Anexo:Imprimir/O Parocho da Aldeia

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Índice

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Como a philosophia é triste e arida! Ás vezes, na primavera, o vento norte atira-se pelas encostas, tombando dos visos da serra, como se uma intelligencia vivesse n’elle, intelligencia de maldade e destruição. De noite e de dia os troncos das arvores torcem-se e gemem, as ramas açoutam-nos, e despedaçam-se involtas nos braços longos e flexiveis da ventania: o demonio do septentrião sibilla no meio dellas um zumbido entre de lamento e d’escarneo. Debalde o bosque estende saudoso por um momento os seus mais altos raminhos para o sol que se vae alevantando no oriente: a rajada despega de novo da cumiada da montanha; o bosque curva-se para o meio-dia; e galgando por cima daquellas mil frontes inclinadas das plantas gigantes, das rainhas magestosas da vegetação, os turbilhões da atmosphera agitada rolam pela planicie coberta já de relva entresachada das primeiras florinhas. Então, relva e florinhas murcham-se esmagadas pelas mãos da procella, que tudo alcançam, fustigam e desbaratam. Os carvalhos frondosos e as boninas rasteiras, com a fronte pendida para a terra, como outros tantos symbolos do desalento, não ousam ergue-la para o céu. É que, rugindo, a rajada cahe da montanha em perenne catadura. Ás vezes, como por brinco infernal, o vento finge adormecer um instante, e depois remoinha e apruma os topos das arvores e as corolas das flores, mas é para logo as vergar com mais força, e apupar com o silvo insolente aquella rapida esperança, que se desvaneceu tão breve.

E quando o vento acalma é para saltar ao ponente ou ao sul. A rajada já não silva da montanha: uma bafagem tepida vem da banda do mar; mas o ceu está toldado e o ar humido: o dia passa melancholico e pesado sobre a bonina que a nortada açoutou: ella não pôde saudar o sol no oriente: está pendida e murcha como a ventania a deixára. A noite vem encontra-la n’uma especie de torpor, que é existir, mas que não é vegetar, e ainda menos viver.

Como a florinha do campo a alma por onde passou a procella da philosophia, esse turbilhão transitorio de doutrinas, de systemas, de opiniões, de argumentos, pende desanimada e triste; e na claridade baça do septicismo, que torna pesada e fria a atmosphera da intelligencia, não póde aquecer-se aos raios esplendidos do sol de uma crença viva.

Com Kant o universo é uma duvida: com Locke é duvida o nosso espirito: e n’um destes abysmos vem precipitar-se todas as philosophias.

A arvore da sciencia, transplantada do Eden, trouxe comsigo a dor, a condemnação e a morte: mas a sua peior peçonha guardou-se para o presente: foi o scepticismo.

Feliz a intelligencia vulgar e rude, que segue os caminhos da vida com os olhos fitos na luz e na esperança postas pela religião além da morte, sem que um momento vacille, sem que um momento a luz se apague ou a esperança se desvaneça! Para ella não ha abraçar-se com a cruz em impeto de agonia, e clamar a Jesus:—­“Creio, creio, oh Nazareno! Creio em ti, porque a tua moral é sublime; porque eras humilde e virtuoso; porque filho da raça soffredora e austera chamada o povo, eras meu irmão, e não podias, tão bom, tão singelo, tão puro enganar teu pobre irmão. Creio, creio, oh Nazareno! porque até a hora do expirar na ignominia, até a hora da grande prova, nunca desmentiste a tua doutrina. Creio, creio, oh Nazareno! porque tu só nos explicaste o mysterio desta associação monstruosa da saude e do ouro, do poderio e dos crimes a um lado; a da enfermidade e da pobreza, da servidão e da innocencia a outro; porque nos explicaste como os destinos humanos se compensavam além do sepulchro. Creio, creio, oh Nazareno! porque só tu soubeste revelar a consolação á extrema miseria sem horisonte, e os terrores á completa felicidade sem termo na vida, collocando no logar do destino a providencia, e do nada a immortalidade! Creio, creio, oh Nazareno! porque a intensidade do teu viver é um impossivel humano; a victoria da tua doutrina severa contra a philosophia e o paganismo um milagre; a gloria do teu nome de suppliciado maior que todas as glorias das mais altas e virtuosas intelligencias do mundo. Mas foste, na verdade, um Deus?”

Não, o animo vulgar que nunca vacillou na fé, que nunca discutiu o Verbo, nunca julgou o Christo, possuido do insensato orgulho da sciencia, esse não sabe a dolorosa oração do que pede a Deus o crer; ignora quanto fel encerra a interrupção contínua de cada phrase, de cada palavra daquelle tormentoso orar; ignora o que é atirar-se aos pés da cruz por um impulso quasi phrenetico do coração, sentir a voz gelida, pesada, cruel do entendimento dizer-lhe tranquillamente—­quem sabe!”—­e cahir desanimado no lethargo da duvida, d’onde muitas vezes bem tarde se alevanta o espirito, opprimido e quebrado, porque nelle pelejaram horas largas o instincto religioso e o demonio implacavel a que chamam sciencia.

A sociedade é bem injusta quando ás faces do desgraçado, que assim lucta comsigo mesmo, sacode o lodo da injuria, dizendo-lhe: —­hypocrita!—­porque escondeu aos que o rodeiam, não as certezas, que não as tem, mas as duvidas terriveis da intelligencia, e lhes revelou só as inspirações, os desejos, as saudades do coração! —­Hypocrita?! Tanto como o que, havendo-se transviado da estrada e cahido em fojo profundo, dorido, coberto de pisaduras e feridas, e ensanguentando as mãos e o rosto nas urzes do despenhadeiro, lidasse por saír delle e voltar ao caminho suave e plano, e bradasse aos que visse ao longe:—­“não vos affasteis para aqui!”—­Hypocritas são aquelles que mentem aos que os escutam; que simulam a paz do descrer tranquillo, quando vae lá dentro o tumultuar das incertezas. Como Satanaz elles dizem que o inferno é o ceu; dizem que a irreligiosidade tem o segredo do repouso e da ventura, quando o que ella dá é inquietação e desesperança.

Feliz a alma vulgar e rude que crê, e nem sequer sabe que a duvida existe no mundo! Está certa de que além da morte ha vida; conhece as suas condições; conhece-as como lh’as ensinaram, como conhece as condições dos corpos. Para ella as noites não tem os pesadellos monstruosos, nem os dias as meditações febris em que o sceptico involuntario se debate na orla do possivel, que toca por um lado nas solidões do nada, por outro na immensidade de Deus.

Mas ainda mais feliz a intelligencia superior ás do vulgo, aquella que a Providencia destinou á missão do poeta, nos annos da infancia e da juventude, antes que o arido bafo da sciencia a queimasse passando por cima della! Nesse espirito e nessa idade a religião não está só nos preceitos e nos dogmas; está na natureza inteira. A alegria de Deus, o aspirar das fragrancias celestes, a toada suavissima dos hymnos dos anjos, descem a ella nos raios do sol quando nasce e quando desapparece; tremulam no espelhar-se da lua nas aguas; misturam-se no cicio das arvores; entretecem-se com os mil gemidos da noite; vivem nas affeições domesticas, e sanctificam o primeiro bater do coração pelo amor. Tudo então é viçoso e puro, porque a alma poetica lhe empresta viço e pureza. As harmonias moldadas, na virilidade, pelas leis das linguas e das escholas, são apenas um eccho frouxo desses canticos da meninice e da primeira mocidade, que se evaporam sem se escreverem, que são um oceano de delicias ineffaveis em que se embala mollemente a imaginação e o sentir do homem, a quem o mundo ha-de chamar poeta. Nessa epocha da vida elle não abstrahe do real para salvar verdadeira e intacta a sua idealidade: faz mais; derrama esta, que é a seiva intima do seu viver, pelo universo, e converte-o n’uma cousa formosa, sancta, ideal, que o mundo está bem longe de ser.

Depois vem outra epocha da vida, em que a felicidade é mentida, mas ainda é felicidade, posto que já eivada de vaga inquietação, de ambições desregradas, de esperanças mesquinhas e contradictorias. São os annos qnc precedem e seguem immediatamente os vinte.

Abrem-se ante nós os caminhos do mundo como uma conquista. Gloria d’artistas, poderio, opulencia, acções generosas e grandes, amor sem termo, amizade sem perfidias, vida multiplicada indefinidamente pela infinidade de affectos; que ha, emfim, que não sonhemos nessa epocha de fervente loucura? A innocencia morreu, a poesia intima e crente desbaratou-se, o sentimento religioso esmoreceu; mas ficam os deleites dos sentidos, que nos embriagam; os applausos das multidões aos nossos hymnos descorados, que ellas ainda julgam energicos e brilhantes; applausos que nos desvairam: fica-nos uma philosophia orgulhosa e insensata, que se crê profunda, uma sciencia superficial, que se crê completa, pela qual dormimos tranquillos sobre a negação de todas as idéas mysticas, e de todas as lembranças de Deus.

Desta idade em diante é que chega o desfazer das illusões, até das illusões do orgulho. A poesia suave e pura da infancia e da puberdade passou: passa também o iris das paixões férvidas, das ambições insaciaveis, da crença na propria energia. Começa então o pardo crepusculo deste scepticismo, que, semelhante a herpes lentos, vae lavrando por todas as nossas opiniões e affectos, e os prostra e subjuga. Desde essa epocha a vida tem largas horas de tedio, em que o existir é uma carga pesada, porque nos falta um alicerce em que possamos firmar-nos; porque fluctuamos sobre as nevoas densas do duvidar de tudo.

O materialismo incredulo já tirou das phases espirituaes dos altos engenhos argumento contra a immortalidade. Com a sua logica miope persuadiu-se de que via as enfermidades e a decadencia da alma acompanharem as enfermidades e a decadencia do corpo; que via o entendimento cachetico esmorecer com a decrepidez; quiz que elle na morte ficasse perdido e annullado entre as cinzas da sepultura. Se o materialismo soubesse que a vida das summas intelligencias é a poesia, e que essa vida segue a ordem inversa do desinvolvimento physico; se conhecesse que a energia intima tem o seu apogeu nos annos debeis da infancia, e começa a desvanecer-se quando os orgãos se fortalecem, elle não teria achado a explicação do phenomeno nas suas tristes doutrinas. Nos destinos eternos dos homens iria encontrar a razão desse facto, que então veria á sua luz verdadeira. Os olhos da alma vão-se pouco a pouco ennevoando no meio das trevas do mundo: nesta atmosphera grosseira e corrupta ella resfolga a custo, e com o diminuir dos alentos diminuem-se-lhe successivamente os brios: cada dia lhe desfolha um affecto, lhe discute uma crença, lhe mata uma esperança, lhe traz um desengano cruel. Entre o espirito e o mundo partiram-se um a um todos os laços. Vós crêdes que a mente se definha, e ella apenas dormita para despertar vigorosa ao sol da eternidade, que rompe atrás do sepulchro.

Tomae-me esse octogenario tonto que foi um alto engenho: cavae no deserto do seu coração gasto e frio, e arrancae-me de lá uma daquellas paixões que ardem até o ultimo instante da existencia: vibrae uma corda das que lhe davam na idade viril um som estridente: dizei-lhe:—­“teu filho querido foi arrastado ao tribunal como criminoso; espera-o o supplicio se não houver uma voz eloquente que o defenda: se ella se erguer será salvo; e tu foste na mocidade o mais eloquente dos homens!”—­Dizei-lhe isto, e vereis esse engenho, que crêdes moribundo, atirar-se como um tigre ao meio dos juizes, e achar toda a energia dos vinte e cinco annos para defender aquella vida que a natureza ligou á sua pelas harmonias mysteriosas da paternidade. Se as palavras, se o orgão extenuado da linguagem não podér exprimir o pensamento daquella alma remoçada subitamente, o gesto, o olhar, os meneios substituirão a lingua, e se cansados e debeis não bastarem á violencia da idéa, o espirito despedaçará o quasi cadaver, e despedindo-se da terra provará que, se dormitava, não se extinguia, e que, despertando, partia o vaso fragil que já não o podia conter.

Tal é o destino da intelligencia neste breve desterro: dous dias conserva as recordações verdadeiras e puras da sua origem immortal: outros dous alumia-se ao fogo fatuo das paixões e esperanças: o resto delles revolve-se na lucta tormentosa das idéas, dos affectos, dos desenganos: depois vem o dormitar da velhice, e a regeneração da morte.

Eu, que já vou áquem do marco, onde começa o terceiro periodo da vida humana, a sós ás vezes com as minhas recordações infantis, ponho-me a comparar o aspecto prosaico e triste, que tem actualmente para mim o universo, com as fórmas suaves e poeticas em que elle me apparecia involto nesses tempos dourados. É uma comparação amarga; mas a saudade que encerra consola do seu amargor.

Hoje a lua no crescente alevanta-se ao anoitecer de um dia sereno do estio, e estende o manto de lhama de prata sobre a face levemente crespa das aguas: os seus raios, transparecendo por entre o verdenegro das copas do arvoredo, que se balouçam somnolentas, descem tremulos sobre o chão pardo, e mosqueam-lhe a superficie como um dorso de panthera. A viração tenuissima da tarde passa e murmura um cicio quasi imperceptivel na folhagem. Em volta do circulo alvacento que o luar esparge no ceu, scintillam algumas estrellas no azul do firmamento, que parece o leito recamado de saphyras em que se reclina a rainha da noite.

Ha quinze ou vinte annos uma tal noite tinha para mim um sem numero de mysteriosas harmonias, que eu não sabia explicar, mas que sabia sentir. Agora sei dizer-vos o que é a lua, a sua luz refracta, a noite, a viração, o vulto das aguas encrespadas, as estrellas, e as solidões do espaço; mas o que eu já não sei é verter lagrymas de ineffavel contentamento, que se me escoavam tepidas pelas faces ao contemplar as harmonias immateriaes e intimas, que vagavam pela atmosphera tranquilla, como uns echos longinquos de harpa angelica, tombando de astro em astro até se derramarem na terra.

Dae-me uma nota só dos canticos que eu então escutava; dar-vos-hei em troca toda a minha estupida e inutil sciencia!

Mas essa epocha da vida não voltará mais, porque não póde retroceder uma unica onda do rio impetuoso do tempo! Depois da taça do mel esgotada resta a do absinthio. Que se resigne e espere aquelle que vae devorando os dias da duvida e do desalento. Chegará a hora de renascer para a poesia e para a certeza: será a da morte. A Providencia foi ainda generosa comnosco, consentindo-nos que a espaços affastemos dos labios o calix do fel, e deixando que nestes momentos rasguem o nosso longo e tedioso crepusculo alguns raios transitorios de luz. A memoria é o instante de repouso, e a saudade o clarão suave que nos illumina.

Recordar-se—­consolar-se.

Uma das cousas que nas recordações da juventude ainda espiram para mim poesia e saudade é a imagem de um velho prior d’aldeia que conheci na minha meninice. Hoje tão bondosos, tão alegres, tão veneraveis, ha-os por certo ahi, e muitos: eu é que não sei conhecê-los. A auréola, que então rodeava as cans do sacerdote ancião, desvaneceu-se pouco a pouco; desvaneceu-a a experiencia do mundo, como tantas mil crenças e imaginações de outr’ora! Elle morreu já, por certo; mas vivo que fosse, eu não sentiria ao vê-lo, ao falar-lhe, aquella especie de alegria timida, de confiança receiosa que nesse tempo o bom do velho me inspirava. Parecia-me que estando ao pé delle estava mais perto de Deus, cujo valído, por assim dizer, era o padre prior. Não sabia o sacerdote essa lingua que eu cria falar-se no ceu, o latim, que então era para mim cousa mysteriosa e sancta? Não trajava ás vezes os trajos da côrte celeste, o amicto, a casula, o pluvial, com que estavam vestidos alguns vultos de anjos pintados em tres ou quatro antiquissimos quadros do presbyterio? Quando nas suas practicas, depois da missa do dia, narrava os gosos da bemaventurança, os tormentos do purgatorio, e os tractos intoleraveis do inferno, não juraria qualquer que elle já peregrinára largos annos além do sepulchro, ou que voz de cima lhe revelava tantas maravilhas e tão solemnes terrores? Evidentemente o velho clerigo estava mais perto dos degraus do throno divino que toda a outra gente, e, por me servir da linguagem politica, exercia em nome do céu uma delegação na terra; era uma especie de missus dominicus da Providencia. E quando elle, apezar dos meus tenros annos, me escolhia para acolyto, para estafar a porção de latim do missal, que as rubricas inexoraveis subtrahiam ao seu imperio, sorriam-me as esperanças, algum tanto vaidosas, de obter de Deus deferimento ás minhas pretenções infantis, como costumam sorrir ao requerente, a quem deputado de grande conta mostra familiaridade na presença de omnipotente ministro.

Hoje o latim do padre prior parecer-me-hia um tanto barbaro, e talvez barbarissima a sua prosodia: nas vestes sacerdotaes acharia os trajos romanos do imperio atravessando, immutaveis como a igreja, por entre as transformações da moda e do luxo; nos quadros do presbyterio riria da ignorancia e mau gosto do pobre pintor; e nas descripções das venturas e tormentos da outra vida descubriria unicamente uma incarnação grosseira em imagens materiaes das revelações profundas do espiritualismo christão. É que nesse tempo tudo me chegava aos olhos da alma alumiado, risonho, variegado, porque tudo transparecia através de um prisma de sete côres, da innocencia singela e credula da infancia; e hoje tudo me parece como a folha que cahiu da arvore no outono, murcho e desbotado, passando através da atmosphera nevoenta e triste da sciencia e do orgulho. Então o velho parocho affigurava-se-me mais que um homem; hoje, na escala das desigualdades humanas, provavelmente só acharia para elle um bem modesto logar.

A aldeia em que o bom do clerigo pastoreava o seu rebanho espiritual estava assentada na falda de um monte, e pouco inferior a ella dilatava-se uma veiga, que ao longe, lá bastante ao longe, ía bater no mar. No alto da povoação ficava o presbyterio. Era a igreja, segundo hoje se me affigura (e tenho-a bem presente) daquelle gosto duvidoso entre a architectura christan que expirava, e a da restauração romana, que ainda se não comprehendia: era um desses templosinhos construidos nos fins do reinado de D. Manuel e durante o de D. João III, de que tão grande numero resta ainda pelas parochias de Portugal, e que são mais um argumento de que os nobres conquistadores da India, donatarios das terras e padroeiros das igrejas, não voltavam do oriente com as mãos vazias. A devoção nesses tempos era um objecto de luxo: edificar uma igreja ou uma capella equivalia a ter hoje um camarote em S. Carlos, ou um cocheiro com estrigas de linho na cabeça e chapeu triangular.

A portada da igreja, de arco tricentrico firmado em pilares polystylos de meio relevo, era o mais claro testemunho da idade provecta do presbyterio. A residencia parochial, originariamente do mesmo estylo, estava já civilisada: uma porta rectangular substituíra a antiga. Esquadriadas estavam tambem as duas janellas do sobrado de differentes dimensões, e affastadas uma da outra; e nos seus postigos da esquerda via-se o moderno conforto das vidraças. Não quero dizer com este elogio á morada do padre prior que a igreja tinha resistido, teimosa como um velho caturra, aos progressos da civilisação. Pelo contrario. Estava mais alindada ainda. Uma irmandade, ou não sei quem, que entendia na fabrica, havia pintado de ochre tudo o que era pedra, de vermelhão tudo o que era azulejo. As camaras municipaes das grandes cidades, os conegos das collegiadas e sés ainda não passaram do ochre; e uma pobre irmandade da aldeia já tinha ha vinte annos vencido a méta a que apenas hoje chegam o municipio e a cathedral.

O que, porém, escapou ao ochre e ao vermelhão dos mesarios do burgo foram dous seculares e formosos platanos que sombreavam o portal do presbyterio: na febre amarella, que grassa tão furiosa pelo senso esthetico dos nossos magistrados populares e das nossas dignidades ecclesiasticas, admira que tenha esquecido estender o beneficio da caiadura gemada aos troncos rugosos e carrancudos das velhas arvores, que rodeiam os edificios ou as praças. Verdade é que todos os dias alguma desaba sob os golpes do machado. Isto é melhor: mas porque não haveis de remoçar as que vão escapando com as lindezas e alegrias canonico-municipaes?

Bellos e veneraveis eram os dous platanos. O adro, cubriam-no todo com as suas sombras fechadas, e só pela volta da tarde, principalmente no outono, é que algumas resteas açafroadas do sol no poente se estiravam por debaixo delles, e lá íam bater frouxas no limiar da igreja pulído do contínuo perpassar, e na porta de um vermelho desbotado, onde nesse tempo começavam a alvejar os remendos brancos com que as revoluções converteram os áditos dos templos em pelourinhos eleitoraes.

Á entrada do adro alevantava-se uma grande cruz de madeira pintada de preto, em cuja haste mãos devotas tinham atado um ramo de flores, e este ramo, no meio do qual havia um pé de perpetuas, era a imagem das vaidades do mundo ao redor da religião do calvario, immutavel no meio dellas. As outras flores tinham-nas mirrado os ardores do estio: só restavam do morto ramilhete as immarcessiveis perpetuas.

Era n’um poial que servia de base á cruz, onde áquella hora do pôr do sol o padre prior vinha muitas vezes sentar-se; e alli estava tempo esquecido, ora alongando os olhos pelas solidões do mar, que lá em baixo no fundo do extenso valle quebrava nas rochas, ora traçando attentamente na terra com a sua grande bengala de castão de marfim diversas figuras, se geometricas não o sei dizer, porque hoje não creio tanto na geometria do padre prior como então cria nas suas terriveis revelações do outro mundo tiradas do Speculum Vitae. O que, porém, eu sentia melhor do que hoje, sem então o saber explicar, era a suave e profunda poesia que respirava esse quadro do velho sacerdote juncto do symbolo religioso, áquella luz moribunda da ultima hora do dia, em que uma curta saudade melancholica vem como percursora da noite pousar-nos sobre o coração. Não o imaginava nesse tempo, mas imagino agora por onde vaguearia a mente do velho clerigo em quanto a bengala ía d’um para outro lado cruzando linhas tortuosas e incertas. Os ultimos instantes de moribundo, os quaes elle tinha adoçado com as consolações da fé; a esmola tirada da escassa congrua para enxugar lagrymas de viuvas e de orphãos; os conselhos paternaes dados á mocidade, salva assim por elle de largos dias de remorsos e amargura; os odios convertidos em perdão entre inimigos; as dissensões domesticas pacificadas pela conciliação do pastor; todo o bem, emfim, que por trinta ou quarenta annos elle havia semeado na aldeia, desde as ultimas casinhas de colmo que alvejavam caiadas na orla pallida dos campos até o altar do presbyterio, fructificava talvez ante os olhos da sua alma, n’esses momentos de extasi, em rica seára de esperanças, cujos fructos enthesourava no céu. Depois, a cruz hasteada juncto delle lhe viria lembrar o nada das diligencias que empregára, dos sacrificios que fizera para verter algum balsamo de ventura nas chagas dolorosas da vida; para remir da perdição as ovelhas transviadas do pobre rebanho que lhe fôra confiado. A cruz negra no seu eloquente silencio contava-lhe sacrificios infinitamente mais arduos que os delle, feitos, não em proveito d’uma aldeia ou d’um povo, mas para remir o genero-humano. Por isso lhe via ás vezes deixar pender a fronte calva sobre o peito, e tomar-lhe o rosto uma expressão singular, inexplicavel nessa epocha para mim, mas que era o desalento que lhe gerava no espirito a terrivel comparação das suas acções com as do Suppliciado do Calvario, ao qual tomára por modelo, e que jurára imitar. Muitas vezes espantava-me de que se conservasse assim engolfado em seus pensamentos até que o sino das ave-marias o vinha despertar; e na minha alegria da infancia, vendo-o tão triste e carrancudo, pensava comigo, que o padre prior se ía tornando com a idade tonto e aborrido. Todavia, era que o bom velho nesses momentos de meditação volvia atraz os olhos para os caminhos da sua vida, onde esperava achar alguns vestigios brilhantes de obras virtuosas; mas esses caminhos, sumidos na penumbra da cruz, não os percebia senão como uma nuvemsinha escura e duvidosa através da luz immortal das virtudes e dos beneficios do Christo.

Ao tocar, porém, das ave-marias todas aquellas imaginações desconsoladas, se elle as tinha, como hoje creio, desappareciam por um movimento habitual do espirito e do corpo; este para se erguer, aquelle para orar. Sobraçada a bengala, em pé, com as mãos postas, segurando ao mesmo tempo entre ellas o seu chapéu de tres ventos, com a cabeça um pouco inclinada para o chão, o padre prior murmurava em voz baixa aquella tão poetica oração do despedir do dia. Os trabalhadores, que, voltando das fadigas do campo, acontecia passarem por ahi nessa occasião, descobriam-se tambem, e encostando-se ao ancinho ou á enxada punham as mãos e resavam até que o reverendo, acabando os latinorios, que elles íam repetindo em vulgar, lhes dizia:—­Boas noites, rapazes, vá a cobrir.”—­E os ganha-pães cobriam-se, respondendo:—­Guarde-o Deus, padre prior:”—­E partiam: e elle assentava-se outra vez a olhar para o poente, onde o sol, que se affundíra no mar, deixava entre si e a noite, precipitando-se após elle das alturas do céu, uma barra de vermelhidão e ouro, que se estirava para um e outro lado do horisonte como tentando embargar o caminho ás trevas. E alli estava scismando até que a tia Jeronyma alçava meia adufa de uma janella baixa, que dava claridade á cozinha, e o chamava para a ceia, ao que promptamente obedecia, porque cumpre advertir que o padre prior não só respeitava á carga cerrada todas as tradições do catholicismo romano, mas tambem a sabedoria tradicional do povo, que neste capitulo de ceia resa que deve ser comida sem sol, sem luz, e sem moscas, momento fugitivo do expirar do dia, que não consta deixasse jámais passar por alto a boa da tia Jeronyma.

Nunca me ha-de esquecer aquella hora na aldeia, a luz crepuscular da atmosphera, as gelosias dos aposentos inferiores da residencia parochial, e a sancta velha da tia Jeronyma que teria proporcionado mais um capitulo a Chateaubriand sobre a poesia das usanças christans, se esse illustre escriptor houvesse uma vez saboreado as filhós que ella compunha para celebrar o Carnaval;—­e os seus bolos da Natividade—­e a sua ôlha e o seu anho assado da Paschoa. Não!—­Saudades de tudo isso, durante a minha vida inteira, em qualquer fortuna, no meio das mais graves cogitações, nunca hei-de affastar-vos impaciente quando vierdes, como creança travessa, baralhar-me um periodo de trabalhada prosa, ou aleijar-me com um verso parvo uma estrophe soffrivel. Vinde, meus amores antigos, que para vós esta fronte não saberá arrugar-se; esta bôca não terá esses monosyllabos duros e gelados com que se repellem importunações d’indifferentes. Vinde, e demorae-vos comigo, e palrae por uma hora, por um dia, por uma semana, que vos escutarei sempre sorrindo; e quando fôr ao sol posto, que os ouvidos da minha alma vos ouçam reproduzir vivas, harmoniosas, melancholicas as lentas badaladas das ave-marias, não como agora as ouço ás vezes no meio do ruído confuso, aspero, estridente do povoado, mas partindo da aldeia ainda deserta dos seus moradores, rolando pela veiga, espriguiçando-se pelo prado, rumorejando pelas quebradas da encosta ou pelo pinhal do cabeço, e indo morrer lá muito ao longe nas toadas duvidosas de uma cantiga de lavadeiras, ou no tinir das esquillas de um rebanho de ovelhas, que se encaminham pára o aprisco ao sibilar do pastor. Repeti-m’as assim, puras, campestres, vibradas n’um ar puro e sonoro, livres por um horisonte immenso, e ter-me-heis despertado um affecto consolador, o qual valerá mais que todas as ambições, que todos os contentamentos, que todas as esperanças do mundo.

Tem-se discutido os sinos, como se discute quanto ha no universo. Desde a existencia objectiva ou material deste mundo até a legitimidade do chocalho pendurado ao pescoço da cabra retouçando pelas ruas de qualquer capital, que resta ainda ahi para se lhe trazerem á praça os prós e os contras? Das definições possiveis do homem uma só é verdadeira: o homem é o animal que disputa. Os sinos têem tido amigos e inimigos: e porquê? Pela mesma razão porque sobre tudo ha duas opiniões contradictorias. É que tudo tem duas faces diversas. O vento sul é meigo para a arvore que veceja no recosto septentrional da montanha, e açoute da que vegeta no pendor opposto: o norte é o supplicio da primeira, e grato para a segunda. N’isto está cifrada a historia das contradicções humanas.

Os sinos, collocados em campanario de parochia aldeian, ou de mosteiro solitario, são uma cousa poetica e sancta: os sinos, pendurados nas torres garridas de garridissimas igrejas das cidades de hoje, são uma cousa estupida e mesquinha. O sino é um instrumento accorde com as vastas harmonias das serras e dos descampados. Assim como o orgão foi feito para reboar pelas arcarias profundas de uma cathedral gothica, para vibrar na atmosphera mal alumiada pelas frestas estreitas e ogivaes, do mesmo modo o sino foi perfilhado pelo christianismo para convocar os seus humildes sectarios occupados nos trabalhos campestres. Quando se associou o sino ao culto? Ignoramo-lo: ignoramo-lo, porque foi a religião serva e perseguida que o sanctificou: e quando os poderosos da terra a acceitaram para si, então entrou elle nas cidades soberbas. Lá converteu-se n’uma cousa insignificante e impertinente. É mais um ruído intoleravel para ajunctar aos outros ruídos discordes que troam por essas ruas e praças. O sino, tornado cortesão e fidalgo, é semelhante ao orgão trazido para o aposento do baile, ou, o que vale quasi o mesmo, para essas salas ao divino, bonitas, vaidosas, douradinhas, que insensatos edificam para as admirações de parvos.

E com estas digressões esquecemo-nos do padre prior. Não importa. Deixa-lo ceiar em paz, e resar o breviario. Eram estas, entre outras, duas phases graves e sérias de todos os seus dias. Depois, emquanto a velha Jeronyma punha em ordem a casa, elle pegava em um livro da pequena estante que lhe ficava á cabeceira, e lia ou uma lenda pia do Flos-Sanctorum de Rosario, ou um tracto d’aquellas grandes historias de Fr. Bernardo de Brito, até que o somno tranquillo de uma boa e san consciencia, apertando-lhe com os dedos rosados as palpebras, o entregava aos sonhos placidos que só a alvorada vinha interromper, quando o perigo imminente de alguma das suas ovelhas o não obrigava a erguer-se alta noite, ao som do resmungar malsoffrido e, até certo ponto, impio da tia Jeronyma. No horisonte limpo e sereno destas duas vidas innocentes, destes Philemon e Baucis celibatarios, que amparados um no outro íam peregrinando contentes para o sepulchro, havia um ponto negro e triste. O rendimento da parochia não consentia que o padre prior possuisse essa especie de ilota in sacris, de servo de gleba sacerdotal, chamado o padre cura. As ventanias, as chuvas, as noitadas através das serras revertiam como a congrua e os benesses em beneficio, senão do corpo, ao menos da alma do reverendo prior.

A sua congrua era maravilhosamente estitica: o grosso dos dizimos da parochia, jogava-os á risca todas as noites em tertulias um digno commendador não sei de que ordem. Ai, que a extincção dos dizimos foi a morte da religião!

A vida do velho prior passava na verdade dura e trabalhosa! Como todas as cousas deste mundo, o egoismo da tia Jeronyma não era acabado e completo, ou, para falarmos em estylo de philosophia fidalga, não era absoluto. O limitado e imperfeito é o signal que o Creador estampou na fronte do homem e na face da terra para nos recordar a todo o instante a nossa origem; é a barreira que elle alevantou diante d’este grande mysterio de energia e de audacia chamado a intelligencia. Sabedoria, força, paixões, affectos, tudo tem um horisonte commensuravel; horisonte para as virtudes como para a dor. O espirito mede e abrange o que ha mais vasto e profundo, os ermos, os mares, o coração humano; porque ao cabo d’isso tudo está o finito. Immensa, eterna, absoluta só ha uma idéa, que está fora do universo. Esta é a idéa de Deus.

Por isso, grande é somente Deus!

Mas dizia eu que o egoismo da tia Jeronyma era incompleto: digo mais; era incompletissimo. Quando o sacristão vinha alta noite quebrar o dormir risonho e variamente resonado do padre prior; quando á voz roufenha do ostiario aldeião, despertando o pastor para ir levar as consolações extremas á ovelha moribunda, e tira-la lá, porventura, dos dentes e garras do cão tinhoso, se ajunctava o trovejar ao longe da tempestade, o fustigar da chuva nas vidraças progressivas das meias janellas, e o ramalhar da ventania nos dous platanos do adro, era sem duvida que o resmungar da tia Jeronyma, apparecendo da banda da sua pocilga com a candeia mortiça na mão e as roupinhas vermelhas do envez, tinha o que quer que fosse repugnante e vil. A boa da velha pensava, acaso, que a morte não seria tão descortez que negasse ao espirito do pobre moribundo o tempo necessario para poder, ao abandonar o corpo, subir como chammasinha tenue, e galgar para o céu sobre um raio do sol nascente? Póde ser que sim. Não seria, porém, antes, que ella preferisse o deixar frigir por alguns seculos nas caldeiras do purgatorio aquella pobre alma christan, largando a sua veste mortal sem os ultimos sacramentos, á necessidade de erguer-se por noite fria e tempestuosa para tomar nos hombros uma parte da cruz do ministerio parochial? Tambem isto póde ser. O que se passava no abysmo da sua consciencia cousa era que ella não revelava a ninguem; mas em todo o caso era um pensamento egoista.

Todavia é preciso confessar que com elle se misturava um sentimento puro e nobre: dizia-o esse cuidado pressuroso com que a tia Jeronyma trazia as botas de côr terrea, o berneo de saragoça, o capote de barregana, o chapeirão oleado, e a aguardente de ginjas, sem um copo da qual o prior não ousaria transpôr o limiar da porta, e investir com as furias da noite procellosa: diziam-n’o a attenção com que mirava se elle ía agasalhado, e as mil vezes repetidas ponderações hygienicas, que lhe fazia com admiravel volubilidade de lingua. A affeição da sancta velha mostrava-se em tudo isso viva e sincera; e o seu resmonear, que no meio das idas e das voltas, e do perguntar e do responder, ía rareando e abatendo como o assobio do furacão pelo valle, perdia gradualmente a expressão de egoismo, e convertia-se pouco a pouco na de um pensamento moral.

E o padre prior calado!—­Calado enfiava as botas; envergava o gabinardo; cobria-se com o capote; punha o amplo sombreiro; enchia um copinho do excellente cordial que a boa da ama lhe havia posto diante; virava-o d’um golpe; fazia uma visagem fechando os olhos com força e estendendo os beiços; dava um estalído com a lingua no céu da bôca; exprimia o intimo conforto que n’elle gerára o ethereo licor com um brrahhh prolongado; estendia a pequena taça, cheia de novo, ao sacristão, que, mestre nos estylos de cortezia, se curvava formando com o corpo um angulo obtuso de noventa e cinco graus, despresadas as fracções, e arqueando o braço para levar o copo á bôca sequiosa, como se curva e arqueia um peralvilho de guedelhas sansimonianas e miolos de agua chilra, ao conduzir em sala de baile a deusa dos seus affectos de vinte e quatro horas ao meio do turbilhão doudo e (perdoe-se-nos a blasphemia) um tanto parvo das valsas e contradanças.

Depois duas palavras magicas saíam da bôca do reverendo pastor:—­“Até logo!”—­O seu effeito era instantaneo: o sacristão, pegando n’uma lanterna, com as chaves da igreja na mão encaminhava-se para o adro seguido do padre prior: a tia Jeronyma fechava a porta após elles; e o tentador, como se estivesse esperando por esse momento, travava-lhe novamente do espirito, e o resmoninhar da impaciencia recomeçava em breve, acompanhado do ranger do linho na roca, e do espirrar da candeia a espaços, e do respiro asthmatico do nedio gato do presbyterio, que, enroscado na lareira, abria de quando em quando os olhos amortecidos, e cerrava-os logo com philosophica indifferença, emquanto a tia Jeronyma esperava por seu velho amo, e se lhe apertava o coração sentindo o temporal que passava lá fóra, e lembrando-se de que o enfermo poderia ter guardado para hora mais decente e commoda a agonia do passamento.

E pela serra fóra, caminho de casal remoto, vae o velho prior: adiante o sacristão com a lanterna e a ambula da extrema-unção, e elle atrás com o ciborio. As poças de agua reflectem essa debil claridade que as alumia, e fazem um continuo plach, plach, debaixo dos pés dos dous caminhantes, cujo passo apressam as cordas de chuva batida pelos furacões do sudoeste. Os pinheiros balouçando-se gemem tristemente, e os enxurros, estrepitando pelos corregos, tiram com o pinhal uma toada soturna.

No céu profundamente negro não apparece uma estrella: na terra ao longe, bem ao longe, não se descortina uma luz. A natureza debate-se comsigo mesma: tudo dorme, entretanto, nos casaes e na aldeia, salvo o velho parocho e a familia daquelle que em trances mortaes espera o representante do Christo, que lhe traz as derradeiras consolações e esperanças. Entre a philantropia humana e as agonias extremas dos pequenos e humildes a noite e a tempestade ergueram uma barreira quasi insuperavel: esta barreira desapparece, porém, diante da caridade que a todos nos ensina o Evangelho, e que ao parocho impõem como dever imprescriptivel a sua missão sacerdotal e o seu caracter de pae dos pobres e affligidos.

A esta mesma hora, em que o velho prior assim vagueava por sendas alpestres exposto ás inclemencias de noite invernosa, talvez em aposento bem resguardado, no fim de ceia brilhante, entre as taças cheias de vinhos generosos, no meio de mulheres formosas e voluptuarias, embriagado em todos os deleites dos sentidos, algum famoso espirito forte cirzia remendos das paginas soporiferas d’Holbach ou de Diderot, e dissertava profundamente sobre a mandriice, egoismo e cubiça do clero, ou carpia a superstição do povo, que, para ser completamente feliz de nada mais precisa do que de abandonar as crenças do christianismo e de amaldiçoar as esperanças de Deus, o conforto unico da sua vida de miseria, de trabalho e de amargura. E naturalmente os neophitos daquella triste philosophia extasiavam-se em redor do sabio philantropo, que, impando de iguarias delicadas, de vinhos custosos, e de grossa sciencia, só lamentava a ignorancia daquelles a quem muitas vezes faltava então, falta hoje, e faltará de futuro um bocado de pão negro para matar a fome; extasiavam-se alli diante da sensualidade e bruteza de um insensato vanglorioso, emquanto a virtude do velho clerigo, exercitada nos desvios dos montes e no silencio da noite, não tinha por testemunhas senão um céu humido e cerrado, e o vulto impetuoso e bramidor da ventania; mas que, em vez das lisonjarias de parvos, tinha para o applaudir a voz sincera, consoladora e sancta da propria consciencia.

Havia, porém, no fim de tudo, uma differença entre o homem do evangelho e o da falsa sciencia. Era o systema das compensações. O padre prior, depois de cumprir com o seu dever, voltava ao presbyterio tranquillamente: tirava o capote alagado, despia o gabinardo felpudo, sacudia a uma distancia razoavel as ponderosas botas, e enfiando-se entre os grosseiros lençoes, atava o fio do somno no ponto em que o deixára; e emballado brandamente por sonhos apraziveis, só acordava sol nado e alto, ao bradar da tia Jeronyma, e ao cheiro da açorda fumegante; almoço que, como tudo o que era consagrado pelos seculos e pela tradição, elle profundamente respeitava.

E o nosso philosopho? O nosso philosopho, recolhendo-se alta noite, ía todo o caminho provando a si mesmo que não ha diabos no mundo, nem almas, nem talvez Deus; mas sentindo arripiarem-se-lhe os cabellos ao vêr dançar a phosphorescencia d’algum marnel, rezando o credo em cruz ao passar por algum cemiterio, benzendo-se ao ouvir piar algum mocho. E depois de se deitar e adormecer sonhava.... Em quê? Nas combinações infinitas da materia eterna de que deve, segundo as boas doutrinas, ter rebentado o universo? Não! Sonhava com as penas do inferno; e ao acordar pela manhan com defluxo, pedia confissão e sacramentos.

Já lá vão vinte annos! Bom tempo era esse, ao menos para mim, que ainda nem sabia da existencia do animal chamado philosopho, classificavel entre os rodentia, pelo medroso e damninho. Em vinte annos que voltas tem dado o mundo! Aquella especie vae-se acabando de todo. Auctores de comedias apressae-vos! Antes que se perca o typo, levae o incredulo ostentoso á scena. Dae-nos algumas noites de rir doudo e inextinguivel.

Os dias do padre prior corriam assim placidamente para o seu viver intimo, posto que o duro mister de parocho lhe entenebrecesse muitas vezes os horisontes da vida material. E que importava, se todos na aldeia lhe queriam bem; se todos o acatavam como a summa bondade, e o que não era menos, como a summa intelligencia da parochia? Até o barbeiro, o proprio barbeiro, homem entendido e grave em materias de eloquencia sagrada, não constava houvesse jámais torcido o nariz ás praticas e sermões do padre prior, que elle, com a mão sobre a consciencia, punha acima dos melhores de frei Timotheo, um fradalhão arrabido, cousa brava em gritarias ao divino, que por via de regra se incumbia das domingas de quaresma naquella freguezia e nas circumvizinhas com acceitação e applauso universal do auditorio, mas cuja fama era offuscada pelos periodos singelos do velho sacerdote, repassados de uncção, e daquella eloquencia de missionario, que, apesar de rude, lá vae fazer vibrar o coração do povo, afinado pela crença viva, como a harmonia que se tira das cordas de dous instrumentos accordes.

Agora por isso, o que será feito de frei Timotheo?! Era naquelle tempo um frade guapo e alentado! O que será feito delle? Se ainda vive, tiraram-lhe o burel e a corda de esparto, o seu capital; venderam-lhe o convento, o seu tonel de Diogenes; prohibiram-lhe o capuz e as sandalias, o seu direito inauferivel de andar trajado como lhe aprouvesse; e mandaram-no, desarmado de tudo isso, pedir para o mendigo a esmola que se dava ao burel, ao esparto, ao convento, ao capuz e ás sandalias. Bom passaporte para frei Timotheo transitar pela valla plebea do cemiterio nos braços morbidos e suavissimos da fome! Foi um progresso de civilisação, que se completou pelo lado moral com o augmento das loterias, das casas de cambio, e das traducções de novellas e dramas francezes. Bemaventurada a tão esperta nação que assim comprehende o progresso!

Duas cousas, porém, mais que as práticas e sermões, serviam para engrandecer e glorificar o padre prior, não só diante dos homens, mas tambem diante de Deus. Era a primeira o incansavel zêlo com que se applicava a apaziguar as rixas, a estabelecer a concordia domestica, a prégar o trabalho, a guerrear a embriaguez, e sobretudo a sanctificar pelo casamento as affeições illicitas: era a segunda o fervor modesto e o innocente luxo com que procurava celebrar as festas religiosas, principalmente a de S. Pantaleão, orago da freguezia, e de quem tanto os aldeiões como o velho presbytero criam affincadamente possuir o metacarpo da mão direita, o qual devia ser de outro sancto, ou não-sancto, se acreditarmos (eu cá pela minha parte acredito) os parochianos da sé do Porto, que se gabam de ter debaixo de chave S. Pantaleão in totum, sem lhe faltar dedo de pé nem de mão, quanto mais um metacarpo inteiro.

A proposito do que o padre prior era de casamenteiro ainda me lembra uma velha viuva, a senhora Perpetua Rosa (Deus lhe fale na alma!) que morava ao cabo do logar n’uma barraquinha á beira do rio muito caiada, com seu rodapé de vermelhão, e sombreada por cinco ou seis choupos que nasciam da agua. Tinha ella (a velha, não a barraquinha) uma filha, formosa rapariga, chamada Bernardina. Era uma das leiteiras mais desenxovalhadas de que se gabavam os arredores de Lisboa: bonita, que não havia mais dizer: alva como toalha de freira, airosa como pinheirinho de quatro annos. Uns poucos de rapazes da aldeia andavam doudos por ella. Nas noites dos domingos, em que havia dança e viola na casa da brincadeira, [1]a tia Jeronyma, que era capaz de espreitar este mundo e o outro, mirando da sua rotula o que se passava á entrada da rustica sala do baile, pouco distante do presbyterio, notava que, apenas a Bernardina apparecia, os rapazes entravam após ella com muita mais furia e pressa do que pela manhan haviam corrido para a igreja ao ultimo toque da missa do dia. Antes d’isso já a boa da velha tinha reparado no modo por que elles se encostavam aos cajados para lados oppostos, em frente uns dos outros, nos motejos do cantar ao desafio, no pôr dos barretes á banda, nos olhares que mutuamente se lançavam, no pegarem em seixos e atirarem-nos a grande distancia a modo de competencia, sem dizerem palavra, como se cada um quizesse mostrar aos seus rivaes a robustez do proprio braço. D’isto tudo tirava a tia Jeronyma agouro de muita pancadaria,—­“por amor daquella delambida—­dizia a ama do prior em suas caridosas murmurações—­que anda toda arrebicada por baralhotas, em quanto a pobre da mãe moureja todo o sancto dia ao sol e á neve naquelle rio, para ganhar um bocado de pão sem vergonha da cara. Havia de ser comigo!”

E o mais é que a tia Jeronyma não se enganava nas suas previsões. Chegou vespera de Reis: houve á noite brincadeira ou baile extraordinario: passou-se ahi tudo na melhor ordem: riu-se, tocou-se viola, dançou-se, cantou-se ao desafio, e cada qual se recolheu a esperar entre os lençoes os sanctos Reis magnos, designação popular dos magos do Oriente, cuja vinda a Bethlem se memora na Epiphania.

Houve, porém, nessa noite um saloio mais cortez, que esperou vestido e ao relento, no caminho da serra, a vinda dos tres sanctos personagens. Foi o Manuel da Ventosa, estendido com uma tremebunda e magnifica massada, de que esteve ido, a ponto de dar ao padre prior uma daquellas noitadas que suscitavam a colera da tia Jeronyma, e de que já acima fiz honrosa e especifica menção.

O Manuel da Ventosa era filho unico d’um moleiro ricaço, chamado Bartholomeu, velho honrado, mas avarento como seiscentos Satanáses. Teve a ventura (o rapaz, entende-se) de caír em graça á Bernardina. Amoricos d’aqui, amoricos d’acolá, janella na cara a um, respostas tortas a outro, segredar e rir de vizinhas, raivas de desprezados: somma total—­zás, uma sova mestra no Manuel da Ventosa, por ter tido a negregada dita de merecer a preferencia daquella que era o enlevo de todos os corações.

Mas enganaram-se. O amor redobrou com o sacrificio; os desprezos cresceram com a vingança. O que começára por passatempo converteu-se em paixão violenta: um fogo íntimo devorava a alma de Bernardina, e desbotava-lhe as faces, d’antes tão frescas e rosadas como as de um seraphim da peanha da Senhora da Conceição, obra de esculptor insigne. No Manuel da Ventosa, isso não falemos: quando melhorou da doença andava entre parvo e abstracto: attribuia-o o licenciado dos sitios a depressão cerebral produzida por alguma ripada nas vertebras; mas, se existia depressão de cerebro, outra era a sua origem. Certa mulher de virtude que havia na aldeia jurava e tresjurava que o moço moleiro tinha a espinhela caída. Historias. Eu, apesar de ser então uma creança, sabia bem onde batia o ponto; por isso nunca fui para ahi.

Por encurtar razões: os dous amavam-se como loucos. As pessoas desinteressadas achavamnos um par completo; e com bom fundamento: o Manuel da Ventosa era um galhardo mancebo, unico herdeiro de ginja abastado, e Bernardina uma rapariga honesta. As beatas da aldeia, ás quaes, conforme a direito, incumbia pôr ao soalheiro a vida privada de cada uma, no capitulo da honra nunca se tinham atrevido a ir devassar a barraquinha de Perpetua Rosa. Podia a senhora Perpetua Rosa gabar-se dessa! E de feito, muitas vezes, mettida no rio até os joelhos, em discussões acaloradas com as suas illustres amigas, as outras lavadeiras pelo circulo de Lisboa, a ouvi empraza-las para que formulassem precisamente certas interpellações infundadas, rejeitando com desprezo alguns remoques bernardos relativos a Bernardina, e appellando para a opinião do paiz representada pelos seus orgãos, as beatas do soalheiro.

Mas se os dous se amavam com tanto extremo, e eram feitos e talhados para puxarem o mesmo carro matrimonial, porque não íam pedir ao padre prior o conjungo vos? Ahi é que certo animal torcia certa parte do corpo, que eu e o leitor sabemos. Por não terem pedido esclarecimentos sobre o facto é que as lavadeiras faziam declamações vagas.

Eis o caso: o Bartholomeu da Ventosa era rico e avaro; mas bestialmente avaro: Perpetua Rosa pobre, pobrissima. Por mal de peccados fôra ella antigamente lavadeira do casal do moinho, ou antes dos moinhos, porque para a exacção historica deve-se advertir que o moleiro possuia dous. Uma vez, que levára grande porção de roupa, tinha perdido tres saccas velhas e rotas. Bartholomeu quando tal soube quiz morrer.—­“Juro por esta—­dizia elle esbravejando e beijando os dous dedos indices cruzados sobre a bôca:—­juro que Perpetua Rosa me ha-de pagar as minhas tres saccas novas em folha, que me perdeu, a desalmada!”—­Mas nem novas nem velhas; porque a verdade era que ella não tinha com que as pagasse. Forçado foi, portanto, ao moleiro fartar a vingança com ordenar-lhe que não lhe tornasse a rapar os pés á porta. Desde este fatal dia nunca mais Bartholomeu da Ventosa pôde encarar com a lavadeira: o seu odio vivia involto e aquecido na imagem das tres saccas gravada naquelle coração de avarento. Assim para elle seria cousa monstruosa e abominavel só o imaginar a possibilidade de seu filho Manuel casar com Bernardina, a quem a pobreza fôra de sobra para impedimento dirimente, quanto mais o ser filha de semelhante mãe. Tal era a difficuldade insuperavel que se oppunha á união dos dous amantes.

E os mezes íam passando, e as murmurações crescendo, e saltando já das lavadeiras para as beatas. Tinham visto mais de uma vez (dlzia-se: valha a verdade) o moço moleiro rondando a deshoras a barraquinha da beira do rio. Havia tambem quem dissesse que nas madrugadas de alguns domingos, quando a senhora Perpetua Rosa saía para a missa das almas, se enxergava ao lusco fusco um vulto, que, cosendo-se com os choupos, se aproximava da porta da Bernardina, e... e etcaetera. Era muito vêr! Mas a cousa ía correndo, e no fim de contas quem ganhava com essas historias eram as linguas dos maldizentes, que se refocillavam na palangana da murmuração, e o diabo que se lambia para, por estas e por outras, os catrafilar a seu tempo.

Veio a quaresma: sancta quadra; mas que por isso mesmo é ás vezes boa de mais. Desobriga vae, desobriga vem, sabe-se muita cousa. O padre prior andava já com a pedra no sapato; porque elle não era cégo nem mouco. Meu dicto, meu feito. Certo dia (por signal que era uma sexta-feira), quando o sacristão veio abrir a porta da igreja, estavam já no adro á espera Perpetua Rosa e Bernardina para se confessarem. Não tardou o prior. Aviou-se a mãe: ajoelhou a filha: persignou-se, benzeuse, disse mea culpa, e começou sua confissão.

Se isto fosse uma historia de polpa, cortesan e culta, viria neste ponto o casus foederis de eu tomar a postura tragica a la moda, carregando as sobrancelhas, e dizendo em tom soturno e lento:—­“O que ahi se passou entre o veneravel ancião e a donzella ninguem o soube!—!—!—!—­Mysterio!—!—!—! Acontecimento horrivel e fatal!—!—!—! As lagrymas ardentes do velho caíram sobre a cabeça da infeliz ajoelhada a seus pés, cujo futuro (não o dos pés, mas o da infeliz) era de maldicção!—!—!—!” Limitada, porém, a minha narrativa a chan e plebéa recordação de um pobre parocho d’aldeia, reflectirei em summa, que me não é licito revelar o segredo do confessionario. Os sigillistas já deram que fazer ao marquez de Pombal, cuja consciencia, como todos sabem, era delicadissima em materias de orthodoxia catholica, e em tudo. Calo-me, porque não quero caír no erro que elle condemnou. Direi só que foi mui demorada a confissão de Bernardina, e que, ao alevantar-se d’ante os pés do prior, ella trazia os olhos como punhos: e digo-o, porque o viram os circumstantes, a saber, o sacristão e a senhora Perpetua Rosa, que devotamente ía descabeçando a penitencia em quanto a filha se desobrigava.

Ao sol posto desse mesmo dia o prior espairecia a vista pela veiga coberta de verdura, assentado no cruzeiro, segundo o seu costume. A brisa da tarde era fria e aguda, porque a primavera começava apenas; mas o velho parocho parecia não a sentir, embebido em cogitações; e tão fundas íam estas, que, em vez de traçar na terra com a bengala as usuaes figuras geometricas, ou anti-geometricas, conservava-a immovel e perpendicular, com as mãos cruzadas sobre o castão, firmando a barba em cima. Conhecia-se-lhe no olhar e no mecher tremulo dos beiços, que algum grande cuidado o inquietava. E tanto assim, que nem reparou nos tres signaes das ave-marias, deixando-se ficar sentado, e até, oh profanação! com o chapeu na cabeça. Felizmente não passava ninguem naquelle momento, que podesse notar a involuntaria irreverencia do distrahido pastor.

Mas um vulto assomou lá ao longe, e os olhos do velho brilharam como animados por vida nova. Quem quer que era descia do monte, e vinha para a banda do rio. O caminho passava perto do adro: o prior ergueu-se, estendendo a mão, e brandindo a bengala na direcção do vulto.

“Oh Manuel! psio, Manuel! chega á fala! Oh rapaz!”

O filho do moleiro (porque era elle) hesitou um pouco. Alguma cousa lhe roía na consciencia. Mas vendo o prior em pé com ar de quem estava resolvido a ir atravessar-se-lhe diante, cortou para elle com o barrete azul e vermelho na mão.

“Boas tardes, padre prior: quer alguma cousa?”

“Quero que você chegue aqui, porque temos que falar.”

O tom com que estas palavras foram proferidas, e mais que tudo aquelle você, fizeram estremecer o Manuel da Ventosa. O prior tractava todos por tu, e o você na bôca delle era presagio infallivel de temporal.

O rapaz parou diante do velho com os olhos cravados no chão, torcendo e destorcendo a orla do barrete que tinha entre as mãos. O padre prior mediu-o de alto a baixo, e começou ex abrupto:

“Então que historias são estas da Bernardina, sô velhaco da conta benta? Sabe o que fez, grandessissimo tractante? Aonde foi você aprender isso? (Esta pergunta era asnatica). É a doutrina que eu lhe ensinei em pequeno? De que tem servido os exemplos de modestia e honra que lhe dá seu pae? De ser um vadío, um seductor, um... Deixe estar: a cadeia não se fez para as aranhas, e elrei nosso senhor (o bom do parocho puxava em politica para a eschola historica) ainda não mandou queimar a náu de viagem...”

“Eu, padre prior... como lhe ía dizendo—­interrompeu atarantado o saloio, coçando na cabeça, e procurando atar o fio das suas idéas inteiramente confundidas.

“Cale-se; não me responda:—­proseguiu o velho parocho, achando talvez pouco cinco perguntas para ouvir uma resposta.—­Diga-me: que tenções eram as suas enganando uma rapariga honesta?”

“Eu...”

“Não me replique; já lh’o disse. Lembre-se de que é o seu pastor que lhe fala. Ahi está porque você ainda não veio desobrigar-se. Pensava que, por ella ser miseravel e sua mãe uma triste viuva, não tinham ninguem neste mundo? Enganou-se. Tem-me a mim. Saiba que a poder que eu possa ha-de ír bater com o costado na India, ou casar com a Bernardina.”

Aqui o pobre rapaz atirou-se de joelhos a chorar aos pés do velho, e exclamau soluçando:

“E é isso o que eu quero!... Juro-o por aquella arvore da bella cruz que alli está...”

“Vera cruz, salvage! vera cruz!—­interrompeu o prior, visivelmente abrandado com o pranto, humildade, e declaração categorica do moço moleiro.

“Mas, como eu ía dizendo—­proseguiu este—­por’mor daquella diabrura das saccas meu pae não póde tragar a senhora Perpetua Rosa. Se lhe falasse em tal, fazia-me os ossos tão miudos como a picadura da mó. Se a Bernardina tivesse dote, ainda talvez elle consentisse... Mas sem isto; bem lhe sabe do genio. Se o padre prior podesse adivinhar o que me tenho ralado, havia de ter dó de mim. Não como, não durmo, ando doudo. Não basta a massada que gramei... Ahn! ahn! ahn!”

Chorava em berreiro, e o chôro não o deixava continuar. As lagrymas começaram tambem a bailar nos olhos do prior, que ficou por alguns momentos pensativo.

“Levanta-te, rapaz dos meus peccados:—­disse elle por fim, puxando pelo braço do moleiro.—­Vamos; confessa a verdade: estás arrependido do que fizeste?”

“Estou, sim senhor! Ahn! ahn!”

Nesta parte, apesar do chôro e soluços, parece-me que o saloio mentia.

“Promettes casar com Bernardina, se teu pae consentir?”

“Prometto, sim senhor! Ahn!”

“Ora, pois, socega, e não chores. Deixa o caso por minha conta. Volte para casa, e não me torne a rondar pela beira do rio. Entende? Olhe que!...”

O prior estendeu a bengala para o lado dos moinhos, que assobiavam lá no alto, e Manuel da Ventosa voltou cabisbaixo e a passos lentos pelo caminho por onde viera. Sentia confusamente que se aproximava a crise mais temerosa da sua vida.

Então o padre prior assentou-se outra vez no poial do cruzeiro, e recaíu em profunda meditação. Depois de um bom quarto de hora, poz-se em pé e encaminhou-se para o presbyterio. Tinha anoitecido. De memoria de homens nunca ceiára tão tarde!

E andando, o velho sacerdote repetia aquellas palavras do livro de Job, onde, entre parenthesis, ha mais philosophia que n’um aduar inteiro de philosophos:

Nudus egressus sum de utero matris meoe, et nudus revertar illuc. [2]

O porque o dizia, bem o sabia elle! Ceiou sem dar palavra: resou o breviario: deitou-se, e apagou o candieiro. Contra o costume, Fr. Bernardo de Brito e Fr. Diogo do Rosario ficaram aquelle serão na estante. A ama sentiu-o assoar-se, tomar tabaco, e escarrar até muito tarde. Cousa rara! signal evidente de que tinha negocio de vulto, que lhe embargava o dormir!

Peior foi pela manhan. Apenas luziu o buraco, o padre prior saltou da cama; calçou os sapatos engraixados; vestiu a loba nova; pediu o chapeu de tres ventos, a bengala de castão de prata, e os oculos fixos, que só punha em dias de missa cantada, e disse á ama que se aviasse com o almoço, porque tinha de saír cedo.

Emquanto a tia Jeronyma, para maior brevidade, fazia umas papas de milho, o prior abriu um contador enorme, destes que os nossos grandes amigos inglezes nos vão agora levando em logar de vinho do Porto, tirou para fóra uma folha de papel almasso, e bradou:

“Jeronyma! oh Jeronyma!”

A velha chegou ao corredor da cozinha com o abano na mão.

“Estão quasi feitas:—­disse ella.—­Tenha paciencia um instantinho.”

“Não é isso, mulher:—­replicou o prior.—­Ouve cá: vae ao forro da escada e traze-me aquillo.”

“Isso, eu lá ponho. Mas, com sua licença, d’onde veio maquia grossa? Hontem não houve baptisado nem enterro...”

E a tia Jeronyma estendia a mão esquerda coberta com a ponta do avental, para não sujar a maquia de que falava, e ao mesmo tempo volvia olhos ávidos, ora para o bofete, ora para o prior.

“Qual carapuça!—­replicou elle fazendo-se vermelho.—­Tira-se; não se põe. Faça o que lhe digo, e dê ao démo o que sabe.”

A ama empallideceu. As palavras tira-se; não se põe eram de ruim agouro; mas vendo já o padre prior azedo, calou-se e obedeceu.

D’alli a pouco o velho parocho começava a tirar de um pé de meia uma, duas, tres peças de ouro; foi tirando até setenta: restavam apenas obra de uma duzia dellas.

“Basta:—­rosnou o prior.—­Póde occorrer uma doença. Então, Jeronyma, vem essas papas?!”

E dizendo isto embrulhava muito bem as setenta peças na folha de papel que tinha sobre o bofete, e mettia-as na algibeira da loba.

“Guarde isso, Jeronyma:”—­disse elle á ama, que entrava com as papas. E empurrou pela mesa fóra o exangue pé de meia. A ama, ao vêr aquella horrorosa sangria, esteve a ponto de largar a frigideira no chão, e de deixar o bom do padre sem almoço.

Quando voltou para a cosinha, ouviu-a o prior soluçar.

Nudus egressus sum de utero matris meoe, et nudus revertar illuc.

Murmurando esta profunda sentença da Biblia, o reverendo parocho saiu pela porta fóra. A ama, vendo-o saír, andava como pasmada.

Nestas idas e voltas havia nascido o sol. O Bartholomeu da Ventosa, afanado com a sua lida, em pé á porta de um dos moinhos, bracejava, ralhava, praguejava como um possesso. Os brutos dos moços tinham-lhe quebrado já duas cordas ao enquerir as cargas de uma récua de machos pimpões presa á argola do moinho.

De repente viu um castão de bengala saír-lhe por cima do hombro. Voltou-se: era o prior.

“Olé, vossenhoria por aqui a estas horas?!... Psio, oh Zé Dorna, olha o rabicho daquelle macho!... Grande novidade, padre prior! grande novidade!... Raios te partam! Que tal’stá o filho do diabo?!”

Estas duas ultimas jaculatorias eram acompanhadas de dois reverendissimos pontapés na barriga de uma das cavalgaduras, que já estava carregada, e que parecia achar mais prudente deitar-se em quanto as outras se aviavam.

O moleiro dava assim a modo d’umas lembranças de Napoleão dictando ao mesmo tempo a dous secretarios.

“Falaste, Bartholomeu!—­replicou o prior.—­Novidade, e grande! Ha quarenta annos que sou parocho desta freguezia, e é a primeira vez que tal me succede. É negocio intrincado, e quero ouvir o teu conselho, porque tens caixa para as cousas. Rapazes—­accrescentou dirigindo-se aos moços do moinho—­safa d’aqui, que tenho que dizer ao patrão em particular.”

“Rua!—­gritou o moleiro correndo com força ambas as mãos pelo colete e pelos calções, donde saíu um nevoeiro de farinha.—­Entre vossenhoria.”

O prior entrou, e foi assentar-se n’uma tripeça que estava a um canto: Bartholomeu assentou-se sobre um sacco de trigo defronte delle. Os dous velhos mediram-se com os olhos por momentos, como se cada um delles tentasse ler no rosto do outro os pensamentos que lhes vagavam na alma. A primeira idéa que occorreu ao moleiro foi a de alguma festa que o parocho pretendia fazer, e para que lhe vinha pedir dinheiro. Batia-lhe o coração com violencia, e já imaginava trinta mentiras para evitar essa calamidade.

“Homem—­disse por fim o prior—­tenho em minha mão uma somma avultada; mais de quinhentos mil réis (o moleiro estendeu o pescoço); pertencem a um devoto, que os quer dar em dote a uma rapariga pobre desta freguezia. Encarreguei-me do negocio, e deitei as minhas linhas para dar no vinte. Mas temo não acertar, e venho bater comtigo. És honrado, meu Bartholomeu, posto que um tanto sovina: falo-te com o coração nas mãos, e...”

“Isso é o que dizem por ahi essas linguas perversas—­interrompeu o moleiro, fazendo-se vermelho de colera;—­essas mandrionas do soalheiro, porque lhes não metto no bandulho o meu remedio. Os diabos me levem...”

“Tá, ta!—­acudiu o prior.—­Ajustaremos contas na desobriga. Vamos agora ao que serve. Sem refolhos: a quem te parece que dêmos este dote? Parafusa lá.”

O moleiro poz-se a scismar, alevantando os olhos para o tecto, estendendo e revirando a mandibula inferior, e batendo de quando em quando na testa.

“Nada ... a Genoveva da Theresa não:—­ disse por fim.—­Tal mãe, tal filha. Aquella está arrumada.”

“Nem pensar n’isso é bom:—­retrucou o prior.—­Libera nos Domine. Anda, vê se atinas.”

“A Clara da Fonte tambem não...”

“Uhm!—­rosnou o clerigo, abanando a cabeça.

“A Catharina Carriça menos. Heim?”

“Tó carapuça! Ahi vae já! Fundia-me o dote em menos de um anno com tafularias tolas. Adiante.”

O leitor póde prever que o Bartholomeu da Ventosa e o seu parocho estavam no caso de duas linhas parallelas, que, prolongando-se indefinidamente, nunca podem encontrar-se: o pensamento do prior dirigia-se a Bernardina, e o moleiro já tinha affastado por tres vezes do espirito essa lembrança como uma idéa importuna.

“Eu—­disse elle finalmente, coçando na cabeça—­tinha cá uma idéa... mas não sei... Não digo nada... Acabou-se.”

“Desembuxa lá, homem! Foi para te ouvir que vim aqui.”

“Então sempre lh’o direi. Minha sobrinha Joanna é um anjo. Boa rapariga! famosa rapariga! Meu irmão Barnabé não pede esmola, é verdade; mas anda atrapalhadote. O casal dos Caniços arrasou-o este anno: deve-me já vinte moedas, e...”

O prior cortou-lhe o enthusiasmo pelos seus parentes com uma gargalhada estrondosa. O moleiro ficou de bôca aberta no meio daquelle destampatorio.

“Oh, oh, oh! querias que o meu dote servisse para pagar as tuas vinte moedas?! Não é assim?—­E, voltando immediatamente ao seu serio, proseguiu:—­Bartholomeu! Bartholomeu! Por causa da iniquidade da sua avareza me irei, e o feri: diz o propheta. A cubiça que te cega ha-de baldear-te no inferno, como tu baldêas alli para a ribanceira as mós que já não prestam. Queres mentir á tua consciencia, enganar o teu pastor, quando elle te vem pedir que o aconselhes? Isto não é bonito, Bartholomeu! Não é bonito!”

“Mas, padre prior...”

“Qual mas, nem meio mas! Deixemo-nos de historias. Bem diz o dictado:—­Fui a casa da vizinha envergonhei-me; vim á minha remediei-me.—­O melhor é seguir a primeira lembrança.”

“Então, se vossenhoria já tinha posto o dedo...”

“Tinha, tinha!—­retrucou o prior:—­Queria só ver se tu concordavas comigo: mas sacas-te com uma exquisitice de fazer arripiar. Não temos feito nada, meu Bartholomeu: não temos feito nada!”

E dizendo e fazendo, o clerigo erguia-se como para saír.

“Pois diga vossenhoria—­acudiu o moleiro ainda atrapalhado com o revertere:—­e enforcado morra eu se...”

“Não praguejes, homem! Ahi vae! Quem ha-de apanhar o dote é a Bernardina d’ao pé do rio...”

A historia das saccas era espinha que ainda lhe estava atravessada na garganta: ouvindo tal nome, o velho não pôde conter-se:

“Quem? A cara de fuinha da filha de Perpetua Rosa? O padre prior está brincando. Olha as lesmas! Umas desmaseladas, e caloteiras! Isso, nas unhas da mãe, era fogo viste, linguiça. Terçans me matem...”

“Espera, homem, espera! Não é isso o que se diz na aldeia. Tu tens osga ás pobres mulheres, e cega-te a paixão. Desmaseladas?! Basta olhar para ellas; como andam limpas na sua miseria. Caloteiras? coitadínhas! É porque não têm com que pagar ao Agostinho da tenda? Pagar-lhe-hão agora. Quinhentos mil réis ainda ficam livres, e Bernardina ha-de com elles achar um bom casamento.”

Emquanto o prior falava, uma idéa bem-aventurada illuminára subitamente a alma do moleiro. As suas tres saccas podiam não estar perdidas de todo; podiam voltar melhoradas ao moinho. Sentiu a colera desvanecer-se-lhe, como a nuvem negra que varre a brisa do norte.

“É verdade que a gente ás vezes tem cá as suas birras:—­disse elle com certo ar que queria ser fino e saía parvo.—­Cega-se com as pessoas! Vossenhoria bem sabe o que faz: dê o dote a quem quizer, que diante de mim ninguem ha-de tugir nem mugir contra vossenhoria.”

“Pois bem!—­proseguiu o prior.—­Esta lebre está corrida. Resta achar um noivo para Bernardina. Isso é bico d’obra que requer escolha e siso. Pensa no caso, Bartholomeu! Vamos a vêr se acertas melhor desta vez. Agora outra cousa. Tu és capaz: tens sabido guardar o teu dinheiro; saberás guardar o alheio. Eu para isso não presto: sou um mãos-rotas. Aqui te deixo setenta louras, que a seu tempo se hão-de entregar a quem tocarem. Incumbes-te d’isto?”

“Vossenhoria manda:”—­respondeu o moleiro, cujos olhos brilharam com o fulgor devorante da avareza ao vêr rolar as peças, que o prior tivera a cautela de desembrulhar sobre a grande arca das maquias. O velho parocho usava de uma esperteza de Satanás para fazer uma obra de Deus.

E, despedindo-se de Bartholomeu, saíu. O moleiro ficou em pé e immovel. Estava, mal comparado, como o asno de Buridan entre as duas medidas iguaes de cevada: nem se podia affastar do ouro, nem ousava faltar á cortezia devida ao padre prior. A final, por um movimento sublime de energia moral, correu pela porta fóra atrás delle, que já ía a certa distancia. Neste correr parecia-lhe sentir estalar o que quer que era dentro do coração.

“Se vossenhoria é servido do nosso almoço”—­bradava o moleiro”—­não tarda ahi um credo. Pobre, mas de boamente.”

“Obrigado! obrigado!”—­respondeu o prior sem se voltar, brandindo para trás a bengala, como quem dizia adeus. E pensava lá comsigo:—­“Fóra, miseravel sovina!”

Apenas o bom do clerigo dobrára a quina, do muro de uma quinta, que se dilatava desde a encosta até a baixa do rio, truz!... Com quem havia d’elle dar de rosto? Com o Manuel da Ventosa, de espingarda ao hombro, rede ás costas, chumbeira e polvorinho a tiracolo. O saloio ficou embaçado.

“Com que, sim, senhor! Já você por aqui me apparece a estas horas,”—­disse o prior com um gesto folgado, que forcejava por ser colerico.—­“Heim?”

“É verdade, padre prior!... Entreter um bocado... A manhan estava boa.”

“Pois não! Aos pardaes... bem sei! Ora corte-me para casa, e vá ajudar seu pae, o pobre velho, que lá anda lidando... e você feito caçador das duzias... Caçador! Pensava agora o sonso que me enganava! Vamos marchando!”

Deu alguns passos para diante, emquanto o Manuel da Ventosa fazia o mesmo em sentido contrario. Depois voltou-se de repente. O saloio também parára a olhar para trás.

“Olé. Escuta cá, Manuel!”—­O Manuel aproximou-se.

“Depois d’amanhan é necessario que você se bote aos pés de seu pae, que lhe conte a boa obra que fez, e que lhe peça licença para casar com Bernardina...”

“Pelo amor de Deus, padre prior!”—­interrompeu o triste do rapaz cheio de susto.—­“Com os figados delle, põe-me os ossos n’um feixe.”

“Não se perdia nada:”—­acudiu o velho.—­“Mas não é anno de fortuna. Era melhor que se tivesse lembrado a horas. Faça o que lhe digo, que não lhe ha-de succeder mal nenhum! Vamos.”

“Se vossenhoria entende?!...”

“Entendo, sim, senhor. A paschoa não tarda; e passada a quaresma você ha-de receber-se. Mas d’isto nem palavra! E córte!”

O tom com que o parocho proferiu estas palavras deu uma alma nova ao Manuel da Ventosa. Imaginou logo que o padre prior tinha aplanado o negocio. Não sabia se risse ou se chorasse. Instinctivamente agarrou a mão do clerigo e beijou-a. A sua gratidão era sincera. O padre prior sentia palpitar esse vivo sentimento naquellas mãos callosas, que apertavam a sua mão enrugada, naquelles labios ardentes, que pareciam devora-la. Conheceu que estava arriscado a deslizar da habitual severidade, e, affastando-se rapidamente, bradou com voz aspera, mas alguma cousa trémula:—­“Deixa-me, pateta! Deixa-me! ... e Deus te alumie para que seja esta a ultima das tuas rapaziadas.”

Fez bem em alongar-se: duas lagrymas lhe rolaram pelas faces abaixo.

Naquelle dia a tia Jeronyma chegou a desconfiar de que o padre prior tinha a bola desarranjada. Toda a manhan não fez senão cantarolar, ora um pedaço do Tantum ergo, logo um versiculo do Te Deum Laudamus, e assim por diante. Até andou por mais de meia hora a brincar com o gato do presbyterio. E, para resumir em poucas palavras a extravagancia de que parecia possuido, baste dizer que, ao descalçar-se, arrumou os çapatos para um canto, e depois de ter lido um capitulo da chronica de Cister, pela primeira vez da sua vida metteu na estante essa especie de Carlos-Magno monastico sem o pôr de pernas ao ar. Aquelle coração sentia dilatar-se na sancta paz do Senhor.

E porque não cabia o bom do padre na pelle? Porque tinha feito felizes duas creaturinhas, sacrificando-lhes as suas economias de quarenta annos. Elle achava isso uma cousa naturalissima; mas a providencia dava-lhe uma parte da sua recompensa nessa alegria suave e intima, que nunca pôde entrar nos palacios dos grandes e poderosos do mundo; porque é o premio, não do beneficio insolente da opulencia, mas sim da abnegação caridosa da humildade.

O padre prior tinha tido tempo de estudar individualmente o caracter dos seus freguezes, e por isso seguíra aquelle caminho para chegar ao fim moral que se proposera. De feito o velho moleiro andou abstracto todo o dia. Pois de noite? Não pregou olho! Ás escuras via diante dos olhos as setenta peças a reluzirem como uma visão ao mesmo tempo celeste e infernal. Depois, naquellas horas longas de vigilia punha-se a calcular a acção prodigiosa que ellas teriam incorporadas com mais de outras tantas que elle tinha enterradas. Era o que bastava para dar o harmonioso epitheto de minha á azenha do Ignacio Codeço, e pôr lá o seu Manuel a labutar, e a ganhar dinheiro, muito dinheiro: e elle a tomar-lhe contas ao sabbado: meia moeda ... uma moeda ... duas moedas; e a pilha-lo em uma gaziva de seis vintens; e despertava daquella especie de extasi ao atirar-lhe o primeiro pontapé. Era um regalo! Ria ás vezes ao lembrar-se de uma que elle havia de pregar no outro dia ao Agostinho da tenda. Essa estava segura. Ia-lhe comprar o créto de Perpetua Rosa por metade, por um terço, talvez.—­“Oh sô Agostinho, você não vê que isso é dinheiro perdido? Cinco mil réis! seis mil réis! Vamos; é minha a divida.”—­E tripudiava na cama, e assentava-se, lançando mão dos calções, para ir, para correr, para voar, antes que algum diabo (pensava elle) fosse metter no bico ao usurario do tendeiro a mudança de fortuna de Bernardina. Chegava, naquelle fervor, a enfiar os calções mas recaía na cama ao vêr, ou antes ao não vêr, que era escuro como breu. Momentos havia em que as suas idéas tomavam outro curso: representava-se-lhe seu irmão Barnabé a largar-lhe o casal dos Caniços pelas vinte moedas e por mais umas trinta peças com que o engodava; e elle a fazer estercar as terras, e alqueivar, e lavrar, e semear, e mondar, e ceifar, e a ter na eira uma serra de trigo durazio, e achar uma excommungada de uma velha pedinchona a furtar-lhe á sorrelfa uma abáda daquelle grande trigo, e elle a desanca-la com uma tranca. E saía desse pesadello de homem acordado a ranger os dentes, e com a mão agarrada á maçaneta do catre. D’ahi a pouco vinha-lhe outra enfiada de imaginações, e d’ahi outra, e outra, até que por fim a idéa de que as setenta peças eram suas lhe ficava de tal modo encravada e enraizada na alma, que o arrancar-lh’a de lá seria o mesmo que metter-lhe no bucho uma apoplexia. Então punha-se a scismar no pensamento capital e gerador de todas essas imagens bemaventuradas que lhe luziam no olho, o como chamaria á muxilla as setenta do dote. Abafa-las? Nega-las ao prior? Estremeceu horrorisado; porque Bartholomeu era homem de probidade, a seu modo, que, sem malicia seja dicto, vinha a ser um modo como o de tantos homens honrados que todos nós conhecemos. Nada! Era preciso um meio natural, decente, legitimo de arranjar o negocio. Caíu então no que o prior queria que elle caísse. Casou in mente o seu Manuel com a Bernardina. Feito isto, as peças eram suas; suas porque o Manuel pellava-se com medo delle, e casado ou solteiro havia de ficar-lhe sempre debaixo dos cabeções. Assentado este ponto, o moleiro sentia um certo refrigerio interior que o consolava. Não tardou a adormecer no somno do justo, e em placidos sonhos balouçou-se todo o resto da noite entre a azenha do Ignacio Codeço e o casal de seu irmão Barnabé. Saía ás vezes desta hesitação beatifica sonhando no gatazio que ía pregar ao Agostinho, e ria com um rir de innocencia. Era um sancto velho aquelle Bartholomeu da Ventosa!

O leitor deve estar já sufficientemente aborrecido de tão comprida historia do moleiro, da lavadeira e do prior; por isso não o farei assistir ás explicações entre o pae e o filho. Mais repousado o sangue com o dormir, Bartholomeu reflectiu pela manhan que o propor ao parocho o seu Manuel para noivo de Bernardina tinha suas parecenças com o haver-lhe proposto para ser dotada sua sobrinha Joanna, idéa maldicta que lhe tinha custado uma risada nas suas barbas e um revértere com texto de Biblia. Por outra parte pensava que Manuel era o seu unico herdeiro, e que se Bernardina trazia para a ceia, elle levaria para o jantar, principio consagrado pela philosophia saloia, talvez desde o tempo dos mouros. Emfim o pae nestes vaivens, e o filho com os receios que o leitor póde imaginar, fizeram ao declararem-se uma verdadeira scena de comedia. Ao cabo, porém, de tudo entenderam-se. Assim o padre prior, á custa das suas economias de quarenta annos, teve a consolação de fazer tres sermões, um a Bartholomeu sobre a cubiça e avareza, outro a Manuel sobre o trabalho, sobriedade e mais virtudes annexas á condição de pae de familia, outro finalmente a Bernardina sobre a honestidade, modestia e sujeição das mulheres casadas. Depois, quando veio a paschoa, regalou-se de atar o laço matrimonial entre os dous amantes, acabando por uma vez com as interpellações das lavadeiras, com as espreitaduras dos curiosos, e com as murmurações do beaterio. Custou-lhe a brincadeira setenta peças, e o atirar á rua o sermão sobre a avareza, porque o Bartholomeu continuou a ser sovina até a hora da morte, na qual piamente se deve crer o catrafilou o diabo, não só por ser unhas de fome, mas por ter refinado a ponto, que, perdendo a vergonha, já começava a sizar nas maquias, com escandalo dos freguezes, e grande mortificação de seu filho Manuel.

Agora duas palavras sobre a festa do orago da parochia, o meu rico S. Pantaleão. O leitor vio o padre prior caminhando pela estrada dolorosa da moral evangelica: é necessario que o veja tambem radiante no meio das pompas do culto.


  1. Assim se denominava ainda ha poucos annos uma casa, na proximidade da cada uma das aldeias vizinhas de Lisboa, emprestada por algum ricaço ou alugada, em que se ajunctava nas noites dos domingos para brincar (dançar) a mocidade aldeian.
  2. Nu saí do ventre de minha mãe, e nu voltarei para alli. Job: cap. 1, v. 21.

S. Pantaleão era, como disse, o orago da freguezia aldeian, cujos habitantes mais conspicuos o leitor já conhece, e por via dos quaes o puz em contacto com as differentes classes de que se compunha aquelle mundozinho, ou, para melhor dizer, e falar de modo que não me entendam, aquelle microcosmo. Esse grecismo expremeu-mo do espirito S. Pantaleão, que, conforme o que bem pondera a folhinha, foi medico, e os medicos finam-se por grego. O padre prior e o sacristão representam a igreja espiritual e materialmente, o Agostinho da tenda o commercio, o Barnabé a agricultura, a senhora Perpetua Rosa a industria, e finalmente o honrado Bartholomeu da Ventosa representa nos seus sonhos a industria-agricola, ou a agricultura-industrial, genero de existencia lembrado pelos economistas da Alemanha para salvar as classes laboriosas do horrivel futuro com que as ameaça o vapor; porque se ha-de advertir que alguns restos de prudencia e juizo que ainda havia cá por esta nossa Europa varreu-os Deus para aquelle canto do mundo, a que nós chamamos a terra das theorias e das chimeras; nós os homens do meio dia, que fazemos phalansterios e não sei quantas mais comedias politicas capazes de fazer rir... quem direi eu? O proprio mirradissimo S. Pantaleão da cidade eterna.

Eterna, entenda-se, até que o primeiro cometa venha embrulhar na cauda este nosso microcosmo tão caturra e parvo chamado o orbe terraqueo.

Celebra-se a festa de S. Pantaleão a vinte-sete de julho; data preciosa e averiguada por mim em largas vigilias, consumidas em revolver breviarios, antiphonarios, legendarios, missaes, sanctoraes, e livros historiaes, na phrase daquelle grande rhetorico Gomes Eannes. Está a folhinha pontualissima; podem acreditar-me! Celebrou-se, celebra-se e ha-de celebrar-se a festa de S. Pantaleão, o bemaventurado physico, todos os vinte-sete de julho, até a consummação dos seculos; salvo o caso de ninguem se lembrar d’aqui a cem ou duzentos annos de que existiu no mundo o meu rico sancto; mas espero tal não aconteça ficando lançada a sua memoria nestas paginas, ás quaes incontestavelmente pertence a immortalidade.

“Mas—­acudirão os leitores—­que nos importa a nós que essa commemoração seja a vinte-sete ou a vinte-oito: seja em julho ou em dezembro? Vamos á festa, e deixemo-nos de historias.”—­Devagar, devagar! É justamente porque isto é uma historia grave, sisuda, erudita, que eu não me havia de metter abrutadamente na narração, sem deixar averiguada, esmiuçada e fixada a data precisa e irrecusavel do meu recontamento. Sabem o que é uma data? Uma data é, depois de uma questão de orthographia, do talho e feitura de uma judia, a que os nossos velhos chamavam uma aljuba, e depois de um phalansterio, a que os dictos velhos chamariam uma sandice, a cousa mais importante que conheço neste valle de lagrymas. No caso presente, supponhamos que eu fosse um cabeça de vento, que atirasse com S. Pantaleão para vinte-sete de dezembro. Ficavamos aceiados; não tem duvida! Ahi se me ía metter a segunda oitava do Natal com o meu sancto martyr; e eu a querer revestir o padre prior para a missa cantada e a vêr-me doudo na escolha da vestimenta. Vermelho? Saltava-me a canzoada dos criticos:—­Fóra ignorantão! Vermelho na segunda oitava da Natividade!? Vae ler o Claudio de Vert, alarve! vae ler o Campello, o Gavanto, o Lambertini.”—­Atarantado com a grita, atirava-me ao gavetão da vestimenta branca. Peior! Vinha-me outra surriada de sotavento:—­Olha a alimaria! Não querem ver? A um martyr vestimenta branca! Hypocrita! que nos anda aqui a prégar sermões a favor dos padres e dos frades, e ainda não sabe qual é a sua vestimenta direita. Ahi tem os taes escrevedores d’agua doce, que se riem á socapa das arcadias, e das odes pindaricas, e da sciencia em notas, e das chronologias dos academicos. A gente que fazia essas cousas trazia as vestimentas na ponta da lingua: distinguia-as como hora horae de servus servi. Vae ler, oh taboa rasa de Locke, vae ler o Prado, o Clericato, o Bauldry, o...”

E eu, que não podia ir ler tanto calhamaço em folio, em quarto, em oitavo, e em doze, estacava, punha-me a gaguejar, perdia o fio da narrativa, e não proseguia nesta notavel historia do padre prior, a qual me abriria as portas do Instituto Historico de París, se eu fosse tão creança que me resolvesse a pagar não sei quantos francos por anno para gosar dessa incomparavel honra.

Por isto façam os leitores idéa das deploraveis consequencias de um erro de data!—­“Porém—­replicarão elles—­quem te obrigava a tractares essa questão chronologica, superior talvez ás forças do teu entendimento? Não foste andando até aqui sem te metteres nesses debuxos? Porque não descreves a festa, deixando aos entendidos em calendario o pô-la na epocha propria?”—­Bonissimos leitores, pensaes vós que eu sou o Manuel da Ventosa, que me deixe assim esmagar por uma saraivada de perguntas? Enganaes-vos! A resposta vae caír dos bicos desta penna como as frechas de Apollo longe-asseteador caíam no campo dos argivos, segundo resa Homero no capitulo primeiro da sua chronica das birras do Pelida e do Atrida: a minha tréplica vae tombar sobre os prelos convincente, irresistivel, irreplicavel. Ei-la. Finjamos por um momento que, em vez de consultar os respectivos auctores sobre a verdadeira casa de S. Pantaleão no taboleiro do calendario, nem sequer pensava nisso, e começava ex abrupto a scena da festa aldeian. Que succedia? Como estamos no inverno, e eu gósto do inverno, principalmente quando ruge uma boa nortada (são gostos), punha-me a descrever um destes formosos dias de dezembro ou de janeiro, em que o firmamento parece retincto de novo no seu tão lindo azul; em que a verdura infantil das searas á flor da terra sorri estirando-se dos topos arredondados dos outeiros pelo pendor de recostos levemente inclinados; em que a relva se mira á luz vermelha da aurora no espelho do caramelo, que envidraça a superficie dos pegos e remansos dos regatos. Falar-vos-hia de uma abençoada missa do gallo na aldeia em noite de luar, missa mil e quinhentas vezes mais poetica do que toda a poesia protestante desde Luthero, o pae do protestantismo, até Strauss, que hoje lhe tira as derradeiras consequencias; falar-vos-hia, emfim, de mil cousas, muito bonitas, muito viçosas, muito brilhantes, mas que viriam tanto a proposito de S. Pantaleão, como o anho paschal daquella sancta velha da tia Jeronyma viria a pello da Natividade com o seu caldo tradicional de perú, ou como o estylo do nosso drama moderno se casa com a linguagem da sociedade cujo transumpto deve ser. É por esta razão que em cousas serias, quaes a presente narrativa, eu sou muito pechoso em averiguar tudo quanto póde contribuir para a perfeição de obras em que a fórma de modo nenhum ha-de vencer a substancia:—­e a essa classe pertencem estes estudos moraes.

Resolvida e assentada a questão de tempo e logar, sem o que não ha obra litteraria, segundo affirmam os glossadores e espivitadores daquella famosa embrulhada de Horacio chamada a Epistola aos Pisões, resta dizer alguma cousa ácerca de S. Pantaleão. Por muita importancia que eu ligue á feira, aos foguetes, aos buscapés, ás jarras de flores, aos tocheiros accesos, ao sacristão, á musica, aos festeiros, e ao padre prior, ligo muita mais á memoria daquelle cuja festa trazia n’um rodopio toda a aldeia, e até tivera a influencia magnetica de alargar os fechos da bolça ao veneravel moleiro Bartholomeu. Tenham, portanto, paciencia; que já agora hei-de dizer-lhes duas palavras ácerca do meu rico sancto. São reminiscencias do sermão, o qual, desde aqui fique sabido, foi feito e prégado por Fr. Timotheo, o fradalhão arrabido de mendicante e espoliada memoria. É pouco mais ou menos um resumo da historia do sancto como a contou Fr. Timotheo. Parece-me que o estou ouvindo!

S. Pantaleão era um medico de Nicomedia: o bispo Hermolau converteu-o ao christianismo. Desde então elle reduziu o seu receituario á invocação do nome do Senhor. Seguiram-se d’aqui duas consequencias graves: as suas curas foram mais baratas e mais rapidas, ao mesmo tempo que as offertas dos doentes escaceavam nos templos pagãos, e os sacerdotes de Esculapio começavam a morrer litteralmente de fome. O resultado foi um clamor geral contra o pobre sancto: os sacerdotes accusavam-n’o de impio e de bruxo, os medicos de charlatão. O odio contra elle chegou ao ultimo auge: só faltava uma occasião para a vingança: esta não tardou a apparecer.

“Não, que não havia de chegar!—­rosnou o barbeiro, que, espécado em frente do pulpito, meneava a cabeça laudativamente de quando em quando, em honra da eloquencia de Fr. Timotheo, que, narrando a vida do sancto, esbravejava como um possesso.—­Não, que não havia de chegar! Bastavam os medicos. Os medicos e os cirurgiões! Posto que até certo ponto pertença á faculdade, hei-de dize-lo: é a classe mais invejosa do merito, que eu conheço.”

O barbeiro pensava assim havia muitos annos: desde que fôra cruelmente arranhado por tres raposas, que os lentes do Hospital lhe tinham largado ás pernas em um exame de sangrador. Boas ou más, eram as suas doutrinas.

Entretanto o arrabido continuava a lenda de S. Pantaleão: as idéas que della conservo são as seguintes:

Neste meio tempo veio a Nicomedia o imperador Maximiano. S. Pantaleão restituiu perante elle a um paralytico o uso dos membros, o que nem os sacerdotes pagãos, nem os medicos tinham podido fazer, mostrando assim quanto era poderoso o Deus dos nazarenos. Mostrar aos poderosos que se tem razão contra elles é o maior dos perigos do mundo. S. Pantaleão experimentou-o. Lançaram-n’o ás feras no circo: mas as feras, em vez de o devorar, vieram lamber-lhe os pés. Cresceu a colera do imperador. Mandou ata-lo a uma grande roda e solta-lo por uma ladeira abaixo; mas as prisões quebraram-se e o suppliciado ficou illeso. Então ordenou que o degolassem. O sancto, segundo parece, estava já saciado de prodigios: ao golpe do algoz a cabeça voou-lhe dos hombros, e a sua alma, subindo ao ceu, viu o proprio nome escripto no livro dos martyres. O inferno e a tyrannia tinham sido mais uma vez vencidos.

Tal é em poucas palavras a historia do sancto orago da aldeia, que constituia os dominios espirituaes do padre prior.

A noite que precedeu á grande solemnidade da parochia foi semelhante naquelle anno em que succedeu o caso da Bernardina ao que havia sido no anno antecedente; semelhante ao que costumam ser taes noites nos campos deste nosso bom Portugal. Um coreto coberto de velhos razes alteava-se á porta da igreja: delle resfolgava uma selvagem e, ás vezes, atrozmente desentoada musica, e em baixo crepitavam as fogueiras. Como faltariam fogueiras no mez de julho e em festa saloia? Os fogos nocturnos são o symbolo da alegria; mas cumpre que se repintem no ceu diaphano e estrellado. Debaixo de uma atmosphera crassa e negra o seu reflexo tem o que quer que seja soturno e infernal. O sentimento poetico está mais vivo e puro nas almas habituadas ás harmonias campestres, do que em nós os habitantes das grandes cidades: é por isto que os camponezes accendem no estio as fogueiras festivas, usança que, como todos sabem, offende o nosso profundissimo e estupidissimo senso-commum. Eu, por mim, que, graças a Deus, não tenho a honra de pertencer á classe desses que lidam, contentes de si, por se bambolearem no vertice da animalidade pura, e que se chamam homens da vida positiva, digo que, por mais ardente que vá o estio, amo uma fogueira no arraial em vespera de festa, e aquelle estourar e chispar dos foguetes que roçam rapidos pelo manto escuro da noite. Sei tambem que o consumir-se polvora em esbombardear cidades, e em alastrar de cadaveres um campo de batalha é cousa muito mais philosophica e sisuda, do que desbarata-la nas festividades supersticiosas do povo. Mas nem todos podemos ser philosophos, e eu tenho quéda particular para a superstição.

E que quereis? O catholicismo é jovial: o seu culto, como o vulgo o entende, é ruidoso, e risonho, e brilhante, e attractivo, e sociavel, e por isso debalde trabalharieis por arranca-lo ao povo, que vive e morre no meio do trabalho, dos cuidados, das privações. O domingo, o dia sancto, o orago da parochia são os seus dias de contentamento e repouso. Abençoado quem inventou os oragos! Pois as invocações da Virgem, e a advocacia dos sanctos?! Mil vezes bemdito quem os multiplicou! Ride-vos, se vos aprouver, dos que crêem que tal Senhora obra mais maravilhas que todas as outras Senhoras junctas; que tal sancto é remedio infallivel para esta ou para aquella enfermidade. As preces levam pelo menos uma vantagem ás drogas dos physicos: não custam nada, e são mais ricas de esperança; e a esperança é a maior, quasi a unica virtude dos medicamentos. E depois as devoções, as promessas geraram as romarias, as festas, e logo as feiras e todo esse franco e alegre folgar das multidões, que voltam de lá contentes, sem tedio e sem remorsos, o que nem sempre nos acontece nos nossos prazeres das cidades, a que bem longe estamos de associar nenhum pensamento de Deus.

Alguns economistas destes tempos dizem—­“as feiras vão-se”—­como certos doutores de ha uns annos diziam, alludindo ao christianismo —­“os deuses vão-se.”—­Oh semsaborões de meus peccados! Nem os deuses, nem as feiras se vão! Tudo isso fica, porque o abriga e salva a egide encantada do amor popular: vós é que tendes seguro o passardes; e se fizerdes o vosso ablativo de viagem n’alguma aldeia como a do meu padre prior, lá do adro, onde haveis de jazer, alevantae a caveira descarnada, no dia de S. Pantaleão, ou do sancto influente do logar, qualquer que elle seja, e vereis o foguete subir aos ares, e os Manueis e as Bernardinas de então a feirarem-vos em rebemdita sobre as cinzas, que as ventanias terão espalhado, e ouvireis o ramram da guitarra, e o cantar ao desafio, e o bradar dos leilões de cargos, e aviventar-vos-ha o olfacto o cheiro do incenso, involto em rolos de fumo, que, espalmando-se nas faces dos gordos cherubins pintados no tecto, surdirão pelo portal da velha igreja remoçada d’ochre, e virão embalsamar os ares: inclinae, não as orelhas, que não as tereis, mas os ouvidos em osso, e escutae o futuro padre prior alevantando o Gloria, e o prégador—­“ai! já não será um fradalhão arrabido!...”—­contando, voz em grita, as maravilhas do martyr. Então reconhecereis a vaidade das vossas doutrinas, e morder-vos-heis e damnar-vos-heis, dizendo com as vossas costellas esbrugadas, á falta de botões:—­“Bem nos prégava aquelle grande chronista do padre prior! Aquillo é que era homem de juizo! Miserere mei, Deus, quia asinificavimus! Compadece-te de nós, Senhor, porque asneámos!”

Agora por asnear, acudamos a um reparo antes de ir mais longe. Já ouço um destes oragos de botequim (tambem aquelles templos tem seus oragos); um destes eruditos em Balzac e Marryat, em Paul de Kock e Dickens, sacudir a melena annelada, affastar da bôca o charuto apertado entre o pae-de-todos e o fura-bolos, salivar com os dentes cerrados, dando um som de espirro de gato, tomar a postura solemne que estudou n’uma gravura em madeira do Antony de Dumas, e dizer-me em tom pausado e soturno:—­Oh malfeliz, malfeliz! que em vez de empregares esses raios do fogo ceruleo e invisivel das inspirações estheticas, que, da mysteriosa solidão em que se dilata o halito celeste da summa intelligencia, desceu aos abysmos íntimos da tua essencia, em depurares o sentimento religioso das suas formulas materialisadas para o transportares ás regiões ideaes do culto íntimo, seguindo os vestigios das notabilidades mais remarcaveis da intellectualidade actual que fluctuam nos grandes centros de luz progressiva chamados París e Londres, vertes os teus sarcasmos baixos, triviaes, e desgostantes, sobre o espiritualismo pantheistico, apoias o fetichismo, e poetisas (crês poetisar, digo eu) essas festas da populaça, e esses prazeres gordureiros das massas, que sublevam o coração daquelle que adora o supremo architecto no silencio interior, em quanto os seus labios estão immoveis como se elles fossem de marmore explorado nas carreiras de Paros! Escriptor retrogrado e condemnavel, que em logar de combateres a barbarie do paiz, pretendes atacar mais o povo ao obscurantismo, que dirão as summidades do jornalismo estrangeiro e os toiristas e impressionistas viageiros quando lançarem seu golpe d’olho d’aguias para o Portugal, e virem sua materialisação supersticiosa inculcada, e suas tradições grosseiras exaltadas? Repetirão o que o immortal marido de Lady Byron dizia de nós a proposito de uns cachações com que o massacraram certa noite á saída de S. Carlos:


“Nação impando de ignorancia e orgulho,
Que lambe e odeia a mão que brande a espada
Que do Gallo assanhado á zanga o rouba... [1]

* * * * *



Onde é sujo o palacio ao par da choça,
E o hospede forçado em lama trepa;
Onde nobres, plebeus nunca pensaram
Em ter limpa a casaca ou roupa branca, [2]
Posto que a lepra egypcia os cubra e rôa,
Intacta d’agua a pelle, e a grenha hirsuta.

Servos torpes e vis, [3] bem que nascidos
Nas pompas da creação. Tola és, natura,
Com defunctos ruins em gastar cera.

Eis o que elles dirão lendo a tua inconscienciosa defeza dos costumes e credulidades dos tempos do jesuitismo e da inquisição.”

Tal reparo antevejo eu que me ha-de ser feito pelos pensadores da nossa terra, por estas ou por outras palavras. Respondo—­o que escrevi escrevi. A primeira vez que puz os olhos naquelles bonitos versos do Child Harold, impei. Fui vivendo e lendo, e affiz-me ás injurias de estranhos. Livros, jornaes serramadeiras, jornaes populares, jornaes atoalhados, jornaes lençoes, em se tocando em Portugal, sancta Barbara, advogada dos trovões, nos acuda! Fervem as calumnias, os motejos, as accusações de todo o genero; o que inquestionavelmente é grande, é nobre, é generoso! O dar é assim!—­n’uma nação cuja lingua, pouco conhecida na Europa, torna impossiveis as represalias. E se fosse a verdade só! Muitas verdades amargas nos poderiam dizer, como se podem dizer a todas as nações do mundo; mas a calumnia tem mais pilheria; e Portugal é um thema em que até os inglezes querem ter graça! Os francezes ainda alguma vez por engano nos fazem justiça: elles nunca. Em Inglaterra não ha nenhum tolo que não faça um livro de tourist, nenhum architolo que não o faça sobre Portugal: estes livros e os sermões constituem o grosso da sua litteratura. [4] Assim, oh philosopho idealista progressivo, eu sei tão bem como tu o que nos ha-de custar a festa de S. Pantaleão, quando esta famosa historia for caír nas mãos dos criticos d’alem-mar. Mas pensas que me faltará moeda para dar troco ás miserias de revisteiros, touristas, magazineiros, e fazedores de livros em sarapatel mascavado de normando e teutonico, surripiado por metade em cada palavra na melodiosa pronunciação britannica? Enganas-te, oh caricatura viva do Anthony morto! Enganas-te! Quando os inglezes se rirem de elles terem muito dinheiro e nós pouco, torçamos a orelha, e choremos como creanças pelas barbas abaixo. Quando elles compararem o Strand ou Regent-Street com os arruamentos da nossa cidade baixa, agachemo-nos. Quando perfilarem as suas estradas com as nossas azinhagas reaes, cubramos a cara. Mas quando compararem as venturas do homem de trabalho inglez com a triste sorte do peão portuguez, risada. Quando oppozerem as virtudes e illustrações das suas classes infimas á barbaria e estupidez das nossas, duas risadas. Quando encherem as bochechas das suas velhas liberdades (do tempo de Ricardo III, de Henrique VIII, de Isabel, de Cromwell e de Carlos II), das suas leis de propriedade em particular, e da clareza, simplicidade, e rectidão de todas as suas leis em geral, e nos atirarem á cara o absolutismo dos nossos antigos monarchas, a bruteza da nossa ordenação, a intolerancia dos inquisidores, trinta risadas. Quando, emfim, nos offerecerem em escambo das nossas crenças, dos nossos costumes religiosos, os seus costumes e a sua crença, que esborôa ha mais de dous seculos em quatrocentas crençasinhas, com seus nomes muito arrevesadinhos, quatrocentas risadas ou antes uma risada só, mas retumbante, macissa, inextinguivel, como aquellas famosas gargalhadas dos deuses de Homero. O caso é d’isso! Se caíssemos na troca ficavamos logrados. Traziam-nos de involta na carregação dos sermões domingueiros os dizimos e as bruxas, de que ha muito estamos livres pela misericordia divina, e que são os dous maiores flagellos da Inglaterra, depois da lei dos cereaes e dos arrendamentos das terras, que ahi alugam, até por semana, a dez milhões de esfaimados quatrocentos mil proprietarios gordos e anafados.

Ao menos são quatrocentas mil barrigas de uma amplidão respeitavel, campeando entre dez milhões de irmãos nossos, que não foram formados de barro, como nós e Adão, mas de massa insonsa de batatas.


  1. Isto escrevia o nobre Lord em 1809, quando os inglezes reivindicavam dos francezes o throno de Beresford 1.º occupado pelo usurpador Junot 1.º—­(Nota do gamenho que fala).
  2. Estylo epico em Inglaterra e na Cafraria.
  3. Poor paltry slaves!—­Pobre na livre Inglaterra é synonimo de desprezivel e vil, por isso traduzo assim.—­(Nota do gamenho orador).
  4. Não me persuado de que nenhum leitor tome ao pé da letra este brinco litterario. A Inglaterra é uma grande nação, e possue no seu gremio muitos homens honestos, sabios, e por todos os modos respeitaveis. Mas a essa classe não pertencem por certo aquelles, que, propondo-se illustrar o povo, escrevem ácerca de uma pobre nação, que nunca os offendeu, toda a casta de absurdos e mentiras insulsas.

Falemos serio: não comtigo, philosopho esthetico-romantico-progressivo, que não vales a pena d’isso, mas com o povo portuguez, que fala portuguez chão e intelligivel. Falemos serio, porque estas materias de crença e de culto são cousas graves e sanctas. Saber resistir á violencia é forte, mas vulgar; saber resistir á calumnia e aos motejos é maior esforço e mais raro. Envergonhemo-nos do que houver mau e corrupto nos nossos costumes; envergonhemo-nos de muitas vezes não seguirmos na vida practica os dictames do christianismo: não nos envergonhemos, porém, do culto dos sete seculos da monarchia. A lingua e a religião são as duas cadeias de bronze, que unem no correr dos tempos as gerações passadas ás presentes; e estes laços que se prolongam através das eras são a patria. A patria não é a terra; não é o bosque, o rio, o valle, a montanha, a arvore, a bonina; são-no os affectos que esses objectos nos recordam na historia da vida: é a oração ensinada a balbuciar por nossa mãe, a lingua em que pela primeira vez ella nos disse:—­“meu filho!”—­A patria é o crucifixo com que nosso pae se abraçou moribundo, e com que nós nos abraçaremos tambem antes de ir dormir o grande somno, ao pé do que nos gerou, no cemiterio da mesma aldeia em que elle e nós nascemos. A patria é o complexo de familias enlaçadas entre si pelas recordações, pelas crenças, e até pelo sangue. Tomae, de feito, as duas dellas que vos parecerem mais estranhas, collocadas nas provincias mais oppostas de um paiz: examinae as relações de parentesco de uma com outra familia, quaes as desta com uma terceira, e assim por diante. Dessa primeira, que tão estranha vos pareceu á ultima, achareis um fio, enredado sim, talvez inextricavel, mas sem solução de continuidade. Uma nação não é só metaphoricamente uma grande familia: é-o tambem no rigor da palavra.

A oração que consolou nossos avós nos consola no dia da amargura: o gesto com que imploramos a providencia é mais vehemente quando nos foi transmittido por aquelles que pedem por nós a Deus. É por esse meio que os homens apertam mais os laços invisiveis que os unem aos seus maiores; porque o sentimento mysterioso da familia, e portanto da nacionalidade, se purifica e fortalece quando se prende no céu.

Vêde na historia a prova de que a religião póde por si só crear uma nacionalidade mais rapidamente que todos os outros elementos que tendem a compôr as nações. Considerae as cruzadas; essa multidão de homens nascidos em paizes diversos, entre os quaes não ha nenhuma communidade de interesses, antes muitas vezes odios sangrentos e fundos. Lá na Asia, em frente do islamismo, formam um só povo; são irmãos, porque ajoelham todos ante o mesmo altar; combatem todos pela mesma idéa religiosa. Olhae para os mussulmanos: vêde o koran agglomerando, assimilando o beduino e o egypcio, o alarve do Atlas e o negro de El-Sudan. Onde quer que um pensamento grande precisa de toda a energia de uma unidade social para se desenvolver e realisar, lá haveis de encontrar a religião produzindo essa energia.

Se isto é assim, qual culto, entre os de todas as parcialidades christans, será mais efficaz em gerar essa unidade forte do amor patrio, que dá, não tanto a vida activa e exterior, como uma vida intima, escondida, tenaz, que resiste á morte e á dissolução social? Serão essas mil variações do protestantismo, que diariamente se vão subdividindo, e condemnando umas pelas outras; essas crenças incertas, em que o filho já despreza o culto que o pae seguiu, e o neto desprezara o de ambos? Quando e onde, não dizemos na mesma cidade e na mesma rua, mas na mesma familia, em quanto o marido dorme ao som monotono do sermão anglicano, sublime de trivialidade e tedio, a mulher dá representações de Bedlam [1] n’uma senzala de quakers ou de methodistas, póde-se acaso dizer que ahi a religião é laço que impeça a morte do corpo da republica, não nos dias de ventura e prosperidade exterior, em que é facil conservar pelo orgulho a unidade nacional, mas nas epochas de calamidade e decadencia? Parece-nos pouco provavel. Ahi, as prisões moraes da familia são apenas habitos humanos, e não estão harmonisadas e sanctificadas por se prenderem no céu: o primeiro sopro das paixões ou da desventura as reduzirá a pó. A historia tambem no-lo diz, e a historia não é senão a prophecia do futuro.

O protestantismo accusa o catholicismo de se haver afastado da pureza christan antiga, e gaba-se de ter revocado o christianismo ás suas tradições primitivas. O discutir tal materia, em relação ás doutrinas, fôra insensato: os tempos dessa argumentação consummaram-se; tudo por este lado está dicto de parte a parte. Quanto, porém, ás formulas exteriores do nosso culto, são essas que ainda hoje attrahem os insulsos motejos da imprensa protestante; é o culto catholico principalmente que dá origem áquellas graças inglezas, tão agudas como a intelligencia dos habitantes do Bethnal-Green de Londres ou do Winds de Glasgow, embrutecidos pela fome, pela embriaguez e pela immundicie; tão brilhantes e leves como o fumo de carvão de pedra, que constitue a atmosphera britannica. Diariamente são accommettidas as duas nações das Hespanhas nos seus habitos religiosos por homens que empregariam melhor o tempo em estudar os cancros asquerosos que devoram moral e materialmente a classe popular no seu proprio paiz, e em pedir á riqueza, só poderosa, só respeitada, só insolente, mais alguma caridade para com os muitos milhões dos seus compatricios, que lidam, cheios de fome e de frio, cubertos de farrapos e vermes, para accumularem aos pés de bem poucos homens as fortunas incalculaveis e quasi fabulosas que alimentam o luxo desenfreado de Londres, da Roma, ou antes da Babilonia moderna.

Por certo que no culto catholico se tem introduzido abusos, e para isso contribue muitas vezes o proprio clero, menos instruido, menos bem educado, moralmente, que o clero anglicano. Mas em que é culpado o culto da pouca instrucção dos seus ministros, e dessa falta de educação moral, que diversas causas, alheias á religião, têm trazido e trazem ainda? É a igreja que recommenda a ignorancia? São os abusos consequencias logicas das doutrinas catholicas? Eis o que cumpriria se provasse, como não é difficultoso mostrar, que o protestantismo, querendo annullar as pompas e espectaculos, as formulas externas e brilhantes do catholicismo, matou tudo o que a crença do Calvario tinha de uncção, de consolações, de affectos para o commum dos seus sectarios, e converteu a religião n’uma certa metaphysica nevoenta, que foge á comprehensão das almas rudes e vulgares, quebrando todos os esteios, a que nesta vida de tristezas e dores ellas se encostavam para confiarem no céu, e consolarem-se na esperança; porque esses arrimos, necessarios á sua fraqueza intellectual, eram o unico meio de subirem até o throno de Deus, e descerem de lá armadas de resignação para continuarem a luctar com as tempestades da existencia. O protestantismo foi só feito para os ditosos e abastados da terra!

Vêde aquella casinha, tão humilde e só, no meio de um descampado. Lá, sobre camilha dura e rota, delira em accesso febril um filho, unico amparo da mãe idosa, que véla chorando ao pé delle. Na sua solidão e miseria nenhuns soccorros humanos póde esperar a pobre velha, cujas mãos trémulas em vão tentam conchegar as roupas, que o febricitante arroja, murmurando afflicto com o ardor que o devora. Uma lampada de ferro, que allumia frouxa o aposento, arde no canto opposto diante de uma grosseira e affumada imagem da Virgem. A triste mãe volve para lá os olhos embaciados da idade e das lagrymas, e sente que não se acha inteiramente abandonada. Alli está outra mãe que tambem derramou pranto por um filho; pranto mil e mil vezes mais amargoso que o seu. Ella ha-de comprehender-lhe a afflicção e valer-lhe, porque é boa, e poderosa ante Deus. Ei-la, a pobre velha, que trôpega se arrasta, e ajoelha aos pés da imagem, e cruza as mãos enrugadas, e ora; ora com fé viva. Na procella de terrores que a cercam começa a bruxulear uma luz de esperança: espera, porque crê na possibilidade da intercessão e dos milagres; e anima-se, e a tempestade da sua alma asserena-se, e a dor mitiga-se, porque, no meio das lagrymas e das resas, ella pensa lá comsigo que aquella imagem trouxe já muitas consolações a seus paes, a ella mesma, e a toda a familia, e que a Virgem Sanctissima ha-de acudir-lhe ao seu filho, que desde pequenino gostava de ir apanhar as flores campestres para enfeitar a Senhora, e que tantas vezes á noite antes de se deitar ía pôr-se de joelhos alli onde ella estava, e resar uma salve-rainha. E quantas vezes, depois destas orações ardentes, volve Deus olhos compassivos para a morada da miseria e da amargura, e obra, não um milagre inutil, mas o beneficio que faria qualquer medico, se na habitação solitaria houvesse a possibilidade de se buscarem os soccorros da sciencia humana!

Dirá o protestantismo que isto é idolatria? Que! Ignora, acaso, o mais grosseiro catholico que acima dessa imagem está o espirito puro que ella representa, e que acima desse espirito está Deus? O catholicismo no seu culto das imagens, nas suas festas, nas suas visualidades, como vós lhes chamaes, commetteu o grave erro de suppôr que a maioria do genero humano não era composta de philosophos, nem capaz de um espiritualismo absoluto; de abstrahir inteiramente das cousas sensiveis para remontar ao céu. O catholicismo lembrou-se das doutrinas do Christo; accommodou-se á curta comprehensão dos pequenos e humildes. Vós tendes um evangelho mais fidalgo e altivo. O protestantismo convem por isso ao Reino-Unido, onde os quatrocentos mil senhores do solo são tudo, e são nada quinze ou vinte milhões de servos de gleba e de mendigos.

E como deixaria elle de ser exclusivo, aristocratico, orgulhoso? Essa crença, ou antes essa infinidade de crenças, unidas só em guerrear a igreja de dezoito seculos, e que no dia em que lhes faltasse o inimigo commum se despedaçariam mutuamente, não podem deixar de viver de um mysticismo perfumado, de um culto inintelligivel para o povo. Desde que a reforma substituiu á auctoridade e á tradição a sciencia humana, o raciocinio e a discussão, saíu do templo para a eschola; transformou-se de fé em theoria. Então o christianismo deixou de ser uma cousa practica e positiva para todos os homens: os espiritos grosseiros e ignorantes acceitaram-n’o como um costume que acharam no mundo, sem affecto nem má vontade, e as imaginações desregradas fizeram cada qual uma religião a seu modo. Deram uma biblia ao ganhapão, ao porcariço, ao belforinheiro, e por esse facto constituiram-n’o theologo, sancto-padre, e até concilio. Creram ter estendido ao genero-humano a maravilha das linguas de fogo que desciam sobre os apostolos, e ficaram muito contentes de si. As multidões é que ficaram tristes e desconsoladas, porque tinham desapparecido de redor dellas todos os symbolos, todas as imagens, que lhes serviam como de marcos miliarios para buscarem a Deus.

Affigurae-vos, de feito, o exemplo da mãe idosa e miseravel, que vê em transes mortaes o filho, seu unico abrigo; buscae este exemplo ou outro qualquer, porque entre os pequenos não são raras nem pouco variadas as occasiões de asperos infortunios. Lançae-a no seio do protestantismo. Qual refugio lhe offerecerá a religião; refugio immediato, solido, esperançoso? A biblia? Tambem nós sabemos que thesouros encerra a biblia: tambem nós sabemos quantas vezes as suas paginas divinas têm feito dilatar em torrentes de lagrymas as negras aperturas do coração: tambem nós sabemos que dessa fonte inexhaurivel mana a resignação e a paz: a igreja catholica sabia-o muitos seculos antes de vós existirdes. Mas quem vos assegura que a pobre velha achará a passagem analoga á sua situação; que encontrará nas palavras do livro sacrosanto o conforto de que carece, e a esperança do soccorro immediato e sobre-humano de que não menos precisa? Quem vos assegura, emfim, que ella saberá ler? Ou é que no paiz dos quakers a inspiração tambem faz de mestre-eschola, como exercita o mister de mestre de theologia?

E depois, não sabeis que a dor moral do homem do povo tem gemidos e queixumes; é estrepitosa, delirante, sincera? que não se reporta, não se esconde, e vem ao gesto, aos meneios, aos olhos, á voz, como a dor physica! Julgae-la acaso semelhante ao spleen do dandy, ou ao devorar intimo e calado das almas, a quem a educação e a sciencia ensinaram a dignidade das grandes agonias? Estes taes, exteriormente tranquillos, podem encostar-se ao braço, fitar os olhos no livro aberto ante si, e aspirar naquellas paginas sublimes e profundas o halito consolador que dellas espira. Mas para o homem do povo, quasi primitivo, quasi selvagem, cujos olhos nadam em pranto, e que se estorce e brada flagellado pela afflicção, a biblia é nesses instantes inutil, porque é impossivel. Deixae-lhe a imagem do sancto, o crucifixo, o voto, o altar domestico, a lampada accesa ante o vulto do martyr ou da Virgem: deixae-lhe o ajoelhar, o gemer, o resar, o fazer promessas. Deixae os symbolos materiaes da confiança na providencia á imbecilidade da natureza humana, aliás, crendo anniquilar a superstição e a idolatria, não fareis senão matar a vida moral e religiosa do povo.

Se nos dias, desgraçadamente mui communs, das máguas extremas só o catholicismo tem conforto para o homem rude, nos de contentamento só o catholicismo tem festas que convertam para a gratidão e para Deus o seu goso interior, que tende a trasbordar em risos e folgares. O simples repouso do domingo, para o que, condemnado a lavor indefesso durante a semana inteira, compra á custa de suor e cansaço um pouco de pão duro e grosseiro, é uma alegria semelhante á do preso, que, adormecendo em ferros, despertasse livre. Aquelle coração precisa de dilatar-se, aquelles sentidos de recrearem-se, aquelle espirito murcho e triste de se tornar viçoso, de desabrochar de novo ao sol da vida, ao menos n’alguns desses dias reservados ao descanço. É então que o catholicismo lhe offerece as pompas das suas solemnidades; o templo illuminado, os canticos dos sacerdotes, as harmonias do orgão, o espectaculo brilhante das vestes sacerdotaes e dos adornos do altar, os ramilhetes povoando os degraus do sanctuario, ou juncando o pavimento, o incenso embalsamando a atmosphera. E como tudo isto é para as multidões, o culto trasborda do estreito recincto e derrama-se pelas ruas, pelas praças, pelos campos em procissões, em cirios, em romarias, e o povo fluctua, folga, resa, tripudia, esquece-se dos seus destinos de miseria e trabalho, ama a religião que o consola, e voltando ás suas habituaes fadigas, leva para o meio dellas a saudade do dia-sancto e as recordações affectuosas da igreja.

E o protestantismo? O protestantismo despedaçou os vultos dos sanctos, prohihiu os oragos, as procissões e as romagens: esfarrapou alvas, casulas, amictos, pluviaes; apagou as luzes; varreu as flores; assoprou o incenso. Fechou-se na celebração do domingo; e fez bem! bem ao povo, a quem para tedio e tristeza, nos paizes protestantes, sobeja o domingo. E porque fez elle isto? Foi porque essas cousas eram superstições papistas: as imagens idolatria, a agua benta agua lustral, as vestes sacerdotaes indecencias ridiculas, as ceremonias visagens, a missa mentira. Passagens de biblia e compridos sermões ficaram bastando ao culto externo, e se alguma cousa deixaram ainda a este, poetica e attractiva, foi o canto dos psalmos e as harmonias do orgão; porque, como todos sabem, nas agapas dos christãos primitivos cantavam-se os psalmos ao som do orgão!! Os protestantes são indubitavelmente antiquarios eruditos, mas, sobretudo, logicos.

Qual foi o resultado desta reformação insensata de instituições antigas e venerandas? Foi que o culto se tornou n’um habito machinal, n’uma acção que se practíca na impossibilidade de se practicar outra. A policia vigia sobre isso. Deixe ella ao domingo abrir as lojas, os passeios, os estabelecimentos publicos, os espectaculos, as fabricas e as officinas; deixe correr nas veias do corpo social o sangue comprimido, e os templos dos districtos d’Inglaterra mais fervorosos no protestantismo ficarão tão ermos como as igrejas da Irlanda, onde o reitor préga ao sacrista o suado sermão, que ha-de um dia, impresso, allumiar o mundo, emquanto o seu recalcitrante rebanho, á porta do presbyterio solitario, ouve ajoelhado na rua a missa que em altar portatil lhe diz o pobre clerigo catholico, verdadeiro e legitimo pastor, a quem incumbe o consola-los, bem como ao parocho protestante pertence... o que? Fazer predicas ás paredes, e comer os dizimos, sacramento, que, de certo, o puritanismo protestante achou n’algum alfarrabio velho ter sido instituido por Christo!

Temos ouvido lamentar ás pessoas de boa fé excessiva, destas que estudam as nações nas apparencias, e não na vida intima, que o catholicismo não tome entre nós a severidade e decencia exterior do culto anglicano; que o dia consagrado ao Senhor não seja guardado pontualmente; que as nossas igrejas não offereçam na celebração dos officios divinos a gravidade, o silencio, a ordem, o aceio de um templo protestante, nas horas destinadas á oração. No estado actual das sociedades, em que o fervor dos primeiros tempos christãos tem esfriado, em que, tanto entre catholicos como entre protestantes, a religião deixou de ser o primeiro, ou, ao menos, o exclusivo negocio dos homens, o que elles desejam seria impossivel, e se absolutamente um bem, relativamente um grande mal; porque as causas que facilitam esse estado de cousas em Inglaterra são a prova mais clara da morte, se não de uma certa religião vaga, em que os espiritos mais cultivados se alevantam até ao pé do throno de Deus, ao menos da religião positiva, practica, definida, morta e enterrada ha muito na mina de carvão de pedra chamada Gran-Bretanha.

Já dissemos que não é tanto o sentimento religioso que guarda em Inglaterra a decencia do culto, como a admiravel policia ingleza. Quem não o sabe? Quem ignora que naquelle paiz a religião tem a natureza de outra qualquer formula material da sociedade; que é uma cousa como o regimento, a nau de guerra, o workhouse? Ao christão um vigario, uma biblia, e a cadeia se perturbar o officio divino; ao soldado um coronel, uma espingarda, e uns açoutes se mecher a cabeça na fórma; ao marinheiro um commodóro, um posto juncto da amurada, e um mergulho por baixo da quilha se offender a disciplina; ao miseravel que vae cahir no workhouse um director implacavel, uma atafona, e ração curta para aprender a deixar-se estalar á mingua sem pedir esmola. A cada instituição suas condições, sua sancção penal, seus destinos: o regimento serve para provar aos chartistas que a melhor organisação politica possivel é a que faz morrer annualmente milhares de obreiros de fadiga, de fome, e de febres putridas sobre uma pouca de palha fetida e humida, no fundo de subterraneos; a nau serve para civilisar a India pelas contribuições, e moralisar a China pelo opio; o workhouse serve para curar radicalmente os que não têm nem pão nem camisa, do vicio infame da mendicidade; emfim a igreja dominante (established church) serve para sustentar de dizimos muitas familias honradas com as modestas e reformadas prebendas anglicanas, entre as quaes nenhuma excede a vinte mil libras esterlinas per annum, ou, em moeda portugueza, a obra de uns mesquinhos duzentos mil cruzados.

O templo catholico é commummente o symbolo da completa igualdade: lá não ha distincções, senão para os ministros do culto; e quando o orgulho humano, que forceja sempre por invadir ainda as cousas mais sagradas, vae ahi profanamente estender o tapete aristocratico, e collocar sentinellas, o povo murmura, e murmura em voz alta; porque sabe que na sociedade christan só ha um Grande e Poderoso, que é Deus. Os nossos habitos, as nossas idéas são que o mais commodo, o mais distincto logar no templo pertence ao que primeiro o occupou. O catholicismo entendeu que diante da magestade do Creador os vermes cobertos de brocado não o são menos que os vermes cobertos de farrapos. Assim o vulgo dos fiéis precipita-se como torrente através dos umbraes da igreja; estrepita nas lageas do pavimento com os seus sapatos ferrados; roça com o burel grosseiro as finas sedas dos nobres e abastados; afasta com as mãos callosas os grupos alindados dos peralvilhos; esquece-se, emfim, dos respeitos humanos, que se guardam, e devem guardar, cá fóra. Como, pois, obter a ordem, as attenções, o silencio? O nosso povo é rude e mal educado (não o gabâmos por isso; mas o vulgacho inglez leva-lhe, em bruteza, incomparavel vantagem); o nosso povo conserva dentro do templo os habitos ruidosos, inquietos, grosseiros da praça publica. E poderia elle despi-los de subito ao entrar na casa de Deus? Prova acaso o borborinho, que ahi sôa, desprezo pela religião? Examinae os que parecem estar com menos respeito e decencia; os que falam e se agitam: são aquelles entre os quaes o christianismo iria achar os seus martyres, se viessem de novo os tempos em que a crença do Crucificado precisava de ser revalidada pelo sangue dos seguidores da cruz. Que esses pobres tontos, que nos motejam sem nos conhecerem, venham estudar o catholicismo portuguez, se d’isso são capazes, e saberão se nós falâmos verdade.

Nestas consequencias, tão logicas, tão rigorosas do caracter primitivo da religião christan, e do estado das classes inferiores da sociedade, poz cobro a igreja anglicana. É verdade que Jesu-Christo, segundo o Evangelho, na traducção vulgata, chamou principalmente os pobres e humildes; e se no templo ha quem valha mais que outrem, não são por certo aquelles que o Filho de Deus achava mais anchos para entrarem no reino dos céus, do que um camello para entrar no fundo de uma agulha. A igreja reformada entendeu provavelmente que outra era a interpretação do Evangelho; porque é corrente que os catholicos nunca souberam grego, desde S. Jeronymo até Angelo Policiano, ou Ayres Barbosa, para o poderem interpretar bem. Assim, em Inglaterra, aquellas tão formosas e vastas cathedraes da idade média, a que só falta um culto poetico e consolador para serem sublimes, repartiram-se em camarotes de theatro, fechados á chave, e alguns até com todos os requisitos desse comfort, que só os inglezes conhecem bem. As jerarchias do dinheiro e do sangue estão lá rigorosamente guardadas: pelo logar dos stallos, e pelo seu luxo, os espiritos habituados á topographia da Church podem orçar o numero d’avós ou os milhares de libras que possue cada filho da igreja anglicana: o commum dos villãos, empurrados para ao pé da porta, lá perdem em parte os deliciosos periodos do sermão do reitor, encarregado de acalentar... queremos dizer de conservar puros na fé averiguada e decretada pela grande theologa chamada a rainha Isabel, os seus dizimados freguezes.

E o vulgo? Os homens do trabalho, da fome, dos farrapos? Os tres quartos da população ingleza? Esses? Esses lá têm o templo da esperança e do consolo: lá tem o gin’s palace (palacio da genebra), a taberna. Na sua incrivel miseria, os homens que não podem encontrar Deus, porque a igreja anglicana lh’o collocou n’uma atmosphera nebulosa, onde o não descortinam; porque o templo os repelle; porque o priest com seu aristocratico, polido e perfumado sermão, não póde substituir a entidade exclusivamente catholica chamada o missionario, sublime de persuasão, de energia e de virgem rudeza; os miseraveis, dizemos, atiram-se desorientados aos braços da embriaguez, porque a embriaguez tem o esquecimento, tem a sua horrivel alegria. Lá, no gin’s shop, estendendo o braço cadaverico e vacillante para a destruidora bebida, sorvendo-a com phrenesi, essa especie de brutos com fórma humana resumem no seu aspecto e meneios, e na decadencia de todos os sentimentos de pudor, as ultimas consequencias moraes do protestantismo.

Que nos seja permittido citar as proprias palavras de um escriptor moderno, [2] que, melhor talvez que ninguem, pintou o estado presente das ultimas classes em Inglaterra, e que em todos os factos que narra se funda ou nas proprias observações, ou nos documentos officiaes publicados pelo governo inglez. Perfeitamente imparcial a respeito da Gran-Bretanha, o seu testemunho é o que mais a proposito podemos neste ponto invocar.

“A seriedade e o silencio com que este licôr ardente (a genebra) é tragado, fazem arripiar. É como se o povo assistisse a um officio divino. Consummado o sacrificio, vão-se assentando no banco de madeira corrido em frente do balcão, e alli ficam quedos, mudos, como arrebatados em ineffavel extasi. Depois, passados alguns minutos, voltam ao balcão, tornam a beber, e repetem até se lhes acabar o dinheiro. Vae-se assim a ultima mealha. E têm animo de affrontarem o morrer de fome, elles e seus filhos, para se embriagarem. Provou-se pelos inqueritos feitos por causa da lei dos pobres, que as esmolas em dinheiro, dadas pelas parochias, íam cahir inteiras na taberna, e só aproveitavam ao taberneiro. A povoação infima da Inglaterra está de tal modo atolada no seu lodaçal, que não ha ahi caridade que possa desempega-la.

“Sabem todos quão rigoroso preceito ecclesiastico e civil é o guardar o domingo em Inglaterra. A unica excepção da regra é a taberna. Lojas, tudo fechado; logares de honesto ou instructivo recreio, como hortos botanicos e museus, o mesmo. Só o gin’s shop se abrirá de par em par a quem empurrar a porta com o pé. O caso está em que pareça cerrada: duas meias portas solidas, que se fechem por si, fazem a festa: janellas fechadas: dentro lusco-fusco, como em sanctuario, e até sua luz de gaz. Tomadas estas cautelas, plena licença, licença auctorisada para se venderem bebidas todo o dia sem lhe faltar hora. E é neste paiz que os caminhos de ferro estão devolutos por todo o tempo do officio divino, em honra do domingo! Emquanto, em Manchester, eu me espantava das largas que se davam ás tabernas, apresentava-se á camara dos Lords um bill para prohibir o transporte das mercadorias pelos canaes no sagrado dia do domingo! Nesta cidade de Manchester ha jardins zoologicos e botanicos, que o povo frequenta gostoso; mas não se obtem da pontualidade anglicana que estejam patentes no dia sancto; e os bispos, tão escrupulosos no mais, são indifferentes pelo que toca aos gin’s shops, abertos publicamente e frequentados ao domingo. Não é singular que a cousa unica permittida ao povo seja o embriagar-se?”

Não!—­diriamos nós ao auctor do excellente livro que havemos citado.—­O governo e a igreja da Gran-Bretanha sabem que entre a horrivel miseria das classes laboriosas, a embriaguez e o suicidio não ha uma quarta cousa para suavisar a agonia dos tractos que a primeira dá ao homem do povo. A religião, que falava aos sentidos do vulgacho, e por meio delles ao seu espirito, mataram-n’a; e como a morte não tem remedio, o protestantismo, creança de dous dias, mas já sem vigor e esfalfada, encommenda á religião das pipas o salvar os malaventurados obreiros, não do suicidio moral, mas ao menos do physico.

Dir-se-ha que o povo não está entre nós n’uma situação analoga á do povo inglez, para o catholicismo ser posto á prova? Felizmente isso é verdade. Mas já houve tempos quasi semelhantes, posto que ainda inferiores em terribilidade, aos que vão correndo para a gente miuda de Inglaterra. Era quando a peste devastava as nossas cidades e ermava os nossos campos, levando-nos ás vezes mais de um terço da população. Ahi existem innumeraveis monumentos dessas epochas desastrosas: que appareça um só por onde se prove que o desalento popular buscasse conforto no vinho e aguardente. Pois, cá, o remedio não era caro! O que achâmos são as preces, as romarias, as procissões, as lagrymas, os votos, o sentimento exaltado da confiança e da resignação na Providencia. Achâmos a pequena differença que vae de um christão a um bruto.

“E os irlandezes?”—­Oh, bem sabemos que os irlandezes, catholicos como nós, na sua miseria monstruosa têm cahido, se é possivel, ainda mais fundo que os inglezes. Mas, em rigor, esses catholicos na intenção e na crença podem acaso sê-lo no culto que aviventa o espirito? Onde lhes deixou o protestantismo os seus templos, os seus sacerdotes, os seus costumes religiosos? O vulgacho irlandez é o argumento mais dolorosamente persuasivo da necessidade dessas festas, dessas alegrias, dessas fórmas materiaes do culto. Sem ellas, o catholico miseravel embrutece-se como o miseravel protestante; e o seu embrutecimento vem, por outra parte, recordar-nos de que não é possivel achar um nome, que qualifique devidamente o descaro com que o anglicanismo, inquisidor implacavel e tenaz de tres seculos, nos lança em rosto as trinta mil verdades e as sessenta mil mentiras, que, com justissimo horror, se relatam da Inquisição.

Eis o que nós podemos responder aos insulsos dicterios com que é diariamente vilipendiado o catholicismo portuguez: e não dizemos tudo; não dizemos metade. Quanto aos motejos que nos dirigem como nação pobre, pequena, fraca, isso não passa de uma covardia, que só deshonra a quem a practíca. Trabalhemos por levantar-nos da nossa decadencia. Será essa a mais triumphante resposta.

E com estas deambulações de patriotismo religioso saltámos a pés junctos pela historia do padre prior. No capitulo seguinte daremos satisfação plena ao pio e benigno leitor.


  1. Bedlam, como a maior parte dos leitores sabem, é o mais famoso hospital de doudos em Inglaterra.
  2. Buret, De la misère des classes laborieuses (1842), Liv. 2. cap. 4.

A quem não tem succedido nas horas de solidão, no silencio da noite em que não póde dormir, ou no pino de dia calmoso, ao atravessar o bosque cerrado e sombrio, onde só se ouve o zumbir e o ferver dos insectos; a quem não tem succedido engolfar-se n’uma vaga meditação, e, por assim dizer, tombar de pensamentos em pensamentos, presos por fio tão tenue, tão imperceptivel para a consciencia, que, depois dessa especie de devaneio, pretender remontar da ultima á primeira idéa seria baldado empenho, por falta de transições naturaes e logicas? E todavia, a alma, que, nessa situação, como que perde o sentimento da vida externa lá achou, no seu incessante cogitar, uma ponte invisivel para transpôr os abysmos que a fria, coixa e orgulhosa razão humana suppõe existirem, quasi a cada passada, no mundo da intelligencia. Quando o espirito se desata dos corpos; quando a imaginação, depurando o senso intimo, o faz repellir a materia, fechando-se, como a mimosa pudica, á acção grosseira dos sentidos externos, o homem alevanta-se até o viver de além da morte, a luz dos anjos allumia-lhe as profundezas mais obscuras do universo ideal, e elle sabe quaes os caminhos e valles que unem as suas cumiadas brilhantes, unicos pontos que se podem enxergar da terra. O primeiro que disse “em tudo está tudo” teve uma destas revelações da imaginação pura, revelação completa do ideal, que não é mais do que a fusão da variedade absoluta e infinita na infinita e absoluta unidade.

Mas estes momentos, em que somos illuminados pelo sol da vida celestial, passam rapidos: o espirito cahe logo dentro dos limites da sua existencia de provança e desterro, e recordando-se confusamente daquellas inspirações passageiras, sorri-se e chama-lhes sonhos, abusões, desvarios. É que a pobre e suberba razão, myope advogada do lodo e do crepusculo, rejeita com horror as cogitações puras e luminosas, que Deus faculta ás vezes ao miseravel ente, creado quasi anjo por elle, e a quem o primeiro raciocinio que se fez na terra converteu em insensato e precíto.

E a que vem estas metaphysicas aqui? De que utilidade são ellas para a historia do parocho da aldeia, e da festa do orago, ha tanto tempo interrompida, e que até agora não tem passado de divagações por objectos sem ligação com a vida e costumes do reverendo padre prior?—­“Venha o padre prior: venha a festa—­dirão alguns—­e deixemo-nos dessas metaphysicas modernas, que escorregam por entre os dedos, e não passam de feixe de maravalhas ao pé daquellas grandes philosophias dos ideologos, que até um sapateiro era capaz de estudar batendo a sola e apertando o ponto; philosophia de pão pão, queijo queijo; philosophia substancial; philosophia d’ouvir, vêr, cheirar, gostar, e apalpar, roliça, atoucinhada, confortativa. Se era necessario algum troço da sciencia do atqui e ergo para atar estes capitulos ou capituladas da chronica aldeian, porque não recorrer ao clarissimo Condillac, ao bis-clarissimo Tracy? Para que parafusar em entes de razão impalpaveis, em armadilhas que trescalam ás parvoices germanicas, quando estava ahi á mão a philosophia do senso commum, que é o senso patagão e russo, tupinamba e sueco, chim e dinamarquez, emfim o senso de todo o mundo?”

Ai, leitor, que ahi bate o ponto! Quem me dera isso! Quem me dera poder explicar por um capitulo tantos, paragrapho tantos, daquelle sancto homem de Locke, o que me succedeu ao escrever esta famosa historia, e lançar na balança da tua inflexivel justiça uma desculpa de obra grossa dos meus rodeios, desvios e viravoltas na ordem e disposição destes importantes estudos! Por mais que scismasse, por mais que afferisse pelos bons principios ideologicos o meu trabalho, sabia-me tudo torto: era querer levantar uma bóla com um gancho, ou firmar a taboa-rasa do philosopho inglez sobre uma das pontas de um dilemma. Como ageitar a minha narração deambulatoria pelas regras do methodo? Impossivel, impossibilissimo! Fiz então como Constantino Magno. Não achando escapula nem esperança na religião da materia em que me crearam, fugi para a religião dos espiritos, e por uma theoria de abstracção subjectiva expliquei, como Deus me ajudou, as minhas, aliás inexplicaveis, divagações. Encostado a ella como a uma columna de basalto (de basalto, porque as de marmore e de bronze estão muito safadas do uso quotidiano) rir-me-hei do mais abalisado doutor, que venha perguntar-me qual é a ordem logica das minhas idéas. A resposta está no que expuz: pontes intellectuaes, invisiveis, inappreciaveis pelas regras ordinarias do methodo; pontes que unem o branco ao preto, o circular ao anguloso, o proximo ao remoto. Fecho-me nisto. A imaginação que assim o fez, é porque assim devia ser: está muito bem feito, ao menos no mundo da idealidade pura. Foi lá que eu passei de um veneravel parocho d’aldeia, portuguez velho em costumes, em linguagem, em crenças, vulto poetico e sancto, para um inglez impertigado, monosyllabico, iconoclasta, libertador de pretos alheios, escravisador de saxões e irlandezes brancos; n’uma palavra galgei de um a outro pólo da humanidade. Foi lá, que eu pude tombar, rolar, precipitar-me do catholicismo suave, consolador, festivo, ameigador dos miseraveis, despresador dos poderosos suberbos, symbolisador, no seu culto, da igualdade ante Deus, para o anglicanismo perfumado, espartilhado, casquilho, tezo, aristocratico, nevoento, dizimador, intolerante, enxotador dos mendigos, camaroteiro dos templos; pude tombar, rolar, precipitar-me do vertice brilhante, d’onde derrama a sua eterna claridade o puro espirito do christianismo, no charco onde o mergulhou e affogou a vontade de um tyranno devasso do seculo XVI, e a van presumpção de sua filha, a pura, generosa, e sábia Isabel, especie de concilio Niceno de carne e osso para o protestantismo inglez. Dou vinte annos a todos os ideologos para explicarem por outro systema a transição monstruosa e incomprehensivel, que fiz a semelhante respeito nestes gravissimos estudos. Idealisei um inglez (foi façanha!), idealisei o meu bom prior, e no mundo da razão pura lá achei que havia entre essas existencias, infinitamente oppostas, uma affinidade: qual, não sei eu dizer, porque o esqueci: e ainda que me lembrasse, não saberia exprimi-lo. Dada esta explicação aos pechosos, vamos ás promettidas duas palavras sobre a festa.

Era um dia ardente de julho, a 27, cousa certissima para o leitor, em consequencia das minhas profundas investigações chronologicas. O sol ia alto: a igreja parochial, involta no manto tricolor—­branco, amarello, e vermelho—­cal, ochre, rôxo-terra—­parecia rir no seu jubilo. Um moço do Bartholomeu da Ventosa, rapazote de quinze annos, quatro mezes, vinte quatro dias, e vinte tres horas e tres quartos completos (por ter nascido a uma segunda-feira, á meia noite menos um quarto, de dous para tres de março) neste grande dia do orago pilhára ao moleiro duas graças a um tempo, a de deixar em descanço o seu tonel das Danaides, a implacavel joeira, e a de poder assistir á festa e ouvir a missa cantada e o sermão, em vez de ir acabar o pesado somno da madrugada á missa das almas. Gabriel, que assim se chamava o rapaz, ou antes Graviel, segundo a mais euphonica pronuncia saloia, vestiu logo pela manhan as suas calças e jaqueta de bombazina em folha, e o seu colete vermelho, engenhado de um do patrão a trôco de dous mezes de soldada, calçou as botifarras novas, e enterrou o barrete azul e encarnado na cabeça, derrubando-o para traz, e sem fazer caso do almoço (pois era uma açorda que os anjos a comeriam) desandou, outeiro abaixo, pela volta das sete e trinta e cinco minutos da manhan, caminho da parochia. Via-se que um grande negocio lhe occupava o espirito, por isso que levava os olhos cravados no campanario, e sem fazer caso das trilhas, cortava por entre as restevas, escorregando, aqui, nas pedras soltas, levando-as, acolá, diante dos bicos agudos das botifarras. Chegou. O sacristão, que estava á porta da igreja, apenas o lobrigou poz-se a rir, porque logo entendeu o verso. Gabriel era um dos maiores pimpões em repicar sinos que havia entre a rapaziada do logar, mas desde que entrára para casa do tio Bartholomeu, nunca mais puzera pés no campanario. Nos meneios, no gesto, no olhar lhe revia a sêde, a ancia, a saudade das harmonias risonhas, doudas, estrugidoras de um repique desenganado. Vinha tão cégo, que só viu João Nepomuceno (assim se chamava o sacristão) quando deu de rosto com elle. Estacou embatucado; tirou o barrete, e começou a coçar a região occipital, olhando de revez para o sacristão, que se encostára á hombreira, com as mãos cruzadas atraz das costas, assobiando o Veni Creator.

“É-lé Graviel!—­disse este por fim com um sorriso.—­Você hoje campou. O patrão é festeiro; fica o moinho a dormir! Heim? Galdére; não é assim? Mas, cos dianhos! não sei como não vieste cá dormir. Bota os olhos acolá para o arraial. Vês? Duas bolaxeiras, e a tia Sezila com queijadas; e disse. Ainda nem sequer o Chico appareceu para começar o repique. Pois para isso não é cedo, que a missa da festa é ás dez em ponto. Já o padre Chaparro e frei José dos Prazeres estão na sancrestia, e dizem que não tarda ahi frei Narciso, que vem servir de mestre de ceremonias.”

“Oh sô João de Permecena!—­acudiu o saloio, que tornára, ao ouvir o nome do Chico, a enterrar o barrete na cabeça, mas desta vez á banda—­com a sua licença, ha-me de perdoar: não sei o que fez em chamar n’um dia destes aquelle jimento do Chico para tocar os sinos. Aquillo!? Ora, deixa-me rir. Ha-de-a fazer bonita; não tem duvida? Olhe, sempre lhe digo...”

“Não digas nada: bem sei. Mas que dianho querias tu com uma cravella de doze que dá a menza da irmandade, e nicles? Mesmo o Chicho, deu-me agua pela barba para o resolver. Se aquillo são uns dianhos d’uns fonas!”

“Pois se vocemecê quer—­interrompeu Gabriel, em cujos olhos se accendia o desejo, o deleite, e a esperança—­eu lá vou. Hoje o patrão deu-me licença até ás trindades. Salto na torre, e vae tudo raso. Toco até aquella cantiga de Lisboa, que dizem que canta um tal Catragena em S. Calros: ... totro, trão-balão, re-pim, piri-pim-pão.”

Enthusiasmado, o moço do moleiro cantarolava, imitando os sons de um sino, ou antes de um tacho, a musica horrendamente aleijada, esfarrapada, assassinada do dueto de Assur e Semiramis: La sorte piu fiera. Se Rossini alli chegasse de subito, ou não a conhecia, ou enganava-se. O sacristão estava enlevado.

“Homem!—­disse elle quando Gabriel parou—­bom era isso: mas o Chico está ajustado; e já agora.....”

“É que o Chico é o seu padagoz: ha-me de dar licença que lho diga, senhor João de Permecena!—­interrompeu o moço do moleiro, vendo apagar-se a luz que lhe illuminára o espirito.—­Pois eu tocava ahi a desbancar ainda por menos: bastava que me pagasse um arratel de bolaxas e dous berimbáus.”

“Eu cá não tenho padagozes, homem! Cos dianhos!—­replicou o sacristão.—­Se elle não estiver aqui ás oito, dou-te a chave da torre, e são hoje teus os sinos. Quando quizeres terás as bolaxas e os berimbáus.”

A proposta de Gabriel penetrára como um balsamo suave na alma do sacristão: fazia a despeza com seis e meio, e economisava o resto para a igreja, isto é, para si, como representante della.

Gabriel saltou acima do parapeito do adro e poz-se a olhar para o lado onde morava o Chico. Batia-lhe o coração com força. Ás oito horas devia nascer para elle um dia de gloria e contentamento, ou de desdouro e zanguinha. Deram as oito.—­“Viva!—­bradou, saltando ao terreiro, e correndo ao sacristão.—­Venha!—­proseguiu, lançando mão da chave da torre com tal violencia, que João Nepomuceno por um triz não foi a terra. Ia-lhe quebrando um dedo.

“Dianho!... Safa, alimaria! Forte doido!... Oh Graviel! Ouve cá, Graviel! Olha que está passada a corda da garrida...”

Qual Gabriel, nem meio Gabriel! Tinha desapparecido, semelhante a um foguete. O sacristão levantou os olhos para o campanario e viu já as cordas a bambearem e a desembaraçarem-se, como as tranças da nobre dama nas mãos subtis de aia geitosa. Gabriel era, sem a menor sombra de duvida, a flor e nata da rapaziada curiosa da aldeia.

Uma pancada retumbante e sonora no sino grande, a qual se repetiu lentamente algumas vezes, foi como um mensageiro, despedido por montes e valles, a annunciar um dia de repouso e folgares para o homem do campo, curvado sob o sol ardente nas ceifas e mais trabalhos ruraes do estio, durante os longos dias de trabalho. Era como o romper de uma vasta symphonia. Gradualmente os outros sinos misturaram as suas vozes argentinas com a do primeiro, e a atmosphera esplendida vibrou ondeando em tempestade de notas que se cruzavam, cortavam, interrompiam, luctavam em barbara harmonia. A principio Gabriel, pausado e lento, lançava successivamente uma ou outra mão a esta ou áquella corda: pouco a pouco os seus movimentos tornaram-se mais rapidos, e os sons que transudavam por todas as aberturas, pelos minimos poros da torre, começavam a assemelhar-se ao granizo do noroeste, que de instante a instante se torna mais espesso, ao passo que a nuvem corre mais perpendicular. Era, por fim, um remoinho, um delirio, uma furia sonorosa. Gabriel estava tomado de campanomania; mãos, pés, dentes, tudo repicava. Ennovelado, como um gatinho que quer agarrar e ao mesmo tempo repellir um dixe que colheu ás unhas, o bom do rapaz, com os olhos faiscantes e desvairados, parecia possesso: trepava, bracejava, careteava, tropeava, agachava-se, torcia-se, pulava, volteava, como se estivesse recebendo por todos os lados e a cada instante descargas electricas. Insensivel á matinada infernal, que lhe estrepitava nos ouvidos, Gabriel dirigia palavras de amor, d’ameaça, de incitamento aos sinos, como se elles podessem ouvi-lo. Queria communicar-lhes o seu ardor e enthusiasmo de dilettante; e como se o entendessem, dir-se-hia que, no contínuo vaivem, elles oscillavam tremulos de prazer, e tentavam desprender da pedra os braços robustos e voarem, como as aves que tambem soltavam livremente as suas harmonias pela amplidão dos ceus.

No fim de duas horas de lida a natureza recuperou os seus direitos. Alagado em suor, perdido o alento, esgotados os brios e as forças, Gabriel affrouxára pouco e pouco. A estrepitosa e horrenda caricatura do duetto de Semiramis fôra o canto do cysne. A viveza doudejante do repique converteu-se n’um tocar lento e solemne, que ora imitava o dobre de finados, ora os tres signaes melancholicos que indicam o fim do dia que expira.

Tambem era tempo. No seu banco parte dos festeiros, cubertos de fitas e medalhas, esperavam já impacientes que o prior, o padre Chaparro, e frei José dos Prazeres saissem da sacristia para começar a missa. No coreto as rebecas chiavam cada vez com odio mais figadal entre si, ao passo que os virtuosos faziam todas as diligencias possiveis para as pôr de accordo comsigo mesmas e com os outros instrumentos. A gente, não só da aldeia, mas tambem dos casaes e logares vizinhos, affluindo de contínuo, enchia a igreja, e o apertão, que ía a maior, principiava a avariar os chapeus, os schalls e os vestidos das aldeans mais opulentas, que tinham obtido transfigurar-se horrendamente com os trajos das peralvilhas da capital, os quaes harmonisavam tão bem com aquelles corpos mal acepilhados e robustos, com aquelles rostos morenos e rosados, como os instrumentos da revoltosa orchestra se afinavam entre si.

Era um escandalo, profundo escandalo, para as beatas da freguezia, para as almas repassadas de patriotismo saloio vêr as novidades de vestuarios, que as corruptoras influencias de Lisboa íam exercendo nos antigos costumes, viciados por essas escusadas louçainhas. A honestidade das raparigas, entendiam aquellas matronas de virtude tão solida como as suas sapatas, tinha ido por ares e ventos involta nos farrapos das humilhadas saias de baeta vermelha, das abandonadas roupinhns de panno azul, e das pyramidaes carapuças. A devassidão, embrulhada nos vestidos de chita, de lan e de seda, e mettida entre o forro dos chapeus de palha, penetrára no seio das familias. Tudo estava perdido, e a moral ía cada vez a peior, diziam ellas com a philosophia macissa que o judicioso Horacio já gastava ha dous mil annos, e que é a mentira mais trivial, mais velha e mais tola que se conhece no mundo. Nas suas reflexões piedosas as respeitaveis decanas da aldeia esqueciam, ou antes ignoravam, o unico motivo serio que havia para lamentar aquella transformação. Era que esses trajos tornavam contrafeitas as raparigas aldeians; matavam a poesia campestre; associavam ao idyllio a walsa e o whist, e como que impregnavam a atmosphera, pura, brilhante e livre, dos miasmas repugnantes que povoam o ambiente pesado e abafadiço de tertulia cortesan.

Mas, antes de proseguirmos nesta gravissima historia, é necessario que trepemos áquella encosta que fica defronte do presbyterio, e que vejamos o que é feito de um nosso conhecimento antigo, roda indispensavel para o andamento da machina de successos que vamos tecendo. Quem não vê que falâmos do nosso jovial e praguejador Bartholomeu, sancto velho, se não fosse um desalmadissimo avaro? O moleiro, desde que o filho casára, andava-lhe tudo á medida dos seus desejos. Era ganhar dinheiro como milho, e o futuro da familia dos Ventosas surgia brilhante no horisonte. O Manuel estava de feito aposentado na azenha do Ignacio Codeço, e com uma labutação de por ahi além. As peças do padre prior tinham feito o milagre sonhado por Bartholomeu, e ainda haviam sobejado algumas, que o honradissimo moleiro associára ás do seu mealheiro para arranjar o casal dos Caniços, de cuja venda já lhe dera palavra seu irmão Barnabé, a quem elle, havia dous mezes, não deixava de dôr d’ilharga para que lhe tornasse as suas vinte moedas, que lhe eram indispensaveis, dizia o matreiro saloio, para pagar uma divida contrahida com um usurario de Lisboa por causa do casamento do seu Manuel, que se víra obrigado a arrumar. E como Barnabé, que tambem era saloio e manhoso, lhe objectasse que só vendendo o casal dos Caniços lh’as poderia pagar de prompto, e que era uma de seiscentos achar comprador que désse o que elle valia, Bartholomeu, acceso em amor fraterno, lhe declarou que o maldicto usurario dera a entender, que, se elle Bartholomeu tivesse umas terras que lhe empenhasse, esperaria pelo dinheiro com quaesquer cinco por cento ao mez; que por isso, vendo-se naquelles apertos e afflicções, faria o sacrificio de lhe tomar o casal pelas vinte moedas e mais o que fosse justo, que iria pedir ao mesmo usurario; porque—­accrescentava elle, quasi chorando—­vão-se os anneis e fiquem os dedos. Que ficaria arrasado, e a bem dizer a pedir esmola; porque, como elle Barnabé lhe affirmava todas as vezes que lhe ía pedir o seu dinheiro, as excommungadas das terras apenas davam para o fabrico. Emfim, tão despejadas mentiras pregou ao irmão, tanto o atenazou, taes artes teve de lhe converter as sétas em grelhas, que as bichas pegaram, e Barnabé deu o sim, a risco de estourar os ossos á tia Vicencia, sua respeitavel consorte, á minima pegadilha, ou de rebentar de paixão como um satanaz alguma noite na cama, se não desabafasse daquella grande magua com uma boa massada na mulher, consolação que para um verdadeiro saloio é nas afflicções o supra-summum dos prós e precalços matrimoniaes.

A Providencia temperou as cousas deste mundo de modo que se podem symbolisar todas as felicidades delle n’uma ameixa saragoçana. Doçuras, succo, belleza externa, sim-senhor; tudo quanto quizerem: mas, no fim de contas, travo e mais travo ao pé do caroço. É o que explica, pê á pá sancta Justa, a theoria das compensações d’Azaís. Mais um caso, para mostrar as carradas de razão que Azaís tinha na sua grande cenreira a este respeito, é o que succedeu ao moleiro, no dia em que Barnabé acabou de se resolver sobre o casal dos Caniços. Tinha sido justamente no dia da festa pela manhan, que Barnabé fôra com a sua Joanna á missa das almas, e viera pelo moinho almoçar com o irmão, que não lhe mostrou a melhor cara a principio, mas que até mandou fazer uma fritada de meia quarta de linguiça e tres ovos (um botou-se fóra, porque estava gôro) quando soube ao que elle vinha. Bartholomeu não cabia em si de contente: obrigou a sobrinha a levar atados no avental obra de dous arrateis de farinha para fazer umas raivas, pondo lá o assucar e os ovos, e mandando-lhe metade dellas; e por mais que pae e filha se escusassem de acceitar o seu favor, embirrou, e não houve torcê-lo. Estava naquelle dia capaz de lhes dar de presente metade da sua fortuna, e mais era, dizia elle, um pobre de Christo. Logo que se foram, Bartholomeu deitou a correr para casa, fechou-se no seu quarto, abriu, umas após outras, as vinte gavetas de um contador, mecheu e remecheu em todas ellas, tornou a fechar, e fazendo contas de cabeça, começou a passear de um para outro lado do aposento, com as mãos cruzadas nas costas, e entregue ás suas cogitações.

Os adornos ou guarnição do quarto consistiam em um leito de casados de pau-sancto de pés torneados e cabeceira redonda, thalamo nupcial, agora enluctado pela sempre chorada morte da tia Genoveva da Ventosa, mãe de Manuel da Ventosa, e mulher que fôra do honrado Bartholomeu da Ventosa, que, para falar como os poetas, solitaria rolla (ou rollo ou rolho) naquelle ninho silencioso se encouchava triste nas longas noites de inverno, ai, outr’ora tão felizes! O contador ficava defronte, e ao lado um bofete, e sobre o bofete um oratorio forrado de damasco amarello com sanefa encarnada. Sete sanctos povoavam o larario da defuncta moleira: S. Servulo, Sancto Onofre, S. Miguel, S. Sebastião, S. Gregorio, Sancto Antonio, e S. João Baptista; este ultimo no centro e em peanha mais elevada; Sancto Antonio á sua direita, com um cordão de ouro lançado ao pescoço e dando multas voltas ao redor do corpo. Como supplemento, por cima da cabeceira da cama, uma lamina da Senhora da Conceição, e dous registos, um de Sancta Barbara, outro de Sancta Rita; no tardoz da porta uma cruz de S. Lazaro pregada com massa. Uma arca da India, com ferrolho de correr e pregaria de grandes cabeças chatas de duas pollegadas de diametro, e quatro cadeiras de costas e assentos de couro lavrado completavam a mobilia do aposento. No canto do bofete, quasi á borda, estavam cravados um cruzado-novo e um tostão falsos, memorias dolorosas de um mono que pregára certo padeiro de Lisboa ao moleiro, na compra de uns saccos de farinha, historia, que, se eu a contasse, havia de fazer arripiar o pello aos leitores mais do que as novellas de Anna Radcliffe.

“Dez centos de mil réis! Chumba-lhe!”—­ dizia o velho esfregando as mãos, como um botecudo esfrega dous páus de que quer tirar lume, e passeando com passos curtos e rapidos de um para outro lado.—­“É isso! cem peças, sete centos e meio; quatrocentos pintos, dous centos menos oito; fazem nove centos e meio menos oito: duzentas cravellas de doze, meio cento menos dous: oito e dous dez: dez centos menos dez: oitenta de seis fazem duas moedas: duas moedas dez mil réis menos um cruzado: oito meios tostões quatro tostões: quatro tostões com ... justamente, dez centos. Ah sô Barnabé, quer setecentos? Heim? Com vinte moedas que já lá andam a juro, parece-me....! Quer ou não quer?”—­“Homem, isso é muito pouco...”—­“Pouco?! E doze moedas foro?”—­“As terras dão bem para isso: só a Abrunhosa...”—­“Pois se dão, homem, paga-me as vinte moedas. Ah, embatucas? Oh, oh, ih, ih, ih!..”

E Bartholomeu ria a bom rir daquelle dialogo que phantasiava travar como irmão. De repente, porém, as feições contrahidas pelo riso se lhe immobilisaram diante de uma idéa fatal. Barnabé podia dar com a lingua nos dentes ácerca do negocio, n’alguma noite em que fosse para a tenda do Agostinho jogar a bisca a vinho, segundo o seu costume, e sair um atravessador a picar-lhe o lanço; o Bento Rabixa, por exemplo, que tinha muito caroço, e que era um dos da tripeça da bisca. Vinham-lhe calafrios com tal pensamento. Uma palavra, uma allusão perderia, talvez, tudo. Era verdadeira agonia a sua. Costumado a implorar o céu nas grandes afflicções, Bartholomeu por uma daquellas subtilezas moraes dos avaros, que sabem conciliar a devoção com o seu vicio hediondo, ajoelhou diante do oratorio, e com lagrymas e fervorosas suplicas começou a pedir a S. João Baptista fizesse com que Barnabé não tugisse nem mugisse a similhante respeito. Nas suas orações passou-lhe, talvez, pela cabeça a idéa de um estupor na lingua de Barnabé. Desconfio: não o affirmo; porque não gósto de cousas dictas no ar. O que é certo é que procurou dar a entender ao sancto que teria duas vélas accesas e uma esmola para a sua festa, se as cousas lhe saissem a geito, exprimindo-se, todavia, por tal arte que não ficasse absolutamente preso pela palavra, e podesse roer a corda depois de se pilhar servido.

Em quanto o moleiro se debatia nestas tempestades de ambição, passava-se no presbyterio a scena que já descrevi entre João Nepomuceno e Gabriel. A principio Bartholomeu, embebido nos seus calculos, temores e rogativas, nem sequer ouvíra os repiques variados e harmonicos, com que o rapaz do moinho rompêra o seu grande e festivo concerto; mas pouco a pouco o motim dos sinos crescêra a ponto, que só os defunctos do cemiterio poderiam ficar indifferentes a tão retumbantes bellezas musicaes. Na aldeia já ninguem se entendia no meio dessa procella de sons, que, trepando pelos outeiros ao redor, e precipitando-se para os valles além, iam levar o ruido da festa e a gloria de S. Pantaleão ás povoações vizinhas. Penetrando pelos ouvidos do moleiro, aquellas vibrações desalmadas fizeram-n’o despertar do extasi de sovinaria devota que o arrebatava. Ergueu-se, chegou-se á janella, alçou a adufa, poz-se a mirar o relogio de sol do campanario, piscando os olhos e fazendo com a mão uma especie de pala para os defender da luz, e depois de se affirmar por um pedaço, deixando cahir de golpe a adufa, correu á arca, murmurando:—­“nove horas! Já mais de nove horas! Esta só por trezentos milheiros de diabos! E ainda tenho de me vestir! Com seiscentos diabos! D’aqui a nada estão lá os outros. Ora o diabo!..”

Estas imprecações em razão descendente, que o moleiro tinha sempre na bôca por um mau habito, que todas as prégações e remoques do padre prior não haviam podido fazer perder áquella lingua damnada de Bartholomeu, nasciam de uma circumstancia na verdade séria. A funcção d’igreja devia de começar ás dez horas, e elle era um dos festeiros. O padre prior tantas voltas dera que o obrigára a sê-lo, e a esportular uma moeda para as despezas. Devemos acreditar que nunca o teria alcançado, se não fosse o dote de Bernardina, sobre o que o moleiro tremia que o velho clerigo deixasse escapar alguma palavra. Elle aproveitára habilmente o caso para passar por bom pae e generoso, e ao mesmo tempo para se esquivar ao menor acto de beneficencia o resto da sua vida, affirmando que se empenhára até os olhos para comprar e reparar a azenha do Ignacio Codeço e estabelecer lá o seu rapaz, quando a verdade era que, comprada e reparada a azenha, posta a casa aos noivos, adquiridos seis machos, paga a soldada de tres mezes a dous moços, provída a dispensa, e deixadas algumas moedas para as despezas diarias, ainda um certo numero de louras do padre prior tinham ido cahir, como já disse, no escaninho onde jaziam sem ver sol nem lua aquellas que o moleiro acabava de contar. Obrigado por semelhante consideração, e á força de rogativas do parocho e das picuinhas de outros irmãos da Irmandade do Sanctissimo, que se tinham mettido no negocio, o moleiro achava-se elevado a uma situação que estava longe de ambicionar. Perdida a moeda, que elle havia de chorar toda a sua vida, importava-lhe não perder a consideração e valia na festa, que por tão alto e raivado preço comprára; era o risco que via imminente, ao menos em parte, se não estivesse a ponto de saír da sacristia para a capella-mór no prestito dos festeiros.

O dia começára bem; mas ía-se tornando aziago.

Apesar de velho, curto e barrigudo, o moleiro, não vendo nenhum outro meio de esquivar o contratempo que receiava, apressou-se o mais que pôde em se adornar com o aceio e pontualidade que requeria o acto. Do fundo da arca saíu o arsenal completo para os dias de vêr a Deus. Era respeitavel pela antiguidade! Monumentos de mais felizes epochas, os arreios esplendidos de Bartholomeu constavam de uns calções de gorgorão côr de tabaco, de um colete de veludo verde, e de uma casaca azul de abas largas e gola estreita (isto passava ha bem dezoito annos) antipoda da casaca peralvilha dos casquilhos daquelle tempo. As menudencias do trajo diplomatico do moleiro compunham-se de um chapéu armado, de um pescocinho com bofes, de umas meias de algodão brancas, e d’uns sapatos de entrada abaixo, ensebados de novo, com fivelas de prata, que batiam quasi na vira de um e outro lado. Assim vestido era um principe. Não; que lá isso é verdade; mettia respeito! Apressado, vermelho, suando com a calma, bufava como um touro encaminhando-se para a igreja. Os moços dos seus collegas, os de tres padeiros que havia no logar, e os de cinco lavradores a quem costumava comprar os trigos, passando por elle desbarretavam-se até baixo; a outra saloiada, espécada pelo arraial, fazia menção de cortezia com o barrete: dos mendigos que começavam a apinhar-se para o lado do presbyterio ao cheiro do bodo, uns, que não o conheciam por virem de longe, estendiam-lhe a mão e davam-lhe senhorias, tudo em vão; outros, que eram dos arredores, rosnavam e praguejavam-no. Mas dessas rosnaduras e pragas ria-se elle. Na auréola de gloria que o cercava já, que o ía cercar ainda maís brilhante, Bartholomeu estava tanto acima da maledicencia daquelles madraços, como os homens d’estado de qualquer partido costumam estar acima das ferretoadas, sovinadas e lambadas da imprensa periodica do partido contrario, segundo affirmam os da sua parcialidade: vide jornaes de todas as côres e cambiantes, passim. Como os politicos, o moleiro podia dizer, pondo a mão no coração—­a minha consciencia—­a minha honra—­a opinião publica—­os meus serviços—­a nação—­a posteridade:—­e depois tossir e escarrar grosso, e seguir ávante sem se embaraçar com aquelle rosnatorio despeitoso e zangado; porque, como bem disse um poeta de philosophia ancha:


O premio da virtude é a virtude:
O castigo do vicio o proprio vicio.

E foi o que Bartholomeu fez: e com razão. Não eram os respeitos dos moços dos outros moleiros e dos lavradores seus freguezes, e os dos pobres que o avaliavam pelo secio dos trajos, a prova cabal e indestructivel da sua popularidade? Eram. Que caso devia, pois, fazer dos zums-zums de meia duzia de farrapilhas? Nenhum. Eu cá, pelo menos, sou de opinião que fez bem proseguindo no seu caminho, tranquillo com o testemunho de uma voz intima, que o certificava de que era um homem de importancia, e digno por todos os titulos de representar o papel de festeiro a que fôra chamado.

Mas a nobre altivez do moleiro, e a firmeza que mostrára para não deslizar um apice do caracter grave e sobranceiro, proprio da sua situação, tinham de ser postas a mais dura prova. O momento em que chegou ao adro foi aziago. Ahi viu e ouviu cousas que o fizeram saír da gravidade e compostura que até então guardára. O que o negocio deu de si vê-lo-ha o leitor no proseguimento desta historia, que poderá ter mil defeitos, mas que (não é por me gabar) tenho levado com toda a pontualidade na chronologia e na averiguação dos mais miudos factos que possam illustra-la.

Quando Bartholomeu ía entrando no adro viu um taful e uma senhora, que, á porta da igreja, forcejavam para romper a pinha de povo, que a obstruia. Vistos assim pelas costas, pareciam pessoas de conta. Trajava ella um vestido de seda preta, um grande schall vermelho e um chapéu, franzido á ingleza, côr de café: elle calça e casaca preta da moda e chapéu fino, posto que já amarrotado pelos apertões da saloiada, que, fingindo quererem abrir caminho ao elegante par, cada vez se uniam mais, olhando uns para os outros com aquelle sorriso de socapa e malevolo, que é peculiar aos camponios quando colhem algum individuo, cujo porte e apparencia os humilha, para victima das suas graças e perrarias um pouco abrutadas.

O moleiro tinha nascido naquelles sitios, nunca dormíra uma noite fóra do logar, lidava com muita gente em consequencia do seu trafego, ía-lhe já a neve pela serra, e por isso conhecia perfeitamente os habitos, propensões e manhas dos seus patricios. Percebeu logo que os saloios estavam de embirração com as duas personagens cortesans, e desenganou-se de todo vendo vir do lado da igreja um dos moços do Agostinho da tenda, que, fingindo-se bebado e cambaleando, dizia:—­cresça o monte, rapazes; cresça o monte!

O magnetismo animal é um mysterio ainda: a extensão das affinidades magneticas ninguem a póde demarcar. De homem para homem ellas são indubitaveis; mas, porventura, vão mais longe. Ao menos eu creio que os calções, a casaca e o chapéu armado do moleiro actuavam fortemente no seu espirito por influencia occulta. Sentia no coração uma especie de cocegas aristocraticas; uma vontade de mostrar o que podia e valia aos nobres hospedes da sua terra, que, pretendendo assistir á festa, se collocavam naturalmente debaixo da sua protecção como festeiro. Era esta uma idéa que não lhe viria á cabeça quando trajava os seus calções enfarinhados, o seu colete assertoado e a sua jaqueta de saragoça. Mas veio-lhe então, mysteriosa, irreflectida, forçosa, posto que sem quebra da liberdade de a rejeitar, semelhante, se a comparação fosse licita, á graça efficaz. Approximou-se, pois, abrindo passagem por entre a turbamulta. O primeiro individuo com quem topou em cheio foi com Gabriel, que, tendo saído do campanario, tractava tambem de penetrar na igreja para ajustar contas com o sacristão logo que se lhe offerecesse ensejo. Para aproveitar o tempo, Gabriel, informado do que se passava, ía ajudando a augmentar o apertão, que crescia cada vez mais, de modo que a dama do schall e o dandy de preto, entalados juncto do guardavento, nem podiam recuar nem surdir ávante. Apesar, porém, da pequenez do seu corpo, Gabriel parecia ter de olho as duas victimas, como receioso de que voltando a cabeça o lobrigassem. Careteava, ria, empurrava com alma; mas, de instante a instante, punha-se nos bicos dos pés, espreitava por cima dos hombros e por entre as cabeças dos vizinhos, agachava-se ao menor movimento que via fazer aos dous, tornava a empurrar, e nesta lida o garoto renovava, incansavel em novo combate, as façanhas que, havia pouco, practicára no sempre memorando repique.

“Mariola!—­rosnou colerico o moleiro por entre os dentes cerrados, ao chegar ao apertão e agarrando de subito as orelhas de Gabriel, que, com uma cara onde assomava o chôro, encolhia a cabeça entre os hombros, mal comparado, como um caracol quando lhe puxam os tentaculos. Não tanto pela voz, como pelo contacto das mãos, assaz conhecidas daquellas pobres orelhas, Gabriel sentíra o patrão. Era, todavia, já tarde.

“Mariola!”—­repetiu Bartholomeu com o mesmo grito mal sopeado de colera. E ouviu-se o tinir duvidoso de uma fivela acompanhado de um som baço, como quem dissera o do bico de um sapato grosso batendo sobre uma pouca de bombazina estofada de certa porção convexa de carne humana. Gabriel descreveu com o corpo um arco, mas no sentido inverso ao de quem faz cortezia profunda. E começou a soluçar.

“Mariola!”—­accrescentou ainda outra vez o moleiro, com aquelle fatal rugido, que significava o seu profundo despeito. Ao dicto seguiu-se rapidamente o feito. Largou as orelhas do rapaz: recuou o braço, cerrou o punho, e desfechou-lhe tal murro no toutiço, que Gabriel foi ao chão.

A principio, uma certa contemplação com a idade, com o caracter, e mais que tudo com a fama de ricaço de que Bartholomeu gosava, conteve os murmurios dos poucos, a quem as diligencias communs para penetrar na igreja haviam consentido attender ao duro castigo que convertêra Gabriel n’um como bode emissario dos peccados de muitos. Quando, porém, o mesquinho rapaz cahiu em terra, a indignação dos seus co-réus rebentou. O moço do Agostinho, posto que a medo, alevantou a antiphona.

“Tambem é bater á bruta! Agora, a prove creança fez-lhe algum mal?! Vá bater assim no diabo. Olha não matasse aquelles milordens!...”

“Entre, sô doutor!—­atalhou Bartholomeu, atirando umas escorralhas de pontapé, que ainda lhe titilavam nos tendões da perna direita, ao limite inferior das vertebras de Gabriel, já que não podia sem risco applica-las ao orador. Essa fôra, todavia, a sua primeira inspiração.

“Ai, é para isso que uma mãe cria um filho! Coitadinho, já não tens pae! Não fôras tu orfo e prove. Mas cal-te, bôca. A gente sempre vê coisas!”

Ouvindo estas palavras, proferidas por uma voz feminina conhecida, o velho moleiro voltou-se. Era a senhora Perpetua Rosa, que, em companhia da ama do prior, tinha chegado naquelle instante a mata-cavallo, por se havêrem ambas entretido a examinar umas meadas, que a tia Jeronyma dera a curar á lavadeira, e que esta, vindo para a festa, de caminho lhe fôra entregar. Posto que ligados até certo ponto pelo casamento de seus filhos, a mutua má vontade da lavadeira e do moleiro, alimentada por largo tempo, tinha sido como o escalracho: cada anno profundara mais um palmo de raizes. Só havia uma differença, e era que Perpetua Rosa, protegida pelo genro, perdêra pouco a pouco o medo que tomára a Bartholomeu desde aquella historia das saccas, e já se engrifava para elle sem cerimonia. Encontrando-se ás vezes na azenha, nem uma só deixavam de se travar de razões por qualquer palha podre. De resto, tractavam-se com apparente cordialidade. Era como a alliança e sympathia actual entre a França e a Inglaterra.

“Pois não, sua lambisgoia!”—­acudiu o moleiro fazendo-se vermelho.—­“Acha você muito bonito que meia duzia de patifes estejam judiando com as pessoas que querem entrar na igreja? Com um quarteirão de diabos! Quem dá o pão dá o ensino; e este, pelo menos, hei-de eu ensina-lo!... Rosna p’ra ahi, pedaço de bruxa velha:”—­accrescentou elle, vendo que Perpetua Rosa continuava a resmonear, já com acompanhamento de—­“tem razão, tia Perpetua!” —­“olha o maluco!”—­“se queres vêr o villão mette-lhe a vara na mão!”—­“é agora o senhor assaluto!”—­Era uma tempestade eminente: era a revolta eterna do pobre contra o abastado, que resfolga pelo minimo respiradouro. E o sussurro crescia, e Bartholomeu, suffocado pela raiva, batia o pé, e debalde tentava cuspir por cima daquella quasi algazarra as pragas, as injurias, as ameaças, que lhe faziam maior entupimento na garganta do que pão de cevada faria em goellas de peralvilho dengoso. Vingava-se, é verdade, em servir de couces e cachações o misero Gabriel, que se lhe reboleava aos pés; mas isto não era mais que botar lenha ao forno, e augmentar cada vez mais o tumulto. A hirta mó de saloios ao pé do guardavento tornava-se mais flexivel, ondeava, alargava-se, dissolvia-se, e vinha agglomerar-se de novo em volta de Bartholomeu, curiosos de indagarem o motivo daquella assuada. Falavam todos a um tempo; já no meio do borborinho ninguem se entendia; e, apesar da colera e da sua habitual firmeza, o moleiro começava a titubear.

Na furia em que estava incendido contra Perpetua Rosa, contra a ama do prior, que tambem tinha desembainhado a lingua em defesa de Gabriel, e contra outras duas velhas do logar, que ajudavam a atenaza-lo, Bartholomeu não reparou que o taful, por cuja causa se mettêra naquella nora, forcejava por chegar ao pé delle. Por fim, foi a propria Perpetua Rosa que o fez attentar por isso.

“Venha, Manuel, venha cá: olhe a figura que está fazendo seu pae. Forte toirão! Abrenuncio!”

A isto o moleiro alçou os olhos para aquella parte, e viu... Quem havia elle de vêr? O seu Manuel, que, com effeito, rompia por entre a turba approximando-se, seguido de Bernardina, que lá de longe fazia esgares e visagens á senhora Perpetua Rosa e á tia Jeronyma para que se calassem. Os dous tafues, os dous milordens, os dous fidalgos, por quem Bartholomeu affrontava as iras populares, eram nem mais nem menos que seu filho e sua nora. Ficou parvo. O luxo dos noivos fez-lhe esquecer Gabriel, as velhas, as injurias, tudo. Como o corpo electrisado pelo contacto da resina, que é repellido chegando-o de novo a ella, e desembésta para o vidro se lh’o approximam, a sanhuda indignação do moleiro nordesteou para as novas victimas. Cingiu involuntariamente as algibeiras com as mãos; porque cada uma dellas se lhe figurou convertida n’um repuxo de cruzados novos, que, descrevendo uma curva parabolica, íam cahir nos balcões dos arruamentos de Lisboa. Depois, fincando os punhos cerrados nos vazios, e meneando a cabeça de um para o outro lado, poder-se-hia comparar ao oceano nos momentos que precedem a tempestade, quando as vagas, profundamente revoltas, ainda se não encrespam em carneiradas, mas banzam como somnolentas e espertando-se para o combate.

Passa a França pela terra classica da galanteria: parece que o bello-sexo tem alli o seu throno. Nesse ponto cedem a palma aos francezes os outros povos. Dizem-no todos; mas eu digo que não. Vence-os esta namorada terra de Portugal. Os nossos affectos serão menos ruidosos, menos rendidos; são, porém, mais ardentes e duradouros. Se as phrases d’uma lingua podem muitas vezes servir para revelar o caracter, os costumes e até a historia da nação que a fala, a nossa lingua e a franceza nos offerecem argumento da existencia dessa superioridade do coração, pela qual eu ponho, não digo a cabeça, mas quasi. E senão, respondam-me. Que incendio seria maior; aquelle que precisasse de um anno para amortecer e extinguir-se, ou o que durasse apenas um mez?

Indubitavelmente o primeiro. Bellamente. Venhamos agora á hypothese. O matrimonio é de sua natureza resfriativo: a paixão mais violenta acalma, entibia-se, entisica, e morre com o tracto domestico; e feliz se póde chamar a união em que a amizade e a estima vem substituir os sonhos e os delirios de um amor já saciado. Ha, todavia, um periodo em que, apesar de satisfeito, elle resiste ainda: é durante o lento desabar das illusões, que vão cahindo peça a peça. Nesse periodo ainda aos casados cabe o nome poetico de amantes: depois é que se chamam a cousa mais prosaica e positiva que se conhece no mundo; chamam-se marido e mulher. Esta epocha transitoria tem a sua formula diversa segundo as diversas linguas. Exprime-a em francez a phrase lua de mel: o portuguez diz anno de noivos. É claro que em Portugal resiste o amor ao matrimonio doze vezes mais que em França. Lá um mez; cá um anno. Fiquem as raparigas de aviso: nada de amores com estrangeiros. Se em França n’um mez colhem todo o fructo da victoria, que será por essas terras de Christo mais geladas e nevoentas? Eu, por mim, façam lá o que quizerem. Lavo d’ahi minhas mãos.

Bernardina, essa é que a dera em cheio casando com o Manuel da Ventosa. Aos quatro mezes de noivo era ainda um baboso por ella. No principio de julho ajustára contas com os freguezes da azenha, e recebêra algumas moedas: a festa da aldeia estava proxima: Bernardina morria por tafularia; o moço moleiro tambem não lhe era avesso. Tinham o vicio instinctivo da gente moça, vicio legitimo, se em vicios se póde dar legitimidade. Duas forças arrastavam, pois, o pobre Manuel da Ventosa: o amor, e a propria inclinação. D. Thomazia, irman do mestre eschola da aldeia (se Deus me der vida e saude, ainda talvez um dia conte a historia do digno professor) vivêra na côrte muitos annos com o sabio mano. Nisto de modas falava que nem um livro. Quando ía por acaso a Lisboa, nunca deixava de visitar duas ou tres modistas suas conhecidas, de maneira que, por assim dizer, andava sempre ao par da sciencia. Foi n’um aposento interior, no sancta sanctorum da residencia magistral, que se traçou, discutiu, e resolveu a conspiração, que devia baralhar os calculos de Bartholomeu sobre as maquias da azenha naquelle semestre. Seis moedas foram ali barbaramente espatifadas. Foi um orçamento perfeito: talhou-se por cima da risca do necessario, e gastou-se: gastou-se d’ahi a poucos dias até o ultimo real, já se sabe, com severissimas economias, ficando-se devendo apenas uns tres mil e seiscentos a D. Margarida, famosa modista daquelle tempo. A campanha fez-se do modo seguinte: Manuel da Ventosa acompanhou D. Thomazia a Lisboa, para umas compras de certos arranjos domesticos, de que ella dizia muito carecer. Os arranjos eram os da fatal conspiração contra o velho Bartholomeu. Os trances d’esperança e de receio do bom ou mau desempenho de D. Thomazia, por que passou Bernardina em quanto os dous não voltaram, não cabe no possivel narra-los. Apesar d’isso, a elegancia com que se imaginava trajada e o seu homem, namorava-a de si mesma, e dobradamente delle. Chegava a ter ciumes das olhaduras que deitariam ao Manuel as outras raparigas, sem que por isso deixasse de admittir com certa complacencia innocente a idéa do quanto a haviam de achar attractiva os rapazes da aldeia. Emfim, é aqui o caso de dizer com o poeta, ácerca do que se passava no coração da moleira,

“Melhor é exp’rimenta-lo que julga-lo;Mas julgue-o quem não póde exp’rimenta-lo.”

Voltaram os dous ás trindades. O escholar valído do mestre, que aviava os recados de casa, tinha-os acompanhado. N’um grande sacco de damasco amarello, herdado por D. Thomazia de sua avó materna, e em duas grandes caixas de papelão trazia o rapaz os almejados adornos. Quem diria que o monumental sacco era a boceta de Pandora!? Pois era. Bernardina saltou de contente ao desenfardelar aquella feira: estava vestida á moda dos pés até á cabeça, posto que o seu Manuel houvesse cortado para si uma posta de leão. Digo isto, porque, apesar de toda a farandulagem feminina, que a boa da irmã do professor escolhêra com fino tacto, quatro moedas tinham ficado no Adrião, n’um chapelleiro do Rocio e n’um sapateiro ahi proximo, não me lembra em que rua, porque isto já la vae ha muito tempo, e a historia está sujeita a estas deploraveis lacunas. O caso é que elle pela sua parte, envergada aquella fatiota, poderia sem grande favor passar por um fidalgo de provincia chegado de tres dias á côrte. Fugia-lhe tudo um és não és do corpo, e tolhia-o, é verdade; mas ficava um mocetão teso; um milordem, como dizia o moço do Agostinho da tenda.

Segredo, segredo profundissimo (semelhante ao da nossa tão celebre conspiração de 1640 contra os castelhanos, da qual só talvez sabia o primeiro ministro de Castella) se guardou na azenha, olim de Ignacio Codeço, ácerca de todas aquellas tafularias. Quantas vezes não se vestiram a casaca e o vestido de seda! Quantas se não pozeram o chapéu de castor e o franzido! Que viravoltas se não deram, que visagens se não fizeram diante de um espelho de espinheiro com suas cortinas de panninho, que adornava a casa de fóra sobre uma commoda de vinhatico oleado, cujas puxadeiras de metal amarello luziam que nem ouro! Que disputas não houve sobre o abotoar e o desabotoar, o atacar e o desatacar, o pôr o chapéu assim, e o pôr o chapéu assado! E D. Thomazia, que presidia áquellas conclusões, da alteza da sciencia punha termo á questão com o seu parecer decisivo, magistral, oracular. No grande dia da festa a vaidade daquellas duas creançolas, satisfeita com a admiração popular, não valeria, não podia valer, o deleite que a antevista gloria desse dia lhes dava em imaginação. Ai, assim são todas as ambições e esperanças humanas! O goso é sempre o desengano mais ou menos ensosso das fascinações do desejo.

Mas havia uma nuvem negra que entenebrecia o brilho de tão completa felicidade. Era a lembrança do genio de Bartholomeu. Ás vezes, no meio dos mais festivos commentarios sobre a grande vista que haviam de fazer com as inopinadas secias, a figura do moleiro surgia terrivel, enrugada a testa pela severidade, os olhos-ervilhacas faiscantes de colera, a bôca borbulhando pragas. Bartholomeu cortava com o seu vulto ameaçador aquella linda pagina dos sonhos da vida, bem como o pingo de amarellado simonte (perdoe-se o enxovalhado do simile em favor da exacção) que, rolando insensivel pelo estendido beiço do velho sapateiro, vae cahir sobre o Carlos Magno, aberto em cima dos joelhos, e espalmando-se arredondado sobre as linhas mais interessantes do livro immortal, embacia e mata as chispas de Altaclara no momento em que ella rompe o arnez de Ferrabraz. E o mestre pára, e assoa-se; mas a interrupção fatal desvanece as illusões dos officiaes ouvintes, e descerrando-lhes os dentes, lhes quebra os brios com que puxavam a encerolada linha, ou cravavam os pinos no alteroso tacão.

Uma idéa, todavia, asserenava logo a alma de Manuel da Ventosa: o furacão paterno estava certo; mas devia ser passageiro. Elle não havia de pôr-se a ralhar nenhuns vinte annos. Era um dia ou dous; e aquellas louçainhas ficavam para toda a vida. E esta dilatava-se-lhe por horisontes tão illimitados! O bom do rapaz ainda não dobrara o melancholico padrão dos trinta annos, d’onde só se começa a medir bem com os olhos o curto caminho de ferro entre o berço e a cova, pelo qual vae correndo esta especie de locomotiva chamada existencia humana.

Aqui tem, pois, o leitor que gostar da historia lardeada de todas as investigações, exhibições e minudencias gravissimas, de que ella se costuma temperar, com tanto juizo e talento, nesta nossa terra, as causas e items mais remotos e reconditos da difficultosa situação em que achamos Bartholomeu á vista da descommunal tafularia do filho e da nora, cuja defesa tomára sem os conhecer, como verdadeiro paladino, e que dava de todo o coração ao demo desde que víra assim arder sem remedio o seu remedio, como diriam o elegante auctor dos Cristaes da Alma, ou os poetas da Phenix-renascida.

Banzou por alguns momentos o velho. A transição era demasiado violenta e rapida, e a revolução que se operava na sua alma vinha gravida de uma apoplexia. Indicavam-no as veias da fronte que engrossavam, a vermelhidão do rosto que ía tirando a rôxo. Semelhante ao hesitar da grimpa no topo do campanario, quando em trovoada eminente luctam dous ventos contrarios, Bartholomeu não sabia se repellisse as insolencias de Perpetua Rosa, que tivera a ousadia de chamar-lhe toirão, se descarregasse a colera que o asphyxiava sobre os dous barbaros delapidadores da quasi sua fazenda; quasi sua, digo, porque o moleiro bem sabia que a azenha comprada com o dote de Bernardina era em rigor delles, e por consequencia delles o seu rendimento, que por paternal precaução se encarregára de administrar e poupar.

Mas a avareza, superior ao orgulho no animo do velho, fez desembéstar para o lado dos noivos o vento da colera. Abandonando o arranhado e moído Gabriel, rompeu para os novos criminosos, que assim de subito ousavam apresentar-se no seu inexoravel tribunal. Andando, as mãos contrahiam-se-lhe por espasmo nervoso, como as garras aduncas do girifalte, e ao chegar ao pé delles lançou uma á gola da casaca do Manuel e outra ao braço de Bernardina. Eram duas tenazes de ferro.

“Que patifaria é esta, sô tratante?—­disse, dirigindo-se ao filho em voz baixa, rouca, e de vez em quando apipiada pela indignação que lh’a tolhia.—­Você não sabe que o dinheiro custa a ganhar? Para que é essa trapagem toda? Com quê já a sua jaqueta azul tem bichos? E cá a grandessissima tola não podia passar sem sedas! Não se lembra do tempo em que andava de sapatas atrás das vaccas da Josefa Enguia? Diga, senhora mosca morta?... Olha a sonsa, que parece não quebra um prato! Anda-se um homem a matar para lhes fazer casa, e vocemecês, senhores badamecos, a botar o suor da gente pela porta fóra. E eu sem saber nada d’isto! Com trezentas carradas de diabos! Pena tenho eu que essa mariolada os não pozesse n’um frangalho. Não têm vergonha de se fazerem alvo do povo, e de se arruinarem e arruinarem-me a mim, que toda a vida tenho labutado para viver com a minha cara descoberta?... Oh desalmado—­proseguiu depois de um instante de silencio—­que contas me has-de tu dar do dinheiro que extravaganciaste, e que é preciso para me acabar de desempenhar da compra da azenha?...”

Neste momento o discurso de Bartholomeu, que se ía encaminhando ao pathetico, foi interrompido por um rir esganiçado e tremulo, que lhe chiou ao pé dos ouvidos. Era o caso, que Perpetua Rosa o seguíra sem que elle reparasse em tal, e se pozera attentamente a escuta-lo. A ultima phrase que a boa da velha ouvíra tinha produzido nella tão subita alacridade.

“E ri-se você, sua atrevida?!”—­exclamou o moleiro voltando-se para Perpetua Rosa.—­“É natural que fosse intrépece nesta alhada...”

“Pois vocecê nan quer que eu ria a arrebentar ouvindo-lhe essas lérias da compra da azenha? Calo-me eu, bem sei porque. Mas sempre lhe digo, que está paga e repaga. Meu dinheiro, teu dinheiro!... Entende-me, senhor Bertolameu! Minha filha não veio descalça...”

“Oh diabo de bruxa!—­exclamou o moleiro fóra de si.—­Dão-me inguinações de t’esganar! Olha a piolhosa, a estraga albardas, que me deu cabo de seis saccas, as melhores que eu tinha, por desmazelada...”

“Já lh’o disse, seu mirra-mofina, seu manita de carneiro assado, seu sovina-mór! Não me faça falar. Olhe que eu não tenho papas na lingua...”

“Um estupor tivesses tu nella, que te pozesse a bôca á banda, aldrabista de centopeia, basculho de chaminé, carraça do inferno! Falta agora que a senhora diga que a lesma da filha trouxe para o casal mundos e fundos!”

“Antão, como meche nessa borbulha,—­acudiu Perpetua Rosa, agarrando o moleiro por uma das largas abas da veneranda casaca, e sacudindo-o com força,—­é preciso que não faça da gente tola. Assim o quiz, assim o tenha. Saibam vocecês—­isto dizia-o voltando-se para cinco ou seis velhas, que faziam roda e segredavam umas com outras.—­Saibam vocecês que o senhor Bertolameu da Ventosa recebeu mais de cinco centos de mil réizes de dote...”

“Eu deito-me a perder com este diabo!—­interrompeu o moleiro fazendo-se fulo, e soltando as mãos do braço de Bernardina e da gola do seu Manuel, para as lançar ao gasnate de Perpetua Rosa.—­Oh lingua perversa! Quaes quinhentos mil réizes?!...”

“Os que meu amo tinha ajunctado grão a grão, como se lá diz, á custa do suor do seu rosto, com muito gloria in incelsis muito bem cantado, e muito enterro feito, e muitas bátegas d’agua nos ossos, e muito sermão prégado, e muito arranjo e poupança desta sua criada, senhor Bertolameu. Senhor Bertolameu, tenha perposito! que quem não diz, não ouve; que lá resa o dictado: manha do açougue, e com villão villão e meio. Foram setenta caras; salvo seja! Vi-as contar com estes olhos, que ha-de comer a terra. E quem as arrecebeu? Nanja eu. Assim compra-se muita coisa, e arrotam-se postas de pescada. Diz bem, senhora Perpetua Rosa; diz bem! Quem perdeu perdeu; mas não queiram metter os dedos pelos olhos á gente. Nunca vi creatura assim: t’arrenego!”

Este brilhante discurso, até certo ponto, e debaixo de certos aspectos, quasi parlamentar, fez volver o catavento de raiva do moleiro para a oradora, que não era ninguem menos que a tia Jeronyma, a qual abicára ao pé delle na alheta de Perpetua Rosa.

Bartholomeu andava-lhe já a cabeça á roda, e fugia-lhe o lume dos olhos. Largou os gorgomilos da sua estimavel consogra, e começou a menear os braços por tal geito, que faziam lembrar as vélas do moinho da Ventosa. Os olhos saíam-lhe das orbitas, e a escuma dos cantos da bôca: quasi não podia falar. Entretanto Perpetua Rosa, solta do feroz amplexo, exclamava:

“Pouca vergonha! pôr as mãos na cara de uma mulher velha, este gaiato!”

Á palavra gaiato, homens, rapazes, mulheres, que de instante a instante augmentavam a roda, ninguem se pôde conter, pelo contraste monstruoso entre semelhante epitheto e o vulto de capitão hollandez, rhomboidal, vermelho, rugoso, quadrangular, irritado do moleiro. Foi uma cachinnada, um palmear, um ah ah ah ... ih ih ih ... um assobiar de garotos, que fazia tremer as carnes. Debalde Bartholomeu tentava fazer ouvir as suas explicações: o estrepito opposicionista embaraçava a atrapalhada voz do ministro, que pretendia desemaranhar aquella inextricavel questão de orçamento. Ninguem se entendia: era completamente parlamentar.

Neste momento, á porta de um corredor que dava para a sacristia, appareceu de subito, já meio revestido, o padre prior. O motim do adro tinha ecchoado lá dentro. Á vista daquelle aspecto veneravel e venerado fez-se prompto e profundo silencio.

“Que estrupida é esta?”—­perguntou o velho parocho com aspecto carregado e voz severa.—­“É na vizinhança da casa de Deus, na hora em que vão celebrar-se os divinos mysterios, que os meus honrados parochianos vem tecer disputas e travar-se de razões, em vez de guardarem a compostura e devoção com que devem preparar-se para o tremendo sacrificio do altar? Rixas e apupadas no dia do bem-aventurado S. Pantaleão?! Não o soffro. Vamos, expliquem-me a causa de tal barulho. Que foi isto?”

“São estas descaradas....”—­gritou Bartholomeu.

“Saiba vossenhoria....—­acudiu ao mesmo tempo a tia Jeronyma.

“É este insolente...”—­interrompeu Perpetua Rosa.

“Não é nada, padre prior; não é nada:”—­diziam conjuntamente o Manuel e a Bernardina, mais com a mão, fazendo um gesto negativo, que com as palavras, enredadas inintelligivelmente com as do moleiro, da ama, e da lavadeira.

“Fale um!”—­gritou o prior.—­“Assim fico jejuando.”

“Foi.....”--disseram todos ao mesmo tempo.

“Peior!”—­acudiu o parocho.—­“Cada um por sua vez. Vamos.”

“Saiba vossenhoria...”—­vociferou o moleiro, ganiu Perpetua Rosa, flautou a ama, murmurou o Manuel, pipitou Bernardina, clamaram os circumstantes.

“Visto isso, é impossivel saber de que se tracta?”—­interrompeu de novo o prior.—­“Está bom... Não importa! Depois da festa averiguaremos o caso. Tudo para dentro já! Vá tomar o seu logar, Bartholomeu. Estão os mesarios á espera, e você entretido aqui com estas toleironas! Vamos. Nem mais uma palavra.”

E dizendo e fazendo, recolhia-se para a sacristia. No relogio de sol o gnomon estendia exactamente a sua sombra sobre o ponto de intersecção marcado pelo X. As rebecas soltaram a sua chiadeira quasi harmonica, e o grupo, desfazendo-se, escoou-se pelo portal tricentrico, cujas pedras a broxa vandalica havia amarellado; e dentro de poucos instantes o adro ficou silencioso e deserto.

Os instrumentos tambem fizeram silencio passados alguns minutos, e sussurrou lá dentro uma voz humana, cansada e debil, que entoava com suave melopea:

Introibo ad altare Dei.

Estamos á porta da igreja. A saloiada mettemo-la dentro. O padre mestre Prazeres, o padre Chaparro, e o padre prior não sei se d’aqui os vêm na capella-mór. Fr. Narciso gyra, mira, vira, revira tudo, na credencia, no altar, na banqueta. O ceremonial romano é um mundo de idéas, que elle dispoz nos diversos repartimentos cerebraes, com uma comprehensão, um tino, uma logica de por ahi além. Fr. Narciso tem d’olho o padre Chaparro, que foi toda a vida um tonto em liturgia, e assim ha-de morrer. General naquelle conflicto, Fr. Narciso está álerta; nem seiscentos Chaparros seriam capazes de lhe entortarem uma ou mil missas cantadas. Em semelhantes occasiões o veterano mestre de ceremonias contempla impassivel da altura da sciencia as evoluções dos seus subordinados: tudo abrange, tudo prevê, tudo dirige tranquillo. E não solta uma voz unica: não reprehende, não incita, não ameaça. Uns beiços estendidos e inclinados á esquerda fazem parar o missal, que ía a ser extemporaneamente arrebatado da banda da epistola para a do evangelho; uns olhos trasbordando pelas palpebras, acompanhados de um oscillar de cabeça rapido, horisontal e fugitivo, inteiriçam os joelhos que vão a vergar em genuflexão deslocada. Emfim, para que estarmo-nos a matar? Como o nome de Fr. Timotheo na parenetica, o de Fr. Narciso na liturgia será o nome que a historia transportará ás mais remotas eras, emquanto as glorias da familia arrabida durarem na posteridade.

O introibo entoou-se: o negocio está agora em mãos de mestre: podemos ficar descançados com a festividade. Como o calor da igreja é muito, venhamos, eu e o leitor, conversar um pouco á fresca sombra dos plátanos do adro. Tenho explicações indispensaveis que lhe fazer; dê por onde der, embora ouçamos a missa descabeçada.

Sou homem de bofes lavados, como diziam os nossos velhos, e não gósto de que me estejam a morder na pelle por causa de lacunas, mysterios, ou contradicções nas minhas narrativas. Menos isso. A historia é a historia, e não se hão-de deixar por aqui e por alli obscuridades e incertezas, que façam suar o topete ás academias futuras: muito mais que ha ahi uns quidams, cujo officio é esmiuçar, anatomisar e criticar os escriptos alheios, e que lhes fazem os mais crueis e desalmados processos verbaes, que é possivel imaginar, não lhes escapando periodo nem linha, ponto nem virgula. Critica rosnada pelos cantos é a destes, semelhante ao bisbilhotar da cozinheira com a creada da vizinha, á janella do saguão, sobre os talhos que a ama deu ao presunto, ou sobre o mais ou menos acogulado da medida dos feijões fradinhos. É por isso que a taes criticas chamo eu verbaes; verbaes, porque seus auctores d’ahi não podem passar. Coitados! escreveriam vinte heresias se copiassem o padre-nosso. São os alcaiotes dos lapsus linguæ, os mexeriqueiros dos actos de memoria. No vento e com vento compõem: vivem de epigrammas agudos como tranca: morrem sem deixar vestigio. Litteratos a barbas enxutas, eruditos lendo ainda por baixo, passam nas trevas como a coruja; mas bem como a coruja roçando as azas, que salpicou na alampada, pela alva toalha do altar a deixa ennodoada, assim a pagina pura, affagada de tanto amor do artista, estudada com tão sincera consciencia, lá recebe, na tertulia de parvos, a dedada torpe e sebenta de um chapadissimo tolo.

Não sou dos mais queixosos; todavia guardo acatamento profundo a essas caricaturas de adibe, que, á falta de dentes para devorarem carniça, contentam-se de fazer empolas e brotoeja na pelle do proximo. Respeito-os a todos, altissimos e baixissimos; que os ha de todas as riscas da craveira social, no civil, no militar e no ecclesiastico. Estou, por isso, sempre com o credo na bôca quando escrevo uma linha, e antes quero que se queixem da frequencia dos prologos do que me condemnem sem me ouvirem.

Disse já que tinha de fazer uma explicação ao leitor. Tenho; e é indispensavel. Estou ouvindo um melenas arguir assim:—­“Como soube a tia Jeronyma que as peças do padre prior se haviam esgueirado, com tanta magua sua, só para dotar Bernardina? Como o souberam os noivos, e Perpetua Rosa? Não se passou tudo particularmente entre o prior e o moleiro, ambos interessados no segredo do negocio, um por virtude, outro por avareza? Foi um duende que veio revelá-lo? Mas isso é fazer como Eugenio Sue, que logo desde o principio das suas novellas arranja um homem humanamente impossivel, e até uma entidade immortal, para nos casos difficultosos se desembrulhar das aperturas da situação. Isso é empalmar; isso não vale. Queremos saber por onde transpirou a generosa acção do velho parocho; mas por meios naturaes. Não admittimos tergiversação, nem milagres.”

Tá, tá! Nem eu, falando de telhas abaixo. E era para explicar este mysterio naturalissimamente, que chamava agora o leitor para a fresca sombra dos plátanos do presbyterio. O caso foi este:

Quando o prior, dominado pela idéa de remediar a todo o custo a rapaziada que fizera o Manuel da Ventosa, deu comsigo ao romper da manhan no moinho de Bartholomeu, lembrados estarão de que o velho, accedendo aos desejos manifestados pelo seu parocho de ficar a sós com elle, pozera fóra da porta os moços com o grito de rua! Se o homem fizesse como Polyphemo, quando tinha Ulysses e os seus camaradas encapoeirados no antro com os carneiros e como carneiros, o qual, á falta do unico olho que possuia e que lhe haviam vasado, ía apalpando e contando os que saíam, segundo mais largamente narra Homero, não succederia o que succedeu, e já as embrulhadas, picuinhas, dicterios e descomposturas ad faciem ecclesiæ, de que antecedentemente dei conta, não teriam sobrevindo, com escandalo das pessoas graves e tementes a Deus. Era, como no logar competente deixei especificado, grande o tráfego no moinho á chegada do prior: duas récuas de machos a enquerir á porta; moços para dentro e moços para fóra; saccos de farinha a rolarem e a empoeirarem a atmosphera; bulha, encontrões, sapateada, arres, xós, pragas, diabos; um pandemonio, emfim, em miniatura. A chegada do prior foi tão inesperada e subita, que Bartholomeu, azoinado, não reparou nos que saíam á sua voz de commando. D’aqui o damno. Uma testemunha ficava ahi, sem que Bartholomeu désse por tal.

Esta testemunha era Gabriel. O pobre rapaz tinha andado, até á meia noite, do moinho para a fonte e da fonte para o moinho, com um macho e dous barris, a carrear agua. Depois, estirou-se a dormir atrás de uma pilha de saccos de trigo, com aquelle valente somno da primeira juventude, a que se não resiste nem n’um campo de batalha. Dormiu, dormiu, dormiu. Rompia a alva e ainda elle era pedra em poço. O grito de Bartholomeu despertou-o, na verdade; mas não teve animo de erguer-se: bocejou, bufou, espriguiçou-se, estendeu os braços para diante com os punhos cerrados, virou-se de barriga para o chão, metteu o nariz debaixo do sovaco, e proseguiu na interrompida tarefa. Felizmente para o pobre do moço, que se fosse presentido pelo moleiro teria de acordar de todo com o despertador infallivel de dous pontapés, Gabriel não resonava, ainda no mais profundo somno. Crendo estarem sós, os dous travaram a larga conversação que no principio desta famosa historia ficou fielmente trasladada.

Não faço eu tão fraca idéa de mim ou do leitor, que supponha assás falta de interesse a minha narrativa, ou o tenha a elle por um tal cabeça de vento, que se esquecesse da estrondosa gargalhada que desandou o padre prior ao manhoso saloio, quando este lhe propoz désse o dote a sua sobrinha Joanna, á falta de outra mais digna. A descommunal risada é que o somno de Gabriel, se não partido inteiramente, ao menos já estalado pelo grito de Bartholomeu, não pôde resistir. O rapaz fez uma viravolta, abriu os olhos, deu uma guinada ao corpo, ficou assentado, com as pernas estendidas, e a cabeça inclinada sobre o peito, meditabundo por alguns momentos, e immovel como um daquelles santões de que resa Fernão Mendes Pinto. Depois, levando as mãos á cabeça, começou a coçar rapido d’alto a baixo por cima das orelhas. Pouco durou, todavia, essa primeira furia. Como o som da harpa d’Ossian, alongando-se e esmorecendo por entre a nebrina das serras, aquelle coçar d’alma affrouxou e desvaneceu-se gradualmente; as mãos, confrangidas em fórma de garra, espalmaram-se flexiveis, os braços hirtos e erguidos despenharam-se mortaes ao longo do tronco, e a cabeça somnolenta balouçou á direita, depois á esquerda, depois pendeu de chofre para diante, e resaltou quasi ao bater sobre os joelhos, semelhante ao judeu martyrisado pela sancta inquisição, quando ao descer pendurado da polé, a corda, atada mais curta que o espaço médio entre o chão e a roldana, o desconjunctava, retendo-o subitamente alguns palmos acima do pavimento. Assim se desconjunctou aquella machina de somno, e Gabriel abriu seis vezes a bôca, engradou-a com outras tantas cruzes, esfregou os olhos com a parte anterior do canhão da jaqueta, mirou por entre os saccos os dous velhos, embasbacou de vêr alli o prior, e, sem tugir nem mugir, poz-se a escutar o dialogo, que se travára entre ambos.

Qual este foi e o seu desfecho sabe-o o leitor tão bem como eu. Apenas o prior se despediu, encaminhando-se pela encosta abaixo,

Bartholomeu recolhendo as setenta peças, que elle deixára sobre a arca das maquias, poz logo tudo em movimento; e Gabriel, por cuja falta naquelle primeiro impeto o moleiro não dera, teve arte de se confundir com os outros moços, que entravam e saíam, sem que o amo nem por sombras suspeitasse que havia uma terceira pessoa sabedora do importante negocio que se acabava de compôr, e sobre o qual, no meio do seu mandar, e ralhar, e lidar, já a ambição lhe ia alevantando na phantasia muitos castellos de vento.

Segredo em bôca de rapaz, outros dizem de mulher (eu, por decencia e pelos meus principios, sustento a moção relativa aos rapazes) é manteiga em nariz de cão. Elle, na verdade, contou-o com variantes para mais e para menos, mas contou-o, que é o caso. E a quem o havia de ir metter no bico? Á pessoa que mais interessada suppunha na historia; á senhora Perpetua Rosa, mas pedindo-lhe pela alma das suas obrigações e pela fortuna da sua Bernardina que não dissesse nada, porque o patrão, se tal soubesse, era capaz de esganá-lo. Prometteu-lh’o Perpetua Rosa; jurou-o e tresjurou-o. Pulava a boa da velha de contente, e a primeira vez que levou roupa á cidade fez das fraquezas forças, e trouxe de mimo a Gabriel um pião novo, uma gaiola de grilos cousa d’espavento, e uma abáda de castanhas do Maranhão e de figos passados, com que o bom do rapaz se regalou de pôr a bôca n’uma lastima. E o mais é que teve palavra. Apenas contou o caso a duas ou tres freguezas antigas de Lisboa, e á tia Jeronyma, com quem desde a mestra, podia-se dizer, era unha com carne. Aqui é que foram as ancias. Pelos domingos tiram-se os dias-sanctos. A ama do prior fez-se fula quando tal ouviu. A lanceta que sangrára a meia do forro da escada apparecia finalmente; e a tia Jeronyma, sem lhe importar o ver a mortificação da pobre Perpetua Rosa, desabafou á sua vontade; mas passado o primeiro estouro da dor, levou de seu brio nunca mais tornar a bulir nesta desagradavel materia.

Eis a verdade nua e crua de como se aventou o segredo. A alhada da porta da igreja, nascida daquellas tafularias tolas do Manuel da Ventosa e da sua companheira, acabou de divulgar o negocio, sem que n’isto andasse o fradinho de mão furada, nem os jesuitas, gente de poder mysterioso e terrivel, nem, finalmente, o judeu errante, que tantas maravilhas obra actualmente na terra. Mas se n’isto não entraram os irmãos do quinto voto, nem o caminheiro Ahasvero, com as suas sapatas tauxiadas de pregos em cruz e com os seus alforges de cholera morbus, entrou, a meu vêr, a Providencia, mas uma Providencia natural e simples nos seus meios, como ella o é sempre, sem milagres nem bruxarias. Cuidava o prior que a sua nobre e evangelica generosidade ficasse occulta; cuidava Bartholomeu que trévas perpetuas cobrissem a torpe cubiça e a sórdida avareza com que se houvera neste negocio. Vae, que faz Deus? Serve-se de um pobre rapaz, que ninguem tinha em conta de nada, e põe tudo ao olho do sol. E fique desde aqui dicto que essa é a moralidade da minha historia: a virtude exaltada, e o vicio punido. Nem mais nem menos, como o desfeixo daquellas grandes comedias, que, ha vinte ou trinta annos, eram as delicias de nossos paes, e a gloria dos nossos dramaturgos das tres unidades, que Deus haja... As tres unidades, entenda-se bem; porque os dramaturgos, esses o Senhor no-los conserve, emquanto podér ser, para nosso regalo e consolação.

Quem disse lá que as velhotas, testemunhas dos items do moleiro com as personagens que mais conjunctas lhe eram, entraram para a igreja e se pozeram a ouvir o cantar dos padres, e a musica do coreto, e o esbravejar do prégador? Por um oculo! Á sombra da sua victima, que fôra e que ía seu; á sombra de Bartholomeu, a quem todos abriam caminho para o deixarem approximar-se do banco dos festeiros, ellas atravessaram a mó dos homens, unidos como sardinha em tigela dos estrados para baixo até o guardavento, e chegaram ao meio do mulherio. Haja o apertão que houver, ainda não consta que saloia deixasse de fazer praça para si na igreja. Verdade é que a tia Jeronyma ía em frente com a cara de arremetter que Deus lhe dera, e que mais rebarbativa se tornára com a anterior refrega. Quem deixaria de dar campo á ama do prior, e, sobre tudo, áquella carranca? Seguiam-na os noivos, encolhidos e vergonhosos do escandalo que tinham causado, tornadas em fel e absintho as tão risonhas esperanças que, pouco havia, punham no seu garbo e bizarria; que n’isto vem a acabar muitas vezes as vanglorias do mundo. (Mais moralidade). Após elles vinha Perpetua Rosa, e após a lavadeira vinha a Veronica do Tiago, padeira gorda, vermelha e reverendaça, a Engracia Ripa, mulher do fogueteiro da aldeia, magra, alta, côr de enxofre, a Eufrasia Tasquinha, tia do Gabriel, e varias outras, mais anchas ou mais esguias, mais esgrouviadas ou mais repolhudas, que não sou eu nenhum Homero para estar, nem antes nem depois da batalha, a tecer catalogos de guerreiros.—­“Dê licença!...”—­“Ai, que me pisou!...”—­“Perdoe!...”—­“Não vê?...”—­Eis o que se ouviu murmurar por alguns instantes. E no meio daquelle mar de cabeças adornadas de lenços de côr, listrados, e brancos, avultava a pinha das recem-vindas, que tentavam ajoelhar; pinha semelhante á embarcação rota a ponto de submergir-se, que balouça vacillante, e se atufa lentamente nas aguas. Manuel da Ventosa, que ficára em pé no topo inferior do estrado, sentia apertar-se-lhe o coração vendo a sua Bernardina no meio daquelle cahos de capotes e roupinhas, como uma avesinha do céu no meio de ninhada de sapos. As sedas, o chapéu, as flores, a romeira rangiam, achatavam-se, engorovinhavam-se entaladas entre aquellas baetas, pannos, camelões e durantes, do mesmo modo que sobre o cadaver da virgem se achatam e quebram as alvas roupas da innocencia e a corôa de rosas, debaixo da terra aspera, pesada, immunda, que o coveiro atira brutalmente sobre os restos do que foi bello, delicado e puro.—­“Mas que remedio?—­pensou Manuel. As cousas assim hão-de ser sempre, porque assim foram desde o principio do mundo.”—­Elle, de feito, cria que desde esse tempo existiam missas cantadas, saloias e apertões. Mas emfim ajoelharam, persignaram-se, e a festa principiou.

Não a descreverei eu. Quem não sabe o que é uma festividade de orago, e o que é a missa solemne celebrada n’um templo catholico? Ha ahi alguem, crente ou não-crente na fé que seus paes lhe ensinaram, que não tenha bem vivos na memoria esses dias festivos da sua meninice; esse culto, que sabe elevar o espirito para o céu com as pompas de espectaculo sensual, que parece deveriam faze-lo descer para a terra? Quem se não lembra daquelles bons dias sanctos dos doze annos, em que o sol era mais formoso que nos dias de trabalho, sem exceptuar a folgada quinta-feira do sueto escholastico? Quem se não lembra da epocha, em que o nosso parocho era para nós um ente quasi divino; porque, pobres creanças, ainda ignoravamos os caminhos por onde esses homens, chamados a uma existencia de sancta e sublime poesia, sabem vir despenhar-se no charco das miserias e torpezas humanas, e revolver-se ahi com aquelles de que deviam ser esperança, salvação e exemplo? Quem não se recorda com saudade do tempo em que o altar só lhe apparecia a certa distancia, com o seu frontal broslado e a sua toalha alvissima, assoberbado pela catadupa de lumes de um throno, perfumado pelas jarras de flores, involto no ambiente turvo pelos rolos de fumo raro e pallido do incenso, symbolo do mysterio? A quem não murmura ainda nos ouvidos o rythmo monotono e severo do psalmear sacerdotal, mais accorde com as doces tristezas do coração, que toda a musica sentida e dolorosa dos espectaculos scenicos, e que estes, na impotencia de o vencer, têm ido humildemente imitar nas creações dos modernos artistas (porque Meyerbeer, para ser o rei das harmonias, foi invadir o templo)? Quem, finalmente, não refugiu uma vez, cansado de scepticismo, para as memorias infantis das commoções geradas pela religião dos primeiros annos, religião toda de affectos, de inspirações, sem sciencia nem raciocinio, os quaes, semelhantes ao sal espalhado sobre a terra, podem fertilisar algum coração, mas esterilisam os mais delles? As impressões indestructiveis das festas religiosas guardam-nas os que crêm, como consolação do passado, e como esperança de regosijo futuro; e os que não crêm tambem as guardam, no longo crepusculo da sua alma, como guardamos no inverno as plantas odoriferas já murchas, que, debaixo de céu pardo e frio, ao pé da veiga nua e da arvore desfolhada, nos recordam o halito suave dos campos ao pôr do sol de um dia sereno do estio.

Eis-ahi porque não descrevo a festa. Era especular descaradamente com os leitores: era como se ao Bartholomeu se lhe mettesse em cabeça ir ensinar o ceremonial romano ao incomparavel Fr. Narciso.

E que terá Fr. Narciso, que já escarrou duas vezes, já se assoou quatro, já bufou seis, já arregalou os olhos para o corpo da igreja oito? É que as attenções estão distrahidas. Fortes brutos! Uma perfeição de ceremonias, que nem na capella sixtina no dia da benção urbi et orbi!—­“Olha o que lá vae! o que lá vae!—­rosnava elle cheio de indignação.—­Aquellas endiabradas... Quem vos decepára as linguas, tarameleiras! Até aqui! Louvado seja Deus! É de mais. Psiuhhhh!”

Tinha razão. Era um zum zum na igreja, que quasi galgava por cima das rebecas; e mais chiavam e desafinavam com alma. O arrastado psiuhhhh de Fr. Narciso restabeleceu, porém, a ordem, que nem n’um motim popular uma carga de cavallaria.

Mas para se restabelecer a ordem é necessario haver desordem. Quero vêr se tambem dizem os parvos que esta proposição é uma das minhas esquisitices, ou excentricidades, para lhes falar na sua algaravia. A cousa tinha saído do logar onde estavam a tia Jeronyma, Perpetua Rosa e a Bernardina. Qual cousa? Isso é o que não diz a historia. O que é certo é que era um bis bis que partia do centro para a circumferencia, como os circulos concentricos que encrespam a superficie do lago ao meio do qual se atirou uma pedra, e era ao mesmo tempo um balouçar de pontas de lenços sobre os cabeções dos capotes, um rir abafado, um sussurro, uma agitação entre o mulherío, tal, que attrahira a attenção e logo a colera de Fr. Narciso. O mais que se pôde perceber foram alguns fragmentos de dialogo entre a tia Jeronyma e a Engracia do Estanislau fogueteiro.

“Padre nosso que estaes nos céus:—­dizia Engracia Ripa, deixando correr um dos bugalhos de umas contas da terra sancta que tinha nas mãos.—­Ora essa!—­Sanctificado seja o vosso nome.—­Forte tractante!—­Venha a nós o vosso reino.—­E uma pessoa com a sua áquella de que era um home como se quer!—­Seja feita a vossa vontade.—­Safa!—­Assim na terra como nos céus.—­Com que então setenta?”

“Entregadinhas!—­Ave Maria, gracia plena:—­respondeu a tia Jeronyma, que latinisava furiosamente á força de viver com o prior.—­Como lh’o hei-de dizer?—­Domisteco.—­Foi o demo que o tentou.—­Benedités tu...

Neste ponto a interessante conversação das duas matronas foi interrompida pelo psiu! raivoso de Fr. Narciso. Não podemos dizer sobre que ella versava, nem aonde iria dar comsigo: e quando n’uma chronica profunda e grave, como esta, faltam fundamentos plausiveis, é dever do chronista ser sobrio, ou antes abster-se de conjecturas. Direi só que ao saír a gente da festa, não havia cão nem gato que não soubesse tim-tim por tim-tim a historia do Manuel da Ventosa e da Bernardina.

Mais moralidade:—­é o que elles tiraram das suas tolas tafularias.

Quando o prior saíu da igreja os rapazes desbarretavam-se, ainda com mais signaes de cortezia e respeito do que era costume; as raparigas affagavam-n’o com um sorrir e volver d’olhos affectuoso, que fazia scismar o bom do parocho. Todos olhavam para elle e falavam em voz baixa. O prior estava zangadissimo.

Mas qual foi o seu pasmo ao vêr chegarem-se a elle muitos velhos de cabeça branca (eram varios lavradores seus freguezes, hourados paes de familia) e beijarem-lhe a mão com os olhos arrasados de agua! Estava fumando. Uma onda se lhe ía outra se lhe vinha de destampar com tudo aquillo, e pregar uma descompostura solemne e por atacado nos velhos, nos rapazes, e nas raparigas.

E para isso não lhe faltava metralha. Mas lembrou-se de que era o dia do orago da aldeia, e teve mão em si. Só lá perguntava aos seus botões qual seria a causa deste destempero e doudice.

Como havia elle de atinar, se tinha o costume de esquecer-se do bem que fazia, porque, sendo fraco de memoria, reservava-a toda para o bem que recebia?

A historia do casamento feito pelo velho parocho, segundo depois me contaram (era eu pequeno, e lembra-me como se fosse hoje), chegou aos ouvidos do prelado diocesano, o qual disse ao famulo do famulo do seu secretario, um dia em que se levantou de dormir a sésta com vontade de galhofar, que na primeira visita que fizesse á diocese havia de elogiar publicamente aquelle digno pastor. Nunca, porém, houve occasião para a primeira visita, porque esta costumeira velha tinha passado já de moda. Eram pieguices só boas para os Bartholomeus dos Martyres e para os Caetanos Brandões; pobres homens, a quem Deus fale na alma, se é que valiam a pena d’isso.

Ajuda—­novembro de 1844.