nossos, levantado clamor, arremessam os pilos contra os inimigos. Eles, tanto que, contra a esperança, viram virem contra com as signas infensas os que supunham irem fugindo, não lhes suportaram o choque sequer, e postos em fuga logo no primeiro recontro, demandaram as próximas selvas. Perseguindo-os com a cavalaria, depois de morto um grande número, e aprisionados muitos, submete Labieno a cidade[12] dentro de poucos dias: porquanto os Germanos, que tinham vindo em auxílio, recolheram-se ao seu país, logo que presentiram a fuga dos Treviros. Seguindo-os, sairam também com eles da cidade[13] os parentes de Induciomaro, promotores da rebelião. A Cingetorix, que fica dito haver-nos sido fiel desde princípio, é conferido o principado e supremo poder.

Depois que se transportou dos Menapios aos Treviros[14] resolveu César passar o Rim por dois motivos: era o primeiro haverem os Germanos mandado contra ele auxílio aos Treviros; o segundo, privar a Ambiorix de ter acolheita entre eles. Tomada esta resolução, determinou fazer uma ponte pouco acima do lugar, onde anteriormente passara o exército. Sendo conhecida a maneira de construi-la[15], em poucos dias conclui-se a obra por grande diligência dos soldados. Deixando uma forte guarnição à cabeça da ponte nos Treviros, para que não rebentasse da parte destes algum levantamento repentino, passa as restantes tropas e a cavalaria. Os Ubios, que haviam antes dado reféns, e feito a sua submissão, mandam-lhe embaixadores, para justificar-se alegando que a sua cidade[16] não enviara auxílio aos Treviros, nem violara a fé pública, e pedindo suplicantemente, que os poupasse, para que no ódio contra todos os Germanos não pagassem os inocentes pelos culpados; pois, se queria mais reféns, estavam prontos a dá-los. Averiguado o negócio, vem César no conhecimento de que o auxílio tinha sido prestado pelos Suevos; aceita a satisfação dos Ubios, e trata de examinar as entradas e caminhos para Suevos.

Neste interim é, ao cabo de poucos dias, informado pelos Ubios de que os Suevos juntavam todas as tropas num lugar, e intimavam às nações, que estavam sob seu domínio, lhes enviassem forças auxiliares de infantaria e cavalaria. Sabido isto, provê ao fornecimento de víveres; escolhe lugar próprio para arraiais; ordena aos Ubios, tirem seus gados dos pastos, e conduzam tudo o que for seu, dos campos para as praças fortes, esperando que homens bárbaros e inexperientes podiam, obrigados da falta de provisões, ser levados a pelejar desvantajosamente; e recomenda-lhes enviem freqüentes exploradores aos Suevos[17] afim de saberem o que ali se passa. Cumprem os Ubios com o ordenado, e metidos de permeio poucos dias, referem: "Que todos os Suevos, depois de lhes haver chegado notícia certa da vinda do exército romano, se tinham embrenhado com todas as tropas suas, e as reunidas dos aliados, nos últimos confins de seu território: que havia aí uma selva de infinita grandeza, chamada Bacenis[18], a qual se estendia muitíssimo para o interior e oposta com muralha natural, protegia de ataques e incursões, aos Cheruscos contra os Suevos, aos Suevos contra os Cheruscos: que no principio desta selva resolveram os Suevos aguardar a vinda dos Romanos."

Já que somos chegados a este ponto, parece não ser alheio do assunto tratarmos dos costumes da Gália e da Germania e do que constitue a diferença entre estas duas nações. Há na Gália facções, não só em cada cidade, cada aldeia, e cada parte desta, mas até, para bem dizer, em cada casa; e são cabeças destas facções os que se reputam entre eles ter o maior crédito, para que a direção de todos os negócios e resoluções se faça a seu arbítrio e juizo. Isto parece ter sido antigamente instituído, para que todo o homem do povo encontrasse proteção contra os poderosos, sendo que ninguém tolera serem os seus oprimidos e enganados, pois, se procedesse de outra forma, não teria crédito algum para os de sua clientela. Esta forma de administração é uma e única na Gália toda; porque não há nela uma só cidade[19] que não esteja dividida em dois partidos.

Quando César veiu à Gália, eram os Heduos cabeceiras[20] de uma facção, os Sequanos de outra. Estes, como menos poderosos, porque a maior autoridade residia antigamente nos Heduos, que tinham grandes clientelas, associaramse aos Germanos e Ariovisto, atraindo-os a si com grandes peitas e promessas. Havendo ganho muitas batalhas, e morto toda a nobreza dos Heduos, cresceram em poder, que traspassaram para si grande parte dos clientes dos mesmos Heduos, receberam destes em reféns os filhos dos principais, obrigaram-nos a jurar em nome da cidade[21], que nada tentariam contra eles Sequanos, apossaram-se por conquista do território comarcão, e exerceram a supremacia em toda a Gália. Levado a tal extremidade partiu Diviciaco para Roma a implorar auxílio ao senado, mas teve de voltar sem haver conseguido coisa alguma. Com a mudança de coisas operada pela vinda de César, sendo entregues os reféns aos Heduos, restituídas as antigas clientelas, e adquiridas outras novas com o favor de César, pois os que se lhes agregavam como amigos, viam que ficavam de melhor partido, e com direção mais equitativa, acrescentado em tudo mais o seu crédito e dignidade deles, decairam os Sequanos da supremacia. Sucederam-lhes os Remos no lugar; pois, sendo reputados iguais no favor de César, os que por velhas inimizades se não podiam de maneira alguma unir com os Heduos, dedicavam-se aos Remos como clientes. Estes os protegiam com empenho, e mantinham assim uma autoridade nova e formada de repente. Tal era então o estado de coisas entre os Gauleses, que os Heduos eram reputados os mais principais, e os Remos, ocupar o segundo lugar em dignidade.

Dois são em toda a Gália os gêneros de homens, que são tidos em alguma conta e estimação. Pois a plebe, que nada ousa por si, e a nenhum concelho é admitida, quase é tida no lugar de escravos. Os mais dela, quando se vêm oprimidos, ou por dívida, ou pela grandeza dos tributos, ou pela prepotência dos poderosos, escravizam-se aos nobres, que exercem sobre eles os mesmos direitos, que os senhores sobre os escravos. Mas destes dois gêneros um é o dos druidas, o outro, o dos cavaleiros. Aqueles entendem nas coisas sagradas, curam dos sacríficios públicos e particulares, e explicam as doutrinas e cerimônias da religião: a eles acode grande número de adolescentes com o fim de instruir-se, e esses são tidos em muita estimação. Pois os druidas decidem de quase todas as contendas públicas e particulares; e, se se comete crime, ou perpetra morte, se se disputa sobre herança, ou limites, julgam e estabelecem recompensas e castigos; se algum particular ou povo recusa sujeitar-se à decisão, lançam-lhe interdito na participação aos sacrifícios; o que é entre eles pena gravíssima. Os que assim incorrem no interdito, são tidos por ímpios e celerados, todos se apartam deles, fogem do seu acesso e conversação, para que não recebam dano com a comunicação, nem se lhes faz justiça, quando a solicitam, nem participam de honra alguma. A todos estes druidas porém preside um, que exerce a suprema autoridade, Morto este, ou lhe sucede o que sobresai em dignidade, ou se há muitos iguais na hierarquia, é eleito pelo sufrágio dos druidas: algumas vezes também disputam a preeminência pelas armas. Estes, em certo tempo do ano juntam-se em lugar consagrado nas fronteiras[22] dos Carnutes, que se reputam o centro de toda a Gália. Para aqui se dirigem todos os que têm pleitos, e sujeitam-se às suas decisões e sentenças. Supõe-se haver sido esta doutrina deparada na Bretanha, e dali trans mitida à Gália; e ainda agora os que desejam estudá-la fundamentalmente, lá vão às mais das vezes aprendê-la.

Costumam os druidas abster-se da guerra, e não pagam os tributos a que estão sujeitos os mais Gauleses; gozam da isenção da milícia e da imunidade de todos os encargos. Excitados por tais vantagens, muitos são os que os procuram para instruir-se na sua ciência, seja por livre vontade, seja mandados por seus pais e parentes. É fama que aprendem aí grande número de versos (e alguns há que gastam vinte anos neste estudo); mas não se permite escrevê-los, sendo que em tudo mais, ou se trate de negócio público, ou particular, usam de caracteres gregos. Parece-me que assim o instituiram por duas razões: primeira, evitarem que a sua doutrina se espalhe pelo vulgo; segunda, não deixarem os que aprendem, de cultivar a memória, fiados nos escritos; pois acontece ordinariamente, que com o socorro destes omitem muitos o cuidado de decorar, e o cultivo da memória. Fazem sôbretudo acreditar que as almas não perecem, mas passam, depois da morte, de uns para outros corpos, e com isso julgam incitar-se principalmetite ao valor, desprezando o medo da morte. Discorrem também muito sobre os astros e seu movimento, sobre a grandeza do mundo e a da terra, sobre a natureza das coisas, sobre a força e poder dos deuses imortais e transmitem os discursos à mocidade.

O outro gênero é o dos cavaleiros. Estes, quando é necessário, e ocorre alguma guerra (o que antes da chegada de César quase todos os anos costumava a suceder, ou para empreenderem correrias, ou para repelirem as dos vizinhos), vão todos à guerra, e como cada um mais sobresai em nobreza e haveres, tanto mais guarda-costas e clientes têm em torno de si. Nisto fazem consistir todo seu crédito e poder.

Toda a nação dos Gauleses é mui dada a superstições e por isso os que são acometidos de enfermidades graves, andam nas batalhas, e correm perigo, ou imolam vítimas humanas, ou prometem imolá-las; pois, a não se dar vida de homem por vida de homem, não julgam placável o poder dos deuses imortais; e estatuem sacrifícios públicos deste gênero. Alguns há que formam simulacros de descomunal grandeza, cujos membros tecidos com vime enchem de homens vivos, e aos quais lançado fogo, expiram homens abrasados pelas chamas. Reputam mais agradáveis à divindade os sacrifícios dos que são surpreendidos em furto, roubo, ou algum delito, mas, na falta destes, descem também aos sacrifícios dos inocentes.

Adoram principalmente ao Deus Mercurio. Muitos são os simulacros, que dele possuem: consideram-no como o inventor de todas as artes, o guia dos caminhos e jornadas, o maior protetor no ganho de dinheiro e no comércio. Veneram depois dele a Apolo, Marte, Jupiter, Minerva. Destes tem quase a mesma opinião, que as mais nações: isto é, que Apolo expele as doenças, Minerva transmite os princípios dos artefactos, Júpiter tem o império dos céus, Marte preside à guerra. A este, quando se prepoem pelejar, votam as mais das vezes o que hão de tomar na guerra; imolam, depois de vencerem, os animais tomados, e depositam os mais objetos da presa num lugar. É de ver em muitas cidades[23] montões destes objetos acumulados em lugares consagrados; e quase nunca acontece que, desprezando a religião, ouse alguém ou esconder em si o que tomou, ou tirar o que foi depositado, sendo que gravíssimo suplício com torturas está reservado a este crime.

Todos os Gauleses se apregoam descendentes de Dite[24], segundo lhes é transmitido pelos druidas. Porisso calculam a divisão do tempo, não pelo número dos dias, mas pelo das noites[25] e contam-se os dias natalícios, e os principios de meses e anos de modo que o dia vem sempre depois da noite. Nos mais usos da vida quase que só diferem dos outros povos em não consentir que seus filhos se aproximem deles em público, senão quando têm crescido a ponto de poder suportar o encargo da milícia, pois reputam indecoroso que o filho de idade pueril esteja em público na presença do pai.

Ao dinheiro que, a título de dote, trazem as mulheres com que casam, juntam os maridos, feita a estimação, outro tanto de seus bens com os dotes. De todo este dinheiro faz-se um assento conjuntamente, e vai-se acumulando o rendimento. Àquele dos dois cônjuges que sobrevive, pertence a parte de um e outro com o rendimento de todo o tempo decorrido até então. Os homens têm, na qualidade de maridos, direito de vida e morte sobre suas mulheres, assim como na de pais, sobre seus filhos; quando morre algum pai de familia de ilustre linhagem, reunem-se os parentes do morto, e se há suspeita sobre a morte, põem as suas mulheres a tormento de escravos, e se se descobre que existe crime, fazem-nas perecer pelo fogo com todo gênero de torturas. Os funerais dos Gauleses são proporcionalmente a seu estado de cultura magníficos e suntuosos; todos os objetos, que amaram em vida, compreendidos os animais, são-lhes lançados na fogueira; e pouco antes deste tempo os escravos e clientes, que constava lhes haverem sido caros, eram igualmente queimados nos funerais.

As cidades[26] que passam por melhor reger-se, têm estabelecido nas leis, que se alguém souber da parte dos povos vizinhos por boato ou fama alguma coisa que interesse a república, o participe ao magistrado, sem comunicá-lo a qualquer outro; pois tem-se reconhecido que homens imprudentes e sem experiência se deixam aterrar por falsos rumores, e impelir ao crime tomando resoluções precipitadas sobre negócios da maior importância. Os magistrados ocultam o que parece reservado, e comunicam à multidão o que reputam conveniente. Dos negócios de Estado não é permitido falar, senão em pública assembléia.

Os Germanos diferem muito em costumes. Assim, nem têm druidas, que presidam as coisas divinas, nem sacrifícios. Contam unicamente no número dos deuses, os que vêm, e cujo socorro lhes é abertamente profícuo; isto é, ao Sol, a Vulcano, a Lua; os outros, nem ainda por fama conhecem. Toda a sua vida se passa em montearias e no mister das armas: afazem-se de pequeninos ao trabalho e à aspereza. Os que se conservam por mais tempo imberbes, são os mais estimados entre os seus, que acreditam que com isso se desenvolvem a estatura e as forças, e fortalecem os nervos. Conhecer mulher antes de fazerem os vinte anos, têm-no por vergonhosíssimo, sendo que o não podem esconder, pois não só se lavam promiscuamente nos rios, mas vestem-se de peles e com vestidos curtos feitos das de rangífero, ficando nua grande parte do corpo.

Não se esmeram na agricultura, e a mor parte de seu sustento consiste em leite, queijo e carne. Nenhum tem campo demarcado ou de sua propriedade; mas os magistrados e os principais designam cada ano as gentes[27] e parentelas, que vivem em comum, tanto espaço de campo para lavrar, quanto e onde parece conveniente, e os obrigam no seguinte ano a passar para outra parte. Muitas são as razões que dão desta usança, tais como: — para não trocarem, demovidos pelo hábito, o ardor guerreiro pela agricultura, não procurarem alargar cada um o seu campo, o mais poderoso a custo do mais fraco, não se ocuparem em construções próprias a guardá-los do frio e da calma, não fazerem nascer entre eles a ambição de dinheiro, donde procedem as facções e as discórdias, e conterem a plebe por um princípio de equidade, vendo cada um que iguala em riqueza ao mais poderoso.

Para as cidades[28] o maior título de glória é terem solidões em torno de si, assolados quanto mais largamente os territórios comarcães. Consideram próprio de seu valor obrigar os vizinhos a retirarem-se expulsos de seus campos, sem ousarem fazer assento perto delas; reputam-se ao mesmo tempo em mais segura, porque não têm incursões repentinas a temer. Quando qualquer cidade, ou repele a guerra de invasão, ou a faz, elegem-se, para dirigi-la autoridades, que exercem o direito de vida e morte. Durante a paz não há autoridade alguma comum mas os maiorais dos cantões e aldeias distribuem justiça entre os seus e terminam as contendas. Os latrocínios, que se praticam fora das fronteiras, nenhuma deshonra trazem; tem-se como próprios para exercer a mocidade e diminuir-lhe a ociosidade. Quando algum dos principais declara no concelho, que há de ser chefe de uma expedição, e que, os que quiserem segui-lo, o dêm a conhecer, levantam-se aqueles que têm confiança na empresa e no homem, prometem-lhe o seu auxílio e são louvados pela multidão; os que dentre estes o não seguem, são tidos em conta de desertores e traidores, e a ninguém mais merecem crédito em coisa alguma. Não julgam permitido violar a hospitalidade; os que entre eles se acolhem por qualquer motivo, são protegidos e tidos por sagrados; todas as casas se lhes abrem, e facultam~se-lhes víveres.

Houve tempo em que os Gauleses excediam aos Germanos em valor, faziam-lhes guerra de invasão e por causa da multidão de homens, e da falta de terras, enviavam colônias além Rim. Assim os lugares os mais férteis da Germania em volta da selva Hercinia[29], (que vejo ter sido por fama conhecida de Eratostenes, e de certos gregos, com o nome de Orcinia), foram ocupados pelos Volcas Tectosages[30] que neles se estabeleceram e permanecem até hoje, gozando de grande reputação de equidade e bravura, vivendo na mesma pobreza, necessidade e privações, que os Germanos e usando dos mesmos alimentos e vestuário. Aos Gauleses, porém, a vizinhança de nossa província e a importação de objetos transmarinos, ministram muitas coisas para viver em abundância e comodidade; acostumados pouco e pouco a ser vencidos e derrotados em muitas batalhas, hoje nem eles mesmos se comparam em valor àqueles.

A largura desta selva Hercinia, de que acima falei, é de nove dias de jornada para o viandante expedito: nem de outra maneira se pode calcular, porque não conhecem as medidas itinerárias. Começa nas fronteiras[31] dos Helvecios, Nemetes, e Rauracos, e seguindo o curso do Danúbio, estende-se até às fronteiras[32] dos Daces e Anartes; daí torce à esquerda, e, com direção diversa da do rio, penetra por sua grandeza nas fronteiras de muitas nações; não há nesta parte da Germania quem diga haver com jornada de sessenta dias chegado ao princípio dela, ou tenha ouvido dizer de onde nasce: muitas são as espécies e alimárias, que consta nascerem nela, e não se vêm em outros países; eis as que dentre elas mais diferem das conhecidas e parecem dignas de ser mencionadas.

Há um boi com figura de cervo, do meio de cuja frente, entre as orelhas, se levanta um corno mais alto e direito, que os que vemos nos outros animais cornígeros. Da sumidade deste corno difundem-se largamente umas como palmas e ramos. A mesma é a natureza do macho e da fêmea; a mesma, a forma e grandeza dos corpos[33].

Há também dos animais, que se chamam alces[34]. Assemelham-se às cabras na figura; são um pouco maiores em tamanho, de pele variegada, e mochos de cornos; têm as pernas sem nós, nem articulações; não se deitam para repousar; e, se por algum acidente caem, não se podem mais erguer, nem levantar do chão. As árvores lhes servem de leito; encostam-se a estas e assim tomam repouso um pouco reclinados. Quando pelo rasto dão os caçadores fé do lugar, a que costumam recolher-se estes animais, desarraigam nele todas as árvores, ou as cortam por modo que só apresentam a aparência de estarem em pé. No momento em que se vão segundo o costume reclinar, derribam com o peso as árvores cortadas e caem juntamente com elas.

XXVIII

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O terceiro gênero é dos que se chamam uros[35]. São na grandeza pouco inferiores ao elefante; têm a aparência, cor e figura do touro. Grande é a sua força e velocidade. Nem a homem, nem a fera, vistos, poupam. Matam-nos, fazendo-os cair artificiosamente em fojos. Neste trabalho se endurecem os adolescentes; neste gênero de montearia se exercitam; e grande louvor alcançam os que maior número de uros matam, apresentando em prova os cornos destes animais. Nem ainda apanhados pequenos se podem afazer à presença do homem e domesticar. A amplidão, figura e beleza de seus cornos, difere muito da dos cornos de nossos bois. Procuram-nos com cuidado, guarnecem-lhes as bodas de prata e usam deles como copos nos grandes banquetes.

Depois que se soube[36] pelos exploradores Ubios haverem-se os Suevos retirado para as selvas, receioso de carência de provisões, sendo que mui pouco se dão os Germanos à agricultura, como se disse, resolve César não avançar mais; mas, para não tirar totalmente o medo de sua volta, e afim de retardar aos bárbaros a remessa de forças para a Gália, depois de retirada do exército, rompe, na extensão de duzentos pés, a última parte da ponte, que tocava nas ribanceiras dos Ubios, constroi na extremidade oposta uma torre de quatro andares, e deixa para a defesa da ponte uma guarnição de doze coortes, fortificando o lugar com grandes entrincheiramentos. A este lugar e sua guarnição prepõe o adolescente C. Volcacio Tulo. E, como começassem a amadurecer os pães, marcha ele próprio para a guerra de Ambiorix pela floresta das Ardenas, que é a maior de toda a Gália, e extende-se desde as margens do Rim e fronteiras[37] dos Treviros até aos Nervios[38] por um espaço de mais de quinhentas milhas, fazendo-se preceder, no intuito de adiantar com a celeridade da marcha e oportunidade do tempo, por L. Minucio Basilo[39] com toda a cavalaria, ao qual recomenda proiba fazerem-se fogueiras nos arraiais, para que não seja denunciada de longe a sua vinda, e assegura que em breve seria com ele.

Age Basilo, como lhe fora recomendado. Fazendo uma marcha rápida, e contra a opinião de todos, surpreende a muitos dos inimigos nos campos: por indicação destes se dirige para onde se dizia estar Ambiorix com poucos cavaleiros. Muito pode a fortuna na guerra, assim como em tudo mais. Pois assim como por grande acaso sucedeu que Basilo desse com Ambiorix incauto e desapercebido, e que a vinda do primeiro fosse vista de todos, antes de poder ser anunciada pela fama e pelos correios, assim foi de grande fortuna para o segundo escapar da morte, perdendo todo o trem bélico, que tinha em volta de si, e carros e cavalos. Mas assim aconteceu, porque sendo a sua casa circundada de um bosque (como de ordinário são as casas dos Gauleses, que, para evitar a calma, buscam quase sempre a vizinhança dos bosques e dos rios), os seus companheiros e amigos sustentaram por um pouco o ataque de nossa cavalaria em um desfiladeiro. Emquanto estes pelejavam, fé-lo um dos seus montar a cavalo: os bosques o protegeram na fuga. Assim muito pode a fortuna, quer no afrontar, quer no evitar o perigo.

Se Ambiorix deixou de reunir suas tropas de propósito, por entender não se dever combater, ou se por não caber no tempo reuni-las, e ver-se embaraçado de o fazer com a repentina chegada de nossa cavalaria, é coisa que se não pode bem determinar. O que é certo, é que, despedindo correios pelos campos, ordenou que cada um provesse na própria segurança. Deles se refugiaram na selva das Ardenas: deles em uma não interrompida continuidade de paúes os que vizinhavam com o Oceano, ocultaram-se naquelas ilhas, que os estos costumam formar[40]; muitos, saindo de suas fronteiras[41], se confiaram a si, e o que era seu, a outras inteiramente estranhas. Catuvolco, rei de metade dos Eburões, que se tinha associado a Ambirorix, não podendo já, alquebrado pela idade, suportar o trabalho ou da guerra ou da fuga, cobrindo de todo o gênero de execrações a Ambiorix, envenenou-se com teixo, de que há grande cópia na Gália e Germania.

Os Segnes[42] e Condrusos[43], povos de raça germânica, que demoram entre os Eburões e os Treviros, mandaram a César embaixadores pedir-lhe que os não tivesse no número de inimigos, nem julgasse ser uma e a mesma a causa de todos os Germanos, que habitavam aquém Rim: que nenhuma parte haviam eles tomado na guerra, nem enviado socorros alguns a Ambiorix. Verificado o caso por inquirição dos prisioneiros, ordenou-lhes César que reconduzissem à sua presença aqueles dos Eburões fugitivos, que pela ventura os procurassem, assegurando-lhes que, se assim praticassem, não lhes havia de violar as fronteiras[44]. Depois, divididas as tropas em três partes, fez transportar para Aduatuca[45] as bagagens de todas as legiões. É esse o nome de um castelo situado quase no centro das fronteiras[46] dos Eburões, onde Titurio e Aurunculeio haviam acampado para invernar. Escolhera este lugar, assim por outros requisitos, como para poupar trabalho ao soldado, pois existiam ainda intactos os entrincheiramentos do ano precedente. De guarda ás bagagens deixou a décima quarta legião, uma daquelas três, que de próximo alistadas tinha feito vir da Itália. A esta legião e seus arraiais prepôs a Q. Tulio Cicero, e deu-lhe duzentos de cavalo.

XXXIII

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Dividido o exército, a T. Labieno com três legiões manda marchar para as partes contra o Oceano, as quais tocavam nos Menapios[47]; a C. Trebonio com igual número de legiões despede a devastar a região adjacente aos Aduatucos; com as três restantes resolve dirigir-se em pessoa ao Escalda[48], que corre para o Mosa, e ao extremo das Ardenas, para onde ouvira dizer partido Ambiorix com poucos de cavalo. Ao retirar-se, declara que voltaria no sétimo dia, no qual sabia dever-se o pão à legião, que ficava de guarnição. Exorta a Labieno e Trebonio, que, se o puderem fazer sem prejuízo do serviço público, voltem naquele dia, afim de deliberar-se por novo acordo com conhecimento das disposições do inimigo, se conviria dar outra direção à guerra.

Não havia, como acima ficou demonstrado, tropa alguma estável, nem praça, nem presídio, que se defendesse com armas, mas uma multidão por todas as partes dispersa. Quando, ou um vale abscôndito, ou um lugar arborizado, ou um paúl embaraçoso, proporcionava a cada um alguma esperança de socorro ou salvação, aí se acoutavam. Estes lugares eram conhecidos das vizinhanças[49], e o caso requeria muito tento, não no proteger o todo do exército (pois nenhum perigo lhe podia vir de inimigos aterrados e dispersos), mas no conservar cada soldado; o que todavia pela parte dizia respeito à conservação do todo. Não só a cobiça da presa levava a muitos um pouco longe, como também os bosques lhes vedavam penetrarem reunidos por caminhos incertos e ocultos. Para dar um golpe decisivo, e acabar com essa raça de celerados, era mister enviar muitos corpos de tropas, e dividir os soldados: para conté-los junto às signas, como pedia a ordem e o costume do exército romano, o mesmo lugar servia de defesa aos bárbaros, nem lhes faltava audácia para dos esconderijos insidiarem, e cercaram os dispersos. Em dificuldades de tal natureza, providenciava-se quanto era possível fazê-lo, de maneira que antes se omitisse alguma coisa no empecer ao inimigo, posto os ânimos ardessem por vingança, que se empecesse com prejuízo dos soldados. Expede César correios às cidades[50] vizinhas; a todas convida com a esperança da presa a espoliar os Eburões, afim que antes se arriscasse nos bosques a vida dos Gauleses, que a do soldado legionário[51]; ao mesmo tempo para que, com a acometida de grande multidão, se extinguisse a raça e o nome da cidade[52], que cometera tal atentado.

Passavam-se estas coisas em toda a parte entre os Eburões, e aproximava-se o dia sétimo, no qual resolvera César voltar para a legião, que guardava as bagagens. Viu-se, então, o que pode a fortuna na guerra, e que eventualidades acarreta. Dispersos e aterrados os inimigos, não havia, como dissemos, tropa alguma que inspirasse o menor receio sequer. Chega aos Germanos dalém Rim a fama de estarem sendo esbulhados os Eburões, e de serem todos convidados a tomar livremente parte na presa. Os Sibambos, vizinhos do Rim, que haviam, como mostramos, acolhido os Tencteres e Usipetes fugitivos, reunem dois mil cavaleiros. Passam o Rim em canoas e jangadas, trinta mil passos abaixo do lugar, onde fora feita a ponte, e deixado por César o presídio; chegam às primeiras fronteiras[53] dos Eburões; surpreendem muitos fugitivos; apoderam-se de grande porção de gado, de que são avidíssimos os bárbaros. Convidados pela presa vão mais longe. Nascidos no meio da guerra e dos latrocínios, não havia paúl, nem bosque, que os detivesse. Indagam dos cativos, onde se acha César, sabem ter partido para longe, e haver-se retirado todo o exército. "Porque, diz um dos cativos, ides após essa miserável e mesquinha presa, quando podeis ficar riquíssimos? Em três horas chegareis a Aduatuca: para alí passou o exército romano todos os seus haveres: a guarnição é tão pequena, que não pode cingir o muro, nem alguém se anima a sair dos entrincheiramentos." Nesta esperança deixam os Germanos em lugar oculto a presa que tinham feito e partem para Aduatuca, servindo-se do mesmo guia, por cuja indicação souberam disto.

Cicero, que todos os precedentes dias havia cuidadosamente contido os soldados nos arraiais segundo os preceitos de César, e nem sequer criado algum tinha tolerado sair dos entrincheiramentos, no sétimo dia, supondo que César não guardaria a promessa relativamente ao número de dias, pois ouvia dizer que tinha avançado para mais longe, nem chegava notícia alguma de sua volta, movido ao mesmo tempo pelas vozes dos que chamavam a sua paciência um quase cerco, porque lhes não era permitido sair dos arraiais, não contando com acidente algum de tal natureza, onde opostas nove legiões e muitíssima cavalaria, dispersos e destruídos os inimigos, não podia ser ofendido numa circunferência de três mil passos, envia cinco coortes a cortar trigo nas próximas searas, entre as quais e os arraiais somente se metia de permeio uma colina. Haviam ficado muitos doentes das legiões, dos quais os que tinham convalescido neste espaço de dias, cerca de uns trezentos, são juntamente mandados sob o mesmo vexilio[54]; vai além disso, dada a permissão, grande multidão de criados com grande quantidade de bestas, que existiam nos arraiais.

XXXVII

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Nesta conjuntura sobrevêm os cavaleiros germanos, e logo na mesma arrancada em que vinham, tentam penetrar nos arraiais pela porta decumana[55], e não foram vistos, por causa de um bosque oposto por este lado, senão depois de se aproximarem dos arraiais a ponto de se não poderem acolher a eles os mercadores, que se abarracavam junto ao entrincheiramento. Os nossos, tomados de improviso, perturbam-se com a novidade do sucesso, e mal sustenta o primeiro assalto a coorte, que se achava de guarda. Espalham-se os inimigos em volta a todos os arraiais, para descobrir alguma entrada. Com dificuldade guardam os nossos as portas; o mesmo lugar, e a fortificação defende os mais pontos. Tudo é confusão nos arraiais; inquire este daquele a causa do tumulto; não se providencia para onde se hajam de levar as signas, nem qual seja o ponto em que cada um se tem de reunir. Um anuncia que os arraiais estavam tomados; outros que, destruido o exército e morto o general, chegavam os bárbaros vencedores; muitos forjam-se novos terrores supersticiosos pelo lugar, pondo diante dos olhos a calamidade de Cota e Titurio, que pereceram no mesmo castelo. Cortados todos de tal temor, confirma-se aos bárbaros a opinião, de que não havia dentro guarnição, segundo ouviram dizer ao cativo. Esforçam-se por penetrar a todo transe, e exortam-se entre si a não deixar escapar das mãos tamanha presa.

XXXVIII

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Tinha ficado enfermo no presídio P. Sextio Baculo, que fora feito primipilar sob o comando de César, e de quem fizemos menção nos precedentes combates. Havia já cinco dias que não tomava alimento. Este, desconfiando da sua e da comum salvação, sai da tenda desarmado; vê os inimigos eminentes e as coisas no último extremo; arma-se com as armas dos que encontra, e posta-se na porta. Seguem-no os centuriões da coorte, que estava de guarda, e sustentam juntamente o combate por um pouco. Perde Sextio os sentidos com as graves feridas recebidas, e, levado em braços, é com dificuldade salvo. Metido de permeio este espaço, animam-se os demais a permanecer algum tempo nas trincheiras, e a apresentar a aparência de defensores.

Feito, no entanto, o corte do trigo, ouvem nossos soldados o clamor; corre adiante a cavalaria; e conhece em que extremo se acham as coisas. Aqui, porém, não há entrincheiramento, que proteja os aterrados: alistados de pouco e sem experiência da milícia, voltam-se todos para o tribuno dos soldados e para os centuriões; esperam o que lhes seja por eles prescrito. Ninguém há tão forte que se não perturbe com a novidade do caso. Vendo ao longe as signas, desistem os bárbaros do assalto: julgam a princípio estarem de voltas as legiões, que sabiam dos cativos haverem avançado para mais longe: desprezando depois o pequeno número dos nossos, investem contra eles de todas as partes.

Correm os criados para a próxima colina. Lançados imediamente daí, refugiam-se nas signas e esquadras das coortes, aterrando ainda mais os soldados tímidos. Pensam uns que, estando tão vizinhos dos arraiais, deve-se, formado o cuneo[56], romper prontamente para ali, pois, ainda que pereça alguma parte cercada, confiam poder salvar-se o resto; outros, que devem ocupar a colina, ter todos o mesmo destino. Tal não aprovam os soldados velhos, que, como dissemos, tinham partido sob o mesmo vexilo. Assim, exortando-se reciprocamente, sob o seu chefe, C. Trebonio, cavaleiro romano, que lhes fora preposto, rompem pelo meio dos inimigos, e chegam sãos e salvos aos arraiais todos sem faltar um só. Mas os que tinham ocupado a colina, carecedores ainda de toda e qualquer experiência da guerra, nem puderam permanecer na resolução tomada de defender-se de um lugar superior, nem imitar o arrojo e a celeridade, que viram aproveitar aos outros, mas tentando acolher-se aos arraiais, lançaram-se, num lugar desvantajoso. Os centuriões, alguns dos quais tinham sido pelo seu valor promovidos das graduações inferiores das demais regiões às superiores destas, para não perderem a glória militar adquirida antes, morreram pelejando muito esforçadamente. Parte dos soldados, repelidos os inimigos pelo valor daqueles, chegou contra a esperança, sã e salva aos arraiais; parte pereceu, cercada pelos bárbaros.

Perdida a esperança de expugnar os arraiais, (pois já viam os nossos postados nas trincheiras), retiram-se os Germanos para além Rim com a presa, que haviam depositado nos bosques. E tanto foi o terror ainda depois da retirada dos inimigos, que C. Voluseno, mandado com a cavalaria, chegando nessa noite aos arraiais, não poude fazer acreditar, que César estava presente com o exército são e salvo. De tal sorte tinha o temor preocupado os ânimos, que diziam com mente quase alienada, que a cavalaria se retirara fugitiva, destruídas todas as mais tropas, porque os Germanos não haviam de assaltar os arraiais, se o exército estivesse intacto — A chegada de César veiu acabar com este pânico.

Não ignorando as eventualidades da guerra, de uma única coisa queixou-se César, ao voltar, o terem sido as coortes tiradas da estação e do presídio, demonstrando — que nem ainda ao menor acidente se devia deixar lugar — que muita parte tinha tido a fortuna na repentina chegada dos inimigos, e muita mais ainda, em fazê-los retirar quase das trincheiras e portas dos arraiais. De tudo isto o que lhe parecia mais para admirar, era que os Germanos, que haviam passado o Rim com desígnio de talar as fronteiras[57] de Ambiorix, levados aos arraiais dos Romanos, tinham ao mesmo Ambiorix prestado o maior serviço.

Partindo para perseguir novamente os inimigos, expede César para toda parte grande número de homens reunidos das cidades vizinhas. Incendeiam-se todas as aldeias e edifícios, que se deparam; saqueiam-se todos os lugares; o trigo não só era consumido por tamanha multidão de bestas e homens, mas havia também sido estragado nos campos pelas chuvas e pelo mau tempo; de modo que, se alguns ainda se ocultavam no presente, teriam pravavelmente de perecer pela carência de tudo, depois de efetuada a retirada do exército. E, espalhada por toda parte tanta cavalaria chegou-se muitas vezes a tal lugar, que os cativos procuravam em volta com os olhos a Ambiorix pouco antes deles visto, e sustentavam não estar ainda inteiramente fora do alcance da vista, de sorte que na esperança de alcançá-lo, e com infinito trabalho, quase que venciam na diligência a natureza humana os que esperavam obter a graça especial de César, e sempre pouco parecia ter faltado à suma felicidade de o conseguir, e ele salvava-se nos esconderijos e bosques, e, oculto, demandava de noite outras regiões e paragens com uma escolta apenas de quatro cavaleiros, únicos a quem ousava confiar a sua vida.

Assolado por tal forma o país, reconduz César o exército com perda de duas coortes a Durocortorum dos Remos[58], e convocando para ali o concelho da Gália, devassa da conjuração dos Senones e Carnutes, pronunciada sentença de morte contra Accão, que fora autor desta conjuração, o mandou justiçar ao modo dos antigos Romanos[59]. Alguns fugiram, receiando o julgamento. E tendo a estes posto o interdito da água e do fogo[60], colocou, para invernar, duas legiões nas fronteiras[61] dos Treviros, duas entre os Lingones, as seis restantes nas dos Senones em Agedico[62], e, providenciado o provimento de víveres para o exército, partiu para a Itália, como assentara, a reunir as juntas provinciais da Gália Cisalpina.

  1. Pompeio, na qualidade de proconsul, exercia uma autoridade militar, imperium; e, como as leis não permitiam exercê-la na cidade, in urbe, a exercia fora dela, ou junto a ela, ad urbem.
  2. Cidades, isto é, povos, nações.
  3. Fronteiras, por territórios.
  4. Hoje, Paris.
  5. Um só povo, uma só nação.
  6. Os habitantes pelo país, ou conteúdo pelo continente.
  7. Fronteiras por territórios.
  8. Fronteiras por territórios.
  9. Cada legião tinha dez coortes; e a força de Labieno constava de três legiões com as duas mandadas por César.
  10. Provavelmente o Mosela.
  11. Signas, pendões, bandeiras. Numa tradução julgamos conveniente restabelecer o termo signas, usado com muita propriedade pelos nossos escritores mais antigos, porque as signas divergiam das atuais bandeiras. Já o sr. L. F. de Castilho o empregou modernamente na sua bela tradução de Lucano.
  12. Cidade, no sentido de povo, país, república.
  13. Como acima.
  14. Estão aqui os povos pelos países.
  15. Refere-se ao processo da primeira ponte feita no Rim, o qual se pode ver no L. IV, cap. XVII.
  16. A sua nação.
  17. Os Suevos estão aqui pelo seu país.
  18. A selva Hercinia.
  19. Cidade, por nação.
  20. Cabeceiras por chefes é de João de Barros, que assim denomina os chefes de partido dos gentios da Ásia, e ainda dos mouros. Com propriedade pois se pode também aplicar este termo pitoresco aos Heduos e aos Sequanos, como chefes das principais facções da Gália, por isso que exprime a idéa de continuidade, o que se não dá em chefe ou cabeça.
  21. Em nome da nação, ou da república.
  22. Fronteiras por território.
  23. Povos, nações, repúblicas.
  24. Plutão.
  25. Assim não diziam, por exemplo, depois de oito dias, mas depois de oito noites, como antigamente os atenienses e judeus.
  26. Cidades, por nações.
  27. Gentes, no sentido de famílias.
  28. Nações, povos.
  29. Esta selva cobria uma vasta extensão. A floresta Negra atual é ainda um resto dela.
  30. Os Volcas Tectosages habitavam o alto Languedoc.
  31. Fronteiras por território.
  32. Como acima.
  33. É o rangífero, a que César chama boi por extensão, assim como os romanos chamaram a princípio o elefante boi lucano; pois o rangífero é animal mui diferente do boi.
  34. Por terem estes animais as pernas muito direitas, presumiam os antigos que eles não tinham juntas; o que é falso. César só viu o alce fêmea, que é o que não tem cornos.
  35. Búfalos. Uro é o boi selvagem e veludo dos antigos.
  36. Retoma César o fio de sua narração interrompida no fim do cap. X com a digressão sobre os costumes da Gália e da Germania.
  37. Fronteiras por território.
  38. Os Nervios pelo país que habitavam.
  39. Foi depois um dos matadores de César.
  40. A Zeelandia: as marés ainda aí formariam hoje ilhas como então, sem os diques que contêm o Oceano,
  41. Fronteiras por território.
  42. Povos da Bélgica, ao N.O. dos Romanos, nas vizinhanças de Ciney, aldeia ao N.O. de Dinant.
  43. Povos da Bélgica, que ocupam o pequeno distrito ainda hoje conhecido pelo nome de Condros.
  44. Fronteiras por território.
  45. Hoje Tongres, cidade da Bélgica.
  46. Como acima.
  47. Os povos pelo país.
  48. O Escaut: querem alguns que no texto se leia, Sabim, o Sambre, porque o Escaut não é confluente do Meusa; mas é que o mesmo César se podia ter enganado no nome dos rios.
  49. Das vizinhanças: isto é, dos vizinhos. César empregou aqui o termo abstrato pelo concreto.
  50. Cidades por nações.
  51. O soldado romano; pois as legiões compunham-se de romanos, as tropas auxiliares de aliados.
  52. A nação dos Eburões desapareceu e os Tungros vieram ocupar-lhes o país deserto.
  53. Às primeiras fronteiras pelo princípio do território.
  54. Mitti sub vexillo, ser mandado ou enviado sob o vexilo, ou guião, pendão, é, em Latim, ser mandado a alguma expedição.
  55. A porta decumana era oposta à pretoriana, e desse lado dos arraiais arrancavam-se os criados do exército.
  56. Disposição estratégica. A primeira fileira do cuneo era composta de um menor número de soldados, que a segunda; e assim sucessivamente, de modo que o corpo de tropas apresentava a forma de uma cunha.
  57. Fronteiras, por território.
  58. Hoje Reims.
  59. Era o reu açoitado com varas e depois decapitado.
  60. Interdicere aqua atque igni, era a fórmula solene do banimento entre os romanos.
  61. Fronteiras, por território.
  62. Hoje Sens.

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Argumento

Novas combinações dos gauleses sobre a guerra empreendida pelos Carnutes e Arvernos com Vercingetorix Arverno por autor 1-5. César ataca de improviso, e profilga os Arvernos 6-8. Marchando em socorro dos Boios, ocupa as praças de Valunoduno, Genabo, Novioduno 9-13. Toma Avarico, cidade dos Bituriges, que se defendeu fortemente por algum tempo 14-28. As perturbações dos Heduos o revogam da guerra 29-32, e acomodadas estas, marcha com o exército para Gergovia 33-36; enquanto a sitia, rebentam perturbações, mais graves entre os Heduos 37-40. Perdida a esperança da expugnação de Gergovia, levanta o cerco 41-43, marcha contra os Heduos 54-56, e faz junção com Labieno, que tinha feito a guerra com vantagem nos Parisios 57-62. Quase todos os gauleses se sublevam a exempio dos Heduos, e acometendo a César, que se dirigia aos Sequanos, são desbaratados com o seu chefe Vercingetorix 63-67. Passa-se este à Alesia, e apelida toda Gália a guerra 68-71; tentando descercar seus aliados, são os gauleses derrotados 72-88, rendem-se Alesia e Vercingetorix, e da mesma forma os Heduos e muitos outros. Distribuem-se as legiões por quartéis de inverno 89-90.

Achando-se em sossego a Gália, partiu César para a Itália, como assentara, a reunir as juntas provinciais da Cisalpina. Aí sabe da morte de Clodio, e ciente do decreto do senado, que obrigava toda a mocidade de Itália a prestar juramento militar[1], resolve proceder ao alistamento em toda a província. São estas coisas levadas com rapidezà Gália Transalpina. Acrescentam os Gauleses, e figuram com boatos, o que o caso parecia exigir, que César estava retido pelo movimento urbano, e não podia vir ao exército no meio de tais dissensões. Tentados com esta ocasião, os que dantes mal sofriam ver-se submetidos ao império do povo romano, entram mais solta e ousadamente a ter inteligências acerca da guerra. Fazendo reuniões em lugares boscarejos e remotos, queixam-se os principais da Gália da morte de Acão; demonstram poder lhes caber igual sorte; deploram a comum fortuna da Gália; e excitam com todo gênero de promessas e prêmios os que começarem a guerra, e vindicarem à Gália a liberdade com risco de sua vida — Que se devia ter principalmente em vista, antes que se divulgassem as combinações clandestinas, que faziam, era tolher a César o passo para o exército; e — isso era fácil, pois nem as legiões ousariam sair dos quartéis de inverno, achando-se ausente o general, nem o general poderia chegar ao exército sem força que o guardasse: — por último melhor era ser morto, que deixar de recobrar a antiga glória e liberdade, que tinham recebido de seus antepassados.

Ventilado isto, protestam os Carnutes que nenhum perigo recusariam por amor da salvação comum, prometem que seriam os primeiros de todos a fazer a guerra, e, como em tal conjuntura não era possível darem-se reféns entre si, sem risco de ser o negócio divulgado, pedem que se confirme com juramento e promessa feitos sobre as signas militares reunidas (costume entre eles, em que se contêm as cerimônias as mais obrigatórias), que, começada a guerra, não seriam desamparados pelos outros. Então, depois de louvados os Carnutes, prestam juramento todos os que se achavam presentes, e, designado o dia para o rompimento das hostilidades, dissolve-se a assembléia.

Quando chegou o dia, os Carnutes, tendo a sua frente Cotuato e Conetoduno, homens desalmados, correm a Genabo[2] ao sinal dado, e trucidam os cidadãos romanos, que aí negociavam, entre estes a C. Fufio Cita, honrado cavaleiro romano, que por ordem de César entendia no provimento de víveres, e saqueiam-lhes os bens. Voa a nova com rapidez a todas as cidades[3] da Gália: pois, quando acontece alguma coisa grave e importante, a denunciam os Gauleses pelos campos e comarcas em altas vozes; os que ouvem, a vão pela mesma forma transmitindo aos vizinhos, como então aconteceu. Assim é que o que se passou em Genabo ao nascer do sol, foi sabido nas fronteiras[4] dos Arvernos antes de concluída a primeira vela da noite, ou na distância de cerca de sessenta mil passos.

Aí com o mesmo propósito, Vercingetorix, filho de Celtilo Arveno, moço mui poderoso, cujo pai foi o primeiro em toda a Gália, e, por aspirar a realeza, tinha sido morto por sua cidade[5], reunidos os seus clientes, facilmente os inflama. Conhecido o seu plano, corre-se às armas. Contrariado, e expulso de Gergovia[6] por Gobanicião, tio seu paterno, e outros principais, que entendiam não se dever correr o risco de semelhante empresa, persiste nada menos no seu propósito, e faz nos campos um alistamento de pobretões e homens perdidos. Com esta tropa chama a seu partido todos os da cidade, que vai encontrando; exorta-os a tomarem armas pela liberdade comum; e, reunidas grandes forças, expele da cidade os seus adversários, que o tinham expulso antes. Aclamado rei pelos seus, expede embaixadas para todas as partes, exortando a todos a permanecerem fiéis. Em breve atrai a si os Senones, Parisios, Pictones, Cadurcos, Turonos, Aulercos, Lemovices, Andes, e todos os mais que vizinham com o Oceano: por consenso unânime lhe é devolvido o comando. Munido de tal poder, ordena a todas estas cidades[7] lhe enviem reféns; manda lhe seja de cada uma trazido quanto antes um certo número de tropas; determina quantas armas deve fornecer cada cidade, e em que tempo; tem principalmente em vista a cavalaria. À maior atividade reune a maior severidade no mando: obriga os duvidosos com o excesso do suplício. Pois, quando o crime era grave, mandava matar com fogo e todo gênero de tormentos, quando leve, despedia o paciente para o seu país com as orelhas cortadas ou um dos olhos vazados, afim de servir de exemplo, e aterrar os outros com a enormidade do castigo.

Reunido de pronto o exército com tais suplícios manda para os Rutenos[8] com parte das tropas ao Cadurco Lecterio, homem de audácia suma: marcha ele mesmo para os Bituriges[9]. Com a sua chegada, mandam os Bituriges embaixadores pedir auxílio aos Heduos, sob cuja proteção estavam, afim de poderem mais facilmente resistir às tropas inimigas. Por conselho dos lugar-tenentes, que César havia deixado no exército, mandam os Heduos em auxílio aos Bituriges tropas de cavalaria e infantaria. Estas, chegando ao rio Liger[10], que extrema os Bituriges dos Heduos, demoram-se aí alguns dias, voltam sem ousar passar o rio, e declaram aos lugar-tenentes, que haviam voltado, receiando a perfídia dos Bituriges, cujo plano, se tivessem passado o rio, souberam era atacá-las por üm lado, ao passo que os Arvernos as atacassem pelo outro. Se o fizeram pelo motivo alegado aos lugar-tenentes, ou se por traição, não o sabemos, nem se pode determinar ao certo. Com a sua retirada unem-se logo os Bituriges com os Arvernos.

Levado isto a César à Itália, entendendo acharem-se já as coisas urbanas em melhor pé por esforços de Cn. Pompeu, partiu ele para a Gália Transalpina. Chegado ali, via-se em grande dificuldade de como poderia ir ter com o exército. Pois, se chamasse as legiões para a província, previa teriam na marcha de entrar em batalha longe dele; se se dirigisse ao exército, via não seria bem cometida a sua segurança pessoal aos mesmos Gauleses, que pareciam presentemente sossegados.

Entretanto, o Cadurco Lucterio, enviado aos Rutenos, concilia esta cidade aos Arvernos. Tendo avançado até os Nitiobriges[11] e Gabalos[12], recebe reféns de uns e outros, e lavantada grande força, tenta fazer erupção na província do lado de Narbona. Informado disto, julga César que a sua ida a Narbona deve ser anteposta a todos os mais projetos. Ao chegar ali, anima os temerosos, dispõe presídios nos Rutenos provinciais[13], nos Volcas Arecomicos[14], nos Tolosates, e nos arredores de Narbona, que eram lugares vizinhos aos inimigos, e manda reunir nos Helvios[15], que tocam nas fronteiras dos Arvernos, parte das tropas da província, e o suplemento que tinha trazido da Itália.

Ordenado isto, e reprimido já e afugentado Lucterio, que reputava perigoso internar-se por entre os presídios, marcha para os Helvios[16]. Posto que o monte Cavena[17] que separa os Helvios dos Arvernos impedia a passagem com altíssima neve no mais rigoroso tempo do ano, escavada contudo a neve até seis pés de profundidade, e abertos assim caminhos, chega com muitíssimo suor do soldado as fronteiras[18] dos Arvernos. E caindo sobre estes que estavam desprevenidos, porque se consideravam defendidos pelo Cevena como por uma muralha, sendo que em tal estação nem ainda a um homem só haviam sido patentes os caminhos, ordena à cavalaria, que vague o mais largamente que puder, e infunda no inimigo quanto maior terror. É isto imediatamente levado por fama a correios a Vercingetorix, a quem os Arvernos cercam consternados, suplicando-lhe, atenda aos seus interesses, e não consinta serem espoliados pelo inimigo, vendo principalmente estar a guerra trasladada para eles. Abalado com tais sú plicas, põe ele o seu campo em movimento dos Bituriges para os Arvernos[19].

Tendo-se demorado dois dias nestes lugares, porque antevia haver de dar-se isto nos movimentos de Vercingetorix, aparta-se César do exército, para reunir o suplemento e a cavalaria; e prepondo o jovem Bruto às tropas que deixa, amoesta-o a que faça vagar por toda parte a cavalaria quanto mais dilatadamente, assegurando-o de que se esforçaria para não estar ausente dos arraiais mais de três dias. Disposto isto, a quanto maiores jornadas pode, chega inesperadamente a Viena[20]. Encontrando aí a nova cavalaria, que para lá mandara muitos dias antes, pelas fronteiras[18] dos Heduos, sem interromper a marcha nem dia, nem noite, dirige-se aos Lingones[21], onde invernavam duas legiões, afim que, se os Heduos tomassem alguma resolução contra a sua segurança dele, pudesse antecipá-la com a celeridade. Ao chegar ali, envia as demais legiões, e as reune todas num lugar, antes que os Arvernos pudessem ter notícia de que havia chegado. Sabendo disto, Vercingetorix abala de novo com o exército para os Bituriges[22], e partindo dali, resolve sitiar Gorgobina[23], praça dos Boios, que César havia colocado ali depois de vencidos na guerra helvetica, e posto na dependência dos Heduos.

Trazia isto grande embaraço a César no tomar uma resolução; pois, se contivesse as legiões nos quartéis o resto do inverno, receiava que, subjugados os estipendiários dos Heduos, se rebelasse toda a Gália, porque nenhum auxílio pareceria terem nele os amigos; se as tirasse mais cedo dos quartéis de inverno, que viesse a experimentar falta de bastimentos pela dificuldade dos transportes. Pareceu-lhe contudo ser melhor arrostar com todas as dificuldades, que, recebida tamanha afronta alienar as vontades de todos os seus. Assim, exortando os Heduos a lhes transportarem víveres, envia a certificar aos Boios de sua ida, e exortá-los a permanecerem fiéis, e resistirem com grande ânimo ao assalto dos inimigos. E deixando em Agedico[24] duas legiões com as bagagens de todo o exército, marcha para os Boios.

Havendo chegado no outro dia à praça dos Senones, Velaunoduno[25], para não deixar inimigo algum na retaguarda, afim de que fosse com mais facilidade provido de víveres, resolveu sitiá-la e em dois dias a circunvalou; enviados da praça no terceiro embaixadores sobre a rendição, ordena lhe sejam entregues armas, bestas e seicentos reféns. Deixa, para ultimar o negócio, o lugar-tenente C. Trebonio. E, no intuito de apressar a marcha[26], dirige-se ele mesmo a Genabo dos Carnutes, os quais recebendo, então, a primeira notícia do cerco de Velaunoduno, e julgando haver este de prolongar-se mais, aprestavam uma força para mandar em defesa de Genabo. Chega aqui em dois dias. Colocados arraiais diante da praça, em razão da hora adiantada do dia defere o ataque para o seguinte, ordenando aos soldados aprontem o necessário para semelhante fim; e, porque uma ponte sobre o rio Liger ligava Genabo à margem oposta, receioso de que os da praça fugissem durante a noite, manda velarem em armas duas legiões. Saindo em silêncio da praça pouco antes da meia noite, começaram os genabenses a passar o rio. Informado disto pelos exploradores, César introduz na praça as duas legiões em armas, incendiando-lhes as portas, e apodera-se dela, faltando mui poucos do número dos inimigos, que deixassem de ser tomados, porque os apertos da ponte e das saídas embargavam a fuga à multidão. Saqueia, e incendeia a praça; concede a presa aos soldados; passa o exército além Liger, e chega às fronteiras[27] dos Bituriges.

Tanto que soube da vinda de César, desistindo do cerco[28], marcha-lhe Vercingetorix ao encontro. Resolvera César sitiar Novioduno[29], praça dos Bituriges, que lhe ficava em caminho. E tendo-lhe vindo da praça embaixadores suplicar, que lhes perdoasse, e lhes conservasse a vida, para concluir o mais com a celeridade, com que conseguira a mor parte das coisas, ordena lhe sejam entregues armas, cavalos e reféns. Entregue já parte dos reféns, como se entendesse no restante, introduzidos na praça os centuriões, e poucos soldados, que arrecadassem armas e bestas, e avistada ao longe a cavalaria inimiga, que precedera o exército de Vercingetorix. Logo que os da praça a avistaram, e tiveram esperança de scorro, levantando clamor, entrara a tomar armas, a fechar as portas, a encher a muralha. Os centuriões, dentro da praça, percebendo por estas demonstrações, que os Gauleses tomavam nova resolução, ocuparam as portas com as espadas desembainhadas, e fizeram retirar todos os seus a salvo.

Manda César sair dos arraiais a cavalaria, e trava combate eqüestre: vendo-se os seus já em aperto, expede-lhes em auxílio cerca de quatrocentos cavaleiros romanos que costumara ter consigo desde princípio. Destes não puderam os Gauleses sustentar o choque, e, convertidos à fuga, retiraram-se para o exército, perdendo muita gente. Derrotados eles, novamente aterrados, levaram os da praça a César presos aqueles, por cuja influência reputavam ter sido alvoratada a plebe, e se lhe renderam. Concluído isto, marchou César para Avarico[30], que era a maior e a mais forte praça dos Bituriges, e assentada, além disso, em terreno fertilíssimo; pois confiava que, tomada esta praça, havia de reduzir a cidade[31] dos Bituriges ao seu poder.

Depois de experimentados tão continuados revezes em Velaunoduno, Genabo e Novioduno, convoca Vercingetorix os seus a concelho. Mostra-lhes: "Que a guerra devia ser feita por maneira mui diversa da que o tinha sido antes — Que se devia entender por todos os modos em embaraçar os Romanos de forragearem, e proverem-se de víveres — Que era isso fácil, porque os Gauleses abundavam em cavalaria, e eram favorecidos pelo rigoroso da estação[32] — Que o pasto não podia cortar-se, e de necessidade o procurariam os inimigos dispersos pelas casas; e todos estes podiam ser quotidianamente destruídos pela cavalaria — Que deviam, além disso, desprezar-se as comodidades particulares por amor da comum salvação; e era conveniente incendiarem-se aldeias e casas neste espaço, por toda a parte, por onde parecesse poder o inimigo ir forragear — Que de tudo isto tinham eles Gauleses, abundância, pois eram supridos pelos socorros daqueles em cujas fronteiras[18] se fazia a guerra: — que os Romanos ou haviam de experimentar penúria, ou apartar-se para longe dos arraiais com grande perigo seu; nem importava distinguir, se fossem mortos, ou despojados das bagagens, sem as quais não lhes seria possível fazer a guerra — Que era, além disso, conveniente incendiarem-se as cidades, que não fossem defendidas de todo perigo pela arte e pela natureza, afim de não terem os seus receptáculos para desertarem da milícia, nem os Romanos lugares, onde se provessem de mantimentos, e fizessem presas. Se estas coisas pareciam graves ou acerbas, mais graves reputava ele serem-lhes filhos e esposas arrancados para a escravidão, e mortos eles mesmos, o que era necessário acontecer a vencidos."

Aprovado por consenso de todos este parecer, incendeiam-se num dia mais de vinte povoações dos Bituriges. Faz-se o mesmo nas restantes cidades[33]: vêm-se por toda parte incêndios, os quais posto que todos suportavam com grande dor, consolavam-se, nada obstante, porque, julgando certa a vitória, confiavam haver de, em breve, recuperar o perdido. Delibera-se no concelho comum se convinha incendiar-se ou defender Avarico. Lançam-se os Bituriges aos pés de todos os Gauleses, suplicando-lhes que os não obrigassem a incendiar com suas próprias mãos a mais formosa capital de quase toda a Gália, força e ornamento de sua cidade[34]; comprometem-se a defendê-la facilmente, confiados na natureza do lugar, pois cercada de quase todos os lados pelo rio[35] e por pantanais, tinha uma única e mui estreita avenida. Dá-se indulto aos que o pediam, a princípio resistindo, e por último anuindo Vercingetorix, movido das súplicas dos mesmos, e da compaixão do vulgo. Escolhem-se defensores idôneos para a praça.

Segue Vercingetorix a César a menores jornadas, e escolhe para arraiais um lugar cercado de pântanos e bosques, na distância de dezeseis mil passos de Avarico. Aí sabia por exploradores a toda hora do dia quanto se passava em Avarico, e ordenava o que queria se fizesse. Espiava o forragear e aprovisionar-se dos nossos; e, se estes, por necessidade, se apartavam para mais longe, os atacava dispersos, e lhes causava grande dano, se bem se desse remédio a isto, quanto era possível fazê-lo com prudência, indo os nossos em tempo incerto, e por caminhos diversos.

Colocados os arraiais contra aquela parte da praça, que interposta entre o rio e os pântanos tinha, como acima dissemos, uma estreita avenida, entrou César a aprestar terrado, mantas de guerra, e duas torres; porquanto a natureza do lugar vedava a circunvalação. No que respeita ao provimento, não cessou de ativar Boios e Heduos, dos quais uns[36] porque trabalhavam sem zelo, pouco ajudavam, os outros[37], de acanhadas posses, por constituírem uma cidade[38] pequena e fraca, depressa acabaram o que tinham dito. Com a debilidade dos Boios, a negligência dos Heduos e os incêndios dos casais, laborava o exército em suma dificuldade de provimento, a ponto de passarem os soldados muitos dias sem pão, e remediarem a extrema fome com gado arrebatado de aldeias distantes; não se ouvia, contudo, da parte destes uma única voz indígna da majestade do povo romano, e das precedentes vitórias. Antes, falando César a cada legião de per si durante o trabalho da fortificação, e propondo-lhe abandonar o cerco, se não podiam suportar a penúria, todos lhe pediam o não fizesse, dizendo: "Que sempre tinham militado sob seu comando de modo a não sofrerem desar algum, nem deixarem por acabar qualquer empresa: — haviam de ter por um desar, se abandonassem o começado cerco: — melhor era suportar as extremidades, que deixar de vingar a morte dos cidadãos Romanos, trucidados em Genabo pela perfídia dos Gauleses." Isto mesmo repetiam aos centuriões e tribunos militares, para que o levassem a César.

Quando já as torres se aproximavam do muro, soube César dos cativos, que Vercingetorix, consumido o pasto, mudara os arraiais para mais perto de Avarico, e partira em pessoa com a cavalaria e os peões expeditos, avezados a pelejar entre os de cavalo, a emboscar-se aonde supunha iriam os nossos forragear no seguinte dia. Com esta notícia, partiu em silêncio a meia-noite e chegou de manhã à vista dos arraiais dos inimigos. Informados pelos exploradores da vinda de César, ocultaram eles a pressa seus carros e bagagens no mais denso dos bosques, e ordenaram em batalha todas as tropas num lugar eminente e aberto. Ao abê-lo, mandou César transportar a pressa para um lugar cargas de soldados e bagagens do exército e pegar em armas.

Era a colina docemente inclinada desde a base. Cercava-a de quase todos os lados um pantanal de difícil acesso, e emaranhado, cuja largura não ia além de cinqüenta pés. Nesta colina, rotas as pontes, se mantinham os Gauleses, confiados na natureza do lugar e distribuídos por cidades[39], segundo as gentes, guardavam todos os vaus e embaraçosas avenidas deste pantanal, preparados para, se os Romanos tentassem rompê-lo, oprimi-los das alturas, quando embaraçados; de modo que, quem visse a propinquidade do lugar, os diria prontos a medir-se em combate quase igual; quem, porém, atentasse na desigualdade das posições, conheceria haver da parte deles uma vã e simulada ostentação. Aos soldados, que se indignavam de que os inimigos pudessem suportar a sua vista, interposto tão pequeno espaço, e pediam o sinal do combate, demonstra César, quantas perdas e mortes de varões esforçados seria mister custasse a vitória, e que vendo-os com ânimo tão disposto a afrontar todo gênero de perigo pela sua glória, se consideraria o mais iniquo dos homens, se não tivesse mais a peito a vida deles, que a sua própria. Depois de haver assim consolado os soldados, os reconduz no mesmo dia aos arraiais e dispõe-se a concluir o que respeitava do assédio da praça.

Tendo voltado aos seus, é Vercingetorix acusado de traição, por haver mudado os arraiais para mais perto dos Romanos, por se haver retirado com a cavalaria, por haver deixado tantas tropas sem chefe, por haverem com a sua retirada chegado os Romanos tão oportuna e rapidamente: — sendo que se não pudera tudo isto ter dado casualmente, e sem plano: que ele antes queria possuir o reino da Gália por concessão de César, que por benefício deles mesmos. Acusado por tal modo, a tudo respondeu: "Que, quanto a haver mudado os arraiais, o fizera por falta de forragem, aconselhando eles mesmos; quanto a haver-se aproximado mais dos Romanos, fora persuadido pela oportunidade do lugar, que se tornava defensável por sua mesma posição: que a cooperação da cavalaria não podia ter cabimento num terreno pantanoso, e havia sido útil no lugar para onde partira. Que de propósito não deixara ao retirar-se, o comando a outro, para que esse outro, por comprazer com a multidão, se não deixasse arrastar a pelejar, ao que via todos inclinados por falta de perseverança de espírito para suportar por mais tempo o trabalho. Se os Romanos se haviam apresentado casualmente, deviam eles Gauleses agradecê-lo a fortuna, se por aviso de alguém a esse alguém deviam fazê-lo, pois tinham tido ocasião de conhecer de uma posição eminente o pequeno número desses, e desprezar o valor de homens, que, sem ousar combater, se tinham vergonhosamente retirado para os arraiais. Que não desejava por traição receber de César um poder, que podia ter pela vitória que já tinha certa para ele e todos os Gauleses: além de que, o depunha nas mãos deles, se julgavam antes fazer-lhe honra, que receber dele a salvação. "E para que vejais que vos falo com sinceridade, disse, ouvi os soldados Romanos". Apresenta alguns escravos, que dias antes surpreendera a forragear, e atormentara com fome e ferros. Ensaiados no que haviam de responder, quando interrogados, dizem estes ser soldados legionários, que obrigados da fome e miséria, tinham saído ocultamente dos arraiais, para procurar nos campos algum trigo e gado: que todo o exército laborava na mesma penúria, ninguém já tinha forças, nem podia suportar o trabalho de fortificação: tanto assim que decidira o general reconduzir o exército dentro de três dias, se nada mais adiantassem no assédio da praça. "Estes benefícios, disse, os tendes de mim Vercingetorix, a quem acusais de traição; de mim, por cuja traça vedes, sem dispêndio de vosso sangue, consumido pela fome um tão grande e vitorioso exército; de mim, que tenho providenciado, que, ao retirar-se, fugindo vergonhosamente, não seja ele acolhido por cidade alguma[40] em suas fronteiras[27]."

Clama toda a multidão, fazendo, a sua usança, um retintim de armas (como praticam, quanto aprovam o discurso de alguém) que Vercingetorix era o chefe supremo, nem se devia duvidar de sua lealdade, nem se podia fazer a guerra com mais inteligência. Determinam mandar para a praça dez mil homens escolhidos de todo o exército, e não confiar a salvação comum unicamente aos Bituriges, pois na conservação desta praça faziam esses consistir quase toda a glória da vitória.

Ao singular valor de nossos soldados punham os Gauleses toda espécie de traças, como gente mui engenhosa que é, e habilíssima em imitar, e levar a efeito tudo quanto vê fazer. Assim não só desviavam com laços as foices murais, as quais, uma vez presas, recolhiam com máquinas para dentro da praça, como minavam também o terrado, e tanto mais cientemente que, possuindo grandes minas de ferro, são práticos e amestrados em todo gênero de excavações subterrâneas. Quanto ao muro, tinham-no por toda parte guarnecido com torres cobertas de couros. Depois, com repetidas sortidas diurnas e noturnas, ou lançavam fogo ao terrado, ou cometiam aos nossos quando no trabalho dos aproxes: sobrepondo com mastros unidos andares das suas torres, não só igualavam a altura das nossas tanto quanto as ia o terrado levantando, mas com paus tostados e ponteagudos, com pez em ebulição e pedras de enorme peso, demoravam a abertura de nossas minas, fazendo com que elas se não aproximassem do muro.

As muralhas Gaulesas são quase todas construídas por esta forma. Colocam-se no solo com iguais intervalos, na distância de dois pés, traves direitas, perpetuadas em longitude. Atracam-se estas por dentro com outras transversais, e revestem-se com muito aterro: enchem-se, porém, na frente, com grandes pedras os intervalos, que dissemos. Colocadas e ligadas estas, acrescenta-se por cima outra ordem, de modo que se conserve aquele mesmo intervalo, e as traves não se toquem entre si, mas interpostas com iguais espaços, sejam contidas cada um por cada fiada de pedras intermeiada com arte. Assim se tece, depois, toda a obra até preencher-se a justa altura da muralha. Composta de traves e pedras alternadas, que guardam suas ordens em linha reta, a obra não só não é desagradável no aspecto a na variedade, mas torna-se de suma utilidade para segurança e defesa das praças, porque do fogo a defende a pedra, do ariete a madeira, que, atracada pelo inteiriço das traves as mais das vezes até quarenta pés em sentido oposto, não pode ser rota, nem desmanchada.

Impedido por tantos obstáculos o assédio, apesar de em todo tempo retardados pelo frio e pelas assíduas chuvas, venceram, nada obstante, os soldados, tudo isso, a força de aturado trabalho, e construíram um terrado de trezentos e trinta pés de largura e oitenta de altura, Quanto este já quase tocava no muro, e César velava na obra segundo o costume, exortando os soldados a não interromperem o trabalho em tempo algum, pouco antes da terceira vela da noite[41] notou-se estar fumegando o terrado[42], que os inimigos haviam incendiado por meio de uma mina. Ao mesmo tempo, levantando grita do muro, faziam estes sortidas pelas duas portas de um e outro lado das torres; ao passo que outros de longe arremessavam do muro fachos acesos e lenha seca sobre o terrado, e derramavam pez e outras matérias para excitar o fogo; de modo que mal se podia saber aonde, ou a que coisa se acudiria primeiro. Contudo, como por ordem de César velavam sempre duas legiões em frente dos arraiais, e muitos se revezavam no trabalho a horas determinadas, deu-se com presteza resistirem uns às sortidas, reconduzirem outros as torres, e entrecortarem o terrado, e correr, por fim, dos arraiais toda a multidão a apagá-lo.

Combatendo-se em todos os lugares, consumido já o resto da noite, renovando-se sempre aos inimigos a esperança da vitória, principalmente por verem queimadas as mantas das torres e notarem que não podiamos ir, descobertos em socorro destas, sucedendo-se dentre eles sempre outros de fresco aos cansados, e julgando os mesmos depender deste momento toda a salvação da Gália, aconteceu, observando nós, o que, por nos parecer digno de memória, entendemos não dever omitir. Postado diante da porta da praça, arremessava certo Gaulês ao fogo, defronte de uma das torres, bolas de sebo e pez, que vinham transmitidas de mão em mão; caiu este ferido no lado e morto por um tiro de escorpião[43]. Passando por cima do cadáver, desempenhava um dos mais próximos o mesmo ofício; morto da mesma forma por um tiro de escorpião, sucedeu ao segundo um terceiro, e ao terceiro um quarto, sem que ficasse aquele lugar despido de defensores, senão depois que apagado o incêndio do terraço, rechaçados por toda a parte os inimigos, se pôs termo ao combate.

Havendo experimentado tudo, sem que nada sortisse efeito, resolveram os Gauleses fugir da praça no seguinte dia, aconselhando e ordenando Vercingetorix. Tentando-o no silêncio da noite, esperavam poder efetuá-lo sem grande perda dos seus, porque não estavam longe da mesma os arraiais de Vercingetorix, e o pantanal, que se metia de permeio, retardava os Romanos na perseguição deles. E já se dispunham a pô-lo em prática de noite, quando as mães de familias se apresentaram de repente em público, e lançando-se ao pés dos seus debulhadas em lágrimas, lhes pediram com muitas súplicas, que não entregassem aos inimigos, para supliciá-los, a elas e aos filhos comuns, a quem a fragilidade da natureza e das forças embargava a fuga. Como os viram persistir no propósito, porque no maior perigo o temor as mais das vezes exclue a compaixão, entraram a gritar e a denunciar aos Romanos a fuga. Possuidos de temor, que os caminhos fossem ocupados de antemão pela cavalaria Romana, desistiram os Gauleses do intento.

No seguinte dia, aproximada uma torre, e dirigidas as obras, que destinara fazer, rebentando uma grande chuva, julgou César não inútil esta tempestade para empreender um golpe de mão, porque via as guardas mais descuidosamente dispostas na muralha; ordenou aos seus que andassem também mais frouxamente no trabalho; e indicou o que queria se fizesse. Preparadas ocultamente as legiões a coberto das mantas de guerra, exortou-as a colherem, alfim, o fruto da vitória por tantos trabalhos, propôs prêmios aos primeiros que subissem o muro, e deu aos soldados o sinal da escalada. Voaram eles subitamente de todas as partes, e encheram incontinente a muralha.

XXVIII

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Aterrados com a novidade do caso, e lançados da muralha e torres, formaram-se os inimigos em cúneo na praça pública e lugares mais patentes, deliberados a combater ordenados em batalha, se por qualquer parte os atacassem. Como ninguém viram descer ao chão, mas de todos os lados circunfundir-se a soldadesca pela muralha, receiosos de que lhes fosse totalmente tirada a esperança de fuga, arremessadas as armas, arrancaram em impulso continuado para as últimas partes da praça e aí foram mortos, parte que se oprimiam a si mesmos na apertada saída das portas, pelos legionários, parte que já tinham saido das portas, pela cavalaria. Ninguém se ocupou com o saque. Em extremo incitados, já pela matança de Genabo, já pelo trabalho do cerco, nem a velhos, nem a mulheres, nem a meninos, pouparam os soldados. Finalmente, do total dos habitantes, que orçavam por quarenta mil, apenas uns oitocentos chegaram a salvo a Vercingetorix. E receiando que rebentasse alguma sedição no campo com a presença destes e comiseração do vulgacho, os recolheu ele da fuga em silêncio alta noite, com tal cuidado, que, dispostos ao longe pelo caminho apaniguados seus e os principais das cidades, velava em que houvessem de ser separados, e conduzidos cada um aos seus, na parte dos arraiais, que desde princípio tocara a cada cidade.

Convocado no segundo dia concelho, consola os Gauleses, e os exorta a não se deixarem abater, nem desanimar com o desastre ocorrido, ponderando-lhes: "Que, não por bravura, nem em batalha tinham os Romanos vencido, mas por estratagema de guerra e ciência da arte dos assédios, coisas de que eles Gauleses não tinham conhecimento — Erravam os que só contavam na guerra com sucessos favoráveis — Nunca fora de opinião que se defendesse Avarico, do que eles mesmos eram testemunhas mas que a imprudência dos Bituriges e a nímia condescendência dos demais dera ocasião a sofrer-se este revés, que ele havia, nada obstante, compensar em breve com maiores vantagens. Sendo que havia de, por sua diligência, ganhar as cidades[39], que dissentiam dos mais Gauleses, e formar uma coalição de toda a Gália, a qual nem ainda o poder do mundo resistiria e já o tinha quase efetuado — Era, entretanto, indispensável conseguir-se deles a bem da comum salvação, que se determinassem a fortificar, afim de mais facilmente sustentarem os repentinos assaltos do inimigo.

Não foi este discurso mal recebido dos Gauleses, principalmente porque o mesmo não desanimava com tamanho revés, nem se tinha, depois dele, ocultado, nem fugido da vista da multidão; e era reputado mais prudente e previdente que os outros, por que opinara, antes do assédio, que se devia incendiar Avarico, e depois, abandonar. Assim, ao passo que o crédito dos outros generais diminui com as adversidades, o deste, pelo contrário, aumentava cada dia com os revezes. Concebiam ao mesmo tempo a esperança, segundo lhes ele prometia, da confederação das mais cidades [39]; e então, pela primeira vez, entraram os Gauleses a fortificar arraiais, e tão quebrantados de ânimo ficaram estes homens mal sofridos no trabalho, que julgavam dever fazer e sofrer tudo quanto lhes era ordenado.

Nem menos do que prometera, revolvia Vercingetorix na mente atrair a si as restantes cidades[44], e as aliciava com dádivas e promessas. Para isto escolhia homens próprios, dos quais pudesse cada um melhor captá-las com discursos artificiosos e amizades. Entende em que hajam de ser armados, e vestidos os que tinham escapado da tomada de Avarico; ao mesmo tempo, para se renovarem as tropas diminuidas, ordena às cidades[9] aprontem um certo número de soldados, o qual deve ser conduzido aos arraiais em dia marcado, e manda se procurem, e se lhe enviem todos os frecheiros, dos quais havia na Gália grandíssima quantidade. Por tal forma prontamente se substitui o que havia perecido em Avarico. Neste interim, Teutomato, filho de Olovicão, rei dos Nitiobriges, cujo pai fora pelo nosso senado honrado com o nome de amigo, vem para ele com grande número de cavaleiros seus, e com os que tinha alistado na Aquitania.

Havendo-se demorado muitos dias em Avarico, onde encontrara grande cópia de trigo e mais bastimentos, refez César o exército do trabalho e da penúria. Sendo, por achar-se já quase terminado o inverno, convidado a fazer a guerra pela mesma estação, e dispondo-se a marchar contra o inimigo, ou para atrai-lo dos pântanos e bosques, ou para oprimi-lo com sítio, chegam-lhe em embaixada os principais dos Heduos a pedir-lhe que socorra a cidade[40] no tempo o mais urgente, expondo: "Que se achava a república em extremo perigo, porque sendo antigamente costume criar-se um magistrado, que exercia o poder régio por um ano, o exerciam agora dois, e ambos se diziam criados segundo as leis — Destes um era Convoctolitave, moço acreditado e ilustre, o outro Coto, descendente de família antiquíssima, e homem mui poderoso por si mesmo, e de grande parentela, cujo irmão Valeciaco exercera a mesma magistratura o precedente ano — Em armas se achava toda a cidade[45]; dividido o senado, dividido o povo; divididas as suas clientelas[46] de cada um deles — A continuar por mais tempo esta pendência, resultaria combater uma parte da cidade[45] contra a outra — E da sua diligência e autoridade dependia o evitar-se isso.

XXXIII

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César, ainda que julgava prejudicial o retirar-se da campanha e do inimigo não ignorando, todavia, quantos males costumavam originar-se das dissensões civis, entendeu dever prevenir que uma tão grande cidade[45] e tão conjunta ao povo Romano, que ele havia sempre protegido, e acrescentado em tudo, descesse às vias de fato e às armas, e que a parte mais fraca chamasse a Vercingetorix em seu auxílio; e porque segundo as leis dos Heduos aos que exerciam a magistratura suprema, não lhes era permitido sair das fronteiras[18], para não parecer haver-lhes cerceado coisa alguma em seus direitos e leis, resolveu partir ele mesmo para os Heduos[47] e chamou à sua presença em Dececia[48] a todo o senado e aqueles entre os quais se dava pendência. Tendo-se reunido alí quase toda a cidade[49], sendo informado por poucos convocados ocultamente, de que Coto fora nomeado depois do irmão em lugar e tempo alheio do que convinha, quando as leis não só vedavam criarem-se dois magistrados de uma familia, sendo vivos ambos, mas até terem ambos assento no senado, obrigou-o a resignar o poder e ordenou que o exercesse Convictolitave, que fora criado pelos sacerdotes segundo o costume da cidade, e sem intervenção dos magistrados.

Tendo, depois de expedir este decreto, exortado os Heduos a esquecerem-se das controvérsias e dissensões, a dedicarem-se, pondo-as de lado, exclusivamente a esta guerra, confiados em obterem de sua parte, submetida a Gália, os prêmios a que tivessem direito, e a lhe enviarem quanto antes toda a cavalaria e dez mil peões, que dispusesse em destacamentos por amor do abastecimento de víveres, dividiu o exército em dois corpos: quatro legiões, deu-as a Labieno, para as conduzir contra os Senones e Parisios; seis, guiou-as ele mesmo contra os Arvernos ao longo do rio Elaver[50], com destino à praça de Gergovia: parte da cavalaria distribuiu àquele, parte reservou para si. Informado disto, entrou Vercingetorix, depois de cortar todas as pontes deste rio, a marchar pela margem oposta dele.

Como um e outro exército marchasse de um e outro lado do rio, opunham arraiais a arraiais a vista, e quase defronte um do outro. Dispostos por Vercingetorix exploradores, afim que os Romanos, construindo pontes, não passassem em parte alguma as tropas, estava nas grandes dificuldades com que lutava César, que a expedição não fosse embaraçada pelo rio a maior parte do estio, sendo que o Elaveh quase não costuma a ser vadeável antes do outono. Assim, para fazer com que isto se não desse, colocados arraiais num lugar arborizado defronte de uma das pontes que Vercingetorix havia cortado no seguinte dia aí se postou, ocultamente, com duas legiões; as mais tropas com todas as bagagens, as mandou seguir, como tinha por costume, tomadas certas coortes, para que o número das legiões parecesse o mesmo. Ordenou-lhes que avançassem quanto mais pudessem, e quando pela hora do dia conjecturou haverem já chegado onde deviam assentar arraiais, com os mesmos pilares, cuja parte inferior permanecia inteira, entrou a refazer a ponte. Concluída com rapidez a obra, passadas as duas legiões, e escolhido lugar idôneo para arraiais, chamou as demais tropas. Sabendo disto, o precedeu Vercingetorix a grandes jornadas, para não ser obrigado a pelejar contra vontade.

Deste lugar chegou César à Gergovia em cinco acampamentos[51]; travado nesse dia leve combate de cavalaria, depois de examinada a situação da praça, que, assentada em monte altíssimo, tinha difíceis todas as avenidas, desesperou de poder tomá-la de assalto; e resolveu prover no abastecimento de víveres, antes de começar a sitiá-la. Mas Vercingetorix, estabelecidos arraiais junto da praça, tinha colocado em volta de si as tropas de cada cidade[49], separadas umas das outras com pequenos intervalos, e ocupadas todas as colinas desta serrania, apresentava, por onde podia ver-se, aterrador aspecto. Ao amanhecer convocava diariamente à sua presença os principais de todas as cidades, os quais havia escolhido para aconselhá-lo, ou tivesse de comunicar-lhes alguma coisa, ou de tomar alguma medida, e não deixava passar um só dia, em que não experimentasse em combate eqüestre, com arqueiros de permeio, quanto ânimo e valor houvesse em cada um dos seus. Havia defronte da praça nas mesmas raízes da serra uma colina egregiamente fortificada, e por todos os lados alcantilada, a qual se os nossos ocupassem, teriam de embaraçar o inimigo não só de prover-se de água em suficiente quantidade, como de forragear livremente. E este lugar era guardado por uma guarnição não mui forte. Saindo, pois, dos arraiais no siléncio da noite, e apoderando-se do lugar, lançada dele a guarnição, antes de lhe poder vir da praça socorro, aí colocou César duas legiões, e fez um duplo fosso de doze pés, dos arraiais maiores aos menores, para que os nossos, ainda isolados, pudessem atravessar de uns para outros, a coberto do repentino assalto dos inimigos.

XXXVII

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Enquanto estas coisas se passam em Gergovia, o Heduo Convictolitave, a quem, como dissemos, fora por César adjudicada a magistratura, solicitado pelos Arvernos com dinheiro, entende-se com certos adolescentes, dos quais eram os principais Litavico e seus irmãos, descendentes de família nobilíssima. Com eles reparte o dinheiro, e os admoesta: "Que se lembrassem que eram livres, e nascidos para o império. Que a cidade dos Heduos era a única que retardava a certíssma vitória da Gália; — a sua autoridade continha as demais; passada ela ao partido Gaulês, não teriam os Romanos apoio algum na Gália. Que alguma obrigação devia em verdade a César, que em última análise lhe fizera justiça; mas mais devia ainda a liberdade comum. Porque antes viriam os Heduos pleitear acerca de seus direitos e leis perante César, que os Romanos perante os Heduos?" Seduzidos bem depressa os adolescentes, tanto pelo discurso do magistrado, como pelo dinheiro, e afiançando até que seriam os diretores da empresa, buscava-se um pretexto para levá-la a efeito, porque não confiava poder ser a cidade induzida a empreender a guerra sem fundamento. Pareceu conveniente, que Litavico fosse preposto aqueles dez mil, que seriam mandados a César para a guerra, se encarregasse de conduzi-los, e seus irmãos o precedessem junto a César. Determinam a maneira por que convenha fazer o mais.

XXXVIII

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Depois de haver recebido o exército, achando-se cerca de trinta mil passos distantes de Gergovia, convoca Litavico subitamente os soldados, e diz-lhes, chorando: "Para onde marchamos nós, soldados? Pereceu toda a nossa cavalaria, toda a nossa nobreza; acusados de traição, foram os principais da cidade[40], Eporedorix e Viviromaro, mortos pelos Romanos sem forma de processo. Ouvi-o vós dos mesmos, que escaparam da matança, porquanto, havendo perdido meus irmãos e todos os meus parentes, vejo-me eu embargado pela dor de narrar-vos o acontecido." São apresentados os que tinham sido ensaiados no que haviam de dizer, e expõem à multidão o mesmo, que Litavico: — haverem sido mortos os cavaleiros Heduos, porque se dizia terem falado com os Arvernos; haverem-se eles mesmos ocultado entre a multidão dos soldados, e terem escapado do meio da matança — Bradam os Heduos, e pedem a Litavico, considere na sua segurança. "Como se o caso — diz ele — requeira considerar, e não marcharmos nós mesmos para Gergovia, e unirmo-nos com Arvernos. Duvidamos por ventura que os Romanos, depois de cometido o nefando atentado, não corram já a trucidar-nos. Porisso, se há em nós algum vislumbre de coragem, vinguemos a morte dos nossos, que pereceram tão indignamente, e matemos a estes ladrões." Mostra os cidadãos Romanos que vinham confiados na salva-guarda desta força: saqueia-lhes grande quantidade de trigo e vitualhas, e mata-os, depois de cruelmente atormentados. Espalha correios por toda a cidade[45] dos Heduos, que abala com a mesma mentira da morte dos cavaleiros e principais; aconselha que vinguem suas afrontas pela mesma forma, que ele o fez.

O Heduo Eporedorix, adolescente de família mui preclara e mui poderoso na pátria, bem como Viridomaro, de igual idade e valia, mas desigual em nobreza, a quem César, por recomendação de Diviciaco, havia elevado de humilde condição às maiores dignidades, tinham ambos vindo com a cavalaria dos Heduos, nomeadamente por ele convidados. Havia entre estes competência sobre a primazia, e naquela pendência dos magistrados tinham intervindo com grandes meios, um a favor de Convictolitave, outro de Coto. Destes Eporedorix, sabido o plano de Litavico, o expõe a César quase pela meia noite, e pede-lhe não consinta que a cidade[40] pelos péssimos conselhos de mancebos levianos se retire da amizade do povo Romano, o que previa haver de acontecer, se se juntassem com os inimigos tantos mil homens, cuja salvação não podia ser indiferente aos parentes, nem a cidade estimar em coisa de leve momento.

Impressionado por grave cuidado com esta notícia, César que sempre havia sumamente comprazido com a cidade[45] dos Heduos, sem interpor dúvida alguma, tira dos arraiais quatro legiões expeditas e toda a cavalaria (nem em tais pressas houve tempo de contrair[52] arraiais, pois o bom resultado do negócio parecia posto na celeridade): deixa o lugar-tenente C. Fabio com duas legiões de guarda aos mesmos. Tendo ordenado que fossem presos os irmãos de Litavico, sabe haverem pouco antes fugido para os inimigos. Exortando os soldados a não afrouxarem na marcha em ocasião tão urgente, e avançando vinte e cinco mil passos por suma diligência de todos, avista por fim o exército dos Héduos; e, despedindo a cavalaria, demora-lhes e embarga a marcha, proibindo a todos o matarem a quem quer que fosse. Ordena a Eporedorix e a Viridomaro, que eles julgavam mortos, se mostrem entre os cavaleiros e falem aos seus. Conhecidos estes e descoberta a fraude de Litavico, entram os Heduos a estender as mãos, a significar que se rendiam, e a pedir a vida, arremessadas as armas. Foge Litavico para Gergovia com os seus clientes, aos quais, segundo o costume gaul6es, ainda na maior extremidade é vedado abandonar os patronos.

Depois de ter enviado expressos à cidade[40] dos Heduos, para lhe fazer constar, que por benefício seu haviam sido conservados os que por direito da guerra pudera ter morto, havendo concedido três horas da noite para repouso ao exército, move César arraiais para Gergovia. Quase ao meio do caminho, chegam-lhe cavaleiros da parte de Fabio, a expor "quão grande risco se havia corrido, sendo os arraiais atacados por forças superiores, que eram, quando cansados, revezadas por outras de fresco, e fatigavam com o assíduo trabalho aos nossos, que por amor da grande extensão dos arraiais tinham de permanecer constantemente na trincheira. Que muitos estavam feridos com a multidão de setas e de todo gênero de armas de arremesso; — e de grande utilidade para repelir este assalto haviam sido os tormentos[53] — Depois da retirada dos assaltantes, obstruia Fabio, deixando duas, as demais portas, punha parapeitos nas trincheiras, e se preparava para o seguinte dia e caso semelhante". Ao saber disto, por suma diligência dos soldados, chega César aos arraiais antes do nascer do sol.

Enquanto estas coisas se passam em Gergovia, os Heduos, ao chegaram-lhes os primeiros correios de Litavico, nenhum espaço se deixam à reflexão. A uns impele a avareza, a outros a iracúndia, e a temeridade, natural àquele gênero de homens, de terem uma leve audição por coisa averiguada. Despojam de seus bens aos cidadãos Romanos, trucidam-nos, arrastam-nos à escravidão. Auxilia Convictolitave o impulso dado, e enche a plebe de furor, afim que, manchado com o crime, se peje de voltar a bom conselho. Ao tribuno dos soldados, M. Aristio, que partia a reunir-se à sua legião, obrigam-no, sob palavra de lhe não fazerem mal, a sair da praça de Cabilono[54], e a praticar o mesmo, os que aí se achavam a negociar. A estes, acometendo-os incessantemente pelo caminho, os despojam de quanto levavam; aos que lhes resistem, os cercam dia e noite; mortos muitos de parte a parte, chamam maior multidão de homens armados.

Vindo-lhes, no entanto, a notícia de se acharem os seus soldados em poder de César, correm a ter com Aristio, demonstram que nada fizera por acordo comum da cidade[49]; ordenam uma devassa sobre os bens roubados; confiscam os bens de Litavíco e seus irmãos; mandam embaixadores a César para justificar-se. Fazem isto para reaver os seus; mas, eivados do crime, interessados na pilhagem dos bens roubados, pois a coisa respeitava a muitos, e impressionados com o temor do castigo, entram a forjar ocultamente projetos de guerra, e a solicitar as demais cidades com embaixadas. E posto bem o entendesse César, responde, todavia, aos embaixadores o mais brandamente que pode: "Que não ajuizava mal da cidade[9], nem diminuia coisa alguma de sua benevolência para com os Heduos, por causa da ignorância e leveza do vulgo." Contando com maior movimento na Gália, afim de que se não visse cercada por todas as cidades[9], traçava o mesmo na mente, o como se retiraria de Gergovia, e reuniria de novo todo o exército, sem que a retirada, proveniente do receio da sublevação, parecesse semelhante a fuga.

Quando nisto pensava, pareceu-lhe proporcionar-se ocasião de conseguir seu intento. Porquanto, indo aos arraiais menores examinar a obra, notou estar deserta uma colina, que era ocupada pelos inimigos, e onde dias antes, mal se podia enxergar a terra por causa da multidão de homens. Dos transfugas, que todos os dias afluiam a ele em grande número, inquire, admirado, a causa. Todos lhe dizem o que ele já sabia pelos exploradores, que a cumiada desta colina era quase lgual, mas selvosa e estreita, por onde havia entrada para outra parte da praça; que os Gauleses temiam grandemente por este lugar, nem duvidavam que, se viessem a perder também esta, ocupando já os Romanos a outra colina, ficariam quase circunvalados, e inteiramente privados de sair e forragear; que para fortificar este lugar os chamara Vercingetorix a todos.

Sabido isto, expede César para ali à meia noite muitos esquadrões de cavalaria: ordena-lhes que vaguem um pouco mais tumultuosamente por toda parte. Ao amanhecer, manda sair dos arraiais grande quantidade de bagagens e bestas, tirar a estas os albardões, e andarem nelas, à volta das colinas, os arrieiros com capacetes na cabeça, a guisa e simulação de cavaleiros. A estes junta poucos cavaleiros, que vaguem mais de espaço para ostentação. Manda-os com longos rodeios demandar os mesmos sítios. Via-se tudo da praça, donde havia vista para os arraiais, mas sem que em tamanha distância se pudesse distinguir o que era com certeza. Envia para a mesma colina uma legião, e quando um pouco avançada, a posta em lugar inferior oculta entre os bosques. Aumenta-se aos Gauleses a suspeita, e todas as suas tropas se passam para aquele ponto das fortificações. Quando vê vazios os arraiais inimigos, mandando cobrir as insígnias dos seus e ocultar as signas militares, passa César os soldados aos poucos, para que não fossem notados na praça, dos arraiais maiores para os menores, e determina aos lugar-tenentes, que prepusera a cada legião, o que importava fazer: amoesta-os, sobretudo, que conteham os soldados, para que, com o ardor do combate, ou com a esperança da presa, não avancem muito além; põe-lhes diante o dano que resulta da desigualdade do lugar, dano que só pode ser convertido em vantagem com a celeridade; que o caso era de ensejo, não de combate. Exposto isto, dá o sinal, e manda pela direita tentarem ao mesmo tempo os Heduos outra subida.

O muro da cidade desde a planície e começo da subida, distava em linha reta, sem quebrada alguma, mil e duzentos passos: aumentava, porém, esta distância o circuito, que se fazia, para suavizar o caminho. No meio da colina tinham os Gauleses feito ao longo, como a natureza do monte o permitia, um ante-muro de grandes pedras com seis pés de altura, para retardar o ímpeto dos nossos, e deixando vazio todo o espaço inferior, haviam com densíssimos arraiais enchido a parte superior da colina até o muro da praça. Os soldados, dado o sinal, avançam com rapidez para o ante-muro, transpõem-no e apoderam-se de três arraiais[55]. Tal foi a celeridade com que se tomaram estes arraiais, que Teutomato, rei dos Nitiobriges, surpreendido de súbito na tenda, descançando ao meio dia, como estava, com a parte superior do corpo nua, mal teve tempo de escapar-se com o cavalo ferido, das mãos dos soldados que saqueavam.

Tendo conseguido o fim que se propusera, mandou César tocar a retirar, e fixou as signas a décima legião com que estava, dirigindo-lhe a palavra. E os soldados das demais legiões, ainda que se não tivesse ouvido o som da trombeta, por se meter de permeio um vale assás grande, eram, todavia, segundo suas ordens, retidos pelos tribunos militares e lugar-tenentes. Mas arrastados com a esperança de uma rápida vitória, com a fuga dos inimigos, e a lembrança dos passados triunfos, nada reputando tão difícil que o seu esforço não pudesse superar, só deixaram de pôr termo à perseguição, quando deram de rosto com a muralha e as portas da praça. Levantado, então, clamor de todas as partes da cidade, os que estavam mais distantes, aterrados com o repentino do tumulto, e julgando o inimigo já dentro das portas, se lançaram para fora da praça. As mães de família atiravam do muro a roupa e a prata, e, proeminentes, com o peito nu, suplicavam aos Romanos, estendendo as mãos, que as poupassem, e não fizessem como em Avarico, onde, nem a sexo, nem a idade, haviam perdoado: algumas, descidas dos muros à mão, entregavam-se aos soldados. O centurião da oitava legião, L. Fabio, que constava ter dito nesse dia entre os seus achar-se estimulado pelos prêmios propostos em Avarico, e não haver de consentir que outro subisse primeiro, que ele, deparando tres da sua companhia, subiu ao muro erguido por eles: ajudando de cima pela sua vez a cada um dos três, os fez também subir ao muro.

XLVIII

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Entretanto, os que, como dissemos, se haviam reunido para outro lado da praça, afim de fortificar-lhe uma das avenidas, ouvido o clamor, e incitados depois pela repetida notícia de que a praça estava sendo ocupada pelos Romanos, expedindo diante a cavalaria, acodem para aí em grande número. Como ia chegando, postava-se cada um deles junto ao muro, e aumentava o número dos seus combatentes. Havendo-se reunido grande multidão dos mesmos, as mães de família, que pouco antes estendiam as mãos aos Romanos, entraram a implorar os seus, ao uso Gaulês, desgrenhando os cabelos, e mostrando-lhes os filhos. Era o jogo desigual para os Romanos, quer se atendesse ao lugar, quer ao número; fatigados ao mesmo tempo da carreira e da longa duração do combate, não resistiam facilmente aos que vinham de fresco e intactos.

Vendo ser o combate em lugar desvantajoso, crescerem sempre as tropas inimigas, e temendo pelos seus, mandou César dizer ao lugar-tenente, T. Sextio, a quem deixara de guarnição aos arraiais menores, que tirasse incontinenti as coortes dos arraiais, e as postasse na falda do monte, do lado direito dos inimigos, para, no caso de serem os nossos expedidos do posto, aterrar os inimigos, e fazer com que lhes não fossem livremente ao encalço. Tendo avançado um pouco com a legião ele mesmo, fez alto a esperar o êxito do combate.

Enquanto se combatia encarniçadamente e ao perto, confiados no lugar e no número os inimigos, no valor os nossos, são, pelo lado para os nossos aberto, avistados subitamente os Heduos, que César tinha, para fazer diversão, mandado pela direita por outra subida. Estes, pela semelhança das armas com as dos mais Gauleses, causaram grande terror aos nossos, e ainda que traziam os ombros direitos nus em sinal de que vinham como amigos, isso mesmo, todavia, julgavam os soldados ardil do inimigo para enganá-los. Pelo mesmo tempo o centurião L. Fábio, e os que com ele tinham subido ao muro, são cercados, mortos e precipitados dele abaixo. O centurião da mesma legião, M. Petronio, assoberbado pela multidão, quando tentava arrombar as portas, e desesperando da salvação, recebidas já muitas feridas, diz aos de sua companhia, que o haviam seguido: Já que não posso salvar-me juntamente convosco, atentarei ao menos em conservar a vida àqueles, a quem, induzido pelo amor da glória, conduzi ao perigo. Vós, dar-vos-ei a possibilidade, salvai-vos. Ao dizer isto, rompe por entre os inimigos, e havendo morto a dois, afastou os outros um pouco da porta. Aos seus que tentavam auxiliá-lo, torna-lhes: Debalde tentais socorrer a quem já o sangue e as forças abandonam. Porisso retirai-vos enquanto é tempo e reuni-vos à legião. Assim caiu pouco depois, combatendo, e salvou os seus.

Apertados por todos os lados, e havendo perdido quarenta e seis centuriões, foram os nossos expelidos do posto. Mas aos Gauleses que os perseguiam com ardor, retardou-os a décima legião, que se havia postado de reserva em lugar um pouco menos desvantajoso. A esta pelo seu turno apoiaram-na as coortes da legião décima terceira, que tiradas dos arraiais menores, haviam com T. Sextio ocupado uma altura. Logo que ganharam a planície, fizeram as legiões alto, voltando signas infensas contra o inimigo. Das raízes do monte reconduziu Vercingetorix os seus para dentro das fortificações. Custou-nos a jornada pouco menos de setecentos soldados.

No seguinte dia, reunido o exército, vituperou César a temeridade e a cobiça dos soldados, que se haviam eles mesmos arvorado em juizes de quanto deviam avançar ou operar, sem fazerem alto ao sinal dado, nem se deixarem reter pela voz dos tribunos militares e dos lugar-tenentes. Expôs quanto perigo podia conter em si uma posição desvantajosa, quanto enxergara ele em Avarico, quando surpreendendo os inimigos sem chefes, nem cavalaria, abrira mão de uma vitória certa, para, na luta pela desvantagem da posição, não sofrer perda por módica, que fosse. Quanto admirava a grandeza dalma dos mesmos, a quem, nem a fortificação dos arraiais, nem a altura do monte, nem o muro da praça, puderam retardar, tanto vituperava a indisciplina e arrogância, por haverem julgado prever melhor que o general, a vitória e o êxito das expedições que no soldado não desejava menos modéstia e continência, que esforço e grandeza dalma.

Feito este discurso, e animados no fim dele os soldados a não se deixarem abater com um revés, devido não à bravura dos inimigos, mas à desvantagem da posição, cogitando da retirada o mesmo que dantes, tirou as legiões dos arraiais, e as formou em ordem de batalha em lugar idôneo. Não descendo Vercingetorix à planície mais que das outras vezes, travado ligeiro combate eqüestre, e esse a nós favorável, reconduziu as legiões aos arraiais. Havendo praticado o mesmo no seguinte dia, e julgando ter feito assás para diminuir a jactância gaulesa, e confirmar os ânimos dos soldados, moveu arraiais para os Heduos[8]. E nem ainda então picando-lhe os inimigos a marcha, refaz ao terceiro dia a ponte no Elaver, e passa o exército.

Aí, dos Heduos Viridomaro e Eporedorix, que o procuram, sabe que Litavico partira com toda a sua cavalaria a sublevar os Heduos; que era mister partirem eles adiante para manter a cidade[49] na obediência. Posto que tinha por manifesta a perfídia dos Heduos, conhecida já em diversas ocasiões, e julgava que com a partida destes se apressaria a sublevação da cidade[9], entendeu contudo não dever retê-los, para, ou não parecer fazer-lhes ofensa, ou não dar alguma suspeita de temor. Quando se dispunham estes a partir, comemorou-lhes em breves termos todos os serviços por ele prestados aos Heduos: "Quais e quão humildes os encontrou, encerrados nas praças, desapossados de parte do seu território, privados de todas as suas tropas, sujeitos ao tributo, obrigados a dar reféns com sumo desar, e a que grau de prosperidade e grandeza os elevou, de modo que não só haviam recobrado o seu antigo estado, mas pareciam ter mais autoridade e influência, que em tempo nenhum." Feitas estas recomendações, os despediu de si.

Noviduno[56], praça dos Heduos, estava vantajosamente situado nas margens do Liger. Para ali passara César todos os reféns da Gália, o trigo, o dinheiro público e a mor parte das bagagens dos seus e do exército; para alí enviara grande número de cavalos, comprados na Itália e Espanha para esta guerra. Ao chegarem aí, e saberem da nova ordem de coisas na cidade[49], que Litavico havia sido pelos Heduos recebido em Bibracte[57], a praça de maior importância entre eles, que a ele se haviam reunido o magistrado Convictolitave e grande parte do senado, que se haviam enviado embaixadores a Vercingetorix para tratar paz e amizade, julgaram não dever perder uma tal oportunidade. Assim, mortos os guardas de Novioduno, e os que se achavam a negociar, partiram entre si o dinheiro e os cavalos; os reféns, curaram de mandá-los a Bibracte ao magistrado; a praça, que julgavam não poder conservar, incendiaram-na, afim de não servir para os Romanos: do trigo transportaram em barcos o que puderam levar logo, o mais lançaram-no ao rio ou incendiaram. Entraram os mesmos a reunir tropas das comarcas vizinhas, a dispor destacamentos e guardas nas margens do Liger, e a ostentar por toda parte cavalaria para inspirar temor, a ver se podiam embaraçar os Romanos de se abastecerem de víveres, ou se os obrigavam pela penúria a retirarem-se para a província[58]. E muito os confirmava nesta esperança o haver o Liger crescido com a fusão das neves a ponto de se não poder absolutamente vadear.

Informado disto, julgou César dever apressar-se, para, no caso de haver risco na construção de pontes sobre o rio, combater antes de ali se reunirem maiores tropas. Pois, para dirigir-se à província, mudando propósito, ninguém então julgava dever isso fazer-se por necessidade, tanto porque o vedavam o desar, a indignidade da retirada, o monte Cavena posto de permeio, e as dificuldades da marcha como, e mui principalmente, porque temia muito por Labieno dele separado, e pelas legiões, que com o mesmo mandara. Assim, forçando marchas dia e noite, chegou, contra a opinião de todos, ao Liger; deparado aí pelos de cavalo um vau oportuno para a necessidade, pois que apenas jogavam nele, livres da água, ombros e braços para suster as armas, disposta a cavalaria no sentido de quebrar a violência da corrente, e perturbados à primeira vista os inimigos, passou o exército a salvo; e havendo nos campos encontrado trigo e abundância de gado, com que saciou o exército, começou a marchar para os Senones[59].

Enquanto estas coisas se passam com César, Labieno, havendo deixado em Agedico, para guardar as bagagens, o suplemento há pouco chegado da Itália, marcha com quatro legiões para Lutecia[60]. Está esta praça dos Parisios assentada numa ilha do rio Sequana. Sabida dos inimigos a vinda deste, reuniram-se grandes tropas das vizinhas cidades[39]. É a suprema direção da guerra confiada ao Aulerco Camulogeno, que, suposto já mui alquebrado pela idade, foi designado para esta honra por sua consumada experiência militar. Notando este um pantanal[61], que terminava no Sequana, e embaraçava todo aquele lugar, aí se postou resolvido a tolher a passagem aos nossos.

Esforçava-se Labieno a princípio por fazer mantas de guerra, encher o pantanal com grades e terrado, e fazer um caminho seguro. Depois que viu ser coisa de imenso trabalho, saindo dos arraiais em silêncio na terceira vela da noite, pelo mesmo caminho que viera, chegou a Meloduno[62]. Está também esta praça dos Senones assentada numa ilha do Sequana, como pouco antes dissemos de Lutecia. Encontrando cerca de cinqüenta embarcações, que juntou com presteza duas a duas, e enchendo-as de soldados, aterrados com a novidade do caso os habitantes, grande parte dos quais haviam sido chamados para a guerra, assenhoream-se da praça sem resistência. Refeita uma ponte que os inimigos tinham cortado nos precedentes dias, passa o exército; e, seguindo o curso do rio, começa a marchar para Lutecia. Informados disto os inimigos pelos que tinham fugido de Meloduno, mandam incendiar Lutecia, e cortar-lhe as pontes. Partindo do pantanal, acampam os mesmos defronte de Lutecia em oposição aos arraiais de Labieno.

Já se dizia haver-se César retirado de diante de Gergovia, já corria a notícia da sublevação dos Heduos e da triunfante revolução na Gália, e afirmavam os Gauleses em suas práticas haver-se tolhido a César a passagem do Liger, e ter-se este visto, pela carência de provisões, obrigado a retirar-se para a província. Os Belovacos, porém, já dantes pouco fiéis, sabendo da sublevação dos Heduos, começaram a reunir tropas, e a preparar guerra abertamente. Em tamanha mudança de coisas, entendia Labieno dever tomar resolução mui diversa da que dantes concebera, nem já pensava em fazer conquistas e acossar o inimigo com combates, mas em reconduzir a salvo o exército a Agedico. Pois de uma parte o ameaçavam os Belovacos, cidade[40] de alta nomeada de valor, da outra Camulogeno com um exército organizado e disposto a combater; depois um grande rio separava as legiões das bagagens e sua guarnição. Lutando com tantas e tão subitas dificuldades, só para a sua resolução e valor apelava.

Convocado concelho pela tarde, exorta os seus a executarem diligente e cuidadosamente quanto ordenasse; as embarcações, que tinha trazido de Meloduno, as distribui a outros tantos cavaleiros Romanos; ordena-lhes que, depois de concluída a primeira vela da noite, avancem em silêncio até quatro mil passos rio abaixo, e aí o aguardem. As cinco coortes, que reputava menos firmes para combater, as deixa de guarda aos arraiais; as cinco restantes da mesma legião, as manda à meia noite partir rio acima com todas as bagagens, fazendo grande tumulto. Procura também cascos[63]; e os envia para a mesma parte, impelidos com grande rumor de remos. Pouco depois saindo em silêncio com três legiões, demanda o lugar, onde havia mandado aportar as embarcações.

Ao chegar-se ali, os exploradores dos inimigos, dispostos por toda a margem do rio, como estavam, são, por se haver levantado uma grande tempestade, mortos pelos nossos inopinadamente; o exército com a cavalaria, por diligência dos cavaleiros Romanos disso incumbidos, é passado com presteza. Ao romper dalva recebem os inimigos quase a um tempo avisos de que se tumultuava nos arraiais Romanos fora do costume, ia uma grande força rio acima, ouvia-se rumor de remos nessa direção, e eram um pouco abaixo transportados soldados em embarcações. Julgando, segundo as in formações, estarem as legiões passando em três lugares, e fugirem os Romanos perturbados com a sublevação dos Heduos, em três corpos dividiram também suas tropas. Por quanto, deixada guarnição aos arraiais fronteiros aos nossos, e enviado um pequeno corpo para o lado de Meloduno, que só devia avançar tanto quanto o fizessem as embarcações, todas as mais tropas, as conduziram contra Labieno.

Ao romper dalva não só estavam todos os nossos transportados, mas avistava-se o exército dos inimigos ordenado em batalha. Depois de haver exortado os soldados a se recordarem do antigo valor e das passadas vitórias, e a reputarem presente o mesmo César, sob cujo comando tinham tantas vezes vencido, dá Labieno o sinal do combate. No primeiro choque, da parte da ala direita, onde se havia postado a sétima legião, são os inimigos rotos e postos em fuga; da da esquerda, ocupada pela duodécima legião, se bem tivessem caído as primeiras fileiras inimigas, traspassadas pelos pilos, resistiam, todavia, as restantes fortíssimamente, nem dava alguém suspeita de fuga. Andava o mesmo caudilho dos inimigos, Camulogeno, entre os seus, e os animava. Incerto ainda o êxito da vitória, como constasse aos tribunos da sétima legião o que se passava na ala esquerda, apareceram com a legião pela retaguarda dos inimigos, e investiram com eles. Nem ainda assim abandonou algum o posto; antes foram todos cercados e mortos. Camulogeno teve a mesma fortuna dos outros. Os que tinham sido deixados em frente de Labieno[64], correram pelo seu turno em socorro dos seus, e ocuparam uma colina; mas não puderam suportar a investida de nossos soldados vitoriosos. Assim, misturados com os seus que fugiam, aqueles que não tiveram a proteção dos bosques e dos montes, foram mortos pela cavalaria, Terminado este negócio, volta Labieno a Agedico, onde haviam sido deixadas as bagagens de todo o exército; dali chega com todas as tropas a César[65].

Com a notícia da sublevação dos Heduos toma a guerra maiores proporções. Expedem-se embaixadas para todas as partes em circunferência; quanto valem em crédito, poder, dinheiro, tudo empregam para abalar as cidades[39] vizinhas; de posse dos reféns, que César havia depositado em poder deles, com o suplício desses aterram as que hesitam. Exigem os Heduos de Vercingetorix que venha ter com eles, e conferencie acerca dos meios de fazer a guerra. Conseguido isto, pretendem lhes seja conferido o comando supremo, e sendo-lhes contestada a pretensão, convoca-se um concelho geral da Gália para Bibracte. De todos os pontos afluem para ali os Gauleses em grande número. É o negócio cometido ao sufrágio universal. Todos a uma voz confirmam a Vercingetorix em generalíssimo. Não tomaram parte neste concelho os Remos, Lingones, e Treviros: aqueles dois primeiros povos, por serem amigos dos Romanos; os Treviros, por estarem longe, e verem-se apertados pelos Germanos, motivo pelo qual não entraram absolutamente na guerra e nem a Gauleses, nem a Romanos, enviaram auxílios. Grande é a dor dos Heduos por se verem decaídos da supremacia; queixam-se da mudança de fortuna e choram pela benevolência de César para com eles, mas, uma vez empreendida a guerra, não ousam, todavia, separar a sua casa da dos mais. Os mancebos de altos espíritos, Eporedorix e Viridomaro, com dificuldade obedecem a Vercingetorix.

Das demais cidades exige o mesmo reféns, e marca-lhes dia para os entregarem; ordena depois que se reuna prestesmente toda a cavalaria em número de dez mil homens: declara que se contentaria com a infantaria, que dantes tinha, nem havia de tentar a fortuna, ou pelejar em batalha campal, mas era-lhe coisa fácil, pois abundava em cavalaria, tolher aos romanos a faculdade de prover-se de trigo e forragem; dispusessem-se eles, Gauleses, a estragar os seus pães nos campos, e a incendiar as casas, sendo que com a perda da fazenda viam poder alcançar independência e liberdade. Assentado isto, dos Heduos e Segusiavos, que vizinham com a província, exige dez mil peões; junta-lhes oitocentos de cavalo. A estas tropas prepõe o irmão de Eporedorix, e ordena-lhe que faça guerra aos Alobroges. Por outra parte, aos Gabalos e vizinhos cantões dos Arvernos, envia-os contra os Helvios, da mesma forma aos Rutenos e Cadurcos, a assolarem as fronteiras[27] dos Volcas Arecomicos. Não deixa, entretanto, de, com secretos medianeiros e embaixadas, tentar os Alobroges, cujos ânimos considerava ainda não repousados da passada guerra[66]. Aos principais promete dinheiro; a cidade, porém, a soberania de toda a província.

Para ocorrer a todos estes casos havia os destacamentos tirados de vinte e duas coortes, com que da mesma província mandava o lugar-tenente L. César[67] acudir a toda parte. Tendo tomado a ofensiva contra os vizinhos, são os Helvios desbaratados, e, havendo com muitos outros perdido a C. Velerio Caburo Donotauro, filho de Caburo, principal da cidade, compelidos a encerrar-se dentro das praças fortes. Dispondo corpos de guarda ao longo do Rodano, defendem os Alobroges as suas fronteiras[27] mui diligente e galhardamente. Vendo ser-lhe o inimigo superior em cavalaria, e não poder ser ele em coisa alguma auxiliado da província e da Itália, por se acharem tomados todos os caminhos, manda César além Rim àquelas cidades[39] da Germania, que havia pacificado nos anos precedentes e delas tira cavaleiros, e peões armados a ligeira avezados a combater entre aqueles. Ao chegarem esses, notando que se serviam de cavalos pouco próprios, toma os cavalos dos tribunos dos soldados, e dos mais cavaleiros Romanos[68], e veteranos, e os distribui pelos Germanos.

Emquanto estas coisas se passam, reunem-se as tropas inimigas, vindas dos Arvernos[69], e a cavalaria, que a toda a Gália havia sido exigida. Reunida esta em grande número, como César marchasse para os Sequanos[70] pelas extremas fronteiras dos Lingones, veiu Vercingetorix em três acampamentos colocar-se a dez mil passos dos Romanos, e, convocados a concelho os prefeitos da cavalaria, dize-lhes ter chegado o momento da vitória: "Que os Romanos fugiam para a província, e se retiravam da Gália. Se isto lhes era assás para a liberdade no presente, não o era de certo para paz e sossego no futuro, porque haviam de voltar, reunidas maiores forças, e continuar a fazer-lhes guerra, Assim deviam atacá-los, quando embaraçados na marcha. Pois, se a infantaria se demorasse em socorrer aos seus, não havia de fazer a jornada se, o que lhe parecia mais provável, tratasse de salvar-se, abandonando as bagagens, havia de ficar privada do necessário e desacreditada. Quanto aos cavaleiros inimigos, não deviam eles mesmos duvidar, que nenhum se animaria a avançar, por pouco que fosse, além do grosso do seu exército: que, não só para atacarem com maior ânimo como para se aterrarem os inimigos, havia ele de ordenar todas as tropas em batalha diante dos arraiais." Clamam os cavaleiros, que convém fazer o juramento sacratíssimo de se abrigar debaixo de teto, nem ter acesso aos filhos, aos pais, e à mulher, aquele que não cavalgar duas vezes por entre o exército inimigo.

Aprovada a exigência e juramentados todos, no seguinte dia divide-se a cavalaria inimiga em três corpos, dos quais dois se mostram pelas nossas alas, e um pela nossa frente, afim de tolher-nos o passo. Ao saber disto, divide também César a sua cavalaria em três corpos, e a faz marchar contra o inimigo. Combate-se ao mesmo tempo em todas as partes. Faz alto o exército: recolhem-se as bagagens entre as legiões. Se em alguma parte os nossos pareciam ceder, ou estar sendo vivamente apertados, para lá mandava César inclinar as signas, e avançar a infantaria; o que não só retardava os inimigos no perseguirem, como animava também os nossos com a esperança de socorro. Finalmente os Germanos, havendo pela direita ganhado uma altura, expelem os inimigos do posto, perseguem-nos na fuga até o rio[71], junto ao qual se havia Vercingetorix postado com as tropas de pé, e matam a muitos. Como o notassem põem-se em fuga os demais, receiando ser cercados. Faz-se em todos os lugares grande carnificina. Três Heduos dos mais nobres são trazidos a César prisioneiros: Coto, prefeito da cavalaria, que nos próximos comícios tivera a pendência com Convictolitave; Cavarilo, que depois da sublevação de Litavico comandava as tropas de pé; e Eporedorix[72], que, antes da vinda de César fora general dos Heduos na guerra com os Sequanos.

LXVIII

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Afugentada toda a cavalaria gaulesa, recolheu Vercingetorix as suas tropas pela ordem em que as postara em frente dos arraiais, e começou logo a marchar para Alesia[73], praça dos Mandubios[74], ordenando que o seguissem in continenti com as bagagens tiradas dos arraiais. Enviando sob a guarda de duas legiões as suas bagagens para uma colina, o perseguiu César enquanto durou o dia, e, mortos cerca de três mil da retaguarda dos inimigos, assentou no segundo arraiais junto de Alesia. Examinada a situação da praça e aterrados os inimigos por haver sido derrotada a sua cavalaria, força em que mais confiavam, exortou os soldados ao trabalho, e começou as suas linhas de circunvalação.

Estava a praça de Alesia em posição mui elevada na cumiada de uma montanha, cujas raízes eram de dois lados banhadas por dois rios[75]. Diante da praça estendia-se uma planície de cerca de três mil passos de comprimento: as mais partes eram circuladas por colinas de igual altura com medíocres intervalos entre si. Junto à muralha, toda a parte que olhava para o sol nascente, estava cheia de tropas gaulesas, protegidas por um fosso e um muro de pedra ensossa de seis pés de altura. A circunvalação, que começavam a fazer os Romanos, era de onze mil passos em circuito. Os arraiais achavam-se assentados em lugares oportunos, e havia neles vinte e três redutos, onde de dia se postavam guardas, para evitar qualquer súbita sortida dos inimigos, e de noite sentinelas e fortes guarnições.

Começada a obra de circunvalação, deu-se um combate de cavalaria naquela planície, que, interposta as colinas, tinha, como dissemos, três mil passos de extensão. Combate-se de ambas as partes mui esforçadamente. Achando-se os nossos em aperto, manda-lhes César em auxílio os Germanos, e forma as legiões em batalha diante dos arraiais, para que se não desse alguma súbita investida da infantaria inimiga. Visto o auxílio das legiões, aumenta-se o ânimo aos nossos; postos em fuga, embaraçam-se os inimigos por sua mesma multidão, e amontoam nas estreitas portas deixadas. Perseguem-nos os Germanos com ardor até os entrincheiramentos. Faz-se grande carnificina: tentam até alguns, deixando os cavalos, transpor o fosso e galgar o muro de pedra ensossa. Manda César avançar um pouco as legiões, que formara diante do entrincheiramento. Não menos se perturbam os Gauleses, que estavam dentro das trincheiras: bradam armas, julgando se marchava contra eles in continenti; lançam-se alguns dentro da praça aterrados. Manda Vercingetorix fechar as portas desta, para não ficarem desertos os arraiais, Mortos muitos dos inimigos, e tomados não poucos cavalos, retiram-se os Germanos.

Antes que fosse pelos Romanos concluida a circunvalação, toma Vercingetorix a resolução de despedir durante a noite a toda a sua cavalaria. Aos seus que partiam, recomenda-lhes: "Que vão cada qual para as suas cidades[39], e reunam para esta guerra a todos os que estiverem em idade de pegar em armas. Põe-lhes diante dos olhos todos os serviços, que lhes havia prestado, e conjura-os a atenderem à sua segurança, e a não abandoná-lo aos inimigos, para sofrer torturas, a ele benemérito da liberdade comum; pois, se fossem negligentes em socorrê-lo, haviam de com ele perecer juntamente oitenta mil homens de flor. Que dado balanço nos bastimentos, mal tinha trigo para trinta dias, mas — esse podia aturar mais algum tempo poupando-se". Com tais recomendações, despede na segunda vela da noite[76] a sua cavalaria em silêncio pela parte, a que não haviam ainda chegado às linhas de circunvalação. Ordena com pena de morte aos que desobedecerem, que lhe seja trazido todo o trigo que havia; o gado, de que os Mandubios tinham recolhido grande quantidade, o distribue a cada um parcamente, e por intervalos; a todas as tropas, que tinha em frente da praça, fá-las recolher para dentro dela. Tomadas estas providências, dispõe-se a esperar as tropas auxiliares da Gália, e a sustentar a guerra.

Ao fato de tudo pelos transfugas e cativos, assentou César nestes gêneros de fortificação. Abriu um fosso de vinte pés de largura, cujos lados eram cortados a pique, e cuja profundidade igualava a largura. Quatrocentos passos por detrás deste colocou todas as mais fortificações, isto, para que (pois via-se obrigado a abranger tamanho espaço, que não podia facilmente guarnecer com soldados), de improviso ou à noite não voasse alguma multidão de inimigos contra os entrincheiramentos, ou não pudessem de dia arremessar dardos contra os nossos ocupados no trabalho. No espaço que ficava de permeio, abriu outros dois fossos de quinze passos de largura, e profundidade igual, dos quais o interior em paragens campestres e baixas, encheu com água derivada do rio. Por detrás destes construiu um terrado e trincheira de doze pés. A esta revestiu de parapeito e ameias, ficando nas junturas do parapeito com o terrado eminentes grandes cervos[77] para dificultar a subida aos inimigos, e flanqueou toda a obra de torres, que distavam oitenta pés, uma das outras.

LXXIII

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Tendo a um tempo de cortarem madeira, de proverem-se de trigo e fazerem tantas fortificações, necessário era que as nossas tropas ficassem reduzidas, por amor das que com semelhante destino partiam para longe dos arraiais. Ensaiavam, entretanto, os Gauleses paralisar as nossas obras, fazendo sortidas em muito vigor por todas as portas da praça. Porisso entendeu César dever acrescentar às fortificações o que fosse necessário, para que pudessem ser defendidas por menor número de soldados. Assim; cortavam-se troncos de árvores com ramos mui firmes, que descascados se aguçavam em ponta, e faziam-se covas contínuas de cinco pés de profundidade. Nestas, lançavam-se aqueles estrepes, que se prendiam pela parte de baixo, para que não pudessem ser arrancados, e ficavam eminentes pela parte dos ramos. Havia deles cinco ordens conjuntas e entrelaçadas, nas quais quem entrava, achava-se cravado por agudíssimas puas. Chamavam-lhes cepo. Diante destes, em ordens obliquamente dispostas em quincunce, faziam-se outras covas de três pés de profundidade, e um pouco mais estreitas para baixo. Nestas se lançavam estrepes roliços da grossura da coxas com agudas pontas endurecidas ao fogo, os quais não saiam da terra mais de quatro dedos, e para cuja firmeza e estabilidade calcava-se um pé de terra em cada cova, sendo o resto para ocultar a cilada, coberto de vimes e mato. Havia deste gênero oito ordens, que distavam três pés umas das outras. Chamavam-lhes lírios pela semelhança com a flor. Diante destes escondiam-se enterrados, e espalhados por toda parte com pequenos intervalos, estrepes de um pé com pontas de ferro, aos quais chamavam aguilhõe.

Concluído isto, acompanhando as paragens as mais planas segundo a natureza do lugar, e abrangendo um espaço de quatorze mil passos, fez em sentido oposto iguais fortificações do mesmo gênero contra o inimigo externo, afim que nem ainda por grande multidão, se acaso sobreviesse, pudessem ser cercadas as guarnições dos entrincheiramentos; e para que os nossos não se vejam obrigados a sair dos arraiais, ordena que todos se provejam de trigo e forragem para trinta dias.

Enquanto estas coisas se passam em Alesia, os Gauleses, convocados a concelho os principais, resolvem não chamar a todos os que pudessem pegar em armas, como queria Vercingetorix, was exigir de cada cidade um certo número de homens; pois receiavam na confusão de tanta multidão, não poder disciplinar os seus, nem distingui-los dos outros, nem prover a todos de vitualhas. Dos Heduos e seus clientes Segusiavos, Ambluaretes, Aulercos Branovices, Branovios, exigem trinta e cinco mil homens; igual número dos Arvernos conjuntamente com os Eleuteros Cadurcos, Gabalos, Velavios, que estavam na sua dependência deles; dos Sequanos, Senones, Bituriges, Santonos, Rutenos, Carnutes, mil; dos Belovacos, dez mil; outros tantos, dos Lemovices; oito mil, dos Pictões, Turões, Parisios e Helvecios; dos Senones, Ambianos, Mediomatricos, Petrocorios, Nervios, Morinos, Nitiobriges, cinco mil; dos Aulercos Cenomanos, outros tantos; dos Atrebates, quatro mil; dos Veliocassos, Lexovios e Aulercos Euburovices, três mil; outros três dos Rauracos e Boios; trinta mil, de todas as cidades[39] que vizinham com o Oceano e sóem chamar Armoricas, em cujo número se compreendem os Curiosolites, Redones, Ambibarios, Caletes, Osismos, Lemovices, Unelos. Destes os Belocavos não preencheram o número exigido, dizendo que haviam de fazer a guerra aos Romanos em seu nome, e a seu arbítrio, sem obedecer a ordem de quem quer que fosse; sendo, porém, rogados por Comio, seu hóspede, enviaram dois mil homens.

Da fiel e útil coadjuvação deste Comio se tinha César, como acima ficou demonstrado, servido os precedentes anos na Britania; por tão assinalado serviço lhe havia isentado a cidade[45] de tributo, restituindo-a em seus direitos, e a mesma, sujeitado os Morinos. Mas tão geral era a conspiração da Gália para reaver a liberdade, e recuperar antiga glória das armas, que nem pelos benefícios, nem pela recordação da amizade, se demoviam os Gauleses; e todos concorriam para esta guerra com empenho e forças. Reunidos oito mil de cavalo, e cerca de duzentos e cinqüenta mil peões, nas fronteiras[27] dos Heduos se fazia alardo destas tropas, verificava-se seu número, davam-se-lhes chefes. Ao Artrebate Comio, aos Heduos Vinidomaro e Eporedorix, ao Arverno Varcaci velauno, primo de Vercingetorix é conferido o comando supremo. Juntam-se a estes os escolhidos das cidades[39], com cujo conselho devia a guerra ser feita. Partem todos para Alesia cheios de ardor e confiança, nem havia um só dentre eles, o qual julgasse poder suportar-se sequer o aspecto de tamanha multidão, principalmente em um combate duplo, pelejando-se da praça por sortida, e apresentando-se de fora tantas tropas de infantaria e cavalaria.

LXXVII

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Mas os que se achavam sitiados em Alesia, passado o dia em que aguardavam os socorros dos seus, consumido todo o trigo, ignorando o que se passava nos Heduos[8], deliberavam em concelho sobre a resolução que deviam tomar. E emitidos vários pareceres, dos quais uns propendiam para a rendição, outros, para a sortida da praça, enquanto havia forças para tentá-la, não devo passar em siléncio o discurso de Critognato, por causa da singular e nefanda crueldade do orador. Este, descendente de família mui preclara entre os Arvernos, e homem de grande autoridade, falou nesta substância: "Nada direi do parecer daqueles que dão o nome de rendição à mais vergonhosa escravidão, pois em minha opinião nem devem os tais ser considerados cidadãos, nem ter assento neste concelho. Respondo àqueles que opinam pela sortida, e em cujo alvitre parece, no sentir de todos, residir a memória do antigo valor. Fraqueza é, e não coragem, o não poder suportar por algum tempo a penúria. Mais depressa se encontra quem se ofereça à morte, que quem sofra a dor com paciência. Eu aprovaria certamente este parecer (tanto em mim pode o pundonor), se visse que nenhuma outra perda acarretava, senão a da nossa vida: mas no tornar uma resolução, atentemos em toda a Gália, que convocamos em nosso auxílio, Que ânimo julgais que teriam nossos parentes e consangüineos, se, mortos estes oitenta mil homens num lugar, se vissem obrigados a combater quase sobre os seus mesmos cadáveres? Não priveis dos vosso auxílio aqueles, que por vossa causa desprezaram o seu perigo, nem vades por vossa estultícia, temeridade ou fraqueza, perder a toda Gália, e submetê-la à escravidão. Porque não vieram no dia aprazado, duvidais por ventura da fidelidade e constância deles? Como assim? Julgais que os Romanos se empregam quotidianamente naquelas fortificações ulteriores para mostrar ânimo? Se fechada toda a entrada não podeis ser certificados por correios que a vinda dos vossos se aproxima, sabei-o pelo testemunho dos mesmos, que sobresaltados com o temor dela, nem dia nem noite interrompem o trabalho da fortificação. Qual é, pois, o conselho que dou? Fazer o mesmo que fizeram nossos antepassados em guerra de nenhuma sorte igual, a dos Cimbros e Teutões, na qual compelidos para as praças e coagidos por igual penúria, sustentaram a vida com os corpos dos que pela idade pareciam inúteis para a guerra, e não se renderam aos inimigos. Se disto não tivéssemos exemplo, julgaria eu, todavia, mui belo institui-lo e transmiti-lo aos vindouros, por amor da liberdade. E que houve jamais semelhante àquela guerra? Assolada a Gália, e ocasionada grande calamidade, retiraram-se por fim os Cimbros de nossas fronteiras, e demandaram outras terras; direitos, leis, território, liberdade, tudo isso nos deixaram. Mas os Romanos que outra coisa exigem, ou querem, a não se fazer assento, levados da inveja, nas terras e cidades de todos os que depararam nobilitados e potentes pelas armas, impondo-lhes o jugo de uma eterna escravidão? Nunca fizeram a guerra com outro presuposto. Se ignorais o que vai pelas nações longínqüas, atentai na vizinha Gália, que reduzida a província, com a jurisdição e as leis mudadas, e sujeita às segures[78], vê-se opressa com perpétua escravidão,"

LXXVIII

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Expostos os pareceres, resolvem que os que, por doentes ou em razão da idade, eram inúteis para a guerra, se retirem da praça, e exponham antes a tudo, que a sofrer as conseqüências do parecer do Critognato: que, se o caso o requeresse, e os auxílios se demorassem, devia-se, todavia, lançar antes mão daquele alvitre, que renderem-se e sujeitarem-se a uma paz ignominiosa. Os Mandubios, que os haviam recebido na praça são obrigados a sair com mulheres e filhos. Aproximando-se de nossas fortificações, pediam estes em lágrimas com todo gênero de súplicas, que os socorêssemos com alimento, recebendo-os por escravos. Mas César, dispostas guardas nas trincheiras, vedava que fossem recebidos.

Entretanto, Comio e os mais chefes, a quem fora conferido o comando supremo, chegam com todas as tropas a Alesia, e ocupando uma colina exterior, acampam a não mais de mil passos de nossas fortificações. No dia seguinte, tirando a cavalaria dos arraiais, enchem toda aquela planície, que dissemos estender-se três mil passos em comprimento, e nas alturas pastam as tropas de pé um pouco encobertas deste lugar. Havia vista de Alesia para o campo. Correm, avistadas estas tropas auxiliares; congratulam-se entre si; excitam-se à alegria os ânimos de todos. Tiram pois as tropas da praça, e postam-nas junto aos muros; cobrem com grades o próximo fosso, e enchem-no com fachina; preparam-se para a sortida, e todas as ocorrências.

Disposto todo o exército a uma e outra parte das fortificações, para, quando fosse necessário, ocupar cada um e conhecer o seu lugar, manda César sair dos arraiais a cavalaria, e travar combate. Havia de todos os arraiais, que de quaisquer partes ocupavam alturas, vista para o campo, e todos os soldados esperavam atentos o êxito da batalha. Tinham os Gauleses intermeiado entre os de cavalo raros arqueiros e soldados armados à ligeira, que socorriam aos seus que cediam, e sustentavam o ímpeto dos nossos cavaleiros. Muitos destes se retiravam feridos da peleja. Acreditando irem os seus de cima, e vendo serem os nossos assoberbados pela multidão, de todas as partes os Gauleses, não só os da praça, como os que tinham vindo em auxílio deles, não cessavam de animar os seus com clamor e ululato. Como a ação se passava à vista dos dois campos, nenhum ato de covardia ou de bravura podia ficar oculto; eram uns e outros estimulados ao valor, já pelo desejo de glória, já pelo temor da ignomínia. Combatendo-se quase desde o meio dia até o pôr do sol com duvidoso resultado, os Germanos, por uma parte, lançaram-se em esquadrões cerrados sobre os inimigos, e os reçhaçaram; postos estes em fuga, são os arqueiros envolvidos, e mortos. Da mesma forma os nossos, pelas demais partes, os perseguiram até os arraiais e não lhes deram tempo de tornar a reunir-se. Mas os que tinham saído de Alesia, quase perdida a esperança da vitória, retiraram-se tristes para dentro da praça.

Metido de permeio um dia, e aprestado neste espaço grande número de grades, escadas, harpeos, saem os Gauleses dos arraiais em silêncio à meia noite e aproximam-se de nossas fortificações que olhavam para o campo. Levantado de repente clamor, pelo qual os que estavam sitiados na praça, soubessem da aproximação deles, entram a lançar grades nos fossos, a arredar os nossos das trincheiras com fundas, setas, pedras, a dispor tudo o mais que respeitar a um assalto. Ao mesmo tempo, ouvido o clamor, dá Vercingetorix sinal aos seus com a trombeta, e fá-los sair da praça. Como nos precedentes dias, tomam os nossos nas fortificações o lugar que a cada um havia sido assinado: com fundas, seixos de librar, e azagaias, que nelas tinham diposto, e com pelotas aterram os Gauleses. Tirada a vista pelas trevas, recebem-se muitas feridas de parte a parte. Muitos arremessões são arrojados pelos tormentos. Mas os lugar-tenentes M.Antonio[79], e C. Trebonio, a quem coubera a defesa destes postos, quando entendiam estarem os nossos sendo apertados em algum ponto, dos fortes mais distantes tiravam destacamentos, que lhes enviavam em socorro.

LXXXII

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Enquanto os Gauleses estavam mais longe das fortificações, causavam-nos mais dano com a multidão de projétis; depois que chegaram para mais perto, ou sem saber nos estrepes se feriam, ou caindo nas covas, se espetavam, ou atravessados de pilos murais lançados da trincheira e torres, pereciam. Depois de recebidas de toda a parte muitas feridas, sem tomarem ponto algum fortificado, ao aproximar-se o dia, temendo que, por sortida dos arraiais superiores, os atacássemos pelo flanco aberto, retiraram-se para os seus. Mas, os de dentro da praça, enquanto tiravam para fora o que Vercingetorix tinha aprestado para a sortida, cegam os primeiros fossos e nisso se demoram, antes que chegassem às nossas fortificações, reconheceram haverem-se retirado os seus Assim ‘voltam para a praça, sem levar a sortida a efeito.

LXXXIII

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Repelidos duas vezes com grandes perdas, deliberam os Gauleses sobre o que lhes convém fazer; chamam os conhecedores dos lugares: deles sabem qual a situação e fortificação dos arraiais superiores. Havia para o setentrião uma colina, que pela grandeza do circuito não tinham os nossos podido compreender na circunvalação: viram-se pois obrigados a fazer arraiais em lugar quase desvantajoso e docemente inclinado. A estes ocupavam os lugar-tenentes C. Antistio Regino e C. Caninio Rebilo com duas legiões. Conhecidos os sítios pelos exploradores, os generais inimigos escolhem entre todas as tropas sessenta mil homens daquelas cidades[39], que tinham a maior nomeada de bravura: combinam entre si secretamente o que, e como convenha obrar; designam para o ataque a hora do meio dia. A estas tropa prepõem o Arverno Verassivelauno, um dos quatro generais, parente de Vercingetorix. Saindo dos arraiais na primeira vela da noite, e concluindo o caminho quase ao nascer do dia, ocultou-se ele por trás da montanha e ordenou aos soldados que repousassem do trabalho noturno. Como pareceu apropinqüar-se meio dia, avançou, para aqueles arraiais que acima dissemos, e entraram ao mesmo tempo, a cavalaria a aproximar-se de nossas fortificações que olhavam para o campo, e as mais tropas a mostrar-se em frente dos arraiais.

LXXXIV

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Ao ver da cidadela de Alesia os seus, sai Vërcingetorix da praça, levando dos arraiais as longas hasteas aguçadas, as galerias cobertas, as foices e o mais que tinha preparado para a sortida. Combate-se ao mesmo tempo em todos os lugares, e tenta-se tudo: se alguma parte parece menos forte, contra ela se corre. O exército romano, distribuído por tantas fortificações, não acode com facilidade a muitos mais pontos. Aterra, sobremodo, aos nossos o clamor que no combate se lhes levantou pela retaguarda, porque vêm a sua segurança posta na bravura alheia, sendo que o perigo em distância se nos fígura ordinariamente maior.

De um lugar sobranceiro que ocupa, nota César o que se passa em cada ponto; envia socorro aos que vê em aperto. A nenhum dos dois exércitos escapa ser esta a ocasião em que deve empregar maior esforço para vencer: aos Gauleses, se não escalarem as nossas fortificações, nenhuma esperança lhes resta de salvação; aos Romanos, se bem as defenderem contra a escalada, se depara o termo de todos os trabalhos. As fortificações superiores, para onde dissemos haver sido enviado Vercassivelauno, são as que se acham em maior risco. A desigual sumidade de colina, em cuja encosta se acham assentadas, é para elas ameaçador padrasto. Uns arojam projétis de cima, outros acercam-se das trincheiras, formando testudes, revezam-se os fatigados por assaltantes de fresco. O terrado que todos lançam sobre o espaço fortificado, não só proporciona subida aos Gauleses, como inutiliza as ciladas que haviam os Romanos ocultado na terra; aos nossos, nem armas, nem forças, são já suficientes.

LXXXVI

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Ciente disto, manda César a Labieno com seis coortes em socorro aos que se acham em aperto, ordenando-lhe que, se não puder sustentar o assalto, faça uma sortida com as coortes, mas isto em caso extremo. Vai ter com os demais, e exorta-os a não sucumbirem ao trabalho, demonstrando-lhes que deste dia e hora, está pendente o fruto de todas as precedentes batalhas. Os da praça, desesperando de forçar as posições, que olhavam para o campo, por causa da grandeza das fortificações, tentam escalar as das alturas: para aí transportam quanto haviam preparado. Com uma nuvem de dardos desviam aos que combatiam das torres, cegam os fossos com terrados e grades, cortam a trincheira e o parapeito com foices.

LXXXVII

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Manda para ali primeiramente ao adolescente Bruto com seis coortes, depois ao lugar-tenente C. Fabio com outras sete, por fim, tornando-se a peleja mais acesa, conduz em pessoa tropas frescas de reforço. Restabelecida a peleja, e rechassados os inimigos, dirige-se para onde enviara a Labieno; tira quatro coortes do próximo forte; ordena a parte da cavalaria que o siga, a parte que torneie as fortificações exteriores, e acometa o inimigo pela retaguarda. Depois que nem baluartes, nem fossos, podiam resistir à força dos inimigos, Labieno reune quarenta coortes, que o acaso lhe ia deparando dos fortes mais vizinhos, e comunica a César por expressos o que entende deve fazer-se. Dá-se César pressa, afim de assistir à batalha.

LXXXVIII

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Conhecida a sua vinda pela cor do vestido, que costumava usar nas batalhas por insígnia[80] e avistados os esquadrões de cavalaria e as coortes, que mandara segui-lo, porquanto das alturas se devassavam os lugares declives, por onde vinha, travam os nossos a batalha. O clamor que se levanta de ambas as partes, é seguido de outro levantado das trincheiras e de todos os fortes. Omitidos os pilos, atacam os nossos à espada. De repente, avista-se a cavalaria pela retaguarda; vêm chegando outras coortes. Os inimigos voltam costas; aos que fogem sai ao encontro a cavalaria. Faz-se grande carnificina. Sedulio, caudilho e principal dos Lemovices, é morto; o Arverno Vercassivelauno é tomado vivo na fuga; setenta e quatro signas militares são apresentadas a César; de tamanho número poucos dos inimigos se recolhem aos arraiais sem feridas. Os da praça, vendo a mortandade e fuga dos seus, retiram as tropas de junto das nossas fortificações, sem mais esperança de salvação. Faz-se logo, ouvido isto, fuga dos arraiais Gauleses. E se os soldados não estivessem cansados dos freqüentes reforços e do trabalho de todo o dia todas as tropas inimigas poderiam ter sido destruídas. A cavalaria enviada à meia noite alcança a retaguarda dos inimigos; grande número é aprisionado e morto; os que restam da fuga retiram-se para suas cidades[39].

LXXXIX

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No seguinte dia Vercingetorix, convocado concelho dos seus, demonstra-lhes que havia empreendido a guerra, não por interesse seu particular, mas pela liberdade comum, e pois que se tinha de ceder à fortuna, se lhes oferecia para uma das duas coisas, ou para com a sua morte satisfazerem aos Romanos, ou para o entregarem vivo aos mesmos, como melhor entendessem. São a tal respeito mandados embaixadores a César, que ordena sejam entregues as armas e trazidos à sua presença os chefes, Estabeleceu o mesmo o seu tribunal num forte em frente dos arraiais: são para ali levados os chefes; rende-se-lhe Vercingetorix[81], são depostas as armas. Reservando os Heduos e os Arvernos, a ver se por eles recobrava as respectivas cidades, o restante dos cativos o distribuiu por cabeça a cada soldado a título de despojo.

Concluído isto, parte para os Heduos[82]; recebe a submissão da cidade. Mandados para ali, os embaixadores dos Arvernos, prometem fazer quanto lhes ordenasse. Exige-lhes grande número de reféns. Envia as legiões a quartéis de inverno. Restitui aos Heduos e aos Arvernos cerca de vinte mil cativos. A T. Labieno com duas legiões e a cavalaria manda-o partir para os Sequanos[83], dando-lhe por adjunto a M. Sempronio Rutilo. Ao lugar-tenente C. Fabio e a L. Minucio Basilo com outras duas legiões coloca-os nos Remos[84], para que não venham estes a sofrer alguma invasão dos Belovacos comarcãos seus. A C. Antistio Regino, a T. Sextio, a C. Caninio Rebilo, cada um com uma legião, envia-os o primeiro para os Ambilaretos, o segundo para os Bituriges, o terceiro para os Rutenos. A Q. Tulio Cicero e P. Sulpicio, coloca-os em Cabilão e Matiscão entre os Heduos junto ao Arar, afim de que entendam no abastecimento de víveres. Resolve o mesmo invernar em Bibracte. Recebidas estas comunicações de César, fazem-se súplicas públicas em Roma por vinte dias.

  1. Nos momentos de crise o cônsul pronunciava a fórmula: Qui vult salvam rempublicam, me seguatur. Então todos se alistavam sem prestar o juramento individual, sacramentum, e juravam conjuntamente, conjurabant: foi o que embaraçou a César de fazer alistamento na Itália.
  2. Hoje Orleans na margem direita do Loire, chamada Aurelianum pelo imperador Aureliano.
  3. Cidade por nações, povos.
  4. Fronteiras por território, país.
  5. Cidade por estado, república.
  6. Esta cidade estava situada a uma légua de Clermont numa colina, que tem ainda o nome de Gergole.
  7. Cidades por nações.
  8. 8,0 8,1 8,2 O povo pelo país.
  9. 9,0 9,1 9,2 9,3 9,4 Como acima.
  10. O Loire.
  11. Povo que ocupava o Agenois.
  12. Povo que ocupava o Cantal.
  13. A parte dos Rutenos que, no tempo de César, se achava nos limites da província romana, se chamava Rutenos Provinciais.
  14. Povo que ocupava o Baixo Languedoc.
  15. Povo que ocupava o departamento de Ardreche.
  16. Povos da Aquitania, que ocupavam um território montanhoso e vizinhavam com os Arvernos.
  17. As Cevenas.
  18. 18,0 18,1 18,2 18,3 Fronteiras por território.
  19. Os povos pelos respectivos países.
  20. Cidade do Delfinado.
  21. Povo da Luqdunense, ao N. dos Heduos, e ao O. dos Sequanos. A Lugdunense era uma das quatro grandes divisões da Gália entre a Bélgica e a Aquitania.
  22. O povo, pelo país.
  23. Julga-se ser Moulins no Bourbonais.
  24. Seus.
  25. Julga-se ser Beaume.
  26. Para Gorgobina dos Boios.
  27. 27,0 27,1 27,2 27,3 27,4 Fronteiras, por território.
  28. De Gorgobina.
  29. Nonan-le Fuzilier a doze léguas de Orleans; e segundo outros Neuvi-sur-Barrajon.
  30. Hoje Bourges.
  31. Cidade no sentido de nação, república.
  32. Não estava ainda terminado o inverno.
  33. Cidades por nações, países.
  34. Como acima, ou pela nação dos Bituriges.
  35. Pelo rio Auron e por quatro pequenas ribeiras, que pelo dormente das águas formam um pantanal.
  36. Os Heduos.
  37. Os Boios.
  38. Cidade, por nações.
  39. 39,00 39,01 39,02 39,03 39,04 39,05 39,06 39,07 39,08 39,09 39,10 Cidades, por nações.
  40. 40,0 40,1 40,2 40,3 40,4 40,5 Cidade, por nação.
  41. Pouco antes da meia noite. Os romanos dividiam a noite em quatro velas, ou quartos, de três horas cada uma.
  42. O terrado era formado não só de terra mas de armação de madeira.
  43. O escorpião era uma espécie de besta mui forte, ou de trabuco, que servia para lançar enormes dardos, ou grossas pedras.
  44. Cidades, como acima.
  45. 45,0 45,1 45,2 45,3 45,4 45,5 Cidade, como acima.
  46. Clientelas, por clientes, criaturas, apaniguados. César empregou aqui o termo abstrato pelo concreto.
  47. Os Heduos pelo respectivo país.
  48. Hoje Decizes numa ilha do Loire.
  49. 49,0 49,1 49,2 49,3 49,4 Cidade por nação.
  50. O rio Alier.
  51. Cinco acampamentos, ou cinco arraiais, equivalem a cinco dias de marcha, porque os romanos fortificavam arraiais todas as vezes que faziam alto.
  52. Contrair arraiais, isto é, proporcioná-los ao pequeno número de defensores que ficavam, circunscrevendo-os.
  53. Máquinas para arremessar grandes pedras.
  54. Hoje Chalons-sur-Marne.
  55. Os Gauleses formavam tantos arraiais, ou acampamentos, quantas eram as cidades, ou nações, de que se compunha o exército de Vercingetorix.
  56. Hoje Nevers.
  57. Hoje Autun.
  58. A província romana.
  59. Os Senones, pelo país que ocupavam.
  60. Hoje Paris, ou antes a parte desta grande capital, que se chama La Cité.
  61. O bairro do Marais é ainda hoje uma prova da existência desse grande pantanal.
  62. Hoje Melun.
  63. Cascos, termo por que designam no Maranhão uma pequena e velocíssima embarcação de remos, e que me parece traduzir bem o linter dos latinos, que era uma embarcação feita de uma só árvore cavada, assim como o casco.
  64. Em frente dc Labieno, isto é dos arraiais de Labieno.
  65. Chega a César, isto é, aos arraiais de César.
  66. Da guerra em que haviam sido submetidos pelo pretor romano C. Pomptinio.
  67. Era parente do grande César.
  68. Por cavaleiros romanos designa aqui Cesàr os que tinham a dignidade de cavaleiros, ou pertenciam à ordem eqüestre entre os romanos, e não a cavalaria romana, oposta à infantaria.
  69. Os Arvernos, estão aqui pelo país que habitavam.
  70. Os Sequanos, estão tomados no mesmo sentido, ou pela Sequania.
  71. O Arar, ou Saône.
  72. Trata-se aqui de um Eporedorix diverso do primeiro, de que falou César, talvez pai ou ávô dess-outro.
  73. Hoje Alise.
  74. Povo de Auxois.
  75. Eram chamados então o Lustosa e o Ozera, cujos nomes foram depois convertidos nos de Losa e Lozerain.
  76. Antes da meia noite, pois os Romanos dividiam a noite em quatro velas ou vigílias, a exemplo do que os nossos antepassados a dividiram depois em quartos.
  77. Máquinas semelhantes aos cavalos de friza para embaraçar a investida dos inimigos.
  78. Às segures do proconsul romano, que governava a província.
  79. É o célebre M. Antonio, que compôs o triunvirato com Lepido e Otavio Augusto, depois partilhou o supremo poder com este e foi afinal por ele vencido na batalha de Accio.
  80. Era o paludamentum insígnia dos generais, espécie de cota de armas, casaca militar, ou sago de púrpura.
  81. Refere Dion Cassio que Vercingetorix foi conduzido a Roma, onde ornou o triunfo de César, e depois morto.
  82. Os Heduos estão aqui pelo país que habitavam.
  83. Os Sequanos como acima.
  84. Os Rutenos como acima.

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Dos Comentários da Guerra Gaulesa

Por A. Hircio[1]

Argumento

Prefácio de Hircio

Ações memoráveis de César no ano oitavo do seu procousulado. Fazem os lituriges a sua submissão c. 1-3. São debelados os Carnutes c. 4-5. Os Belovacos c. 6-22. É o Artrebate Comio acometido com ciladas c. 23. Divide-se o exército romano em muitos corpos; são de novo taladas as fronteiras de Ambiorigix; é Labieno mandado contra os Treviros c. 23-25. É a praça de Limon atacada por Dunaco, caudilho dos Andes; é Dunaco vencido c. 26-29. O lugar-tenente C. Caninio persegue o Senone Drapete e o cadurco Lucterio c. 30. Submetem-se os Carnutes e cidades comarcãs, c. 31. Fuga de Drapete e Lucterio para a praça de Uxeloduno, que é sitiada c. 32-33. Saindo da praça para trazer trigo e víveres, são Drapete e Lucterio batidos por C. Caninio c. 34-35. É Drapete aprisionado c. 36. Circunvala-se Uxeloduno; é Grutracto supliciado c. 37-38. Chegada de César a Uxeloduno; tolhe-se a água aos da praça; são incendiadas as obras dos Romanos; é a fonte da praça interceptada por minas c. 39-43. Rende-se Uxeloduno com todos os seus defensores; morte de Drapete; prisão de Lucterio c. 44. São os Treviros vencidos por Labieno c. 45. Submete-se a Aquitania; quartéis de inverno c. 46. É vencido o Artebrate Comio c. 47-48. Ano nono do proconsulado. Prefácio. Benignidade de César para com os Gauleses c. 49. Partida deste para Itália 50-51; sua volta para a Gália ulterior; prepõe Labieno à Gália Togada; princípio da guerra civil c. 52-53. As legiões tiradas a César por causa da guerra dos Partos são entregues a Pompeu.

Obrigado por tuas contínuas solicitações, ó Balbo, como quer que a minha quotidiana recusa te parecesse, não desculpa por causa da dificuldade mas deprecação de preguiça, empreendi um trabalho dificílimo. Continuei os comentários do nosso César sobre a guerra gaulesa, afim que, preenchida a lacuna, houvesse coerência dos antecedentes escritos com os subseqüentes, e conclui o novíssimo sobre a guerra de Alexandria, ainda imperfeito, até o fim, não da guerra civil, cujo termo não vemos, mas da vida de César. Oxalá que os que lerem este meu trabalho possam saber quão constrangido tive de fazê-lo para me julgarem isento do vício da estultícia e vaidade, por me haver entremetido entre os escritos de César. É, pois, opinião geral que não há obra tão cuidadosamente escrita por outro, que a não supere a elegância destes comentários, que escritos para servirem de memória aos historiadores, são de tal forma apreciados pelo consenso unânime dos doutos, que antes tiram, que dão faculdade de escrever sobre o mesmo assunto. E em tal obra é maior nossa admiração, que a dos outros, porque os outros só sabem quão bem e corretamente se ache ela escrita, mas nós sabemos ainda por cima, quão facil e rapidamente o foi. Havia em César não só a maior facilidade e elegância no escrever, como também o mais singular talento no explicar os seus pensamentos. A mim nem ao menos me coube a vantagem de assistir à guerra de Alexandria e à de África, das quais suposto temos em parte conhecimento pelo que delas nos contava César, contudo uma coisa é ouvirmos o que nos prende pela novidade e admiração, outra sermos nós mesmos testemunhas oculares do que havemos de dizer. Mas enquanto colijo todos os motivos de excusa para me não comparar com César, incorro no mesmo vício de vaidade, julgando que alguém me possa comparar com ele. Adeus.

Vencida toda a Gália, como quer que César, que em tempo nenhum cessara de fazer a guerra desde o precedente estio, quisesse refazer os soldados de tantas fadigas como repouso dos quartéis de inverno, entrou a espalhar-se que muitas cidades[2] concertavam novos planos de guerra, e faziam conjurações entre si. Dava-se como causa verosímil desta resolução haverem os Gauleses conhecido por experiência que por nenhuma multidão reunida num só lugar se podia resistir às armas Romanas, mas terem a convicção de que se muitas cidades[3] renovassem ao mesmo tempo a guerra em diversos pontos, não teria o exército do povo Romano, nem assás auxílio ou espaço, ou tropas, para acudir a toda a parte; e que nenhuma cidade[4] devia recusar sorte alguma de incômodo, contanto que com tal demora recobrassem as demais a liberdade.

Para que não ganhasse forças esta opinião dos Gauleses, prepondo aos seus quartéis de inverno o questor M. Antonio, partiu César com uma escolta de cavalaria, um dia antes das Calendas de janeiro[5], da praça de Bibracte para a décima terceira legião, que havia postado não longe das fronteiras[6] dos Heduos nas dos Bituriges, e juntou-lhe a undécima legião, que estava próxima. Deixando duas coortes de guarda às bagagens, conduziu o resto do exército para os fertilíssimos campos dos Bituriges, que possuindo largas fronteiras[7], e muitas praças fortes, não puderam ser contidos pelos quartéis de inverno de uma legião, que não aparelhassem guerra, e fizessem conjurações.

Com a repentina chegada de César aconteceu o que era necessário acontecesse a desprevenidos e dispersos, serem surpreendidos pela cavalaria, antes de poderem fugir para as praças fortes, os que achavam cultivando os campos sem nenhum receio. Porquanto até aquele sinal vulgar de incursão de inimigos, que soia perceber-se pelos incêndios das casas, havia sido suprimido por ordem de César, ou para que lhe não faltasse cópia de trigo e forragem, se quissesse internar-se no país, ou para que se não espantassem os inimigos com os incêndios. Capturados muitos milhares de homens, os Bituriges, que haviam fugido aterrados à primeira chegada dos Romanos, refugiaram-se nas cidades[8] vizinhas, ou fiados nos laços da hospitalidade particular, ou no concerto dos projetos comuns. Mas tudo foi em vão, porque César ocorria a todos os lugares, forçando marchas e a nenhuma cidade[9] dava espaço de pensar na alheia salvação antes da própria; e com esta celeridade não só conservava fiéis os amigos, como pelo terror obrigava os duvidosos a aceitar a paz. Colocados em tal extremidade, ao verem que pela clemência de César se lhes patenteava acesso à sua amizade, que as cidades vizinhas tinham dado reféns sem outra pena, e haviam sido tomadas sob a sua proteção fizeram os Bituriges o mesmo.

Por tanto trabalho e paciência promete César aos soldados que, em dias de inverno, por caminhos dificílimos, com frios intoleráveis, haviam sempre permanecido com zelo no trabalho, duzentos sestércios[10], e aos centuriões dois mil, concedidos a título de despojo e enviadas as legiões a quartéis de inverno, retira-se ele mesmo ao cabo de quarenta dias para Bibracte. Quando aí distribuía justiça, mandam-lhe os Bituriges embaixadores a pedir auxílio contra os Carnutes, de quem se queixavam que[11] lhes haviam feito guerra. Ao saber disto, não se tendo demorado mais de dezoito dias a invernar, tira dos quartéis de inverno do Arar as legiões décima quarta e sexta, que no precedente livro se disse haver aí postado por amor do abastecimento de víveres: assim marcha com duas legiões a perseguir os Carnutes.

Levada aos inimigos a fama do exército, escarmentados com a calamidade dos demais, fogem os Carnutes para diversas partes, abandonando as aldeias e povoações, onde habitavam em casebres feitos a pressa, segundo a necessidade, para suportar o inverno, pois vencidos há pouco haviam perdido muitas praças fortes. Não querendo que os soldados sofressem por causa das fortíssimas tempestades, que rebentam principalmente neste tempo, estabelece César arraiais em Genabo, praça dos Carnutes, e acomoda aqueles, parte nas casas dos Gauleses, parte em tendas com cobertura de palha, fabricadas a pressa. Expede nada obstante a cavalaria e peões seus auxiliares para todas as partes, que se dizia haverem os inimigos demandado: não o faz debalde; voltam os nossos pela mor parte com grande presa. Opressos com a dificuldade do inverno sobre o terror do perigo, e expulsos das casas sem ousarem fazer assento em parte alguma, nem poderem encontrar abrigo nos bosques em estação rigorisíssima, dispersam-se os Carnutes, e, perdida grande parte dos seus, espalham-se pelas cidades[12] vizinhas.

Tendo por bastante haver na mais rigorosa estação do ano dissipado as tropas que se reuniam, afim que não nascesse algum princípio de guerra, e explorado quanto era possível fazê-lo racionalmente, não poder dar-se guerra alguma importante no tempo dos quartéis de estio, colocou César à C. Trebonio a invernar em Genabo com as duas legiões, que consigo tinha. Depois sabendo pelas freqüentes embaixadas dos Remos, que os Belvacos, que sobrepujam em glória militar a todos os Gauleses e Belgas, bem como as cidades[13] a eles vizinhas, tendo por chefes o Belovaco Correo e o Atrebate Comio, preparavam exércitos que reuniam num lugar, no intuito de cairem com toda a multidão sobre as fronteiras[14] dos Suessiões, que estavam na dependência dos Remos; e, julgando importar não só à sua dignidade, como à sua segurança, não sofrerem aliados em todo tempo tão beneméritos da república dano algum, chama de novo dos quartéis de inverno a undécima legião, escreve além disso a C, Fabio, que leve às fronteiras[15] dos Suessiões as duas legiões que tinha, e manda vir uma das duas de Labieno. Assim, quanto exigia a oportunidade dos quartéis de inverno e o interesse da guerra, repartia alternadamente pelas legiões o ônus das expedições sem ter ele próprio descanso.

Reunidas estas tropas, marcha contra os Belovacos, e colocados arraiais nas fronteiras[16] destes, expede em todos os sentidos esquadrões de cavalaria, para capturar alguns, de quem pudesse conhecer quais eram os projetos dos inimigos. Os cavaleiros, tendo desempenhado a comissão, declaram haverem sido encontrados poucos nas casas, e esses, não que tivessem ficado para agricultar os campos (pois se tinha de toda a parte emigrado diligentemente) mas que haviam sido enviados para espiar. E inquirindo destes, em que lugar se achava a multidão dos Belovacos, e qual era o projeto dos mesmos, descobria: Que os Belovacos em estado de pegar em armas se haviam reunido em um só ponto, bem como os Ambianos, Àulercos, Catelos, Veliocasses, Atrebates, haviam, escolhido para arraiais um lugar elevado num bosque cercado de um pantanal, e passado as bagagens para os bosques ulteriores: que muitos eram os principais promotores da guerra, mas — em primeiro lugar obedecia a multidão a Correo, pelo grande ódio que este tinha ao nome romano: que poucos dias antes havia partido destes arraiais o Atrebate Comio para ir buscar auxiliares Germanos, que estavam próximos, e eram em número infinito: que os Belovacos porém tinham, por acordo de todos os principais, e com sumo ardor da plebe, resolvido, se César viesse com três legiões, como se dizia, oferecer-lhe batalha, para que se não depois obrigados a combater com todo o exército em piores e mais miseráveis condições; e se trouxesse maiores forças, permanecer na posição, que haviam escolhido, e tolher aos Romanos com emboscadas o corte da forragem (pois, por amor da estação, era pouca, e se achava disseminada), bem como o provimento de trigo e mais vitualhas.

Sabendo disto por informações concordes, e vendo serem tais disposições cheias de prudência, e mui alheias da temeridade de bárbaros, resolveu César usar de estratagema, para que o inimigo desprezando o nosso pequeno número, saisse mais depressa a campo. Tinha as velhas legiões, sétima, oitava e décima de singular bravura, e a undécima de grande esperança, composta de mocidade escolhida, a qual contava já oito estipêndios[17], se bem em relação às outras não pudesse ainda aspirar à mesma reputação de veteranice e bravura. Assim, convocado concelho, expõe tudo o que lhe havia sido referido, e confirma os ânimos da multidão. A ver se com o número das três legiões atraía os inimigos a combate, dispõe por tal forma a ordem da marcha, que as legiões sétima, oitava e nona precedessem todas as bagagens, seguindo-se depois a coluna destas (aliás medíocre, como sóe[18] acontecer nas expedições) escoltada pela legião undécima, para que se não pudesse dar aos inimigos aparência de maior multidão, que a que desejavam, por esta forma apresentou-se aos inimigos, antes do que podiam presumir, com o exército ordenado quase em quadrado.

Os Gauleses, cujos projetos cheios de confiança haviam sido expostos a César, como vissem virem chegando a passo firme as legiões ordenadas em batalha, ou pelo receio do perigo, ou com o repentino da chegada, ou na espectativa de nosso plano, formam suas tropas em batalha em frente dos arraiais sem descerem da posição superior. César, posto que desejava combater, admirado com tudo da multidão dos inimigos, num vale que se metia de permeio mais profundo que largo, assenta arraiais fronteiros aos dos mesmos. Ordena que se fortifiquem estes com um valo de doze pés, e se fabrique um parapeito proporcional ao valo, se cave um duplo fosso de quinze pés com lados a pique, se levantem amiudadas torres com altura de três tabolados, ligadas umas às outras com pontes assoalhadas, cujas frentes se fortifiquem com parapeitos de vimes: de modo que fôssemos guardados ods inimigos por um duplo fosso, e uma dupla ordem de defensores, dos quais uma, quanto mais segura pela altura, tanto mais audaz e distantemente arremessasse dardos das pontes, a outra, que colocada no mesmo valo ficava mais em contacto com o inimigo, fosse protegida pelas pontes contra os dardos arrojados. Colocou portas e torres mais altas nas entradas.

Duplo era o fim desta fortificação. Porquanto esperava não só que a grandeza das obras e o seu aparente receio haviam de inspirar confiança aos inimigos, como via também que, quando se tivesse de ir cortar forragem e trigo a maior distância, podiam os arraiais por sua mesma fortificação ser defendidos com pequenas forças. Éscaramuçava-se, entretanto, freqüentemente, avançando poucos de um lado e de outro, além do pantanal, que se metia de permeio entre os dois arraiais. Ora eram os nossos auxiliares Gauleses e Germanos, que transpunham o pantanal e perseguiam com mais ardor os inimigos; ora eram os inimigos, que o transpunham pelo seu turno, e repeliam os nossos para mais longe. Acontecia, porém, no forragear quotidiano, o que era mister acontecesse, quando se tinha de ir procurar pastp a raros e distantes casais, serem os forrageadores dispersos envolvidos em lugares embaraçosos; o que, ainda que só ocasionasse aos nossos medíocre perda de bestas e escravos, servia contudo para excitar a jactância dos bárbaros, e tanto mais que Comio, que eu disse partido para trazer auxiliares Germanos, chegara com cavaleiros, os quais, posto não excedessem a quinhentos, contribuiam nada obstante com sua vinda para aumentar o orgulho dos bárbaros.

Observando que o inimigo se conservava muitos dias nos seus arraiais fortificados pelo pantanal e pela natureza do lugar, e que estes não podiam ser atacados sem grande perda de homens, nem ser fechados com circunvalação senão por um exército maior, escreve César a Trebonio, que chame quanto mais depressa a décima terceira legião, que com o lugar-tenente T. Sextio, invernava nos Bituriges[19], e venha assim com três legiões a ter com ele a marchas forçadas; envia ele mesmo alternadamente a cavalaria dos Remos, a dos Ligones, e a das demais cidades[20], em proteção aos forrageadores, afim de repelirem as súbitas incursões dos inimigos.

Como quer que isto se fizesse quotidianamente, e a diligência diminuísse com o costume, o que, as mais das vezes acontece nas coisas aturadas, os Belovacos, conhecidas as estações de nossos cavaleiros, escolhendo uma tropa de peões, dispõem ciladas em lugares brenhosos, e para lá enviam no seguinte dia cavaleiros, que atraissem os nossos e os atacassem depois de cercados. Coube o desastre em sorte aos Remos, a quem competira fazer o serviço naquele dia. Estes, pois, como de repente avistassem alguns cavaleiros inimigos, e superiores em número os depresassem por poucos, enquanto os perseguem com mais ardor, são de todas as partes cercados. Perturbados com isto, retiram-se mais depressa do que é uso em combate eqüestre, havendo perdido a Vertisco, principal da cidade[21], e prefeito da cavalaria, o qual, mal podendo montar a cavalo pela idade, mas respeitando o costume Gaulês, nem se escusara da prefeitura com a velhice, nem quisera que se combatesse sem ele. Morto o principal e prefeito dos Remos, inflamam-se e ensoberbecem os inimigos com a vitória: ficam os nossos escarmentados com a perda para dispor estações em lugares mais bem explorados, e perseguir com menos ardor o inimigo quando cede.

Não são, entretanto, interrompidos diante de uns e outros arraiais os combates quotidianos, que se davam nos vaus e passagens do pantanal. Como neste empenho tivessem os Germanos que César mandara vir dalém Rim, para pelejarem interpostos aos cavaleiros, passado todos com mais constância o pantanal, e houvessem, mortos poucos que resistiam, perseguindo com mais pertinácia a restante multidão, fugiram vergonhosamente, cortados de terror, não só os que, ou eram oprimidos de perto, ou feridos de longe, mas até os que estavam na reserva, e não puseram termo à fuga, perdidas muitas vezes as posições eminentes, antes que, ou se recolhessem aos arraiais dos seus, ou fugissem alguns, obrigados pelo pejo, para mais longe ainda. E com o perigo destes de tal sorte se perturbaram todas as suas tropas, que mal se podia ajuizar qual era maior se a sua insolência nos mínimos sucessos prósperos, se a sua timidez num medíocre caso adverso.

Consumidos muitos dias nos mesmos arraiais, sabendo que se aproximavam as legiões com o lugar-tenente C. Trebonio e receiando cerco igual ao de Alesia, despedem por noite os caudilhos dos Belovacos todos os que eram inúteis para combater, ou pela idade, ou pelas enfermidades, ou por falta de armas assim como as mais bagagens. E enquanto desenvolvem a perturbada e confusa marcha destes (pois soe acompanhar aos Gauleses ainda desarmados uma multidão de carros), surpreendidos pelo dia, formam diante dos seus arraiais as tropas próprías para combater, afim que os Romanos não perseguissem a coluna das suas bagagens, antes que ela estivesse fora de alcance. Mas César nem julgava conveniente atacar com tamanha subida de monte as tropas formadas em ordem de batalha, nem também deixar de aproximar as legiões daquele ponto, para que os bárbaros não pudessem descer dele sem perigo, quando apertados por nossos soldados. Assim, vendo que os nossos eram divididos dos arraiais inimigos pelo pantanal, cuja embaraçosa dificuldade podia retardar a celeridade na perseguição, e notando que uma colina, que além do pantanal, quase tocava nos arraiais inimigos, estava deles apenas separada por medíocre vale, passa as legiões por pontes feitas sobre o pantanal e chega com brevidade à mais elevada planície dessa colina, que era de dois lados defensável por encostas declives. Formadas aí as legiões, avança até ao último cabeço, de onde com tormentos podiam ser arrojados tiros contra os cúneos dos inimigos, e ordena o exército em batalha.

Não recusando combater fiados na natureza do lugar, se os Romanos tentassem pela ventura subir a colina, nem podendo fazer debandar as suas tropas, para que não fossem atacadas dispersas, permaneceram os bárbaros ordenados em batalha. Vendo tal pertinácia, forma César vinte coortes em ordem de batalha, e demarcando arraiais neste lugar, os manda fortificar. Concluídas as obras, posta diante do valo as legiões ordenadas em batalha, e dispõe nas estações a cavalaria com os cavalos enfreiados. Vendo os Romanos prestes a persegui-los, e não podendo pernoitar, nem permanecer sem perigo mais tempo no mesmo lugar, recorreram os Belovacos ao seguinte estratagema para encobrir a sua retirada. Transmitidos entre si de mão em mão, como tinham de costume feixes de palha e ramas, de que tinham suma abundância nos arraiais, os colocaram em frente do seu exército, e ao cair do dia, a um sinal dado, lançaram fogo a todos ao mesmo tempo. Por esta forma a chama continuada tirou de repente aos Romanos a vista de todas as suas tropas. Logo que isto se deu, fugiram os Belovacos com aceleradíssima carreira.

César, ainda que não podia com os opostos incêndios perceber a retirada dos inimigos, suspeitando, todavia ser tal manobra feita para encobrir a fuga, faz avançar as legiões, e expede esquadrões de cavalaria para persegui-los, receiando, porém, ciladas, ou que o inimigo, guardando pela ventura a mesma posição, tentasse com isso atrair os nossos a um lugar desvantajoso, adianta-se um tanto vagarosamente. Os de cavalo, temendo entrar na cumiada da colina por entre densissimas chamas com fumo, e receiando ciladas, porque os que avançavam com mais ardor apenas enxergavam as cabeças de seus cavalos, deram aos Belovacos livre faculdade de se retirarem. Assim com uma fuga cheia de temor, e ao mesmo tempo de astúcia, adiantando-se sem perda alguma até dez mil passos, assentaram os inimigos os seus arraiais em lugar mui defensável. Dali, dispondo freqüentemente em emboscadas cavalaria e peonagem, ocasionavam muito dano aos forrageadores romanos.

Como quer que isto se desse com mais freqüência, sabe César de certo cativo que o caudilho dos Belovacos, Correo, tinha escolhido seis mil peões dos mais robustos, e mil cavaleiros dentre todos, para pôr de emboscada num lugar, para onde, por causa da muita abundância de pasto, suspeitava haverem os Romanos de mandar forragear. Sabendo de tal, tira dos arraiais mais legiões do que costumava, e manda adiante a cavalaria, que segundo o costume enviava em auxílio dos forrageadors: a esta interpõe auxiliares armados à ligeira; aproxima-se ele mesmo com as legiões o mais que pode.

Os inimigos dispostos em emboscadas escolheram para operar um campo, que em todos os sentidos não tinha de patente mais de mil passos, e era fechado por bosques e por um rio dificílimo: cercam-no todo de emboscadas como de uma rede. Conhecido o plano dos inimigos, os nossos, preparados para o caso, e não recusando sorte alguma de combate, porque contavam com o apoio das legiões, chegaram a este lugar. Com a chegada deles, Correo, que julgava ser-lhe deparada a ocasião oportuna, mostrou-se primeiramente com poucos, e investiu contra os próximos esquadrões. Sustentam os nossos a investida com firmeza, e não se reunem em massa num só lugar, o que não só de ordinário acontece nos combates eqüestres, quando há temor, mas ocasiona também perdas pela mesma aglomeração.

Quando dispostos os esquadrões, pelejavam poucos alternadamente, sem consentir que os seus fossem envolvidos pelos flancos, rebentam, combatendo Correo, os mais dos bosques. Trava-se com grande porfia combate em diversas partes. Sustendo-se este por muito tempo com vantagem ora de um lado, ora de outro, adianta-se pouco e pouco dos bosques a peonagem ordenada em batalha, que obriga os nossos cavaleiros a recuar. A estes socorrem com presteza os peões armados à ligeira, que eu disse terem sido mandados adiante das legiões, e pelejam corajosamente interpostos aos esquadrões. Combate-se algum tempo com igual porfia; depois, segundo requeria a natureza do combate, os que primeiramente sustentaram o assalto das emboscadas, tornam-se superiores, por isso mesmo que nenhum dano receberam da parte dos assaltantes sem prevenção. Aproximam-se, entretanto, as legiões, e chegam ao mesmo tempo aos nossos e aos inimigos freqüentes avisos de que se apresentava o generalíssimo com as tropas ordenadas em batalha. Ao sabê-lo, contando com o apoio das coortes, pelejam os nossos mui esforçadamente, para que não parecesse repartirem com as legiões a glória da vitória, se pela ventura a peleja se demorasse mais; esmorecem os inimigos, e procuram a fuga por diversas paragens. Em vão, pois são retidos pelas mesmas dificuldades, com que pretendiam fechar os nossos. Vencidos, contudo, e rechassados com perda da maior parte, fogem consternados, demandando uns os bosques, outros o rio, os quais todos são mortos na fuga, perseguindo-os os nossos com encarniçamento, quando, entretanto, Correo por nenhuma calamidade vencido, não pôde ser induzido a retirar-se da peleja para procurar os bosques, ou a render-se a convite dos nossos, que, combatendo com muito esforço, e ferindo a muitos, não obrigasse os vencedores impelidos pela ira a arremessar setas contra ele.

Como depois desta vitória entrasse César pelos recentes vestígios da batalha, e julgasse que os inimigos, vencidos por tamanho desastre, haviam de, com a notícia dele, abandonar os seus arraiais, apenas distantes do lugar do morticínio oito mil passos pouco mais ou menos, dado que via a passagem embaraçada pelo rio, avança, nada obstante, passado o exército além dele. Mas os Belovacos e as demais cidades[22], recebidos de improviso poucos da fuga, e esses feridos, que escaparam da morte com a proteção dos bosques, vendo, a tal notícia, ser-lhes tudo adverso, ter sido morto Correo, haver perecido a cavalaria com a melhor peonagem, e sabendo aproximarem-se os Romanos, convocado repentinamente concelho a toque de trombeta, clamam, que se mandem a César embaixadores e reféns.

Aprovada por todos tal resolução, refugia-se o Atrebate Comio entre os Germanos, que lhe haviam prestado auxiliares para esta guerra. Os demais enviam logo embaixadores a César a quem suplicam: "Que se satisfaça com aquele castigo dos inimigos, o qual se pudesse dar-lhe sem combate, antes de terem eles sofrido tamanha perda, nunca, atenta a sua demência e humanidade, lhes havia por certo de inflingir. Porquanto totalmente quebrantadas tinham ficado as forças dos Belovacos com o combate da cavalaria, haviam perecido muitos milhares de peões escolhidos, e escapado apenas os que trouxeram a notícia do morticínio. Mas, em tanta calamidade, uma vantagem ao menos tinham eles conseguido, a de haver sido no combate morto Correo, autor da guerra e concitador da multidão. Pois, em vida dele, nunca o senado pudera tanto, como a plebe ignorante."

A este discurso dos embaixadores replica César: "Que os Belovacos conjuntamente com as demais cidades[23] lhe haviam feito guerra o ano passado, e de todos só eles tinham persistido no propósito com muita tenacidade, sem se deixarem trazer à razão com a rendição dos mais. Que bem sabia, e via ser facílimo lançar à conta dos mortos a culpa, que era de todos; mas que ninguém era tão poderoso, que, contra a vontade dos principais, resistindo o senado, impugnando todos os bons, pudesse com uma fraca multidão de populacho promover e sustentar guerra; que, nada obstante, se satisfaria ele com o castigo, que a si próprios haviam dado."

Na seguinte noite levam os embaixadores a resposta aos seus, que completam o número de reféns. Os embaixadores das demais cidades[24], que aguardavam o sucesso dos Belovacos, concorrem pelo seu turno. Dão reféns, e executam quanto lhes é ordenado, menos Comio, a quem o temor arredava de cometer sua segurança a quem quer que fosse. No ano precedente, como T. Labieno, enquanto César administrava justiça na Gália citerior, soubesse que Comio andava solicitando as cidades[25], e tramando uma conjuração contra César, julgou que a infidelidade desse caudilho podia ser comprimida sem nenhuma exprobação de perfídia. E porque julgava que, se fosse chamado, não viria aos arraiais, para o não tornar mais cauteloso, tentando fazê-lo, enviou a C. Voluseno Quadrato, que com a simulação de uma conferência, tratasse de matá-lo. Deu-lhe centuriões para isso de propósito escolhidos. Quando se chegou ao lugar da conferência, e C. Voluseno apertou, como se havia assentado, a mão de Comio, o centurião encarregado da execução, ou abalado pelo insólito do caso, ou prontamente embargado pelos amigos de Comio, não pôde acabar o homem, que com a espada feriu gravemente na cabeça de um golpe. Desembainhando-se as espadas de parte a parte, tiveram uns e outros por fim não tanto pelejar, como fugir: os nossos, porque julgavam a Comio mortalmente ferido; os Gauleses, porque, conhecida a cilada, temiam maior perigo, que o que viam. Porisso dizem jurara Comio nunca comparecer na presença de qualquer romano.

Como, vencidas as nações as mais belicosas, visse César não haver já cidade[26], que preparasse guerra para resistir-lhe mas emigrarem alguns das praças fortes, e fugirem dos campos, com o fim de evitarem o presente domínio, resolveu distribuir o exército por muitas partes. Ao questor M. Antonio junta-o a si com a duodécima legião. Ao lugar-tenente C. Fabio manda-o com vinte e cinco coortes para a parte oposta da Gália, porque ouvia dizer acharem-se aí em armas certas cidades[27], nem reputava o lugar-tenente C. Caninio, que estava naquelas regiões, assás guarnecido com as duas legiões que tinha. A T. Labieno chama-o a si; a legião décima quinta, que com ele invernara, a envia para a Gália Togada a proteger as colônias dos cidadãos romanos, afim que com as correrias dos bárbaros se não desse igual desgraça à que no precedente estio tinha acontecido aos Tergestinos, que foram oprimidos com a súbita pilhagem e assalto dos mesmos. Parte ele a talar e assolar as fronteiras de Ambiorix[28]; pois, tendo perdido a esperança de havê-lo as mãos, por andar aterrado e foragido, julgava de sua dignidade despojar-lhe as fronteiras de cidadãos, edifícios, gados, para que odiado dos seus, que ainda pela ventura restassem, não pudesse como ocasião de tais calamidades voltar mais para a cidade.

Depois que, expedindo as legiões e os auxiliares para diversos pontos das fronteiras de Ambiorix, tudo devastou com morticínios, incêndios, rapinas, morto ou aprisionado grande número de homens, enviou a Labieno para os Treviros, cuja cidade, endurecida em quotidianas guerras com a vizinhança dos Germanos, não diferia muito destes em costumes e feridade[29], nem cumpria o que lhe era ordenado senão coagida por exército.

Nestes entrementes o lugar-tenente C. Caninio informado por cartas e expressos de Duracio que se tinha conservado sempre fiel aos Romanos, não obstante a rebelião de parte da cidade[30], de que se havia juntado nas fronteiras dos Pictões grande multidão de inimigos, marchou para a praça de Limon[31]. Ao aproximar-se dali, soube com mais certeza dos cativos, que Duracio se achava cercado na praça por Dunaco, caudilho dos Andes, à frente de muitos mil homens, e não ousando opor aos inimigos as legiões incompletas, assentou arraiais em lugar fortificado. Dunaco, à noticia da aproximação de Caninio, voltadas as tropas contra as legiões, começou a atacar-lhes os arraiais. Depois de consumir muitos dias no ataque, e sofrer grande perda sem poder escalar as fortificações por parte alguma, voltou de novo a sitiar Limon.

Pelo mesmo tempo recebe o lugar-tenente C. Fabio a submissão de muitas cidades[32], assegurando-se dela como reféns, e é por cartas de C. Caninio Rebilo certificado do que se passa nos Pistões[33]. Com a notícia destas coisas marcha a socorrer a Duracio. Mas Dunaco, ao saber da vinda de Fabio, julgando-se perdido, se se visse obrigado a fazer rosto ao Romano inimigo externo, e a olhar para trás e temer os de dentro da praça, retira-se com as tropas repentinamente deste lugar, e não crê estar assás seguro, senão depois que as tiver transposto além do rio Liger, que por sua grandeza havia de ser passado pela ponte. Fabto, se bem ainda se não tivesse avistado com o inimigo, nem houvesse feito junção com Caninio, instruído todavia pelos que conheciam a natureza do terreno, pensou otimamente que os inimigos aterrados haviam demandar o lugar, que procuraram. Dirige-se, pois, com as tropas à mesma ponte, e ordena à cavalaria que avance tanto para diante das legiões em marcha, quanto, depois que tivesse avançado, fosse possível fazer retirada para os mesmos arraiais sem cansaço dos cavalos. Alcançam nossos cavaleiros, e invadem, segundo as ordens, o exército em marcha de Cunaco; e agredindo os inimigos, quando fugiam aterrados sob as cargas, apoderam-se de grande presa, matando a muitos.

XXVIII

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Na seguinte noite manda Fabio a cavalaria adiante com instruções para combater, e demorar a marcha de todo o exército inimigo, até que o mesmo chegasse. Para que a ação se realisasse segundo as instruções, o prefeito da cavalaria Q. Atio Varo, militar tão esforçado como prudente, depois de exortar os seus, chegando ao alcance dos inimigos, dispõe uma parte dos esquadrões na reserva em lugares idôneos, e trava o combate com outra parte. Peleja a cavalaria inimiga mais audazmente, sendo socorrida pela peonagem, que faz alto em todo o exército para levar auxílio aos cavaleiros contra os nossos. Sustenta-se o combate com encarniçada porfia. Porquanto, os nossos, desprezando inimigos vencidos na véspera, lembrando-se de que os seguiam as legiões, e animando-se já com o pejo de ceder, já com o desejo de concluir por si a batalha, pelejavam mui esforçadamente contra a peonagem; os inimigos, crendo que nenhumas tropas mais haviam de chegar, como viram acontecer na véspera julgavam ter deparado a ocasião de destruir a nossa cavalaria.

Combatendo-se por algum tempo mui renhidamente, forma Cunaco o seu exército em ordem de batalha, para socorrer a sua cavalaria alternadamente; quando se apresentam à vista do exército inimigo as legiões com as fileiras cerradas. À tal vista a cavalaria e a infantaria dos bárbaros, abaladas e aterradas, fogem a cada passo com grande clamor e carreira, abandonando as bagagens. Mas os nossos cavaleiros, que pouco antes haviam combatido mui esforçadamente com os que resistiam, ensoberbecidos com a alegria da vitória, cercam de todas as partes com grande clamor os que fugiam, e matam tanto nesta batalha, quanto valem as forças dos cavalos para perseguir, e as dextras para ferir. Assim mortos mais de doze mil, ou com as armas na mão, ou que tinham na ocasião largado as armas, cai em nosso poder toda a bagagem.

Constando depois desta derrota que o Senone Drapete, o mesmo que, quando a Gália se revoltara pela primeira vez, à frente de uma tropa de homens perdidos, escravos, bandidos e ladrões, havia interceptado aos Romanos as bagagens e vitualhas, reunidos uns cinco mil homens, que escaparam dela, marchava contra a província[34], tendo-se para isso concertado com o Cadurco Lucterio, que no precedente livro se disse ter também tentado invadi-la na primeira revolta da Gália, partiu com duas legiões a persegui-los o lugar-tenente C. Caninio, afim de evitar o insígne descrédito de ser a província assolada ou aterrada, com os latrocínios de homens perdidos.

Com o restante exército marcha C. Fabio contra os Carnutos e as demais cidades[35], cujas tropas sabia terem ficado mui reduzidas no combate havido com Dunaco. Sendo que acreditava, que havia de encontrá-las mais submissas com a recente calamidade, mas que, se lhes desse espaço e tempo, podiam rebelar-se de novo por instigações de Dunaco. Com grande felicidade e celeridade se houve Fabio na redução das mesmas à obediência. Conquanto os Carnutes, que, muitas vezes perseguidos, nunca tinham falado em paz, fazem a sua submissão, dando reféns, e as demais cidades[36], que, situadas nas últimas fronteiras[37] da Gália, vizinham com o Oceano, com o exemplo dos Carnutes demovidas, à chegada de Fabio com as legiões, executam prontamente tudo quanto lhes é ordenado. Expulso de suas fronteiras[38], divagando só, e ocultando-se, viu-se Dunaco obrigado a demandar as mais remotas regiões da Gália.

Mas Drapete e Lucterio, como soubessen que se aproximava Caninio com as legiões, e vissem que, perseguindo-os o exército, não podiam, sem sua total ruína, devassar as fronteiras[39] da província, nem tinham livre faculdade de roubar, fazem alto nas fronteiras[40] dos Cadurcos. Aí Lucterio, que, antes das derrotas, tinha muito poder entre os seus concidadãos, e, como promotor de tentames arriscados, grande crédito com os bárbaros, ocupa com as suas e as tropas de Drapete a praça de Uxloduno, que, egregiamente defensável pela posição, tinha estado na sua clientela e agrega-se os habitantes..

XXXIII

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Depois de aí haver chegado, vendo serem todas as partes da praça guarnecidas de rochas escarpadíssimas, onde, ainda, ninguém defendendo, seria difícil ao soldados subir armados, mas notando serem grandes as bagagens dos habitantes, as quais se eles quisessem subtrair com fuga clandestina não só não evitariam a cavalaria mas nem sequer as legiões, dividiu Caninio as coortes em três corpos e fez arraiais em lugar mui elevado, dos quais pouco e pouco, quanto permitiam as tropas, começou a formar um valo em volta da praça.

A tais preparativos, os da praça, solícitos com a misérrima lembrança de Alésia, e receiosos de igual caso de bloqueio, e mais que todos Lucterio, que falando como quem experimentara aquela sorte, aconselhava a que se devia entender no abastecimento de víveres, resolvem, por comum acordo, deixar parte das forças para guarnecer a praça, e partir com as tropas expeditas a procurar trigo. Tomada tal resolução, Crapete e Luterio, deixando na praça dois mil homens armados, partem na seguinte noite com as demais tropas. Estes, com demora de poucos dias, tiram grande quantidade de trigo das fronteiras[41] dos Cadurcos, dos quais uns desejavam socorrê-los com ele, outros não podiam embaraçar que dele se provessem, e atacam por vezes alguns dos nossos fortes com assaltos noturnos. Em conseqüência disto demora C. Caninio a circunvalação da praça toda, receiando ou não poder defender a obra depois de concluída, ou dispor fracas guarnições em muitos lugares.

Aprestada grande cópia de trigo, fazem Drapete e Lucterio alto dez milhas da praça não mais, para daí ir aos poucos transportando para ela o trigo. Repartem entre si os encargos. Drapete fica de guarda aos arraiais com parte das tropas. Lucterio dirige a coluna das bestas para a praça. Colocados postos em certos lugares, pela décima hora[42] da noite pouco mais ou menos, começa a transportar o trigo para a praça por caminhos estreitos entre os bosques. Como quer os arraiais sentissem o estrepito, e os exploradores enviados a examinar dessem conta do que era, com coortes armados tiradas dos próximos fortes ataca repentinamente Caninio aos recoveiros ao raiar do dia. Estes aterrados com o assalto repentino fogem para os seus postos guarnecidos; ao notá-lo, os nossos incitados mais acremente contra os que se defendiam com armas, a nenhum deste número deixam com vida. Foge Lucterio com poucos, sem poder alcançar seus arraiais.

Depois desta vitória sabe Caninio dos cativos que parte das tropas estavam com Drapete nos arraiais a não mais de doze milhas de distância. Sendo-lhe isto coifirmado por muitos e entendendo que, afugentado um dos caudilhos, podiam os mais inimigos aterrados ser facilmente opressos, reputa uma fortuna não se haver do morticínio salvado nos arraiais um só, que levasse a Drapete a notícia da calamidade. Vendo não haver perigo em fazer a experiência, manda diante contra os arraiais dos inimigos toda a cavalaria, e os peões Germanos, homens de suma velocidade, distribui uma legião pelos três arraiais, e leva consigo a outra expedita. Ao chegar perto dos inimigos, sabe dos exploradores, que mandara diante, que os arraiais desses, segundo o costume quase geral dos bárbaros de desprezarem as alturas, estavam assentados à margem de um rio, e que os Germanos e a cavalaria haviam de improviso caido sobre os inimigos desprevenidos, e travado combate. A tal notícia aproxima a legião armada e formada em ordem de batalha. Ao sinal dado tomam-se de repente todas as alturas. Logo que isto se realiza, os Germanos e a cavalaria, vistas signas da legião, combatem com grande esforço. Imediatamente dão as coortes assalto de todos os lados, e ou mortos ou aprisionados os inimigos, apoderam-se de grande presa. Neste combate é aprisionado o mesmo Drapete.

XXXVII

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Alcançada esta felicíssima vitória sem ferimento quase algum do soldado, volta Caninio a sitiar aos da praça, e destruido o inimigo externo, cujo temor dantes o embaraçava de dividir os seus postos, e circunvalar os da praça, ordena que se continue por toda a obra de circunvalação. No seguinte dia chega C. Fabio com suas tropas, e encarrega-se de sitiar uma parte da praça.

XXXVIII

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Nestes entrementes deixa César ao questor M. Antonio nos Belovacos[43] com quinze coortes, afim de tirar aos Belgas a possibilidade de se rebelarem de novo. Parte ele mesmo para as restantes cidades[44], exige maior número de reféns, e anima com consolações os espíritos temerosos de todas. Ao chegar aos Carnutes, em cuja cidade expôs no precedente livro ter tido princípio a guerra, como os via estarem temerosos pela consciência da culpa, afim de mais prontamente livrar a cidade[45] de temor exige, para ser supliciado, ao principal autor da rebelião e promotor da guerra, Gutruato. Se bem nem aos seus mesmos concidadãos ousasse este confiar a sua segurança, contudo procurado diligentemente por todos, é em breve encontrado, e conduzido aos arraiais. No suplício deste é César obrigado contra a natureza a comprazer com a exigência da soldadesca, que lhe representava quantos riscos e danos de Gutruato recebera, a ponto de ser ele ferido com a segure depois de açoitado até expirar.

Aí é César informado pelas amiudadas cartas de Caninio do que se passara relativamente a Drapete e Lucterio, bem como da resolução em que persistiam os da praça. Se bem desprezasse o pequeno número destes, julgava, todavia, que a sua pertinácia devia ser severamente castigada, para que a Gália não ficasse supondo que não lhes tinham faltado forças para resistir aos Romanos, mas unicamente constância, e, com tal exemplo, não tentassem as demais cidades[46], recobrar a liberdade, fiadas em posições inexpugnáveis, sendo notório a todos os Gauleses que restava um único estio do governo de César, durante o qual se se pudessem sustentar, não teriam mais perigo a temer. Deixa, pois, o lugar-tenente Q. Caleno com as legiões, ordenando-lhe que o seguisse a marchas regulares. Parte ele mesmo com toda a cavalaria a reunir-se a Caninio o mais rapidamente que pode.

Chegando a Uxeloduno contra a expectação geral, achando a praça circunvalada a ponto de se não poder mais desistir do cerco, e sabendo dos transfugas estarem os sitiados abundantemente providos de trigo, empreendeu César tentar privá-los de água. Dividia um rio o profundo vale, que quase cingia o monte, em que estava assentada a praça de Uxeloduno por toda parte escarpada. Vedava a natureza do lugar desviar o rio, pois corria tão entranhado pelas ínfimas raízes do monte, que para nenhuma parte podia ser derivado com excavações declives. A descida a ele era difícil e escarpada para os sitiados, de modo que, proibindo os nossos, não podiam ir ao rio nem recolher-se por subida íngreme sem feridas e risco de vida. Conhecida essa dificuldade, dispondo arqueiros e fundibulários e ainda tormentos em certos lugares contra as descidas mais fáceis, os privava César da água do rio.

Reunia-se, depois, toda a multidão dos aguadeiros num lugar junto ao muro da mesma praça, onde rebentava uma fonte abundante naquela parte, que, com um intervalo de trezentos pés, deixava de ser abrangida pelo circuito do rio. Desejavam os mais que os sitiados pudessem ser privados desta fonte, mas César só é que via a possibilidade de consegui-lo. Começa, pois, a fazer mantas de guerra defronte desta contra o monte e a construir um terrado com grande trabalho e contínuo pelejar. Correm os inimigos das alturas, combatem de longe sem perigo e ferem a muitos que subiam pertinazmente; não são, todavia, os nossos soldados desviados de estender as mantas de guerra, e vencer com trabalho e obras as dificuldades dos lugares. Das mantas fazem ao mesmo tempo minas por baixo da terra para a matriz da fonte; gênero de trabalho, que empreendiam sem perigo algum, nem suspeita dos inimigos. Constroe-se um terrado de sessenta pés de altura; coloca-se nele uma torre de dez tabolados, não para igualar os muros, o que se não podia conseguir com obras algumas, mas para sobrepujar a eminência da fonte. Da torre se arremessam dardos contra a entrada da fonte, e não podendo os sitiados fazer aguada sem risco, pereciam à sede, não só gados e bestas, mas ainda grande multidão de inimigos.

Aterrados com este mal, os sitiados enchem tonéis com sebo, pez, e pedaços de ripas, rolam-nos acesos contra as obras, e fazem ao mesmo tempo uma vigorosa sortida para, com o perigo da peleja, divertir aos Romanos de apagar o fogo. Houve de repente grande incêndio nas obras. Os tonéis acesos, impelidos por lugar precipite, e detidos pelas mantas de guerra e pelo terrado, incendiavam aquilo mesmo que os demorava. Os nossos soldados, posto que opressos pelo perigoso gênero de combate e pela desvantagem da posição, tudo, nada obstante, suportavam com ânimo esforçadíssimo. Dava-se o combate não só em lugar excelso, mas também à vista de nosso exército, e de uma e outra parte grande clamor se levantava. Assim, todo soldado que sobresaía em bravura, para que esta fosse apreciada e admirada, se oferecia aos dardos dos inimigos e ao fogo.

Vendo serem feridos muitos dos seus, manda César subirem as coortes o monte por todas as partes da praça, e em todas levantarem clamor com simulação de ocuparem as muralhas. Aterrados com esta operação, os sitiados incertos do que se passava nos mais lugares, chamam os combatentes do assalto das obras, e os dispõem pelas muralhas. Assim os nossos, dado fim ao combate, extinguem rapidamente o fogo, em parte apagando as obras incendiadas, em parte cortando as intactas das abrasadas. Resistindo os sitiados pertinazmente, e persistindo na mesma opinião, apesar de mortos a sede muitos dos seus, são por último cortadas e derivadas pelas minas as veias da fonte. Secou imediatamente a fonte perene; e este fato tal desesperança de salvação ocasionou nos sitiados, que o reputaram obra não da indústria humana, mas da vontade dos deuses. Assim renderam-se obrigados da necessidade.

Sabendo ser a sua brandura de todos conhecida, não receiando passar por cruel de natureza por haver praticado um ato de rigor, nem vendo termo a seus esforços, se mais povos tentassem por tal forma revoltas em diversos lugares, resolveu César aterrar os restantes com o tremendo do suplício. Assim, a todos os que pegaram em armas, cortou as mãos, e concedeu a vida, afim que o castigo dos maus se tornasse mais patente. Dravete, que eu disse haver sido aprisionado por Caninio, ou não podendo suportar a indignidade e a dor dos ferros, ou temendo castigo maior, absteve-se de comer por uns poucos de dias, e assim pereceu. Pelo mesmo tempo Lucterio, que escrevi ter escapado da derrota, caiu em poder do Arverno Epasnacto (pois mudando freqüentemente de lugar, se confiava à lealdade de muitos, sendo que não podia sem perigo demorar-se muito em parte alguma, pela consciência de quão grande inimigo tinha em César): o Arverno Epasnacto, amicíssimo do povo romano, o conduziu manietado a César sem a menor hesitação.

Ganha, entretanto, Labieno uma batalha eqüestre nos Treviros[47], e mortos muitos Treviros e Germanos, que a ninguém recusavam auxílios contra os Romanos, captura vivo os principais chefes destes e entre eles o Heduo Suro, homem notável por seu valor e nobreza, e o único dos Heduos, que se tinha até então conservado em armas.

Ao saber desta vitória, vendo acharem-se por toda parte as coisas em bom pé, e reputando haver sido a Gália vencida e submetida nas precedentes campanhas, como nunca tivesse sido a Aquitania, em parte subjugada por P. Crasso, partiu César com duas legiões para esta parte da Gália, afim de aí passar o último tempo dos quartéis de estio. Concluiu esta expedição com a mesma presteza e felicidade, que as demais. Porquanto todas as cidades da Aquitania lhe enviaram embaixadores, e deram reféns. Terminadas estas coisas, partiu o mesmo para Narbona com uma guarda de cavalaria. Por meio dos lugar-tenentes pôs o exército em quartéis de inverno: a quatro legiões colocou-as na Bélgica com os lugar-tenentes M. Antonio, C. Trebonio, L. Vatinio e Q. Tullio; a duas enviou para os Heduos[48], cuja autoridade em toda a Gália sabia ser a maior; a duas pôs entre os Turões nas fronteiras dos Carnutes, para conterem toda aquela região conjunta ao Ocean, as duas restantes, nas fronteiras dos Lemovicos não longe dos Arvernos, afim de nenhuma parte da Gália ficasse desguarnecida de exército. Poucos dias se demorou na província, percorrendo com presteza os lugares das reuniões das juntas, conhecendo das públicas controvérsias, e distribuindo prêmios aos beneméritos, pois ninguém se achava mais no caso de saber de que ânimo tinha estado cada um na rebelião de toda a Gália, que com a fidelidade e os auxílios daquela província havia vencido. Concluídas estas coisas, retira-se para a Bélgica a ter com as legiões, e inverna em Nemetocena.

Aí sabe haver o Atrebate Comio combatido com a sua cavalaria. Pois, como Antonio tivesse vindo invernar, e a cidade dos Atrebates se conservasse no dever, Comio, que depois daquele ferimento, que mencionei, costumava estar. sempre preparado para os movimentos, que empreendessem seus concidadãos afim que quando concebessem projetos de guerra, não lhes faltasse impulsor e chefe, obedecendo a cidade[49] aos Romanos, com os seus cavaleiros se sustentava a si e aos seus de latrocínios, e, infestando os campos, interceptava muitos comboios de víveres, que eram transportados para os quartéis de inverno dos Romanos.

XLVIII

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A Antonio havia sido adjunto o prefeito da cavalaria C. Voluseno Quadrato, afim de com ele invernar. A este expede Antonio a perseguir a cavalaria dos inimigos. A singular esforço reunia Voluseno grande ódio contra Comio, para desempenhar a comissão de melhor vontade. Assim, dispõe emboscadas, e atacando freqüentemente a cavalaria deste, alcança sobre ela vantagens. Combatendo-se por último com mais encarniçamento, e no empenho de aprisionar a Comio, que o atraía para longe com precipitada fuga, perseguindo-o Voluseno mais tenazmente com poucos, invoca Comio a proteção e o auxílio dos seus contra o seu inimigo, pedindo-lhes não consentissem ficarem impunes as feridas que recebera com violação da fé pública, e voltando o cavalo, arroja-se imprudentemente sobre o prefeito. Praticam todos os seus cavaleiros o mesmo, fazem voltar de rosto aos nossos poucos, e os perseguem por seu turno. Chega Comio o cavalo incitado com as esporas ao de Quadrato, a quem com a lança vibrada com muita força vara uma das coxas. Ferido o prefeito, não hesitam os nossos em resistir e repelir o inimigo, fazendo voltar os cavalos. Logo que tal se deu, abalados com o grande choque dos nossos, muitos dos inimigos são feridos, parte, esmagados na fuga, parte aprisionados (mal que evitou o seu caudilho pela velocidade do cavalo) e tão gravemente foi por ele ferido o prefeito neste combate, aliás vantajoso, que por correr perigo de vida, é transportado aos arraiais. Comio, porém, ou por haver satisfeito a sua paixão, ou por ter perdido grande parte dos seus, envia embaixadores a Antonio, e confirma com reféns, que havia de permanecer no lugar, que lhe designasse, e fazer quanto lhe ordenasse: pede unicamente, seja concedido ao seu temor, o não comparecer na presença de Romano algum. Vendo que tal pedido partia de um temor justificado, concedeu-lhe Antonio o perdão, e aceitou os reféns.

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Sei que César consagrou um comentário especial a cada ano da guerra, que fez na Gália: não julguei dever fazer a mesma divisão, porque o ano seguinte, o do consulado de L. Paulo e C. Marcelo, nada ali oferece de importante. No entanto, para que ninguém ignore em que lugares esteve César e o seu exército, ou o que fez neste tempo, di-lo-ei resumidamente e o ajuntarei a este comentário

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Invernando na Bélgica, tinha César unicamente em vista conter as cidades[50] na amizade, e a nenhuma dar esperança ou motivo de revoltas. Nada pois desejava menos que ver-se imposta a necessidade de fazer guerra no momento de partir, afim que, quando houvesse de retirar o exército, não restasse alguma guerra, que toda a Gália, sem receio do presente perigo, de boamente abraçaria. Assim, tratando as cidades honorificamente, obrigando os seus principais com avultados prêmios, não impondo a essas tributos, facilmente conseguiu, melhorada a condição da obediência, manter em paz a Gália por tantas derrotas cansada.

Contra seu costume partiu César para a Itália, concluido o inverno, a quanto maiores jornadas pôde, no intuito de visitar os municípios e as colônias, a que recomendara a candidatura ao sacerdócio do seu questor M. Antonio. Não só empregava de boamente a sua popularidade, em favor de um homem, que lhe era tão devotado, e a quem enviara pouco antes a solicitar esta dignidade, como com insistência contra a facção e o poder de poucos, que, com a rejeição de M. Antonio, desejavam acabar com a influência dele César, quando terminava o seu governo. Posto que, antes de tocar na Itália, soubesse em caminho haver sido Antonio feito augur, julgou todavia ter justo motivo de visitar os municípios e as colônias, afim de agradecer-lhes o apoio e os bons ofícios que a Antonio prestaram e recomendar-lhes ao mesmo tempo a sua própria candidatura ao consulado para o seguinte ano, sendo que gloriavam-se insolentemente seus adversários de haverem sido criados cônsules L. Lentulo e C. Marcelo, que o despojariam de toda a honra e dignidade, e haver sido arrancado o consulado a Ser. Galba[51], que contava com muito mais apoio e sufrágios, isto porque lhe era conjunto em amizade, e tinha sido seu lugar-tenente.

Foi a chegada de César por todos os municípios e colônias acolhida com honras e afeições incríveis. Chegava ele então pela primeira vez depois de concluída aquela guerra da Gália inteira. Nada se omitia do que podia excogitar-se para ornamento das portas, dos caminhos, de todos os lugares, por onde tinha de passar. Saia-lhe ao encontro toda a multidão com os filhos, imolavam-se vítimas em todos os lugares, levantavam-se mesas nas praças e nos templos, de modo que podia ser por ele de ante-mão fruida a alegria do mais almejado triunfo. Tanta era a magnificência dos ricos, tamanho o desejo de comprazer-lhe os pobres.

Depois de haver percorrido todos os distritos de Gália Togada, voltou César quanto mais depressa ao exército em Nemetocena, e chamadas as legiões de todos os quartéis de inverno para as fronteiras[52] dos Treviros, para lá se dirigiu, e passou-lhes revista. A T. Labieno prepô-lo a Gália Togada, afim que melhor o pudesse auxiliar na sua candidatura ao consulado. Fazia ele próprio tantas marchas, quantas julgava bastantes para a mudança de lugar, por causa da conservação da saúde das tropas, Aí posto ouvia dizer freqüentemente ser Labieno solicitado pelos seus inimigos, e era informado partirem as solicitações de poucos, com o fim de, interposta a autoridade do senado, o despojarem de alguma parte do exército, nem todavia acreditou coisa alguma acerca de Labieno, nem pôde ser induzido a empreender o que quer que fosse contra a autoridade do senado. Julgava, pois, obter facilmente justiça, se as deliberações dos padres conscritos fossem livres. Assim, o tribuno da plebe, C. Curião, que se encarregara de defender-lhe a causa e a dignidade, havia muitas vezes proposto ao senado que, se as armas de César inspiravam algum receio, quando o domínio e as armas de Pompeu não deviam causar menor terror, despedisse um e outro os seus exércitos, depondo o poder militar: que por este fato ficaria a república em plena liberdade de exercer os seus direitos. Não só o havia proposto, como até chegado a começar a pôr a proposta a votos, quando a isso se opuseram os cônsules e os amigos de Pompeu, e iludiram a questão, temporizando.

Era esse um testemunho manifesto da opinião do senado, e demais coerente com um fato anterior. No precedente ano havia Marcelo proposto ao senado, em prejuízo da dignidade de César, que fosse este, contra a lei de Pompeu e Crasso, revocado antes de tempo do governo de suas províncias[53]: emitidos os pareceres, e pondo o negócio a votos o mesmo Marcelo, que desejava adquirir preponderância, tornando César odioso, rejeitado o seu, colocou-se o senado em peso do lados dos pareceres contrários[54]. Não se desanimaram com esta rejeição os inimigos de César, antes a tomaram por aviso, por atrair a seu partido maior número de influências, com as quais obrigassem o senado a aprovar aquilo que eles mesmos tivessem ordenado.

Faz-se depois um decreto do senado, estatuindo que Cn. Pompeu e C. César mandassem cada um uma legião para a guerra dos Partos; era claro que com isso se tiravam duas legiões a um só. Porquanto Cn. Pompeu deu, como se fosse sua, a primeira legião que enviara a César, organizada com alistamento feito na província deste. César, se bem não tivesse a menor dúvida sobre a intenção de seus adversários, reenviou, todavia, a legião a Pompeu, e, em execução ao decreto do senado, ordenou se entregasse em seu nome a décima quinta legião, que tinha na Itália. Em lugar dessa enviou à Itália a décima terceira, para guardar os postos, donde era tirada a décima quinta. Distribuiu, depois, o exército em quartéis de inverno: a C. Trebonio com quatro legiões postou-o na Bélgica; a C. Fabio com outras tantas mandou-o para os Heduos[55]. Julgava, pois, que ficaria a Gália seguríssima, se fossem contidos por exércitos os Belgas, que de todos os Gauleses são os mais belicosos, e os Heduos que de todos são os mais poderosos. Partiu ele mesmo para a Itália.

Ao chegar ali sabe que as duas legiões, que entregara, e deviam, segundo o decreto do senado, ser conduzidas para a guerra contra os Partos, haviam sido pelo consul C. Marcelo entregues a Pompeu, e estavam retidas na Itália. Dado que, em vista disto, a ninguém fosse duvidoso o que se tramava contra César, resolveu, todavia, este, sofrer tudo, enquanto lhe restasse esperança de obter justiça pelas vias legais, antes que recorrer à sorte das armas. Esforça-se dirigindo-se[56] por carta ao senado, para que Pompeu deponha pela sua parte o poder militar, e promete fazer outro tanto, mas se aquele a isso se negar, declara que não há de faltar ao que deve a si e à patria.

  1. Este livro, aliás inferior aos de César, quer no método de escrever a história, grupar e coordenar os fatos, quer no estilo e na dicção, mas não destituído de interesse histórico, principalmente por servir como de introdução à guerra civil, conjectura-se haver sido escrito, assim como os da guerra de Alexandria, e da de África, por A. Hircio, que fez sob César a guerra Gaulesa, foi depois da morte deste eleito cônsul com Virbio Pansa, e venceu a Antonio na batalha de Modena, mas foi morto na ação.
  2. Cidades por nações.
  3. Como acima.
  4. Como acima.
  5. A 31 de dezembro.
  6. Fronteiras por território.
  7. Como acima.
  8. Cidades por nações.
  9. Como acima.
  10. O sestércio valia 2 asses e meio; o asse 4 réis.
  11. Que em luqar de porque, ou de que.
  12. Cidades por nações.
  13. Como acima.
  14. Fronteiras por território.
  15. Fronteiras por território.
  16. Fronteiras por território.
  17. Oito estipêndios equivalem a oito anos de soldo, e por conseguinte de serviço.
  18. Sóe, vem de soleo, es, solere, latino, ter por costume, costumar. Numa tradução destas julgamos conveniente para dar novidade ao estilo, restabelecer este verbo antiquado que é mui harmonioso, e de que elegantemente usavam os clássicos.
  19. Os Bituriges estão aqui pelo país que habitavam.
  20. Cidades por nações.
  21. Cidade por nação.
  22. Cidades por nações.
  23. Cidades por nações.
  24. Como acima.
  25. Como acima.
  26. Cidade por nação.
  27. Cidades por nações.
  28. Fronteiras por país território.
  29. "Põe-me onde se use toda a feridade", disse Camões.
  30. Cidade por nação.
  31. Hoje Poitiers.
  32. Cidades por nações.
  33. O povo pelo país.
  34. A província romana.
  35. Cidades por nações.
  36. Cidades por nações.
  37. Últimas fronteiras pela extremidade do território da Gália.
  38. Suas fronteiras por seu país.
  39. Fronteiras por território.
  40. Como acima.
  41. Fronteiras por território.
  42. Às 4 horas da madrugada.
  43. O povo pelo respectivo país.
  44. Cidades por nações.
  45. Como acima.
  46. Como acima.
  47. Os Treviros pelo país respectivo.
  48. Os Heduos pelo país respectivo.
  49. Cidade por nação.
  50. Cidades por nações.
  51. Tornando-se depois inimigo de César, foi um dos coajurados.
  52. Fronteiras por território.
  53. Eram estas a Iliria, a Gália Cisalpina e a Grande Gália, ou Gália Transalpina.
  54. Os senadores Romanos votavam, passando de seus lugares para o lado do senador, cujo parecer aprovavam.
  55. Os Heduos pelo respectivo país.
  56. De Apiano transcreve-se o que vai em itálico depois dos três... para suprir a lacuna que se nota no texto, e haver coerência com o que César diz no princípio do primeiro livro da guerra civil.