Índice
editar- Capítulo I
- Capítulo II
- Capítulo III
- Capítulo IV
- Capítulo V
- Capítulo VI
- Capítulo VII
- Capítulo VIII
- Capítulo IX
- Capítulo X
- Capítulo XI
- Capítulo XII
- Capítulo XIII
- Capítulo XIV
- Capítulo XV
- Capítulo XVI
- Capítulo XVII
- Capítulo XVIII
Um dia, numa floresta, ao entardecer, quando por sob as frondes ressoavam as buzinas dos porqueiros, e lentamente na copa alta dos carvalhos se calavam as gralhas, um lenhador, um servo, de surrão de estamenha, que rijamente trabalhara no souto desde o cantar da calhandra, prendeu a machada ao cinto de couro, e, com a sua égua carregada de lenha, recolheu, pelos caminhos da aldeia, ao castelo do seu Senhor.
Diante de cada cruz pregada nos troncos da mata, tirava o seu barrete de pele de coelho, rezava uma ave-maria. Ao passar na lagoa, mais reluzente, sob a amarelidão da tarde entre os seus altos canaviais, que uma moeda de ouro nova, deixou um molho de carqueja e de achas para o ermita, que ali erguera a sua choça de rama. E adiante, num pinheiral, apesar de já luzir no alto a estrelinha da tarde, e o bom trabalhador ter fome, parou até encher o saco de uma velhinha que, tremendo, e arrimada a um bordão, apanhava agulhas e pinhas. A velha murmurou: “Deus te dê alegria em tua casa!”
Longamente ainda, ora por caminhos claros que soavam como lajes, ora sob a ramaria alta, por veredas fofas de musgo, tilintavam no silêncio e na penumbra os guizos da égua. E a noite cerrava-se, quando para além de um ponte de tabuado que tremia sobre uma torrente, seca por aquele lento agosto, o povoado apareceu entre o arvoredo do vale, com a capela branca e toda nova que o Senhor do castelo andava erguendo a S. Cosme.
O lenhador, com a sua égua, meteu por uma longa alameda de faias, atrás de um carro que chiava lentamente, carregado de mato. A estacada, que outrora cercava a aldeia, apodrecera sob os sóis, sob as chuvas, ao abandono durante longos e fartos anos de paz: e as cabanas repousavam entre os pomares, em segurança e fartura. Dos tetos, bem cobertos de colmo, seguros por lascas de lousa, subia o fumo lento e cheiroso das pinhas e agulhas ardendo com abundância nas lareiras. Em todas as cortes grunhiam porcos. Pelas quelhas mais escuras, as raparigas passavam para os serões, sem temor, com a sua roca à cintura. Por trás dos muros de adobe, morria o murmúrio dormente dos terços e das coroas realizadas em coro, nas contas. Raramente um rafeiro latia por trás da cancela ou das sebes. No adro, o forno senhorial ainda ardia, tanta era a fartura do pão a cozer. E junto da fonte toldada pelas ramagens de um olmeiro, no banco de pedra onde aos domingos os velhos vinham julgar os pleitos de gados ou de águas, os dois arqueiros do castelo, que todas as noites rondavam a aldeia, dormiam sem cuidados, como frades, com os seus arcos caídos no chão.
Lentamente, ao rumor lento dos guizos, o bom lenhador e sua égua passaram, ao fim do povoado, a alta taberna do Galo Preto, que estendia através da estrada a sua comprida vara enfeitada de louro. Dois romeiros, com vieiras na murça de burel, bebiam à porta por grossos pichéis de estanho. Dentro um pobre menestrel, de longa guedelha caída sobre o gibão em farrapos, tangia a sua viola de três cordas: e um frade mendicante com a sacola entre os joelhos, um caldeireiro com os tachos de latão e a ferramenta pousada ao lado no chão de terra negra, jogavam dados sobre um banco, na penumbra das grossas pipas, que tinham todas uma cruz branca, para que os maus espíritos não azedassem o vinho.
O bom lenhador apressava sua égua: e bem depressa, do alto de um cerro coberto de azinheiras, avistou embaixo o rio, o largo rio escuro que corria, mudamente, sob os quatro arcos de uma velha ponte romana, que tinha ao meio uma capelinha nova, onde palidamente, na névoa úmida, bruxuleava uma lâmpada. Para além, na outra margem, era uma longa colina suava, onde se erguia, acompanhado de arvoredos e cercado de muralhas como uma cidadela, um mosteiro rico de Domínicos.
Mas, descendo o cerro, o caminho estreito, por onde, sob a estrelada mudez da noite, iam tilintando os guizos da égua, corria fundo e negro entre altos barrancos. E como aí, por vezes, de noite, aparecia um estranho pastor, de cabelos cor de fogo, e seguido por dois lobos familiares, o bom lenhador murmurou, voltado para o santo lugar onde nasce a estrelinha d'alva, o nome do anjo Gabriel.
Depois, sem temor, atravessou o pinheiral. Já então trilhava as terras do solar do seu Senhor. Vastos pastios de gado, campos onde se fizera a ceifa, desciam até o rio, que um choupal bordava, escuro e cheio e rouxinóis. E sobre um forte outeiro, logo o Castelo apareceu, negro, formidável, com altas muralhas, os grandes cata-ventos em forma de dragões e de aves heráldicas no cimo de cada torre, e, na mais alta, a chama clara do seu alto farol.
Uma calçada de grossas lajes, orlada de faias, conduzia ao terreiro, para onde abria, sob a torre de menagem, a estreita porta chapeada de ferro e a ponte levadiça, que sempre descida, naqueles doces anos de paz, tinha as cadeias de ferro enferrujadas. De um lado do terreiro havia um pequeno alpendre, coberto de rama, onde se vendia, à vasilha, o bom vinho branco das vinhas senhoriais. Do outro lado, negrejavam os grossos barrotes das forcas patibulares. Um velho olmo assombreava o banco de pedra, onde, pelas tardes de verão, o Senhor vinha julgar os delitos, receber vassalagens, ou marcar as portagens devidas pelos mercadores que, com longas récuas de machos carregados, passavam por dentro das suas terras. Nenhuma claridade saía das janelas das torres, mais esguias que fendas. As rãs coaxavam na água negra dos fossos.
O bom lenhador costeou as compridas muralhas, onde por vezes uma mancha mais clara na pedra negra era como uma cicatriz de batalha numa face requeimada; e passando pela alta cancela de uma sebe, que ao longe se perdia nos prados escuros, penetrou por uma estreita poterna, aberta na muralha como uma fenda abobadada, e guardada por um cão enorme, cuja corrente de ferro arrastava na lajes.
Dentro, no vasto recinto murado, para além de um poço de bordas baixas, encimado por um pombal, a casa senhorial erguia a sua fachada simples e severa, de onde saía, através dos vidros miúdos encaixilhados em chumbo, a claridade pálida dos brandões da sala, ao lado da luz mais vermelha das cozinhas. Um torreão redondo, com balcão, erguia a uma esquina o seu agudo teto de escamas de lousa, encimado por um vasto cata-vento em forma de bandeira desdobrada. Aos cantos da casa, esguios dragões alados, voltavam para o pátio as goelas escancaradas, por onde as chuvas se escoavam nos regueiros da cisterna. E a lanterna de um servo, que passava sobre o terraço, alumiava grossas filas de abóboras pousadas no parapeito, secando ao sol.
O bom lenhador descarregou a égua na tercena de lenha. Depois, tirando o seu barrete de pele de coelho, empurrou a grossa porta da cozinha, armada de puas de ferro. Sob a chaminé, enfeitada de réstias de cebola e de ramos de louro seco, tão vasta que abrigava, de cada lado da lareira, um longo banco de carvalho. Uma chama clara de troncos, ardendo sobre brasido, alumiava as paredes caiadas, onde pendiam de ganchos de ferro odres de vinho, caldeirões reluzentes, e os sacos de especiarias. Com o seu longo avental de couro, um barrete de couro na cabeça raspada, o mestre cortava sobre um cepo imenso de pau, um anho esfolado. Um servente, de braços nus, regava de molho, com uma longa colher de ferro, as grossas peças de carne que assavam nos espetos, mais longos que lanças de guerra. Dois lebréus brancos enroscados dormiam diante do lume. E rente do muro, sentados em tripeças, já os moços das abegoarias, os pastores, os cordoeiros, esperavam a ceia, calados, com os seus gorros na mão.
Mas um pajem, de longos cabelos encaracolados, e trazendo um jarro lavrado, ergueu ao fundo a grossa cortina de estamenha, que tapava uma imensa porta em arco, ornada com duas cabeças de lobos. E o bom lenhador dobrou humildemente o joelho, entrevendo para além, já alumiada para a ceia, por tochas de cera, a sala senhorial: a vasta mesa atapetada de ervas frescas; as duas lanças transversais por cima, suspensas do teto por correntes de ferro, carregadas de grossos pães de sêmea; a alta cadeira de espaldar, no topo, encimada por um alto brasão, tendo ao lado um poleiro, onde dormiam dois falcões; a imensa chaminé de pedra, ao fundo, com figuras em relevo que agitavam armas. Todos os servos se tinham erguido. E quase imediatamente, arrastando os seus sapatos de pano amarelo, o despenseiro apareceu, calvo e gordo, com o seu molho de chaves. Era ele que distribuía a ração aos pastores, aos cordoeiros, aos tosquiadores, aos forneiros, e aos outros servos do domínio que não ceavam na cozinha do solar; e bem depressa o bom lenhador recebeu no seu saco de estopa o pão de sêmea, o pichel de vinho, e a posta de carne salgada, devida nos dias de grande corte.
De novo o bom lenhador empurrou, sem ruído e humildemente a porta da cozinha. Passou a poterna da muralha, que abria para os jardins e para o jogo da bola. Atravessou a rua de limoeiros que dividia os jardins e o pomar, onde docemente cantavam na sombra os repuxos e a água das regas; ladeou a casa do cabanal e a eira, alvejando, toda caiada de fresco, sob a claridade das estrelas; e passando entre abegoarias e a liça dos pajens, que desenrolava entre mastros enfeitados de bandeirolas a sua pista areada de saibro, saiu por uma porta da alta estacada, que circundava a quinta senhorial. Para além eram vastos prados, pastagens descendo até ao rio, onde uma larga avenida de olmos abrigava a cordoaria do castelo. Um outro cerrado de sebe espinhosa cercava estas fartas dependências rurais, defendidas ainda por armadilhas para os lobos, valas erriçadas de puas, e pequenas torres de adobe onde ardia uma lanterna.
O bom lenhador passou esta sebe, e meteu pelas azinhagas, a caminho da sua cabana, aninhada entre pinheiros e faias à orla da floresta, que, desde os coutos onde todo o dia trabalhava, vinha pelo interior das terras vestindo vale e monte. Por entre os troncos dos pinheiros mansos, o largo rio alvejava embaixo à claridade das estrelas. Os pirilampos faiscavam na ponta das sebes. Um aroma de madressilva adoçava o ar.
O bom lenhador atravessou, sobre uma ponte feita de troncos, um riacho que saltava entre rochas, onde os pajens da castelania vinham pescar trutas. Um rouxinol cantava embaixo entre a ramaria dos choupos. Adiante havia uma cruz de pedra coberta de heras, que tinha um braço partido. Piedosamente o bom lenhador tirou o seu barrete de pele de coelho. O seu coração simples, nessa noite, sentia como um contentamento desacostumado. Ouvindo o sino do mosteiro, que nas colinas além do rio tocava a Vésperas, murmurou uma salve-rainha, com uma devoção maior, certo de que a Virgem o escutava, debruçada do Céu, toucada de todas aquelas estrelas que rebrilhavam mais que o ouro. Já, a distância, sob o céu pálido, se arredondavam os cimos dos arvoredos, onde se escondia a sua cabana. A mulher, a boa companheira, esperava por ele fiando à lareira. Estugou o passo e, subitamente, da sombra de um chorão debruçado à beira do caminho, surgiu um moço de olhos brilhantes como lumes, coberto com uma túnica branca, encostado a uma vara branca, que parou diante dele, e disse sorrindo:
— Entra contente na tua morada, que teu filho há de ser um grande santo!
E subitamente desapareceu. Um aroma vivo, como de incenso misturado a cravos, passou de leve no ar. E as relvas altas do prado, ondeavam, dobradas, como se as roçasse um manto de seda fina.
O bom lenhador ficara imóvel, tremendo, na sombra que se adensou, mais cerrada, sob as ramagens das faias. E mal compreendia a quem tão docemente falara aquele moço, de olhos mais claros que lumes de altar. A sua boa companheira não lhe dera ainda um filho naqueles longos anos, tão serenamente passados, desde a manhã de Natal em que por sobre a neve dura brilhando ao sol, ao fino som da rabeca que o menestrel tangia, coroada de rosas, ele a trouxera à cabana construída por suas mãos, com as madeira por suas mãos rachada. Como poderia pois, no seu lar que nenhum riso de criança alegrava, crescer, para sua glória, um grande santo?... Arrepiado, penetrou por sob a ramaria, espreitando, escutando, na esperança e no terror de surpreender ainda uma claridade, um rumor daquele mensageiro estranho, que vestia de branco como os anjos. Todo o bosque estava mudo e ermo. Então entrou na sua alma simples um grande medo de todos os seres invisíveis que, vindos de Céu, ou vindos do Inferno, de repente surgem nos caminhos escuros. Começou a correr por uma estreita azinhaga até aos castanheiros que abrigavam a sua cabana. Uma fenda de luz saía da porta, entreaberta à frescura doce da noite. O rafeiro que o aguardava, com sua coleira eriçada de pregos, latiu alegremente. Entrou, limpando na face o suor que o alagava.
Sentada à lareira numa tripeça, a sua boa companheira esperava fiando. A panela de ferro fervia, suspensa por uma corrente sobre o lume. A um canto da arca, as malgas vidradas, as canecas de estanho reluziam bem limpas; sobre a palhoça do catre, o lençol de estopa era branco e fresco. Todo o dia a boa companheira lidara para o asseio do seu lar. O lenhador pendurou junto à chaminé o seu machado, e, nem à ceia, nem deitado junto dela no catre, revelou à mulher o encontro com aquele moço de olhos resplandecentes. Receava que ela, tão séria e justa, repreendesse o seu orgulho. Por que mandaria Deus um anjo, com tão maravilhoso recado, a um rude servo, de saião de estamenha? Decerto não fora a ele que o moço, brilhante de claridade, anunciava a santidade de um filho.... Se Deus os tivesse escolhido para tão grande ventura, não seria por ele, rude como os troncos da sua mata, mas pela sua boa companheira, tão séria, diligente no trabalho, clara de alma, compassiva aos mais pobres, sempre alegre e tão leal! Nela e não nele, estavam decerto os méritos divinos.
E enquanto ela, direita, robusta, e corada como uma maçã, enchia as malgas da ceia, o lenhador sentia abrir-se no seu coração, como uma flor que sob o orvalho reflorescesse, uma ternura doce e melhor por aquela que, em tantos anos tornara a sua pobre cabana lugar mais apetecível que a casa rica de um senescal ou o castelo do seu Senhor.
Era o tempo das vindimas nas vinhas da castelania. Uma manhã, cedo, ao cantar das calhandras, quando o bom lenhador prendia ao cinto seu machado, partindo para o castelo onde ia rachar a lenha miúda, a sua companheira, que se sentara na arca com os braços cruzados, disse de repente, toda séria e vermelha:
— Meu homem, vamos ter um filho.
Ele ficou diante dela, mudo, como no espanto de um milagre. Depois balbuciou, pediu uma certeza. Ela estava tão segura, que já na véspera, enquanto ele andava trabalhando no souto, fora ao Mosteiro comungar, para que a Santa Hóstia fosse o primeiro alimento da criancinha que em si trazia, e que assim recebia logo o corpo e o sangue de Jesus. O bom lenhador tornou a emudecer, como deslumbrado, coçando a barba rude. Então a boa companheira, pensando que ele, assim silencioso, se amargurava na alma com aquele filho que vinha para ser, como eles, um servo, preso àquela terra de florestas como qualquer carvalho que só serve para render, e quando não rende se abate, lembrou quanto a vida servil era fácil e branda nos domínios do bom castelão. Já tão velho, paternal, o bom Senhor amava os seus servos, e velava por eles como searas dos seus campos. Havia tantos anos que as masmorras estavam vazias, que o senescal perdera as chaves. Sempre que os homens eram chamados para compor os telhados ou limpar os fossos, voltavam contentes com bom salário. Quando, montado na sua mula, percorria as terras, parava a aconselhar os trabalhadores, sem mesmo consentir, nos dias de vento, que eles tirassem os seus barretes. O preço da moagem, e o da fornada, no moinho e no forno senhoriais, fora por ele abaixado... E a boa menina, herdeira daquele domínio, onde haveria outra tão caridosa e suave? Era ela que ligava, com seus dedos mais brancos que os de uma Nossa Senhora, a feridas dos pegureiros. Se a ventania levantava o colmo de uma cabana, logo ela o mandava consertar. Nos grandes frios, distribuía pelos velhos vinho antigo e peles de carneiro... Se a vida era assim fácil e branda na castelania, bem podiam eles estar contentes com o filhos que lhes nascia, para ser um servo contente sob aqueles bom senhores.
— Não é verdade, meu homem?
A face do lenhador resplandecia, como um ouro sem liga sob um raio de sol.
— Bendito seja Deus por eu ter-te conhecido, mulher!
Apertou fortemente nos braços a companheira valente, e partiu para o trabalho. Pelo caminho que levava ao castelo, sorria, vaga e deslumbradamente, para o céu e para as árvores. E a cada instante lhe alvoroçava a alma aquela promessa lançada, sob a escuridão das faias, pelo moço de olhos resplandecentes. Era esse, pois, o filho anunciado que se devia tornar um grande santo? Quase assustado, não ousava crer num tão maravilhoso favor de Deus. Um servo gerar um santo! Quando o seu Senhor, tão poderoso, doador de capelas, acolhedor de peregrinos, que fora em moço libertar Jesus Cristo das maldades dos Turcos, não lograva o favor de um filho, para governar as suas terras, seria ele, servo rude, de saião de estamenha, rachador de madeira, o escolhido por Deus para dar àquelas gentes o dom maravilhoso de um santo, para as proteger, e chamar sobre elas a amizade dos Céus? Tal não podia ser, e mesmo em o pensar, em o esperar, ele sentia confusamente o perigo de um orgulho que ofenderia Jesus e os outros santos, e desde logo alhearia a sua proteção do menino que lhe ia nascer.
Decidiu então não pensar mais naquela promessa: mas quando ao recolher à cabana, de noite, passava junto ao bosque de faias, os seus passos, a seu pesar, se tornavam mais lentos, e parava, escutava, com o coração a bater tão fortemente, que as suas pancadas ansiosas eram como as que se dão a uma porta fechada sobre um tesouro. E a mudez, a negrura impassível do bosque davam uma indefinida, fugitiva tristeza ao seu coração, como se uma água fresca, em hora de sede, se lhe secasse entre as mãos.
Entrando, porém, na cabana, todo ele sorria contente, vendo a sua companheira que fiava já a teia do enxoval. Ele tomava a um canto as madeiras que escolhera com carinho, as ferramentas que lhe emprestara o carpinteiro do castelo, e trabalhava no berço do menino: - porque em ambos todas as ocupações, todos os pensamentos eram unicamente em serviço daquele filho, que lhes parecia milagroso e raro como uma estrela que de repente brotasse, e começasse a dardejar os seus raios na ponta de um galho seco. Ambos começavam a ter ambições: ela quereria ser, depois de criar o menino, a tecedeira do castelo; ele pensava no lugar do chefe-mateiro, que estava velho e pedira ao Senhor para repousar. Quando o inverno começou, consideravam mesmo quanto a sua cabana era desabrigada e rude; e o bom mateiro começou todas as manhãs, mal luzia a primeira claridade, a trabalhar nos reparos, pondo colmo novo no teto, tapando fendas, preparando um chão de tabuado, onde mais tarde os pezinhos nus do menino não sentissem a frialdade da terra negra. Depois limpou, areou a horta, que cercou de um silvado, defendendo, isolando mais o seu lar, que ia encerrar um tesouro.
Por vezes a sua companheira queria ajudá-lo nestas tarefas piedosas. Ele não consentia, num receio constante que se fatigasse, viesse mal àquele corpo precioso, que a seu pesar, por vezes, imaginava escolhido por Deus, e que contemplava então com pasmo como um relicário numa capela. Era sempre para ela a malga maior, a fatia mais larga de pão, no desejo de a sentir forte, comunicando força ao seu filho. Procurava por toda a floresta mel silvestre, para misturar ao vinho que ela bebia aquecido à lareira; e como a moleira do moinho senhorial, junto ao rio, assistia na hora dolorosa a todas as servas da castelania, o pobre mateiro não cessava de a servir, de lhe levar sacos de pinha, de lhe rachar a lenha,e mesmo arregaçando as mangas da estamenha, pretendia limpar as rodas da azenha. A boa comadre, cruzando os braços sobre o avental enfarinhado, dava os seus conselhos; e já por ordem dela, o bom mateiro todas as noites, com uma longa vara, batia as ramas do arvoredo que abrigava a sua cabana, para que não viesse nelas pousar alguma coruja, que, piando de noite, faria nascer a criança medrosa e com os olhos tortos. Mas o seu maior cuidado era queimar na lareira galhos de azinho, para que o leite da mãe fosse abundante e forte.
O inverno no entanto viera, tormentoso e negro: e nos longos crepúsculos, sentados na tripeça, ao lume da lareira, estes dois servos simples pensavam somente no seu filho. Ele contava, recontava na memória as peças de ouro poupadas naqueles longos anos e enterradas debaixo da arca, e noutras ainda que pouparia, para pagar o padre-mestre que ensinasse ao seu filho as letras e o latim... Por que não? Quantos filhos de servo tinham cantado missa nova! E a seu pesar, aterrado sob o orgulho incorrigível, via o seu filho com uma mitra cravejada de ouro, em vestes recamadas de ouro, atravessar sob um pálio os caminhos da aldeia, juncados de rosas e de erva-doce. A mãe, essa, calada, movendo o seu fuso, só via o seu filho pequenino, muito gordo, com a face cheia, lisa, e corada como uma manhã, rindo sobre o seu colo.
Uma noite, que ela assim pensava, adormeceu, fatigada de ter lidado, já pesada, todo aquele dia de Abril, quente e longo. E quase imediatamente se viu sentada, no adro da capela, na aldeia, um domingo de festa, no primeiro dia de maio: em volta as raparigas dançavam, ao som da rabeca que tocava um menestrel; os moços mais fortes lutavam sobre a relva; um servo do castelo vendia vinho de uma grande pipa enfeitada de louro; e um cavaleiro, todo armado, segurava um cavalo de grandes crinas, tão bravo que ninguém o podia montar... E eis que, de repente, o seu filho aparece com um gibão de pano azul, um capuz escarlate como o filho de um mercador, e logo derruba na luta os mais fortes, amansa o corcel indomável, faz empalidecer de amor todas as raparigas só com volver os olhos radiantes, e, tomando a rabeca do menestrel, começa tão divinamente a tanger, que todos os pássaros saíam das ramarias, e vinham maravilhados, pousar nos seus ombros largos. Ela tremia, num infinito orgulho. E em roda todos, erguendo os barretes, gritavam:
— Eis o mais belo, o mais destro, o mais forte! Seja ele o Rei de Maio!
Acordou ao clamor triunfal. O seu homem areava o seu machado. E quando ela, ainda ofegante, lhe contou o seu sonho, ele permaneceu muito tempo pensativo, porque os sonhos são como tapeçarias que os anjos desenrolam e em que estão bordados, em cores claras, os destinos que hão de ser.
Ambos acordavam de manhã, a um grande canto de pássaros tão alegre e ruidoso como se todas as cotovias e melros, da floresta, estivessem celebrando uma festa sobre o colmo da sua cabana: e em torno ao catre flutuava estranhamente um fresco cheiro de verduras e flores novas. Mas a mulher do lenhador não se podia erguer, num cansaço que a tornava mais pálida que um linho muito lavado: e bem depressa, gemendo, pediu ao seu homem que fosse buscar a moleira caridosa e hábil, porque chegava a sua hora de glória e de dor. E, ainda gemendo, a boa mulher começou logo a sua oração a Santa Margarida.
Atirando o machado que apertara ao cinto de couro, o bom lenhador correu através dos campos, ansiosamente, pisando sem dor os milhos novos, saltando as sebes em flor. A moleira carregava um saco cheio sobre o seu jumentinho branco. Descarregou logo o saco, saltou sobre o jumento, e através das azinhagas, a moleira galopando, o lenhador correndo, pararam à porta da cabana, quando do seu beiral se erguia, tomando o vôo, um casal de pombas brancas. Era um feliz prenúncio: - e enquanto o lenhador ia prender o jumentinho no eido, a moleira entrou na cabana depois de riscar no chão uma cruz com o pé, murmurando o nome de Santa Margarida. Mas voltou logo, trazendo nas mãos um largo cinto de couro, com que a boa fiandeira apertava as saias, e gritou pelo lenhador, para que ele corresse à capela, atasse o cinto na corda do sino, e repicasse nove repiques, rezando nove ave-marias. Eis de novo o bom lenhador correndo, com o cinto apertado ao peito, preciosamente: desceu aos choupais, frescos e cheios de sombra; correu ao comprido do rio, todo reluzente de sol, que uma grossa barca, com armas de um D. Abade e toda carregada de pipas, subia lentamente à sirga; galgou os lameiros, onde os gados pastavam, ao som das flautas dos pegureiros; abalou pela estrada, por diante da taberna do Galo Preto, de onde os carvoeiros da mata o chamavam, erguendo alegremente os pichéis de estanho... Ele, sem escutar, seguiu: mas teve de parar, de repente, porque dos lados da ponte, com um lampejar de armas e um brilho de sedas claras, desembocava um rica cavalgada, a caminho do castelo. Um clarim soava triunfalmente; guardas barbudos e graves traziam as lanças erguidas, ao alto; uma bandeira, no ar, desdobrava o seu grande brasão de cores estridentes; os pajens, empoeirados dos caminhos, conduziam à rédea azêmolas carregadas de pesados cofres pintados a escarlate e ouro; - e um fidalgo, moço, de barba negra, com um falcão no punho, ria de cima do seu alto corcel, coberto com um xairel de veludo azul, com um frade que cavalgava ao lado, numa mula toda branca. Galgos ágeis corriam em roda; e um troço de lanças seguia, erguendo grande poeira.
Curvado, cosido contra a sebe espinhosa, com o seu barrete na mão, o bom mateiro saudava humildemente, esperava com o coração a bater de ansiedade. Ao seu lado, outros vilões dobravam o joelho; e um velho alto murmurava que aquele era um barão de outras terras, que chegava para noivar com a filha do bom castelão. Mas de repente alguns cavaleiros paravam: uma das azêmolas, espantada, atirara ao chão os cofres de escarlate e ouro: e um senescal, correndo logo, reclamou todos os vilões ali juntos para virem erguer os cofres, carregar novamente a azêmola. E o bom mateiro lá se adiantou, aflito, com os olhos quase enevoados de lágrimas, mal podendo atar as cordas que prendiam os cofres nas andilhas da azêmola. Três vezes o senescal o injuriou. E a sua pobre companheira sofrendo por não repicarem os santos sinos que amansariam a sua dor!
Mas o animal, carregado de novo, aquietou, levado à rédea pelos pajens; e os cavaleiros trotaram na poeira, que o sol dourava. Então, livre, o lenhador correu desesperadamente à capela que servos do senhor andavam caiando de fresco. Ajudado pelo sacristão, um velho corcunda a quem ele às vezes rachava lenha, atou o cinto de couro à corda grossa do sino: - e bem depressa, no azul cheio de sol, cantava alegremente os novos repiques devotos. Para maior segurança acendeu ainda, num altar duas velas a Santa Margarida. Depois, confiado na misericórdia do Céu, recolheu à sua cabana.
Os olhos quase se lhe enevoavam de lágrimas, quando, da azinhaga por onde ia arquejando, a avistou, sob as grandes árvores. Mas não lhe pareceu neste instante tão escura e humilde. O Sol, que batia em redor nas ramagens, tinha um desacostumado esplendor. A cruz branca, que ele pintara na porta para afugentar os demônios, reluzia, como feita de uma luz clara. Das sebes, a seu lado, saía um aroma mais doce que incenso. As grandes papoulas entre a erva, as flores silvestres, pareciam maiores, com grandes cores de festa. Regatos que não via, borbulhavam alto, com um som fresco do riso.
Ele pasmava desta beleza, que nunca vira nestes caminhos familiares. E eis que subitamente, do lado do rio, rompem, num repique festivo, os grandes sinos do Mosteiro, e do lado do castelo a sineta da capela lança também pelo azul um repique argentino. Todo o céu tinha um alegria de festa. E quando chegou à porta da sua cabana, os pinheiros em redor, movendo as altas ramas, pareciam cantar.
Entrou. Sobre o catre, a sua companheira jazia imóvel, branca como o lençol, já composto e liso, que a cobria. E diante do lume que estalava, a moleira, abatida sobre uma tripeça, sustentava no colo o menino, estendido num pano branco... Mas o pobre lenhador, que estendera os braças, como se ante ele se abrissem as portas do Céu – recuou espavorido. O seu filho era um monstro.
Escuro, coberto de uma pela rugosa e áspera; com uma face vaga, informe, onde as feições faziam como vagas protuberâncias nodosas, as mãos enormes enclavinhadas sobre o ventre felpudo; torto das pernas que findavam em dois pés agudos, como os de um fauno, todo ele parecia uma raiz sombria, raiz de árvore estranha, ainda negra da terra de que fora arrancada. E nem gemia. Era como o rudimento de um ser vegetal!
Duas lágrimas amargas e lentas rolaram pela barba do lenhador. Deu um passo para a beira do catre. Na face branca, e como morta, de sua companheira, duas lágrimas corriam também, como na amargura de um sonho desfeito.
Como aquele ser informe decerto ia morrer, o próprio pai, aterrado e chorando, o batizou e lhe deu o nome de Cristóvão.
Durante três dia, durante três noites, Cristóvão não mamou, não gemeu, imóvel no berço, que o lenhador e sua companheira constantemente velavam, numa esperança teimosa. sentindo naquela pele rugosa e dura o calor de um sangue forte. Uma tarde que ambos cansados tinham adormecido, sentiram subir, de entre os lençóis do berço que rangia, um rumor singular como o lento balar de um anho muito robusto. Cristóvão descerrara as pálpebras moles, e eles viram enfim os seus olhos de um azul-pálido, como a flor da pervinca. A mãe, radiante, arrebatou-o contra o seio que a abundância de leite sufocava: - e em poucos sorvos, largos e fundos, Cristóvão esvaziou um dos peitos.
Começou então a viver uma vida intensa e rápida. Dormindo, a sua respiração era mais que uma brisa entre ramos; ao acordar os seus gritos abalavam a cabana; e na sua voracidade, sem parar, secava o leite da mãe, chupava através de um pano largos pedaços de mel silvestre, e ficava trincando com impaciência o dedo que, para o consolar, o pai lhe metia entre as gengivas, mais duras que pedras.
E, no entanto, aquela monstruosidade, que o assemelhava a uma grossa e negra raiz, compunha em formas familiares de um corpo grosseiro, mas humano. A pele, perdida a aspereza negra, era lisa e vermelha como uma casca de maçã: a cabeça emergia dos ombros como uma decisão de começar a vida; e as pernas agora direitas, com dois grandes pés chatos, eram tão fortes que, se as agitava, quase fazia tombar o berço.
E bem depressa, com terror da mãe, não coube no berço. Como era no calor de maio, o bom lenhador fazia com musgo seco, recoberto de um mantéu, um leito na horta, onde o deitavam sob uma mimosa em flor. Mas Cristóvão rolava para fora do mantéu, procurando a terra quente e mole, onde se estendia, se dilatava com delícia, como num elemento preferido, sorrindo quieto, num sorriso mudo, que deixava já transparecer o brilho de um dente. Começaram então a aparecer, voando, por sobre os legumes da horta, borboletas de cores prodigiosas, como o lenhador nunca vira. Uma roseira seca havia um ano, e que tinha apenas o tronco mirrado, rebentou em grandes rosas que perfumavam todo o ar. Os melros que ali acudiam, fazendo um canto incessante e festivo, emudeciam quando a enorme criança dormia, com seus grossos punhos fechados. A mimosa, todas as árvores em redor, vieram estendendo as suas ramarias, como toldos de abrigo, para o lado onde se estendia o mantéu. E um dia a mãe, entreabrindo a porta do eido, avistou, espantada, um enorme veado, que por cima da sebe, com os altos paus entre a folhagem, contemplava Cristóvão, com a gravidade de um avô.
Era então tão pesado que a boa mulher vergava, mal o podia transportar da porta para o berço. E todavia tinha só seis meses. A moleira que parava, com o seu jumentinho carregado de sacos, diante da cabana, para o ver, pasmava das suas cores vermelhas, da sua força, dos seus membros perfeitos e daquele sossego em que permanecia, todo um longo dia de verão, sentado, cravando na mesma pedra ou no mesmo ramo os seus olhos azulados, sem brilho e sem vida. E ela via nesta transformação um milagre de Santa Ana.
Muito antes do Natal, Cristóvão começou a andar. Já corria toda a horta, era quase da altura da sebe – e se, para se segurar, atirava a mão a um ramo, o ramo rachava como sob o esforço de um homem forte. O pai vivia no encanto e deslumbramento desta força magnífica: - e seu prazer era contemplar a criança erguendo uma grossa panela de ferro, ou caminhar para a lareira abraçado a duas imensas achas de lenha. Não duvidava que ele viria a ser o homem mais valente de toda a castelania, e já o imaginava soldado, com uma pesada armadura, comandando os terços da castelania. No coração da mãe havia uma surda, vaga tristeza, por aquele crescer maravilhoso de força e de formas. Já o não podia trazer ao colo; Cristóvão tinha apenas um ano, e já não era o seu menino, o seu pequenino. Os ternos cuidados da sua maternidade eram já para ele inúteis. Não necessitava amparar-lhe os passos, nem meter-lhe na boca a comida. Enorme, tão forte como ela, Cristóvão, quando tinha fome levantava a tampa da arca e partia ao meio as broas mais duras. O lenhador marcara na parede, com um traço branco, a altura do filho, pelo Natal: - e cada dia os riscos subiam mais alto, quase rente à prateleira da louça. Aos dois anos a sua cabeça pequenina, coberta de uma lã espessa e loura, já dava pelo cinto do lenhador. Os saiozinhos de pano que ela cosera com tanto amor, jaziam inúteis no fundo da arca, sem que ele tivesse jamais sido bastante pequenino para se mostrar, com eles, pela sua mão, aos domingos, no adro da aldeia. E quando o via, ainda mudo e inocente como uma criança de peito, e já tão grande, enchendo quase a porta da cabana, onde costumava estar horas, parado, a olhar monotonamente o ar e o sol, a pobre mãe, desconsolada, sentia uma lágrima umedecer-lhe a face.
O que a consolava era senti-lo tão manso e doce. Se ela, assustada, lhe tirava o machado do lenhador, que ele gostava de erguer, ou se o afastava do lume, que incessantemente o atraía, ele não mostrava nem resistência nem impaciência. Não era mais inerte um fardo de lã. Permanecia longas horas na tripeça em que o sentava, ou à sombra , debaixo da cerejeira da horta. O seu encanto era ver fiar a mãe, atento profundamente ao rodar, ao cantar do fuso. E a cada instante lhe tomava a mão, para nela pousar um beijo mudo, sem brilho, que não findava. Ela apertava-o ao seu coração, murmurando, desolada:
— Por que não és tu mais pequenino?
E, no entanto, já perto dos quatro anos, não falava. O único som que saía, cavo e grosso, dos seus lábios cor de aurora, era: Han! Han! Se tinha sede apontava com o grande dedo, rosnava: Han! Han! Para sair mostrava a porta,e grunhia, com os olhos vagos, para a mãe: Han! Han! A pobre mulher já perdera a esperança de o ouvir chamar mãe e pai. Já não duvidava de ter concebido um mudo, um imbecil. E na sua dor, num resto de orgulho, não permitia que Cristóvão transpusesse a sebe da horta, descesse abaixo, aos caminhos, com receio que os trabalhadores da floresta, as vizinhas da aldeia, o encontrassem, descobrissem a sua monstruosidade, lamentassem a tristeza do seu lar.
Mas o que sobretudo a aterrava era a insensibilidade de Cristóvão à dor, como coisa diabólica. Uma vespa mordera-o na face, e ele nem chorava, nem a pele lhe inchara. Sentava-se indiferentemente sobre musgo fresco, ou sobre as selvas espinhosas. E um dia mergulhara a mão na água a ferver, e retirara-a, quieto, como se ela fosse de pedra.
— Ai! meu homem – murmurava a pobre mãe – que malogro o nosso!
Ele suspirava, sombriamente. Toda a sua alegria, diante daquela robustez primeira do filho, tão prometedora, se mudara em dor constante, perante a sua deformidade – porque Cristóvão não falava, tinha a simplicidade de um serzinho no berço, e já lhe dava pelo ombro, forte como ele, com grandes músculos, mãos formidáveis que brandiam no ar a sua machada tão facilmente como uma varinha de olmo. Já não falava do seu filho aos outros servos da castelania, carvoeiros, serradores, companheiros da floresta. Se ao menos Cristóvão falasse, tivesse naquela estatura de homem, os modos de um homem... Iria com ele para o trabalho, não revelaria a sua idade – e seria como um companheiro moço e robusto que habitava no seu lar. Mas, assim, imenso, com uma vasta face, os ombros de atleta, ele passava horas, esgaravatando a terra, como uma criancinha, contemplando de rastos o caminhar das formigas, ou, quieto, chupando um dedo.
Já na aldeia, entre os servos do castelo. corria que o filho do lenhador era um monstro. Decerto fora algum feiticeiro, seu inimigo, que assim lhe lançara uma sorte temerosa. E alguns, mais afoitos, vieram rondar, espreitar em torno da cabana de Cristóvão, para ver o enfeitiçado. A pobre mãe, uma tarde, sentira grossas risadas, rente à sebe da horta; adivinhara estas curiosidades que vinham escarnecer a dor do seu lar. Tinha agora sempre fechada aquela porta da sua cabana, tão limpa, tão honesta, e por onde até aí ela deixara passar os olhares de todos, tão livremente como os raios do Sol. Quando alguma comadre da aldeia, alguma serva do castelo, a chamava de fora, ela antes de abrir, empurrava para fora, para o escuro das árvores, o seu pobre monstro, que lá ia movendo os pés tardos, com a baba ao canto do queixo. O seu desejo seria erguer em torno de sua morada um muro, um alto cerrado de tábuas, que a isolasse de toda a terra. E juntamente sofria em ter assim enclausurado o seu pobre Cristóvão, naqueles escassos palmos de cabana e de horta, em o trazer escondido como um fruto amaldiçoado, de que ela se envergonhava. Toda a sua alma simples e reta andava afogada em tristeza e sombra. E já não duvidava que a monstruosidade do seu filho, era o castigo que a Virgem Maria dera ao seu orgulho de mãe. Tão certa andara de que o seu Cristóvão seria divinamente lindo como o Menino Jesus que S. José erguia nos braços, que a Virgem se escandalizara no fundo dos Céus. E bem justamente! Como poderia o fruto, de um ventre servil, ser igual em beleza ao fruto de um ventre divino?
Uma tarde que assim pensava, movendo o seu fuso, sentiu na horta um rumor, e como pedras batendo a folhagem da cerejeira. Inquieta, abriu o loquete, e viu três pajens do castelo que por trás da sebe, joviais e cruéis, escarneciam o seu filho, e lhe atiravam, como a um bicho numa toca, pedras e torrões secos. E Cristóvão, mais forte que os pajens, mas sem compreender, apenas erguia a mão ante a face, imóvel no meio da horta assoalhada. Ela arrebatou-o desesperadamente para dentro, atirou a porta, enquanto os pajens, ofendidos com a audácia da serva, apedrejavam os muros da cabana. Desde esse dia a pobre mãe começou a definhar. Era uma dor surda, um desconsolo de tudo, que a deixava longas tardes imóvel, com a roca esquecida na cinta, o fuso caído no chão, perdida, entorpecida numa melancolia sem fim e sem nome. Todo o trabalho lhe pesava como um fardo inútil. Quase lhe custava a vestir Cristóvão, que nem o seu grosso gibão de estamenha sabia enfiar, e que quase fazia corar a pobre mãe, com o seu enorme corpo nu, grande como o dela, e que lhe parecia a nudez de um estranho, de um homem, que invadira o seu lar. À noite, silenciosa e pálida, repelia a sua malga de caldo,que Cristóvão logo devorava em silêncio. E não queria que o seu homem, assustado, chamasse o físico do castelo. Para quê? “O meu mal, murmurava, há de crescer e crescer...” As tardes na cabana eram tristes como as de um hospital. Tão fraca que se não podia mover do catre, ela contemplava o seu homem, sentado ao lado, com um longo olhar de saudade, o olhar umedecido de quem vai partir. Ele, com as mãos dela entre as suas, só instava para que ela experimentasse alguns dos remédios, que aconselhava a moleira, contra aquela míngua de corpo: e para o contentar, ela acedeu a atar ao pescoço um saco onde estava metida uma rã e a comer um caldo de margaridas apanhadas à lua cheia. Mas, sem dor, sem agonia, o seu pobre corpo ia como que desaparecendo, tão magro e transparente que ela via a vermelhidão da lareira através das mãos abertas.
Desde que ela adoecera, Cristóvão não abandonara a beira do catre, pasmando para a mãe, ansiosamente, como no esforço de compreender porque ela ficava deitada e de olhos adormecidos, quando sol envolvia a cabana, e até as árvores tinham acordado. Por vezes tocava-lhe o braço, o ombro, com um pequenino gemido triste. Ela murmurava, com toda a sua alma: “Meu pobre filho! meu pobre filho!” Mas voltava o rosto amargamente, se o via ir, com os seus passos lentos e balançados de urso doméstico, erguer com uma só mão a pesada bilha de água, esvaziá-la de um trago.
Era então o fim do outono. Já o lenhador, ao recolher, sacudia o saião, todo molhado da umidade da floresta: e um grande vento por vezes gemia nos pinheirais. Toda a noite a candeia ficava acesa. Numa enxerga, ao lado da lareira, Cristóvão dormia sob peles de cabra, fazendo um grande vulto na sombra, ressonando tão fortemente como uma forja. E a pobre mulher, o homem ao lado, sentado na tripeça, entorpecido de fadiga e de sono, não dormia, pensando no abandono e na tristeza em que caíra aquela pobre cabana, de que ela fizera um ninho tão doce! Quem cozinharia a sopa do seu homem, quem trataria daquele pobre monstro, que nem sabia enfiar o seu gibão? Um grande soluço sacudia o seu peito magro: - e o lenhador despertando, estremunhado, arranjava a manta que cobria o catre, ou ia remexer nas brasas da lenha.
Uma noite, em que havia um grande silêncio no arvoredo e no ar, porque caía a neve, ela sentiu um grande frio que lhe passava no rosto, e através do desmaio que a tomava, estendeu a mão, apalpando para dizer para sempre adeus ao seu homem. E os seus olhos vagos e lentos encontraram então os olhos do seu Cristóvão, que se erguera, embrulhado numa pele de cabra, e estava aos pés do catre, atento, e como esperando, num espanto. Moveu os lábios para lhe pedir que se deitassem se agasalhasse, mas só pôde suspirar, desfalecida... E pareceu-lhe que, diante, o seu filho começava a crescer visivelmente; já os seus cabelos ruivos tocavam o teto da cabana; o colmo esgarçou, e, através da abertura, Cristóvão crescia para o céu mais alto que os pinheiros, já com a face perdida entre os flocos de neve; e tão feio e monstruoso que as estrelas fugiam pelo ar, como almas assustadas. Deu um grito. O pobre lenhador despertou, debruçando logo sobre ela, a tremer. A sua companheira parecia adormecida. Então Cristóvão veio lentamente em torno do catre, e pondo as mãos, de leve, sobre os cabelos que um suor umedecia, gritou:
— Ó mãezinha, mãezinha, não durmas!
Cristóvão falara! O seu filho falava! Um rubor de infinito contentamento subiu-lhe ao rosto macerado, que ficou imóvel, sorrindo: - e a boa fiandeira partiu desta terra para o além...
A cerejeira na horta estava coberta de cerejas: o lenhador outra vez trabalhava nos soutos, desde o cantar da calhandra: - e a viúva de um carvoeiro da mata vinha, todos os dias, cuidar da cabana e guardar Cristóvão. Era uma velha muito magra e sombria, que surdia de entre os pinheiros, encostada a um bordão, acompanhada por um gato negro. Nos primeiros dias, a cada passo, agachada sobre o lume, ou fiando à porta, voltava para os membros imensos de Cristóvão com inquietação os seus olhinhos luzidios, que os grossos pêlos das sobrancelhas cobriam. Aquele ser disforme, que o pai chamava “o menininho”, e que ela vinha guardar, enchia-a de espanto, quando erguia até à boca o enorme cântaro cheio de água, ou tapava toda a porta da horta, parado, a chupar o dedo, a olhar para o Sol. Debalde o bom lenhador lhe afiançara a sua mansidão a sua simplicidade: a velha serradeira temia aquela mansidão muda, como uma toca escura e sem ruído, de onde podia surtir uma fera. Mas quando, durante longos dias, ela o viu quieto sob a cerejeira, sorrindo às formigas que lhe trepavam pelas pernas já peludas, ou, encruzado diante da horta, pasmar, chupando um teto, para o fuso que ela fiava – a velha reconheceu a sua simplicidade, e considerou que ele era como um animal caseiro, porco gordo ou borrego, que pertencesse à choupana. Para não sentir mesmo pousados nela aqueles olhos azulados e sem brilho, e aquele corpo disforme atravancando a cabana, tapando a luz, empurrava-o para a horta, e lá lhe levava, ao bater do meio dia, a sopa e a ração de broa, numa grande malga, que pousava no chão: e Cristóvão ali passava os seus dias, sentado, remexendo a terra com os dedos lentos e vagos, seguindo o ramalhar das folhas, ou, a passos lentos, rente da sebe, alongava para os campos, para os arvoredos de além, o olhar pasmado e sem brilho, com a quietação do boi farto. A serradeira, no entanto, varria o chão, areava as ferragens do armário, batia o colchão do catre, ou sentada à porta fiava até que, às Trindades, soavam no caminho os guizos da égua branca, que o bom lenhador trazia à rédea.
Logo à porta a velha, apertando as mãos, contava como Cristóvão se conservava quieto, e tão bom, brincando na horta ou atento às histórias, que ela sabia, de fadas e de mouros. O lenhador, coçava a barba, contente: - e Cristóvão, diante da lareira, onde a lenha estalava, sorria, pasmadamente, sacudindo as mãos cheias de terra.
Quando os frios vieram, a serradeira, às vezes, ao lidar na cabana, gemia, esfregando os joelhos. Cristóvão arregalava para ela os olhos compadecidos. E um dia que ela coxeava, gemia mais, saindo para a fonte, Cristóvão timidamente tocou na asa do grosso cântaro de barro, murmurando, muito vermelho: “Eu vou”. Espantada, ela deixou, ficou à porta vendo Cristóvão desaparecer entre os olmos e logo voltar, subindo a vereda, sob a chuva fria, com o cântaro que lhe pesava menos no braço estendido que uma malga ligeira. Todo ele sorria, com um contentamento profundo. A velha limpou-lhe os cabelos molhados – e, pela vez primeira, desde que guardava a cabana, tomando Cristóvão como um ser humano, falou das dores dos seus pobres ossos, no seu homem que lhe deixara a velhice sem pão, na morte que vinha perto com uma grande foice. Mas a face que Cristóvão erguia para ela, agachado à lareira, voltara à imobilidade, sem alma e sem calor, de uma face feita de pedra. E foi para o seu velho gato, que tomara no regaço, não para Cristóvão, que a serradeira prolongou, no silêncio, os queixumes da sua velhice. Nessa tarde, porém, Cristóvão varreu a cabana com a vassoura que a velha, coxeando e gemendo, lhe metera nas mãos.
E, desde então, ele começou a fazer pouco a pouco todos os trabalhos domésticos. Através do longo inverno a serradeira não se moveu mais do canto da lareira, fiando na sua roca, com o gato agachado aos pés. Cristóvão ia encher a bilha à fonte, acendia a lareira, areava as panelas, polia as ferragens do armário, batia os colchões dos catres – e mesmo aos sábados, numa dorna cheia de água quente e cinza, fazia a barrela da roupa. E, em todos estes serviços, punha uma aplicação, um interesse profundo. Todo o seu imenso corpo se tornava mais ágil, mais pronto. Já dos seus grossos lábios, que só se alargavam num sorrir pasmado e morto, saíam murmúrios vivos: “Está bem! Ficou bem... Cristóvão limpou!”
À noite, à ceia, esfarelando com lentidão a broa no caldo, o lenhador contemplava com espanto o seu Cristóvão, que lhe parecia diferente, mais atento, desentorpecido, conhecendo já que ele abatia árvores numa floresta, que a égua branca, e as terras, e os gados que pastavam, pertenciam a um Senhor, e que aos domingos se descansava para visitar Deus na sua casa, onde os sinos cantavam no ar. Mas o que encantava o bom lenhador era o cuidado novo de Cristóvão em o servir – desejo que lhe nascera no coração de repente, sem que ninguém lá o semeasse. Mal o sentia subindo das terras, ia, com o seu andar embalado e lento, tomas as rédeas da égua, para a levar ao curral, onde a palha estava serrotada, e o balde cheio de água; na cabana, de joelhos, desapertava-lhe os cordões das grossas botas de couro, que a lama cobria; e estendia diante do lume, com cuidado o seu surrão de estamenha, trespassado das umidades da mata. O bom lenhador murmurava, radiante, como um bem-aventurado: “Foi Deus que te mandou, filho meu!” E nos olhos com que Cristóvão lhe sorria, ele, apesar de rude e simples, percebia uma claridade, um brilho desacostumado. O seu inocente já pensava, já compreendia. Pálida e ainda hesitante, mas certa e de todo visível, uma almazinha despontava naquele corpo imenso, como uma pequena luz numa grande torre.
Depois da ceia, aproveitando o resto do candil, o lenhador tinha já o contentamento inefável de conversar com o seu filho, como outrora com a sua boa companheira – contar o seu duro dia na mata, a árvore que fora derrubada, as madeiras vendidas para as obras do Mosteiro, as queixas dos serradores contra o senhor senescal. O seu pobre lar perdia a frialdade e o silêncio, que até aí, engolido tristemente o caldo, o fazia estirar no catre viúvo; tão triste que até o ramalhar dos sobreiros lhe parecia como um gemer humano. Agora tinha um companheiro humano – e podia, com felicidade, começar a envelhecer.
Teve então orgulho do seu filho, desejou que aldeia o conhecessem. Cristóvão crescia sempre – e era já, antes dos dez anos, como um homem de grande corpo e de grande força, que conservasse, na face lisa e sem barba nem penugem, a candidez de uma criança, alta apenas como uma sebe. Um cabelo ruivo e encaracolado, que lhe nascia nas sobrancelhas cerradas, cobria-lhe a cabeça pequenina, como um barrete muito justo de lã de carneiro, até o pescoço, onde os músculos tinham a saliência, a rijeza, a amplidão dos de um touro. A boca larga constantemente se alargava mais num sorrir para tudo, de candidez e pasmo. E os seus olhinhos, pequeninos como contas azuis, tinham uma doçura que se derramava, em redor, como uma carícia vagarosa e compassiva. Todos os seus vastos membros se moviam com uma lentidão tímida: e, mesmo para descer à fonte ou contornar a sebe da horta, se acostumara a trazer um bordão, a que apoiava, quando parado, as duas mãos enormes, e por cima o queixo pesado, marcado com uma cova funda. De uma peça de camelão azul, que o pai há muito guardava na arca, o alfaiate dos pajens do castelo talhara-lhe um capuz de romeira, e um gibão direito como um saco que, franzido na cinta por uma tira de couro, caía em pregas longas e grossas sobre as botas escarlates, com relevos cosidos de cordovão amarelo. E, assim enroupado e limpo como um filho de mercador, o levava o pai todos os domingos, sorrindo de orgulho, pelos caminhos, à missa na aldeia.
Cristóvão penetrava na velha igreja, de muros severos como os de uma cidadela, com um enleio, um medo vago. Ele sabia que aquela alta casa de pedra, com lâmpadas que rebrilhavam, era de Deus Nosso Senhor, que tinha uma assim em cada aldeia, onde, nos dias quietos e silenciosos em que não se trabalhava, o povo, vestido de panos novos, o vinha visitar e louvar. E desde o domingo de Maio, em que ele descera da cabana, através dos campos verdes, entre as sebes de madressilvas, para ouvir a sua primeira missa, sempre aquela casa de Deus Nosso Senhor deixara, na sua alma simples, o terror de um lugar muito rico, muito triste, e todo cheio de mistério. Uma grande sombra fria caía das abóbadas escuras. Todas as imagens, sobre os altares, lívidas, emaciadas, pareciam sofrer: - o moço nu que torcia o corpo amarrado a uma árvore, e trespassado de flechas; a rainha, tão triste, sob a sua coroa de ouro, e no seu manto de cetim, com o coração varado por sete espadas; o monge, com um resplendor de prata, que mostrava as chagas das mãos abertas. Em tocheiros de ouro lavrado ardiam longos lumes de tristeza. Panos de veludo, de seda, com recamos rebrilhantes, tapavam recantos de onde por vezes saía como o murmúrio de um gemido. Toda a multidão dobrava para as lajes as faces cheias de um pensar triste. E a faixa de luz de uma fenda, aberta na muralha, alumiava a melancolia maior, o Homem pregado numa cruz com pregos, com sangue vivo nos joelhos, no peito, nos pés, que erguia a face atormentada para o Céu e parecia chamar, num abandono. E assim, pois, era a casa do Senhor, cheia de ouros, de sangue que escorria, de veludos magníficos, de tristeza e de mudez!
Diante do altar maior, no entanto, um velho, todo calvo, coberto com uma capa resplandecente, alargava os braços, beijava a toalha bordada da ara, voltava as folhas de um grande livro, ofertava para as alturas um bolo de farinha muito alva, bebia por um copo onde jóias faiscavam. Voltado para ele, ao lado do pai, Cristóvão ajoelhava como o pai sobre as lajes, traçava uma cruz sobre a testa, martelava o peito com os seus punhos duros: - mas permanecia tão insensível e alheio à adoração que ante ele se desenrolava, como o pilar de uma pedra escura, a que findava, por se encostar, fatigado daquela melancolia da casa de Deus. Os olhos então embebiam-se numa grande pomba branca, que se conservava imóvel, com as asas abertas, por cima do sacrário, e que cada domingo o atraía mais, sempre ali, fiel, paciente, sem que uma das suas peças estremecesse: só ela era doce, alegre, natural, na sua brancura adorável, e macia à vista: com um bico claro, patas rosadas, só ela não tinha, no seu corpo de pomba, nem ouro, nem sangue: natural, e igual às outras pombas, só ela o não assustava, nem deslumbrava: - e Cristóvão não compreendia porque se conservava ali naquela sombra fria, entre granitos, ao lado de agonias e dores, e não vinha voar e arrulhar com as outras, sobre os castanheiros do adro.
O seu incerto pensamento ia então para os prados que atravessara, descendo das cabanas, para a verde frescura do choupal, para o sol que aquecia os lagartos dormindo nas pedras brancas. Teria decerto gostado de ficar lá, pelos campos, pela beira do rio, todo o longo domingo, sentindo a erva fresca entre os joelhos, roçando a mão pela frescura das ramagens baixas. Mas nos domingos era necessário visitar, louvar a Deus Nosso Senhor. Só assim, como lhe afirmava o pai, se subia depois ao Céu. Ele, decerto, iria uma dia para o Céu. E uma inquietação passava na sua alma, porque o Céu, como a Igreja, se lhe afigurava escuro, pesado, com ouros, grandes panos de seda. Homens cobertos de sangue, Rainhas com o pobre coração varado de espadas – um sítio, além, nas alturas, muito rico, e muito triste. Quanto melhor a horta em que vivia, com a cerejeira, a sebe de madressilva, e a salsa junto da dorna! Um rumor passava entre os pilares de pedra, todas as faces sorriam, mais claras. O senescal descia do seu banco, a missa findara. E um contentamento enchia o coração de Cristóvão, tornando a ver os castanheiros do adro.
Então, pouco a pouco, tomou mais familiaridade com florestas e prados. Já corria a sua grossa mão sobre a doçura dos musgos; trepava aos troncos para espreitar para dentro da densidão das folhagens; estirava-se no meio das relvas altas, rolando os seus cabelos crespos pela brancura das margaridas. E ao mesmo tempo descobria, dentro de toda esta natureza, uma vida múltipla, vasta, ativa e maravilhosa. A terra, que ele remexia com seus dedos grossos, estava toda mole dos vermes que a habitavam; cada hastezinha de relva abrigava um povo de insetos, mais numerosos que a gente da aldeia, aos domingos, sob os castanheiros do adro; cada folha cobria uma asa; nas espessuras, longos dorsos peludos roçavam as suas pernas lentas; olhinhos brilhantes espreitavam de entre a negrura das tocas; o restolhar dos matos dizia a passagem das feras. Um confuso, obscuro amor por todos estes seres, crescia no seu coração simples. Passava horas encantadas, estirado nas ervas à beira de uma poça clara, admirando os insetos de grandes patas que riscam a água lisa; chamava com as mãos, sorrindo, todos os veados que, à orla das clareiras, subitamente mostravam a face majestosa e séria, entre os troncos dos castanheiros; e parava nos carreiros verdes de umidade e musgo para acariciar o dorso dos sapos.
Assim a floresta se lhe tornava familiar e íntima, e nela passava os dias, nos retiros mais densos, enterrado entre as verduras, agachado contra uma rocha, de bruços sobre uma poça de água, sem se mover, vegetando na doçura infinita de sentir os seus longos cabelos emaranhados nas folhas, os ombros aquecidos pelo mesmo sol que batia nas pedras, as rãs saltando sobre os seus pés como sobre troncos meio enterrados nas ervas úmidas. Só a fome o fazia recolher à cabana. Os seus passos desprendiam-se a custo, como se já tivesse raízes: todo ele cheirava a torrão e umidade, e era, na penumbra da tarde, como um tronco que se separava dos outros troncos. Crescera tão prodigiosamente que se agachava para transpor a porta da cabana. Como nenhuma tripeça sustentava o seu peso, sentava-se no chão diante da lareira aos pés do pai, embebido no espanto, na admiração daquela força.
O bom lenhador então já lhe não dizia ao partir para a mata: “Cristóvão, não saias da nossa horta, que te pode vir mal”. E pouco a pouco começou então a percorrer, maravilhado, os prados, as bordas do rio, os densos arvoredos, para que tantas vezes da porta da cabana se tinham alongado os seus olhos pasmados e vagos. Lento e incerto, como uma rês tresmalhada, descia pelos caminhos abertos, orlados de sebes, parando a cada passo, ficando a pasmar para os trigais altos, para os longos prados, macios e doces à vista como veludo verde, todos avivados de margaridas, papoulas e botões-de-ouro; cortando pelos choupais, ia admirar, durante longas e mudas horas, o correr e o brilhar do grande rio; ou penetrava sob os pinheirais, onde se esquecia até o entardecer, vago e pensativo, respirando com espanto e amor a frescura, o silêncio e o aroma das resinas. Depois recolhia à cabana devagar, com os braços caídos, a face no ar, risonha e contente.
De noite sonhava com ramagens tenras que lhe acariciavam a face, com águas claras e frias que fugiam, cantando, entre os seus pés nus, enterrados na areia. E quando de manhã outra vez, fechando o loquete de pau da cabana, descia para os campos, era em todo o seu coração como um desejo de abraçar, num abraço inteiro, toda a terra que via, desde as flores silvestres dos caminhos até a vasta floresta que cobria as colinas, magnífica e sombria. Mas era nele como uma timidez, um pudor, que o retinha mesmo de tocar nas amoras...
Os pajens que pela tarde vinham à fonte rir com as moças, tendo falado dele, nas veladas do castelo, o castelão quis vê-lo. E uma manhã, seguido do pai que pusera os seus melhores trajes, subiu à colina, que levava à ponte levadiça. Dois arqueiros, com saiões de couro, guardavam a porta; e os molossos no pátio puxavam furiosamente as correntes que os prendiam, ladrando, com as patas erguidas, contra o gigante que passava. A fachada do castelo erguia-se majestosamente, com um alto portão ogival sobre os degraus de mármore, duas torres aos cantos com telhados agudos, cobertos de lousas em escamas; e a cada janela havia um vaso de barro amarelo, onde crescia uma craveiro.
Um pajem levou-o pela escada, e tendo erguido uma tapeçaria, deixou-o numa sala, em abóbada, onde um tronco de árvore ardia sob uma alta chaminé, e lanças agudas brilhavam encostadas às paredes nuas e frias. Um galgo branco entrou correndo e pulando, e logo atrás o castelão e uma dama apareceram, com pajens que os seguiam. e um padre que trazia nas mãos um breviário. Uma túnica de veludo orlada de peles envolvia o corpo magro do Senhor, caindo sobre os sapatos pontiagudos, também orlado de peles. A barba ruiva avançava, dura e pontiaguda: o nariz era como o de um abutre: e sob o barrete de veludo, a grenha crespa, fugia para trás, como uma romeira hirta. O alto beguin da dama roçava quase o alto da porta; o seu vestido escuro arrastava nas lajes, e os olhos baixos pareciam contemplar as mãos caídas e cruzadas, mais pálidas que cera, de onde pendia um rosário. Um truão ao cada lado deles, anão e corcunda, pousava com um orgulho burlesco a mão nos grossos copos de uma espada de pau.
O pai de Cristóvão caíra de joelhos, e como Cristóvão permanecia de pé, com o seu barrete de pele debaixo do braço, ele puxava-o pelo saio para que ajoelhasse também. Os seus joelhos por fim vergaram, ressoaram nas lajes. E diante do Senhor, puxando entre os dedos os pêlos da barba dura, a dama com um sorriso tímido, e o capelão de mãos cruzadas no ventre, contemplavam os grossos membros de Cristóvão. A uma ordem do Senhor, ele ergueu-se, deu um passo. O senhor apalpou-lhe os músculos, puxou-lhe mesmo a carapinha: - depois, a nova ordem sua, três homens trouxeram uma enorme espada de ferro, enferrujada, que parecia a clava de Hércules. Com um movimento ligeiro, Cristóvão brandiu-a no ar. Então o truão, arrancando a sua espada de pau, avançou para Cristóvão com os ademanes de um espadachim: os guizos do seu barrete tilintavam; a sua corcunda torcia-se grotescamente; e com uma vozinha esguia, gritava: “Peravante! Deus o manda!” Então Cristóvão baixou a espada de ferro; a sua boca fendeu-se, mostrou uma cavidade imensa – e saiu ela uma risada enorme, troante, ressoante. que abalou os vidros nos seus caixilhos de chumbo. A dama tapou os ouvidos com as mãos pálidas; os pajens por trás abafaram o riso; - e com um gesto de sua mão cabeluda, o Senhor mandou que conduzissem Cristóvão às cozinhas.
Embaixo, na cozinha, sob a alta chaminé, grandes peças de carne, em espetos, assavam diante de uma fogueira enorme que estalava – enquanto que, nas caçarolas suspensas de correntes de ferro, a água fervia fazendo palpitar as tampas. Os cozinheiros, com rolos de pau muito branco, enrolavam as massas; um jorro de água cantava numa bacia de pedra; e duas aias muito velhas, sentadas em escabelos, fiavam junto da janela, onde cresciam manjericões. Um servo trouxe uma malga enorme, onde uma enorme colher de pau vinha espetada na espessura dos legumes e das febras de carne. Com a cabeça baixa, Cristóvão devorava: - mas, junto da porta escura, subiam, vindos de baixo, gemidos de homens como no esforço de carregar um fardo muito pesado: Cristóvão deixou a colher, limpou a boca com as costas da mão, e desapareceu sob o arco escuro: e daí a momentos subia trazendo às costas uma vasta pipa de arcos de ferro: atrás vinham dois homens, limpando ainda o suor, a arquejar. Para recompensar Cristóvão, o cozinheiro ofereceu-lhe uma terrina cheia de vinho: ele bebia lentamente, segurando-a nas duas mãos, com os olhos cerrados.
Depois, apanhando o seu barrete de pele de coelho, saiu. As aias corriam às janelas para o ver. De sobre as ameias os homens de armas debruçavam-se: ele caminhava, confuso, coçando devagar a grenha.
No entanto o Inverno sobreveio. Os caminhos estavam brancos de neve. E sobre os ramos descarnados e nus, os pássaros caíam mortos. Uma tarde o pai de Cristóvão voltou pálido da floresta, e sentou-se à porta a olhar o Sol que descia ao fundo do vale. Cristóvão estava adiante, sentado, encabando toscamente uma lâmina de foice. Quando o Sol se sumiu sentiu por trás um gemido: voltou-se: - o pai estava com a cabeça caída contra a parede da casa, a mão sobre o coração. De noite, os gritos de Cristóvão atroavam na aldeia. Vieram homens com forquilhas, mulheres encolhidas nos mantéus, erguendo, diante da face, uma lanterna. O cadáver estava estirado no chão sob um lençol. E à porta, que enchia com seu vasto corpo, Cristóvão chorava estridentemente.
Dois dias, duas noites, Cristóvão ficou estendido à porta com a face contra o chão: por vezes um soluço sacudia-o todo; depois a sua imensa forma era tão imóvel como os roncos em redor, derrubados e rígidos. O Inverno e a fome tinham espalhado pelos caminhos gente sinistra, que assaltava os casebres. Um bando veio sutilmente numa dessas noites: e, penetrando pela janela aberta, roubou tudo dentro, os vestidos, as ferramentas, o grão da arca, as roupas do catre – enquanto prostrado, Cristóvão ressonava lentamente, como o ruído de um rio na escuridão.
De manhã, vendo o casebre vazio, Cristóvão desarraigou um choupo novo, limpou-o de todos os ramos, e apoiando-se ao vasto tronco subiu pelo monte, desapareceu.
Durante um ano viveu na serra. E pouco a pouco, naquela solidão, longe de toda a vida humana, ele quase perdeu a sua humanidade, e foi como um pedaço da montanha que o cercava. Sentado durante dias, imóvel, os seus grossos membros broncos não se distinguiam das rochas: o mesmo vendaval esguedelhava-lhe os cabelos e as ramarias das árvores: e a sua voz, quando se erguia, confundia-se com rugir das torrentes. As feras não tinham medo dele; as aves pousavam sobre os seus braços como sobre os troncos dobrados. A serra era solitária. Outrora vivera lá um ermita, mas as penitência tinham-no extenuado. Um anjo descera a buscá-lo, e a cabana que ele habitava desfizera-se, prancha a prancha, sob os chuveiros de Inverno. Durante um ano Cristóvão não vira um olhar humano pousar-se nele, nem uma voz humana tinha alegrado o seu coração.
Quase esquecera os homens: e no seu espírito simples apenas muito confusamente restava a memória dos casais, dos lugares e das crianças rindo atrás da sebe. Os seus dias passava-os imóvel, olhando: por vezes movia um braço com a lentidão de um ramo sacudido da aragem: e quando os trovões estalavam, erguia um instante a face para o céu; depois, recaía na sua imobilidade.
Um dia, porém, sentiu tilintar guizos, e vozes que falavam. E por trás de umas rochas surgiu uma fileira de mulas carregadas que homens armados conduziam. Como a noite descia, os homens pararam numa clareira: daí a pouco ardia um fogo claro, tapetes juncavam o chão, e os homens sentados em roda, passavam de mão em mão um pichel de vinho. Cristóvão toda a noite, de entre a floresta, os espreitou: - e uma curiosidade infinita tomava-o de ouvir de perto as suas falas, beber do pichel, aquecer-se do fogo claro. Se eles quisessem , ele conduziria alguns dos fardos.
Um estranho, singular impulso o levara a querer bem àqueles homens – e toda a noite rondou para que as feras não atacassem o rancho.
De manhã, eles enrolaram os tapetes: a longa fila de machos desceu a encosta, e os guizos que tilintavam perderam-se pelas quebradas.
Então, um frio estranho, um frio que ele não compreendia, que não vinha do vento, nem da neve, arrefeceu Cristóvão até o coração. E, através da sua simplicidade, sentia que não teria tanto frio, se ouvisse outras vezes vozes humanas, e os passos de animais conduzindo fardos, e uma fogueira acesa por mãos de homens.
Começou então a percorrer a serra, os desfiladeiros, os barrancos, os vales, os bosques, as rochas que conhecia. E de cada vez aquela sensação de frio o mordia tanto, e tanto, que subitamente se sentiu como exausto: a cabeça pendeu-lhe entre as mãos e grandes lágrimas rolaram-lhe pela face. A tarde caía; a noite veio, cheia de estrelas. E Cristóvão, imóvel, sentia, através das lágrimas, surgirem-lhe como visões de coisas desvanecidas, uma velha carregada de lenha, e arquejando sob o fardo; crianças que não podiam passar um rio; uma junta de bois que não podia puxar um carro carregado e pedras. E um desejo imenso vinha-lhe de sacudir aquele frio, trabalhando, carregando o fardo da velha, ajudando a junta de bois. Tomou o seu cajado e começou a descer a serra.
Uma tarde, na fonte, as mulheres viram como uma torre que avançava: as mais novas fugiram de medo, mas outras mais velhas erguiam as mãos e diziam: “É Cristóvão! É Cristóvão!”
O seu vasto corpo crescera ainda, e a sua grenha ruiva ia mais alta que a mais alta das árvores; lento nos movimentos, cada um dos seus passos parecia despregar-se do chão, com dificuldade; todo ele cheirava a torrão e a arvoredo; uma barba ruiva, como um capim queimado, cobria-lhe a face: e os seus olhos azuis conservavam, como os de uma criança, um espanto perpétuo.
Ao chegar junto da fonte baixou a cabeça, bebeu com lentidão; depois, limpando os beiços, olhava, com um bom sorriso, as mulheres, que já sem medo, reconhecendo o filho do lenhador, se juntavam em torno dele, tocando-lhe com as toucas altas pelo joelho, e erguendo os olhos pasmados para as alturas de sua face.
Obtuso de espírito, ele não reconhecia ninguém – mas sorria sempre. Pouco a pouco, porém, na grande penumbra do seu espírito, decerto surgiram certas memórias dos tempos, que, ainda, pequeno, era o servo da aldeia, e os seus enormes braços moveram-se com lentidão como procurando de novo fardos a levantar, fraquezas a socorrer. E quase imediatamente, vendo uma velha que passava, vergada sob o molho de lenha, tirou-lho e meteu-o, como uma simples acha, sob o braço; depois como um carro de pedra passava, tão pesado que os bois não o podiam puxar, desatrelou o gado, tomou o timão. Mas avistando ainda o moleiro, que picava o seu velho burro carregado de sacos de farinha, com os seus cinco enormes dedos ergueu os fardos do jumento; atirou ainda para os ombros um pobre velho, manco, que mal se arrastava – e assim, com o molho de lenha debaixo do braço, o velho pendurado do pescoço, os sacos pendentes da mão, o pesado carro de pedra preso pelo outro braço, começou a caminhar para a aldeia, seguido das mulheres, que acenavam para o lado, para as portas dos casais, e gritavam” “É Cristóvão! É Cristóvão!”
Despojado dos fardos, foi-se sentar no cruzeiro – e a sua cabeça chegava ao seios de Jesus crucificado, e parecia repousar sobre ele. No entanto, de toda a aldeia, gente corria a ver Cristóvão. Os homens vinham da taberna, limpando à pressa os beiços; as mulheres vinham fiando, outras trazendo ainda na mão as hortaliças dos caldos. As crianças, ao princípio assustadas, vendo que ele lhes estendia a mão, com um bom riso, saltavam-lhe para cima da palma, e ficavam de lá rindo e acenando com os barretes, como do alto de um eirado. O regedor das terras veio por fim diante de Cristóvão rolando os olhos redondos, coçando o queixo, e falando baixo ao arqueiro que o seguia, desconfiado decerto daqueles fortes músculos, que podiam arrasar a aldeia, tudo roubar, e vencer os arqueiros; mas decerto todas as suas algemas não eram bastante fortes para algemar aqueles enormes pulsos, por onde as crianças trepavam, como por troncos de olmeiros: e afastou-se com dignidade, coçando sempre o queixo agudo. Mas duas mulas zurravam, por trás do caminho – e apareceram dois guardiões do convento, que, decerto avisados, desviavam-se do caminho para ver o enorme gigante. Todas as mulheres dobraram os joelhos, e os homens, com os barretes na mão, baixavam os olhos: - e então o mais velho espicaçou a mula com os calcanhares até a fazer parar junto de Cristóvão. Para experimentar, com receio que em tão grande corpo habitasse Satanás, fez o sinal da cruz, murmurou três vezes o nome de Jesus. Cristóvão fez também uma cruz sobre a testa. Então, tranqüilo, o guardião começou a andar em volta dele, batendo os calcanhares nos ilhais da mula, para o, examinar, como um monumento. E a cada grosso músculo, a cada detalhe de força, uma idéia surgia nele: e falava baixo ao outro, que aprovava, com um sorriso reverente. Por fim o guardião gritou: “Cristóvão, se queres ganhar o teu pão, vai amanhã, a matinas, à portaria do convento.”
Os dois frades picaram as mulas, pouco a pouco a gente recolhera às casas, de onde saía o fumo das lareiras acesas. Uma a uma, as estrelas brilhavam. E Cristóvão só, cansado, estirou-se junto ao cruzeiro, onde o sacristão veio acender uma lâmpada.
Estirado de costas, Cristóvão olhava as estrelas. Eram as mesmas que ele tantas vezes contemplava na serra: - mas pareciam-lhe mais brilhantes, mais próximas, e derramando um calor como lâmpadas que alumiam uma morada humana. E ele mesmo, enfim, sentia vir daqueles casebres que em volta se acendiam e mandavam o seu fumo para o céu, um calor que o penetrava até o coração. Adormeceu sorrindo.
De manhã, chegou do outro lado do vale, em frente do mosteiro. Uma muralha envolvia-o como a um castelo: - e por trás da porta, de grossa pregaria, os cães inquietos agitavam as cadeias de ferro. No pátio enorme uma faia abrigava a roldana de um poço. Altas fachadas com reixas nas janelas, erguiam-se em redor: - e ao fundo, junto à entrada da capela, havia um banco de pedra onde um guardião lia o breviário.
Ao ver Cristóvão, fechou o breviário – e examinou-lhe outra vez, com satisfação, os grandes membros serviçais. Depois, por um corredor, alto e fresco, levou-o a um claustro que cercava um jardim; ruas areadas contornavam os canteiros de flores; ao meio cantava um repuxo; e um espaço, entre paredes que a hera revestia, estava lajeado, como chão de igreja. Aí quatro frades, de hábitos arregaçados, jogavam a bola; outros, mais longe, conversavam ao sol; e sob um caramanchão o abade dormitava, com as mãos cruzadas no ventre.
Mas quando Cristóvão apareceu, tudo se interrompeu, todos ergueram as faces, um rumor correu de espanto: - e o guardião diante de Cristóvão, que hesitava, com o seu barrete na mão, fazia-lhe sinais para o levar até ao abade.
Sua Senhoria deu um salto na cadeira ao encarar com o monstro. Depois ergueu as mãos ao Céu, com olhos de piedade. Para mostrar a força de Cristóvão, o guardião mandou-lhe erguer uma pilastra partida que jazia no chão. Cristóvão brandiu a pilastra, como um simples cajado: e todos os frades recuaram com grandes ahs maravilhados.
Cristóvão fora trazido para servir no convento, fazendo o trabalho de muitos serventes. O rancheiro, porém, perguntava se era na realidade uma economia – porque ele igualmente comeria a ração de muitos homens. Os frades argumentavam com gravidade. O abade, porém, decidiu. Além da economia, o convento ganhava a glória de possuir o mais forte de todos os homens. E imediatamente Cristóvão foi levado às cavalariças para as limpar.
Foi o servo da comunidade – e sobre ele recaiu todo o serviço do convento, onde havia oitenta frades, trinta noviços, e dependências inumeráveis. Varria os pátios, limpava as mulas, cavava as hortas, caiava os muros, carregava os sacos de farinha, acarretava os feixes de lenha – e era ele que trazia das pedreira as grandes pedras para as obras da lavanderia. Durante longos meses os seus fortes ossos rangeram sob o trabalho violento. Substituía as cavalgaduras, puxando os carros pesados, com eixos de ferro. Todo o dia, dentro do convento, na cerca, sob o sol ou sob a chuva, a sua forte figura se movia no trabalho contínuo: só por vezes descansava, para tirar do poço um balde de água, que punha à boca, e secava de um trago. À noite, estendido sobre as lajes do pátio, dormia de um sono de animal, entre os cães soltos, que lhe punham as patas sobre o peito, como sobre um rebordo de muralhas, para ladrar contra os ruídos da noite.
Todos os anos, na véspera da Candelária, o padre-mestre reunia os serventes, e interrogava-os sobre a doutrina. Cristóvão não pôde responder, nem sequer enfiar o padre-nosso. Não sabia quem criara o Mundo – e eram-lhe desconhecidos os casos do Paraíso. Aterrado com tão negra ignorância, o abade ordenou que Cristóvão assistisse à aula de História Sagrada. O seu imenso corpo não cabia nos bancos da escola: - e o padre-mestre dispôs que Cristóvão, encostando-se ao muro do pátio, aplicasse a cabeça à janela aberta da aula.
Quando a sineta de estudo tocava, Cristóvão chegava ao muro: - e a sua imensa grenha surgia no parapeito da janela. Todos os discípulos riam – e os mais inquietos atiravam-lhe aos olhos caroços de frutos ou vibravam-lhe, como pequenas lanças, penas de pato que se lhe enterravam na grenha. Ele sorria com paciente respeito.
Sentado no estrado o mestre ensinava – e Cristóvão, como através de um névoa, entrevia as coisas maravilhosas do começo do Mundo. Um Deus enorme, grande como ele, alargando os seus braços potentes, separava o Sol e a Lua; a sua voz era o trovão que rolava; e o seu sopro ora fazia curvar as florestas, ora encapelava as vagas. Mas os homens começavam a povoar a terra, e Deus entrava logo em grandes cóleras. Ao seu capricho as cidades tombavam, sepultando sob as ruínas as criancinhas que sorriam nos berços; vastos prados secavam, e os gados balavam lamentavelmente de fome; um grande terror tomava a terra: - e os homens viviam no terror daquela mão imensa, que só saía das nuvens para os devastar.
De noite, o doce sono fugia de Cristóvão. E encolhido, voltava para o Céu os olhos desconfiados. Se Deus reparando nele, de repente, fizesse sobre ele cair o fogo que queimara Gomorra? Todo o barulho o inquietava: e numa noite de trovoada os seus gritos acordaram todo o convento.
Mas o padre-mestre bem depressa começou a explicar os dogmas. E foi como se toda a Terra e Céu perdessem a sua realidade, ficando apenas deles baixas névoas que flutuavam. Nas alturas já não governava um homem forte e velho, de longas barbas: - mas uma trindade, que era de três, mas que formava um só, e era um Pai, um Filho, e um Espírito que tinha asas. O pecado não era fazer mal, mas nascer, e a água, escorrendo de uma concha, lavava-o como um linho sujo. Cristóvão arregalava os olhos desmedidamente – e as prédicas do padre-mestre eram como névoas que flutuavam intangíveis, logo, esvaídas apenas formadas. Sentia como uma tristeza diante daquelas coisas inacessíveis: e o suspiro que lhe fugia do peito fazia voltar os noviços, que, às escondidas do padre, lhe faziam visagens como de demônios.
Um só parecia simpatizar com Cristóvão. Era um moço franzino, que tinha a sua banca junto da janela, sobre a qual caíam os caracóis dos seus cabelos louros. As suas mãos pálidas folheavam de leve um in-fólio: - e havia em todo ele como a gravidade de um letrado e a doçura de uma virgem.
Todos os dias Cristóvão o via chegar da aldeia com o seu tinteiro metido no cinto, o rolo de papel sob o braço: e todas as tardes o seguia com os olhos quando ele, finda a aula, regressava à aldeia, folheando ainda pelo caminho algum livro onde havia cores brilhantes. Por vezes via-o parar, colher as flores silvestres do caminho. Ou alegremente, deitando os seus longos cabelos para trás, cantava sob a doçura da tarde.
Sempre que passava junto de Cristóvão, dizia-lhe: “Deus te salve!” E Cristóvão sentia como uma carícia na alma. Muitas vezes pensava nele – e voltava-lhe à lembrança o que ouvira ao padre-mestre, dos anjos que desciam à Terra, se misturavam às ocupações humanas. Ia então colocar-se no caminho em que ele passava. E um dia que os caminhos estavam alagados pela chuva, Cristóvão ofereceu-se para o passar ao colo. Desde então procurava maneiras de o servir. Nos dias de calor, tinha para ele a bilha de água mais fresca; e nos dias de frios, fazia depressa no pátio um fogo de rama, para ele aquecer os pés úmidos antes e subir aos claustros. Por fim, como o Inverno se avizinhasse, com os crepúsculos mais escuros, Cristóvão seguia-o na sua volta à aldeia, para o proteger dos lobisomens, ou dos maus encontros: e quando vieram as chuvas, ofereceu-se para o levar às costas, como um macho, até a porta da sua morada. Então pelo caminho conversavam baixo: Cristóvão contava os seus trabalhos no convento, o moço dizia os seus desejos de ser militar, conhecer o mundo, percorrer as cidades. Seu pai era o regedor das terras e destinava-o para padre; mas ele queria casar com uma prima chamada Etelvina, que morava ao pé do castelo, para além do Pego das Dunas. E um dia que assim conversava, o moço contou a Cristóvão que às vezes ia encontrar essa rapariga, longe, à orla de um bosque; mas temia que a surpreendessem os arqueiros do pai, que rondavam os campos, ou o servos do castelo mandados pelo pai de Etelvina. Se Cristóvão quisesse, podia ficar à orla, vigiando os caminhos, como uma torre, e se viesse alguém chegando, avisá-los com um grito. Cristóvão disse: “Irei para onde me mandares”.
O sítio onde se encontravam era num claro de árvores derrubadas, à orla do bosque. Havia ali uma torre outrora erguida pelo conde da Ocitânia. O Diabo um dia derrubara-a; e ainda se distinguiam nas pedras tisnadas os vestígios das garras do Tentador. Um terror afastava dali os passos humanos mas a abundância das flores silvestres, a doçura dos musgos, oferecia, aos audazes que lá chegavam, um asilo fresco de paz silvana. Era ali que se encontravam Alfredo e Etelvina. Para chegarem mais depressa, Cristóvão tomava Alfredo aos ombros, e com passadas de côvados, saltando as ribanceiras, transpondo os lameiros, chegava lá primeiro, ao cair fresco da tarde. Por um caminho que contornava a colina, viam descer Etelvina, que levantava o seu vestido cinzento, por causa dos espinhos das sebes. Como voltava da igreja, trazia um livro na mão. As suas duas tranças louras caíam-lhe pelos ombros. As longas pestanas, dos seus olhos baixos, faziam-lhe uma sombra na face da cor e doçura de uma rosa branca. E junto da sua escarcela soavam as tesouras, as chaves, o dedal, pendentes da cinta por correntes de prata. O bom estudante dobrava diante dela o joelho: e tomando-a pela mão delicada, caminhava com ela pelo bosque, parando para lhe tirar, da orla do vestido, as silvas que se lhe prendiam. Ela tinha sempre para Cristóvão um sorriso, a que se misturava o brilho dos seus olhos: e ele de pé, vigiando o caminho, ficava pensando naqueles olhos que lhe pareciam estrelas. No arvoredo em torno cantavam as aves: um aroma de verduras, de pinheiros, de madressilvas, flutuava no ar: e por vezes os passos de uma corça roçavam por entre a espessura das faias tenras. E Cristóvão, apoiado a um forte cajado, lançava os olhos em redor, pelo vale. Mas ninguém se aproximava da torre derrocada. E ele, pouco a pouco invadido pela doçura da tarde, pensava em doçuras que recebera – na carícia das mãos de sua mãe sobre a grenha crespa, nas festas das crianças que por vezes sem medo lhe trepavam aos joelhos. Uma melancolia tomava-lhe o peito. E, na sua vaga ternura, desejava apertar contra si todo aquele vale, e as nuvens dos céus, e a água que fugia cantando.
No entanto Alfredo e sua bem amada vinham repousar, sentados numa pedra. Ele olhava a fímbria do seu vestido, ou segurava os seus dedos delicados, que arrancavam uma a uma as folhas dos malmequeres. Por vezes ele colhia um ramo; ou apanhando o livro dela, que caíra a seus pés, voltava as folhas; ela debruçava-se, e os fios soltos dos seus cabelos roçavam os ombros de Alfredo; e muitas vezes assim se esqueciam, com os olhos postos na mesma página que não voltavam, corados, com o peito a arfar.
Mas um dia que ambos passeavam longe, ao fundo dos pinheirais, com os ombros juntos, Cristóvão ousou tocar o livro, esquecido sobre uma pedra, e com os seus grossos dedos voltar as folhas. Eram linhas negras que não compreendia; mas uma emoção tomou-o diante das imagens cheias de cor. Parecia ser uma história – e começava por uma criancinha, que num curral, entre uma vaca e uma jumenta, sorria, toucada de estrelas, nos joelhos de uma mulher pálida. Depois a mesma criança, já maior, e sempre coroada de estrelas, falava diante de um grupo de velhos barbudos, que espalmavam as mãos com espanto. Quem era esse, pois, que, tão novo, assombrava a velhice sapiente? Mais longe os dedos de Cristóvão, virando as folhas duras, encontravam o mesmo ser, que ele reconhecia por seu aro de estrelas, já homem, envolto numa túnica, passeando à beira de um lago: e não cessava mais de aparecer, pondo a suas mãos sobre os entrevados, estendendo os braços para as crianças, desatando as ligaduras dos mortos, consolando as multidões. Montado num burro, penetrava as portas de uma cidade, entre o povo que o aclamava movendo folhas de palma; sentado sob um sicômoro, ouvia duas mulheres, que fiavam a seus pés; de joelhos, entre oliveiras, orava sobre um monte; preso em meio de soldados, com tochas, comparecia ante um juiz que erguia o dedo, pensando.
E Cristóvão sentia uma ansiedade de compreender, quando viu diante de si os dois noivos com os braços enlaçados, que sorriam. Surpreendido, Cristóvão fechou o livro. E como Etelvina, vendo a sua larga face perturbada e cheia de piedade, lhe perguntava se ele amava o Senhor, Cristóvão moveu a cabeça, sem compreender. Pois quê? Ele não conhecia o Senhor e não amava a sua doçura? Tão grande escuridão naquela alma encheu-a de piedade: e um escrúpulo rosou-lhe as faces, pensando que, enquanto ela se ocupava de amar, alguém, ao pé dela, vivia sem conhecer o Senhor. E então, para que bem merecessem Jesus, e para recompensar a proteção de Cristóvão, ela pediu a Alfredo que lessem o santo livro àquele homem simples, que o ignorava.
Foi ao outro dia, por uma tarde de Outono. Já as árvores se desfolhavam; mais tristemente cantava o regato; e uma palidez banhava o céu. Para ouvir melhor, Cristóvão sentara-se sobre um alto monte de pedras derrocadas. Alfredo, rindo, trepava ao seu vasto joelho – e Etelvina sentou-se no outro joelho, tão simplesmente como se fora um rocha ou um cômoro de relva. Os seus pezinhos cruzaram-se como os de um anjo: as suas mãos pousavam castamente no regaço. Defronte, Alfredo abrira o livro: - e com a vasta face de Cristóvão entre eles, era como se estivessem sentados nos membros frios e duros de uma enorme estátua de pedra.
E toda a tarde, no silêncio do arvoredo. Alfredo leu a vida do Senhor. Disse a estrela brilhando sobre o seu berço, e os pastores de longe vindos para ele, misturados aos Reis que traziam tesouros. Depois homens duros chegavam com alfanjes: e o Menino sorria adormecido no colo da mãe, enquanto a burrinha, toque, toque, os levava para o Egito. Lá repousavam sob uma palmeira: o sol vermelho descia nas areias do deserto: e o menino, rindo, puxava as barbas de seu pai, cujo cajado floria como um ramo de açucena. Mas era tempo que, o longo rolo sobre o joelho, Santa Ana ensinasse a ler o Menino: seu pai sorria por trás na sua grande barba: S. Joãozinho, ao lado, escutava com a mãozinha apoiada à face; e dois anjos no alto erguem a mão, param os ventos, para que nenhum ruído perturbe o Menino que aprende. Depressa o Menino aprendeu, porque eis que os velhos barbudos, de mitra, arregalam os olhos espantados do seu saber...
Cansado de ler, Alfredo parava, com o dedo entre as folhas do livro. E na face simples de Cristóvão havia tanto espanto, como nas dos doutores: o seu grosso lábio tremia. E murmurou humildemente, e já cheio de amor:
— Mas que fez o Menino?
Quem sabe? Um doce silêncio caía sobre a terra. Em Nazaré o carpinteiro aplaina a sua tábua, e S. João com os cabelos ao vento partia para o deserto. Mas já ao longe brilham as claras águas de um lago, com barcos amarrados na areia: Jesus fala devagar, erguendo o braço; e os pescadores deixam as suas redes, os semeadores esquecem a sementeira, os publicanos deixam os seus postos, os pobres saem dos cotovelos das estradas, e Jesus, seguido de todos, começa a caminhar pela Judéia. Uma incomparável doçura enche a vida dos homens. Jesus está entre eles. Os que não podiam ver, aclamam o esplendor da luz; os que não andavam, galgam, cantando, as colinas; todos os demônios se somem; os mortos desatam as suas ligaduras; não há dor que não espere consolação; as crianças têm um amigo, e as multidões, nas aldeias, vêem o pão nascer do pão.
Por que vai ele a Jerusalém, terra dura, onde os homens, com as barbas agudas, gritam uns contra os outros, brandindo rolos da Lei? Mas, que importa! Ele vai para tornar os homens melhores, e o povo vai com ele, cantando. É então que o céu se começa a tornar escuro. Os fariseus tramam baixo sob as arcadas do templo. E uma ansiedade pesa na terra...
E uma ansiedade enche também a face de Cristóvão. Porque não permanecera ele sempre Menino, sobre os joelhos da mãe, quando a Estrela luzia, e ele estendia a mãozinha para o focinho da vaca? Ou, se devia ser homem, porque deixou ele a beira do lago, e os caminhos verdes, onde a cada um dos seus passos a terra se tornava melhor, e melhor a alma dos homens?
— Tens pena, Cristóvão?
Era Etelvina que assim murmurava com os olhos apiedados.
Ele moveu a cabeça, em silêncio. O seu vasto peito arfava, e um terror invadia-o de o ver a ele, tão bom, naquela cidade onde os homens eram tão duros.
— E depois?
Alfredo disse então os dias derradeiros. Tristemente, Jesus, sozinho, sobe, ao cair da tarde, para o vergel de Betânia. Aí são as melancolias de uma felicidade que finda. Madalena, desgrenhada, lava os seus pés cansados. Marta fia, com um fiar tão lento como se fiasse um sudário. Mas já Jesus se senta para a última ceia. S. João inclina a cabeça sobre o seio do Mestre. Judas aperta, sob a túnica, a sua negra bolsa. Jesus diz: “Em breve não estarei mais entre vós”. A noite é escura; Jesus sobe devagar o monte, onde há oliveiras; e um anjo, todo coberto de negro, marcha ao seu lado. Um vento passa no ramo das oliveiras. Um rumor de armas vem com o vento que passa...
Nos olhos de Cristóvão borbulhavam grossas lágrimas. E Alfredo dizia as tochas surgindo na escuridão das ramagens, os soldados brutais, e a prisão do Senhor. Por que o prendiam assim, e levavam ele, mais doce do que o anho? Ei-lo que passa! E os seus pés, que encontravam o caminho do bem, sangram sobre as lajes duras, da casa de Pilatos à casa de Caifás. Traz sangue na face, as mãos arroxeadas pelas cordas, os ombros riscados pelas vergas: - e a sua doçura é tão grande que diz: “Por que me bateis?” A cruz que lhe dão é tão pesada, que cai uma vez, outra vez, ferindo os joelhos nas pedras, com grandes bagas de suor na face... Mas eis que em tropel todos sobem a colina: cravam com grandes pregos as suas mãos sobre o madeiro; cravam no madeiro os seus pés com grandes pregos... E da água com que ele secava a sede das multidões pede, sem que ninguém o escute, um trago que mate a sua sede. Os homens maus atiravam pedras à sua cruz. E todo o mal era feito Àquele que não fizera senão bem!
E então um grande suspiro abalou o vasto peito de Cristóvão, e, na solidão do bosque, gritou:
— Oh! Por que não estava eu lá com os meus braços!
Os dois bem-amados estavam de pé diante dele, e o homem enorme chorava. Chorava pela morte d’Aquele que conhecera tão tarde. Chorava por todos os que, morto ele, perdiam o amigo melhor dos homens. – Mas por que o mataram? por que o mataram? E Cristóvão, deixando os dois desceu a colina, chorando.
A noite caía no vale. Um vento triste vergava os canaviais. E Cristóvão seguia e chorava. Os seus vastos pés empurravam as rochas como seixos. O seu ombro, ao passar, quebrava os ramos tenros. Oh! se ele estivesse então no monte escuro onde o prenderam! O seu braço sacudiria, como ervas secas, as espadas reluzentes. Tomaria sobre o seu ombro o Mestre adorável. Fugiria com ele para a paz dos campos; e como um cão fiel, junto aos seus passos, defenderia dos soldados, dos padres, aquele corpo que era de Deus, e espalhava Deus entre os homens.
A noite caíra, Cristóvão parou. E sentado sobre uma rocha, com grandes lágrimas sobre a face, olhava as estrelas que, uma a uma, marcavam os pontos do céu. Era ali, naquela altura, que ele habitava. Oh! se ele pudesse subir lá, e ver como era a sua face, e sentir a doçura da suas mãos! Por que não voltaria ele mais para consolar os pobres, secar as lágrimas, agasalhar as criancinhas, e nutrir as multidões? Agora, que todos o amavam, ninguém o prenderia: o caminho que ele seguisse seria juncado de rosas; os bispos, nas suas capas de ouro, cantando e balançando os incensadores, viriam ao seu encontro. E para o defender, os barões correriam, cobertos de ferro e com lanças nos seus grandes corcéis! Por que não voltava? Ele seguiria pelo mundo os seus passos ligeiros: a cada instante afastaria as silvas, que o não magoassem; com grandes brados espantaria os cães, que ladram às portas dos castelos: fardos que houvesse, com alegria ele os levaria; só ele, e mais ninguém, colheria os frutos para o Senhor, ou iria buscar a água às nascentes melhores. De noite, faria com rama uma cabana para o abrigar do vento mau: - e estenderia o seu braço, para que nele repousasse a sua cabeça cansada. E assim, pensando, um imenso amor erguia-lhe o peito: - e, de pé numa rocha, os seus braços estendiam-se para o céu, para neles estreitar Aquele que, para o salvar, fora pregado na cruz. E três vezes chamou: “Jesus, Jesus, Jesus.”
Então, perto dele, ouviu como um pranto que cortava o silêncio da noite. Vinha de longe, de onde brilhava uma luz de cabana. Os seus passos foram para lá, esmagando a terra fresca. E mais perto reconheceu o soluçar de uma mulher que chorava. Decerto, alguém sofria muito. Havia ali orfandade ou viuvez, uma miséria que erguia os braços para o céu. Por que não vinha o Senhor? Se ele habitasse a Terra, para aquele casebre iriam os seus passos. Ele iria atrás humildemente, seguindo-o. Mas Jesus estava além, por trás daquelas estrelas. Por que não iria ele, como se seguisse o Senhor? Mais vivo e triste, o pranto cortou a noite. E Cristóvão, devagar, e com medo, bateu à porta do casebre,
Longos dias são passados, e Cristóvão, na aldeia, é o servo de todos. As portas do convento nunca mais as transpôs: porque lá habitam a paz e a abundância, o celeiro está cheio de trigo, a adega está cheia de vinho, uma grande alegria e orgulho reinam nos corações – e para lá não iriam decerto os passos de Jesus, nem os seus a seguir o seu Senhor. Mas na aldeia há os velhos, os mendigos, os tristes, os órfãos, as viúvas; e a força dos seus braços pertence a esses, como o amor do seu coração, porque assim mandava o seu Senhor.
Simples e tímido, Cristóvão impõe os seus serviços: mas toda a fraqueza, que recorre à sua força, ganha a gratidão da sua alma. E pouco a pouco, sentindo nele um amparo, todos os fracos vieram a ele - de sorte que, desde que nasce a estrela de alva até que a noite cobre o vale, Cristóvão trabalha com tanta alegria, que o pesar dos maiores fardos lhe parece uma carícia, e nas feridas piores de curar sente um perfume inefável. Ele lavra a terra dos velhos; desbasta as florestas a grandes golpes de machado; seca os pântanos, com grossas pipas que carrega às costas; puxa os carros para que os bois não se esfalfem; transporta aos ombros os coxos; guia os passos dos que não vêem; vai ao longe mendigar o pão e a lenha dos pobres; embala os berços; cava a sepultura dos mortos: - e quando não há vento, ele, retesando os braços, faz girar a mó dos moinhos. Constantemente o seu nome é gritado por cima da sebe dos casais. Este tem o burro doente, e é Cristóvão quem transporta os fardos; aquele precisa de um ceifeiro, e Cristóvão parte com a foice; aquele teto precisa de colmo, e Cristóvão trá-lo às braçadas; para fazer o casebre da viúva não há pedra, e Cristóvão chega de remota pedreira, gemendo sob os blocos da rocha. É Cristóvão quem sopra o fogo do ferreiro; é Cristóvão quem sacode, a matinas, a corda do sino; é ele que, sozinho, abre nos lameiros a calçada nova; é ele quem escava os poços nos pátios dos casais. À noite estava prostrado. Quando os grandes invernos alagavam a aldeia, abrigava-se num vasto alpendre que mal o cobria de todo: de Verão estendia-se junto ao cruzeiro, e os primeiros pássaros, chalrando de madrugada, pousavam sobre os seus ombros, como sobre colinas escuras.
Aos domingos repousava, e esse era o seu dia melhor, porque as crianças brincavam com ele. Sentindo-o doce e paciente, todas corriam para ele como para um grande bicho que os divertia: e trepando por ele, era como o vivo prazer de trepar a árvores e a torres. Por vezes, com as mãos pousadas na terra, ele oferecia o seu vasto dorso, em que cavalgavam, presos pela cinta, uma longa fileira de corpinhos ágeis e vivos: e dando corcovos, imitava, entre as risadas alegres, o urro do leão ou o heróico relinchar de um corcel. Além disso sabia fazer, com as suas mãos cabeludas e cheias de terra, todas as sortes de brinquedos – flechas de caça, pequenos carros que rodavam no pó, barcos com velas para vogar no pego. Para tudo as crianças o tinham pronto – e só se recusava quando eles tentavam estragar a fruta verde, ou fazer mal aos melros.
Mas, de todas as crianças da aldeia, uma governava superiormente o seu coração. Era a filha de uma viúva – daquela que Cristóvão ouvira chorar, e à porta de quem batera, como mandado por Jesus, seu amo. O pai morrera nesta noite – e à pobre mulher não restava ninguém no mundo para tratar as terras, cuidar das ovelhas. Mas, desde essa noite, uma grande força útil entrara no casebre. Cristóvão foi o servo fiel: - e nenhuma horta na aldeia andou mais bem regada, nenhum gado apascentado em prados melhores, nenhum torrão mais fundamente arado. Um riso da criança (que se chamava Joana), o seu jeito de lhe puxar as barbas, recompensava-o de todo o trabalho. Mesmo brincando com as outras, era em Joana que pensava. De noite rondava a porta do casebre, a escutar se ela chorava no seu berço. Cedo, de manhã, ia postar-se na horta entre os limoeiros, à espera que ela corresse de dentro com o seus bracinhos abertos: e todo o dia ficava sentindo nos cabelos, nas barbas, a doçura das suas mãozinhas, que o arrepelavam. Ele amava-a por toda a sua pessoa – a covinha da face quando ria, a graça da sua voz hesitante, os seus pés mal seguros sobre a terra lavrada. Amava-a sobretudo pela sua fraqueza – e não antevia vida melhor do que passar eternamente a servi-la, e a ser alegremente arrepelado. O seu prazer maior era trazê-la escarranchada aos ombros; ela ria, agarrada aos seus longos cabelos; e ele caminhava grave e vaidoso, como se conduzisse a sagrada hóstia.
Por vezes comparava-o ao Menino, ao Menino divino, que ria no seu curral, e aprendia a ler no grande livro de Santa Ana. Os seus olhos claros e largos deviam ser como os de Joana. E o seu pesar era não saber ler, para abrir sobre os joelhos um livro, onde o seu dedinho espetado fosse seguindo as letras grossas. Decerto, Jesus, se conhecesse, Joana, a devia amar. Ela era inocentinha como uma flor do valado: e o seu anjo da guarda esperava quieto, quando ela parava no caminho, a remexer na terra, à procura de bichos. Por mais longe que andasse trabalhando, sentia a voz de Joana se ela o chamava, como se a voz viesse de cima, do Céu – e apressava então a obra, à força dos braços, para correr ao seu encontro, não se esquecendo de trazer as amoras que ela gostava, ou medronhos, menos corados que a sua facezinha. Durante horas então acamaradavam – e Cristóvão era tão simples que, para a entreter, só sabia repetir a voz dos bichos, dançar pesadamente como um urso. A mãe dizia:
— Cristóvão, Cristóvão, muito tempo gastas com a menina... Olha a lenha... Olha o gado...
Ele baixava a cabeça, abria a cancela: e ainda se voltava, já longe, para sorrir, com a sua vasta face iluminada.
Ora no meio desta felicidade, começou um murmurar na aldeia. O guardião do convento não perdoara a Cristóvão por ter ele abandonado os seus serviços à ordem: e os frades que passavam, ou que vinham pregar à tarde no adro, diziam depois que, segundos os livros, todos os gigantes tinham pactos com o Satanás. Decerto, este era doce e serviçal, mas assim eram as artes do Demônio, que durante um tempo se faziam doces e afáveis, para melhor se apoderarem das almas. As mulheres, ouvindo isto, ficavam pensativas. Era então em Maio: já as macieiras tinham flor, e as primeiras espigas dos trigos saíram da terra, e os prados enverdeciam. Mas eis que, uma noite, grandes relâmpagos luzem sobre o vale, um trovão rola sobre as serras – e subitamente, com o estalido de lanças entrechocando-se, caiu o granizo. Longo tempo caiu, arrasando o colmo dos casebres, matando os rebentos novos, esmagando as frutas, devastando o gado nos apriscos. De manhã toda a aldeia estava pobre: - e os homens corriam pelos campos, a olhar os destroços, enquanto as mulheres, juntas no adro, carpiam como num funeral. Um padre veio logo do convento, e estendendo a mão, demonstrou que, por causa do endurecimento das almas viera aquela visitação. Por que persistiam eles em acamaradar com um servo do Demônio? Cristóvão, como todos os gigantes, era um emissário de Belzebu: - via-se-lhe o Inferno nos olhos, nas barbas que o fogo crestara, e na sua fingida humildade. Mas eles continuavam a dar-lhe o pão e o sal, e aí estava que o Senhor lhes devastara as sementeiras. Toda a tarde assim falou – enquanto Cristóvão andava no campo, atando os ramos caídos, secando os charcos, compondo os tetos dos casebres.
Os homens, no entanto, tomavam os seus cajados. O balio, chamado, tocou a trompa para reunir os seus arqueiros. As mulheres escondiam as crianças: outras plantavam cruzes à porta da casa. O abade mandara tocar o sino. E era como quando na aldeia aparecia um bando de lobos.
Cristóvão devia vir por uma azinhaga, onde se postaram os homens com os cajados, os arqueiros com os seus arcos retesados, e o padre, atrás, alçando a cruz com mão trêmula. E um bando de mulheres da aldeia, até as velhas trôpegas, esperavam para ver o feiticeiro espancado e expulso. Todos eles tinham recebido os serviços de Cristóvão; a todos ele cavara a terra, transportara os carretos, rachara a lenha, tosquiara o gado. Mas, em cada um desses serviços, cada um via agora como um ardil de Satanás. Mil coisas lembravam, que o condenavam. Uma noite aparecera um velho desenterrado. Quem o desenterrara senão Cristóvão? Às vezes, de noite, luziam na treva da aldeia dois grandes olhos vermelhos. De quem seriam senão de Satanás, que vinha alta noite conversar com Cristóvão? Por que não rezava ele nunca no adro? Outros acudiam, afirmando que ele tinha, nas costas, pintada uma caveira. Era decerto o sinete da Morte. E alguns, que duvidavam, lembrando-se da sua doçura, da sua bondade, receavam defendê-lo para que não parecessem diante do frade, ter inclinação pelo Inimigo.
Assim o esperavam, quando, pelo caminho que descia da serra, ele apareceu, vergado sob o imenso molho de troncos. O padre imediatamente ergueu alto o crucifixo, e os arqueiros retesaram o arco – e do bando um clamor súbito, enquanto se abaixavam a apanhar as grossas pedras.
Cristóvão parara espantado: - e tão certo estava do amor de todos, que se virou para trás, para ver que inimigo ruim ou homem de temer subia o caminho e despertava assim a cólera da aldeia. Mas o caminho estava vazio, já escuro. E era contra ele que o frade erguia a cruz, os besteiros apontavam os dardos, e os punhos tremiam de cólera no ar!
— Vade retro! Vade retro! – gritava o frade.
— Aos corvos! Aos corvos, o malfazejo! – exclamava a multidão.
Deixando escorregar dos ombros o molho de troncos, que tombou esmigalhando a sebe, Cristóvão ergueu a face, alargou os braços: - e durante um momento o espanto fez tão feia a sua face, que o bando recuou, as mulheres fugiram alçando os braços. Mas o frade, com o crucifixo trêmulo no ar, acumulava os exorcismos; o balio, com a vara, acirrava a multidão – e as pedras partiram, arremessadas com tanto medo, que todas se perderam no mato, em redor. Então, sem temor, Cristóvão deu um passo lento. Os seus olhos esbugalhados sondavam a turba ruidosa: viu ali, gritando contra ele, todos os que auxiliara: o moleiro, a quem servira de alimária, e carregara os fardos, brandia contra ele um cajado; a viúva do ferreiro, a quem soprara a forja, tinha duas pedras nas mãos; - e as crianças, que ele acariciara no adro, gritavam: “Aos corvos! Aos corvos!” Então uma grande dor varou o seu coração simples. A aldeia não o queria mais. Como um bicho malfazejo, como um lobo, ele era escorraçado. Duas lágrimas enevoavam as suas vastas pupilas, que reluziam: e baixando a cabeça, com humildade, Cristóvão desceu o caminho. Então a multidão ganhou ânimo. As pedras, voando, bateram nas suas espáduas, cansadas de todos os fardos; uma seta entranhou-se na sua guedelha hirsuta. Cristóvão desapareceu.
Diante dele estava a serra: para a serra subiu lentamente. E uma só dúvida tumultuava seu coração: - por que o tinham perseguido? que fizera ele? Amava a todos, servia a todos. Era o que o seu trabalho não parecia bastante útil? Ele não podia tirar mais força dos seus músculos, nem fazer que, para a labutação, os dias fossem maiores. Por que o apedrejavam então? E uma recordação entrou na sua alma, a memória de Jesus, que só fizera o bem, e que os homens tinham flagelado contra uma coluna de pedra. Ele era, pois, como o Senhor, um perseguido. E um amor maior crescia na sua alma por Jesus, sentindo confusamente que houvera entre os seus destinos uma igualdade de sofrimento... Os seus braços erguiam-se para a Lua que subia. Ali, nas alturas, estava o Senhor. E mesmo vendo a Lua tão brilhante e triste, ele pensava se não seria essa a face do Senhor!
Assim pensava, sentado numa rocha. Os olhos de um lobo luziram entre o mato. Ele pensou que talvez, esfomeado,o lobo descesse à aldeia. E erguido, deu um bardo, espantou a fera para os altos, para longe dos caminhos que desciam à aldeia. Ele via-os, esses caminhos, por entre os pinheiros. E, em baixo, as luzes mortiças, mais longe o Pego da Dona, brilhando como um disco de prata. Aí era o casebre onde, a essa hora, Joana dormia. Nunca mais ele a veria deitada na sua canastra, coberta com o mantéu negro da mãe. Nunca mais as suas mãozinhas lhe arrepelariam as barbas. E uma tristeza imensa tomava-o, uma vontade de se deitar para sempre na serra, e ficar ali até que os seus ossos brancos se não distinguissem mais das rochas brancas. Mas quem faria rir Joana, como ele, quando a erguia nos braços até a rama dos mais altos pinheiros? E quem lavraria o campo da viúva? Essa, decerto, lamentava a sua saída da aldeia. Nela sempre encontrara doçura, e um rosto que sorria na sua tristeza. Se ela o visse, decerto diria: “Cristóvão, olha o gado: Cristóvão olha a lenha!...” Se os outros o perseguiam, ela ao menos o acolheria. E agora Cristóvão esperava a madrugada para descer ao casebre de Joana.
Tênue e fresca, a madrugada nasceu por fim na serra. Rastejando entre os arvoredos, agachado para que a sua cabeça não fosse vista acima das árvores, rodeou a terra, veio ao casebre da viúva. A cancela estava fechada. O galo cacarejava, sobre o monte de mato. Já decerto o lume se acendera dentro, porque da telha vã saía fumo: e as cotovias cantavam muito alto no céu claro. Cristóvão apareceu por trás, defronte da porta do aido. Um grito assustado cortou o ar. A viúva vira Cristóvão, e arrebatando Joana, que brincava no chão, fugiu para dentro do casebre, gritando como o padre: Abrenuntio!
Cristóvão ficou imóvel. Também ela, pois, o temia, não o queria mais! Não havia em toda a aldeia já um coração que lembrasse. As crianças fugiam dele. Por quê? Lentamente afastou os passos, tão triste que o canto das cotovias quase o fazia chorar. Ao lado o pego da Dona rebrilhava, como um espelho redondo. Debruçado sobre ele, olhou a sua face. Então, pela primeira vez, sentiu a sua fealdade. Decerto o repeliam por ser disforme. Esse era o seu pecado. E carregado com o peso da sua fealdade, Cristóvão para sempre deixou os lugares onde nascera.
Longos dias caminhou. O país era deserto, com rochas; grandes despenhadeiros. A sede levou-o a um regato, que cantava entre as pedras. Bebeu, e foi seguindo aquela água clara que fugia. Ao fim de longas marchas encontrou um rio. Colinas suaves, onde branquejavam casas, erguiam-se dos dois lados da corrente serena e muda, orlada de salgueiros. Uma ponte antiga ligava as duas margens – e tendo-a passado avistou, erguidos, recortados na manhã clara, os muros de uma cidade. Quase de repente duas portas, sob uma torre que encimava a muralha, rodaram: - e delas irrompeu uma multidão que fugia. Era gente que trazia às costas as enxergas, as bilhas de água. As crianças, chorando, agarravam-se às saias das mães; os velhos erguiam os braços, para que esperassem por eles – e por vezes todos se afastavam de algum cavaleiro, que, embuçado no manto, a pluma do chapéu ao vento, se escapava ao galope de um ginete magro. Um fumo, como de fogueiras, subia por trás das muralhas; as ameias não tinham sentinelas; e todo o ar estava cheio do dobrar de finados, badalado nas torres.
A turba que fugia, vendo Cristóvão, corria mais espantada, tropeçando, caindo sob o peso dos fardos; ele estendia os braços para amparar os velhos; o terror crescia: - e em torno de suas pernas, como em volta de torres, a multidão debandava gritando.
Chegou por fim à entrada da cidade. Dois soldados atônitos fecharam as portas. Cristóvão galgou o fosso, transpôs as muralhas. Diante dele abria-se uma rua, com trapos caídos nos enxurros, e todas as portas fechadas sob as tabuletas, que rangiam na haste de ferro ao vento agreste. Um fétido terrível tornava o ar pesado: e dois frades, erguendo o hábito, fugiam de um homem que se espojava no chão, com a face toda verde, a boca escancarada, gritando por água! Cristóvão correu para ele, ergueu-o nos braços, levou-o a um chafariz, onde a água jorrava de carrancas. O homem bebeu a largos tragos – as suas pernas inteiriçavam-se, e ficou nos joelhos de Cristóvão morto, já quase decomposto. Mas, de uma casa próxima, gritos soavam; e, erguendo a face, viu uma velha esguedelhada, que da esguia janela, onde restava um pé de flor seca num vaso, chamava por socorro, torcendo os braços. Das janelas vizinhas faces pálidas espreitavam. Mais longe, prantos novos se ergueram; Cristóvão, tendo posto o cadáver no chão, olhava espantado sem compreender a dor que parecia pesar na cidade. De uma taberna. subitamente, saíram soldados bêbados, cambaleando, cantando, com as faces lívidas de uma noite de vinho e orgia. Cristóvão ia interrogá-los – quando um de repente caiu, torcendo-se num agonia. Os outros, subitamente desembriagados, fugiram. E Cristóvão acudia ao agonizante, quando ele ficou hirto, morto. Ao fundo da rua passava uma procissão em que um padre, de túnica branca, erguia um relicário que reluzia, enquanto mulheres, atrás, descalças, desgrenhadas, torciam os braços, clamando para o Céu misericórdia. Os sinos não cessavam o seu dobre a finados: e homens trazendo barricas de breu, acendiam às esquinas fogueiras que subiam ao ar, fazendo estalar o vidro das gelosias.
Um padeiro, mais pálido que uma tocha, abria a uma esquina as tábuas da sua loja. Cristóvão dirigiu-se a ele, e curvando-se, com as mãos os joelhos, perguntou-lhe que mal corria na cidade, e por que soavam tantos prantos. O homem recuara inquieto, perguntando por seu turno se ele viera com saltimbancos para se mostrar. Cristóvão disse que não, e com um gesto mostrou o horizonte distante de onde vinha. Então o homem aconselhou-lhe que fugisse, porque a cidade morria da peste negra.
Quando assim falavam, um ruído de correntes arrastadas ressoou no lajedo. E dois homens, com cadeias de ferro presas aos pés, apareceram, trazendo um morto numa padiola. Atrás outros homens, de faces sinistras, com correntes aos pés, traziam outros mortos... Eram os forçados das galés, que iam enterrar os mortos, guardados por soldados, que faziam estalar no ar compridos látegos de couro. Então Cristóvão tomou aos ombros os dois mortos que jaziam junto à fonte, e começou a seguir os forçados. Assim saíram das portas, até chegar a um olival, onde estava plantada uma cruz. Uma vala irregular e tortuosa atravessava sob a ramaria pálida. À pressa, os forçados atiraram os mortos para dentro, e com as enxadas lançaram sobre eles uma ligeira camada de terra. Ao ruído, bandos de corvos, que pousavam nas oliveiras, bateram o vôo, grasnando furiosamente.
Cristóvão sacudiu as mãos da terra, e sem atender aos brados dos soldados que o chamavam, recolheu à cidade, ao acaso, por outra porta, que estava toda tomada por outro funeral, onde havia frades, escudeiros com círios em torno de um caixão, cujo pano de veludo tinha um brasão bordado. Então, todo o dia percorreu as ruas, socorrendo os que caíam, desviando os mortos do meio das calçadas – e ao escurecer já se tornara tão familiar, que das gelosias gritavam: “Eh homem!” Ele vinha, carregava os mortos para a vala, limpava a imundície dos pátios, corria a encher as bilhas de água – e mesmo alimentava as crianças que estavam sozinhas nos casebres.
Como em todas as casas havia um morto, e se receava o contágio, a multidão errava pelas ruas, entregue ao terror e ao delírio. As mulheres, os velhos, corriam às igrejas, a implorar às relíquias, saltavam por cima dos cadáveres que atulhavam os adros. Estes, julgando que o mundo ia findar, corriam às tabernas, arrombavam as pipas, e as blasfêmias dos ébrios juntavam-se ao pranto das mulheres. A cada esquina havia rixas – e por vezes, numa rua deserta, onde todos os moradores tinham morrido, Cristóvão tinha que expulsar os porcos, que roíam ossos humanos. De resto os animais, abandonados, percorriam as rua, e por vezes um cavalo espantado, um touro fugido do matadouro, corriam, esmagavam a gente, e era Cristóvão que os segurava com os seus punhos enormes.
A cada instante os gritos dos doentes abandonados o detinham. De rastos, ele introduzia o seu vasto corpo pelas escadas estreitas, e ia dar de beber aos doentes, limpar-lhes as imundícies, oferecer-lhes o seu vasto peito para eles morrerem sobre o calor de um coração humano. Por vezes um moribundo queria a extrema-unção; mas os padres tinham fugido, os raros que ainda haviam não bastavam para tantos moribundos; e Cristóvão, tomando um crucifixo, de joelhos, bradava junto do leito fétido: “Jesus, meu Senhor, sê com este infeliz!”
Todas as noites havia grandes penitências. Bandos de homens, de mulheres seminuas, corriam as ruas, rasgando as carnes, cobrindo a face de lama, cantando cânticos ferozes em que as invocações ao Senhor se confundiam com apelos ao Demônio. Por vezes, de repente, uma voz gritava: “É culpa dos judeus!” E a multidão, tomando chuços, agarrando fachos, corria às casas dos judeus, que apareciam oferecendo sacos de ouro, e caíam sob os golpes, ou ficavam com as barbas queimadas.
Nas ruas ricas os palácios estavam fechados: e através das janelas sentiam-se músicas e o tinir das baixelas de prata, porque alguns pensavam que se devia esperar a morte no seio do prazer. Outros, porém, iam de casa em casa, em festas seguidas: - e viam-se cavaleiros, sem manto, com gotas de vinho nas barbas agudas, caminharem na rua, entre tocadores de bandolim e de flauta, tropeçando com os seus imensos sapatos bicudos nos cadáveres abandonados: e, para os ver passar, surgiam aos balcões mulheres pálidas, com o seio descoberto, peles de arminho na orla do vestido, e a cabeça coberta de uma mitra aguda de onde pendiam molhos de longas fitas, que o vento fazia ondear como flâmulas de mastros.
Toda a noite Cristóvão trabalhara. Como os guardas não fechavam as portas, por vezes os lobos, atraídos pelo cheiro da podridão, apareciam nas ruas escuras. E Cristóvão, que juntava os cadáveres, corria contra eles bradando, com uma tocha na mão. Os mortos, que assim juntava, ia-os de manhã sepultar nos campos de oliveiras. Depois ia colher à serra ervas aromáticas, que salvam da infecção, e pondo-se às esquinas oferecia-as à gente que saía das suas moradas e que, tomando um milho, se afastava respirando-o com confiança. Como os ladrões abundavam, Cristóvão vigiava a casa dos cambiadores da moeda, dos joalheiros: e se surpreendia uns homens correndo, com alguma coisa escondida sob o saião, tirava-lha e ia depositá-la numa igreja. Era ele quem distribuía a água, varria as imundícies, acendia as fogueiras para depurar o ar. E pouco a pouco, era tão conhecido, que as mulheres, vendo a sua sombra passar rente das gelosias, chamavam sobre ele a benção do Senhor. Os ricos atiravam-lhe bolsas com que ele ia comprar pão às viúvas. Os seus passos eram por vezes embaraçado pelas crianças, que se prendiam às suas pernas como a colunas. Os mercadores confiavam-lhe as suas tendas. Quando ele se ajoelhava à porta de uma igreja, dentro as orações eram mais ardentes. E como ele acarretava as lenhas dos soldados, polia as suas armas, rondava por eles as portas – os soldados gritavam na rua: “Viva Cristóvão!”
Uma tão grande popularidade inquietou o sobrinho do príncipe, que, tendo o seu tio fugido da peste, com o seus tesouros e concubinas, governava a cidade, e queria, por ambição do poder, ganhar as simpatias do povo. Mas a sua face lívida e dura, sobre um corpo enfezado e corcunda, desagradava às mulheres por sua fealdade, aos soldados por sua fraqueza. Um dia em que ele seguia uma procissão, com as relíquias de S. Teódulo, o povo, à sua passagem, permaneceu com o joelho apenas dobrado. Logo atrás, porém, entre o povo, vinha Cristóvão, como uma torre entre casebres. Um mercador rico dera-lhe vinte varas de pano de Flandres, para um saio: e todo ele sorria na sua simplicidade, agitando duas palmas verdes que as confrarias dos Irmãos Hospitaleiros lhe tinham dado, como emblema da sua caridade. Ao vê-lo, o povo, que se apertava contra as portas fechadas, rompeu a gritar seu nome entre bênçãos: “ Bom Cristóvão! Cristóvão grato ao Senhor!” Uma dama atirou-lhe a flor que tinha no seio. Os velhos baixavam a cabeça como na passagem de um justo.
O conde, adiante, tornara-se mais pálido. E nessa noite dizia, sentado à lareira, desapertando o gibão: “Quem me livrará daquele monstro que transvia o povo!” Os guardas, tendo combinado baixo a um canto, vieram, cercando a sua alta cadeira de espaldar, animar por adulação o seu secreto pensamento. Não era conveniente, na verdade, que um ser disforme, dos que se mostram nas feiras, ganhasse assim raízes no coração do povo... De resto, a sua força seria depressa domada com fortes correntes de ferro. E não havia, fora da cidade, um despenhadeiro, onde se poderia lançar o corpo do imenso bruto? E quando, na manhã seguinte, Cristóvão começava o seu almoço junto da catedral, um pajem veio, sorrindo, e convidou-o a ir à presença do príncipe, que lhe queria dar ouro, e vestidos que conviessem a um homem tão serviçal. Pensando que os vestidos serviriam a cobrir os presos, que a miséria trazia nus, Cristóvão sacudira as mãos, onde a broa se esfarelara, e obedeceu ao pajem, que corria para lhe seguir as passadas.
Apenas Cristóvão entrara no palácio, as grossas portas, eriçadas de ferros, foram fechadas. O conde, que estava num balcão, gritou agitando o povo emplumado: “Eh Cristóvão!” E como ele movia um passo, sorrindo, com a face erguida para o balcão, de onde pendia um veludo franjado de ouro – dois soldados meteram-lhe bruscamente entre as pernas uma trave, e Cristóvão tombou no lajedo. Logo, de todas as portas, romperam homens inumeráveis, que cobriram o imenso corpo deitado, como as formigas cobrem um tronco. Num momento foi amarrado com grossas correntes e ferro: e para que nenhum grito dele saísse, uma mordaça tapou-lhe a boca. Depois todos, recuando vivamente, contemplaram em silêncio o gigante vencido. O príncipe desceu para ver, com damas, cujas caudas eram como longas tiras de tapete sobre o pátio. E os pajens cuspiam sobre a sua face barbuda. Ele pensava no Senhor que fora flagelado – e mais nos pobres que ele servia, e que decerto nesse dia sentiriam a sua falta. Todo o dia ficou assim cercado de lacaios, de cozinheiros, que deixavam o serviço para o vir ver. E no coração de alguns havia compaixão.
A noite desceu, escura, sem uma estrela. Então Cristóvão abriu os olhos. Os cães de fila, soltos, rondavam o pátio. A sentinela dormia, à porta, encostada à lança: e das altas ogivas do palácio vinha um clarão, e um rumor de violinos. Então Cristóvão retesou os músculos – e com grande ruído todas as correntes estalaram. Diante da grande forma erguida, os molossos fugiram, latindo. A sentinela, largando a lança, fugiu. E Cristóvão, de um só golpe de ombros fazendo estalar a porta, saltou o fosso, entrou nas ruas desertas. Mas de repente parou, pensando que se revelasse a traição do conde, o povo, os soldados, que o não amavam, lhe fariam mal, e, se a calasse, o conde, decerto o faria matar. Assim se ficasse, ou o seu sangue correria, ou correria o sangue dele por sua causa. E então Cristóvão dirigiu-se à grande porta da cidade. À luz de um retábulo da Virgem os soldados jogavam os dados. E vendo Cristóvão, perguntaram-lhe se o príncipe lhe dera uma bolsa, ou panos para um vestido. Cristóvão murmurou:
— O príncipe deu mais que eu esperava.
E passou, penetrou nos caminhos, deixando para sempre a cidade onde fora bom aos aflitos.
Longos dias Cristóvão errou pelos caminhos – até que uma tarde chegou ao sopé de uma montanha, cujas rochas o Sol poente cobria de cor-de-rosa. Um homem, com um hábito de frade, um longo capuz de onde saía uma braba branca, subia lentamente os córregos alcantilados, gemendo, sob um molho de lenha. Cristóvão pedira ao velho para carregar ele a lenha. O frade, receando um demônio, traçou no ar uma cruz, e como Cristóvão repetisse sobre o peito as linhas santas, o frade consentiu que ele tirasse o molho dos ombros. E limpando o suor com a manga esfarrapada do hábito enquanto caminhava ao lado de Cristóvão, perguntou-lhe se ele fugira dos homens que o mostravam numa feira: e como Cristóvão dissesse que vinha da cidade, de além, o frade compreendeu que ele vinha decerto atraído pela santidade daquela montanha povoada de ermitas. E pensava: “Aqui está um homem, decerto simples, e de força imensa, que poderia aliviar dos seus trabalhos os santos varões que ali habitam, deixando-lhes mais tempo para aperfeiçoar a alma, e dar batalha segura ao Tentador...”
Então foi guiando Cristóvão até que chegaram a uma choupana feita de ramos, ente pedras alcantiladas. À porta da cabana, cravada entre duas paredes, erguia-se uma cruz tosca, e ao pé, sob uma caveira, pousava, aberto, um grande in-fólio. Dentro da cabana havia só um leito de folhas secas, e uma bilha com a asa quebrada.
O ermita, tendo indicado a Cristóvão o sítio onde devia deixar o molho de lenha, tomou de uma buzina pendurada à porta da cabana, e afastando os longos pelos do bigode branco, lançou três sons roucos, que ecoaram nas quebradas. Cristóvão, tímido, considerava cada movimento do ermita como uma ação de santidade. Então, das sendas várias do monte começaram a aparecer, caminhando devagar, uns apoiados em bordões, outros com as mãos escondidas nas mangas, ermitas, a quem um longo capuz escondia a face. O primeiro que chegou, dando com Cristóvão, fez o sinal da cruz, e depois, com um gesto, chamou os outros, que, assim apressados, saíram de rocha em rocha. Quase todos tinham longas barbas, grisalhas e incultas, as túnicas esfarrapadas, e o lodo dos caminhos seco em crosta nas pernas. Com um gesto lento coçavam pelo corpo a vérmina que os cobria: e, se as pernas ou os braços se lhes tinham chagado, erguiam as túnicas como tirando contentamento daquelas misérias da carne. Alguns, porém, eram novos, ainda robustos, mas tão pálidos já, que as faces sob o capuz eram como uma cera na sombra. Todos se curvavam diante do monge que guiara Cristóvão; e depois ficavam mais calados e mudos que imagens sobre um túmulo. Mas então o ermita, que parecia ter a autoridade de um prior, explicou que, ao sopé da montanha, voltando de recolher a lenha, encontrara aquele homem de corpo imenso e de imensa força, mas tão simples que não sabia de onde viera, nem em que terra nascera. E logo lhe acudira, como inspiração de cima, a idéia de o recolher, e de o ocupar no serviço dos santos irmãos que habitavam a serra, à maneira do que praticara Santo Antão no Egito, que, para que os seus irmãos do ermo, e ele próprio, se absorvessem melhor na oração, e mais livres ficassem para dar combate ao Demônio, tomara um negro de muita força, que conduzia a água, rachara a lenha, segurava nas mulas dos peregrinos, transportava as coifas das provisões. Assim, de ora em diante, tendo quem os servisse, nas suas almas não haveria mais cuidados do que a conquista do Céu. Tendo findado, e baixando a face sob o capuz, como recolhido em oração – os ermitas, sem quebrar a sua mudez, retomaram os caminhos da serra, e um a um foram-se sumindo entre as rochas e os robles.
Só com Cristóvão, o ermita, voltando à cabana, trouxe um pedaço grosso de broa, de que deu uma parte a Cristóvão. Ambos beberam da bilha: - e tendo ordenado a Cristóvão que fosse com a lenha às costas, através da serra, para a distribuir pelas ermidas esparsas, estendeu-se em frente à cruz, e, pousando a cabeça sobre uma pedra, ficou mergulhado em oração.
Cristóvão partiu. Cada ermita lhe ensinava, sem falar, com um mover lento da mão, a ermida mais vizinha. Em todas, a mesma caveira alvejava ao pé da mesma cruz. E àquela hora da tarde todos estavam à porta da ermida partindo o seu pão, e tendo ao lado, interrompido, ou o livro que liam, ou o grande rosário que desfiavam, ou algum cesto que encanastravam, ou as estrelas que teciam. À porta de cada cabana pendia uma buzina e um molho de disciplinas, com pontas de ferro. Quando Cristóvão chegava, todos alçavam o olhar baixo: nalguns o olhar era sereno, de uma serenidade morta; noutros refulgia com um vago clarão de terror, ou uma viva luz, que parecia alongar-se numa curiosidade sem fim. Humildemente, Cristóvão depunha o molho de lenha com respeito, como junto de um altar: e os monges, tendo seguido o seu movimento, baixavam e novo a face sob o capuz. Quando Cristóvão voltou à ermida do prior – ainda o encontrou estendido, com a cabeça pousada na pedra, dando por vezes um suspiro. Então, calado, foi sentar-se a distância numa pedra.
O Sol descia ao longe, vermelho como uma amora. Nenhum rumor cortava a placidez do ar. Os homens pareciam estar muito longe: - e depois daqueles dias passados na cidade empestada, Cristóvão sentiu toda aquela serenidade entrar-lhe na alma como uma carícia sem fim. Mas lembrava todos aqueles que deixara, e mesmo lhe parecia ver certos detalhes – a casa da esquina onde ele ia levar pão às crianças abandonadas, o velho a quem ia chegar a bilha da água. Decerto sentia a falta desses seres que socorria: - mas naqueles ermitas havia tanta fraqueza, tanta necessidade, que decerto seria doce ocupar-se desse serviço. O sol desaparecera. Todo o vale de rochas estava negro. Por vezes um grande pássaro escuro esvoaçava. Uma estrela pequenina luzia, depois outra. O santo prior orava, com a face sobre a terra fria. E Cristóvão, cansado, estendeu o imenso corpo na terra, adormeceu.
Alta noite acordou: - um som lento, desolado, de buzina, caía de rocha em rocha pelo silêncio da serra. Era como o apelo de uma coração aflito: - e imediatamente o prior, correndo de dentro da cabana, se atirou de joelhos diante da cruz, rezando, com furor tumultuoso. De certo, longe, algum irmão estava sofrendo uma tentação do Inimigo, e já meio vencido, soprava a buzina avisando a todos os ermitas para que o ajudassem com as suas orações a rechaçar Belzebu. Sentado no seu rochedo, Cristóvão olhava, cheio de simplicidade, sem compreender, com as mãos pousadas sobre os joelhos – quando de outro lado da serra, lá no cimo, outra buzina soou, chamando socorro para outra alma atacada. Mais tumultuosas se precipitaram as orações do ermitão. Mas a buzina ressoava mais aflita! E então o santo homem, desesperado, gritou a Cristóvão que acendesse uma fogueira perto da cruz, para que ela, destacando em negro sobre o vermelho do lume, fosse vista pelos demônios, que nessa noite pareciam dar um ataque terrível à santa montanha.
Ferindo lume com duas pedras, Cristóvão, rapidamente, fez uma fogueira, soprando com as faces inchadas: a lenha nova estalou, uma chama subiu, outros lumes em breve apareceram na negrura da serra: - e os sons das buzinas decresciam como as ânsias de um coração que sossega. Um silêncio pesou então. Cristóvão cerrara as pálpebras. E o prior, um momento, aqueceu à chama as suas mãos trêmulas.
Mas os seus olhos fixavam-se na chama, com uma atração crescente: um clarão de cobiça iluminava-lhe a face, e a sua língua apareceu à beira da boca seca, como adiantando-se para uma grande peça de carne tenra, vermelha, chiando ainda no largo prato onde fora assada... Chegou mesmo a estender a mão aberta. Mas deu um grito. Onde tinha ele os espíritos que não reconhecera uma ilusão do Inimigo, que o vinha tentar pela gula?! Furioso, ordenou a Cristóvão que apagasse a fogueira.
Com os braços em cruz, passeou então no estreito terraço bordado de pedras. A sua boca seca mascava com um ruído contínuo: - e ia balbuciando orações. Os olhos de Cristóvão, fixos no brasido vermelho que restava do fogo, iam-se cerrando. Toda a montanha se calara. E como insensivelmente atraído, o ermita voltou a olhar o brasido, que vermelhava numa brasa viva. O que ele agora via eram montões de dinheiro, ducados de ouro, montes de rubis escarlates que se esboroavam, numa infinita rutilação de tesouros. Bastava baixar a mão, e teria tesouros para comprar um condado, erguer catedrais, assalariar mercenários, comprar jóias às rainhas, ter todas as satisfações do poder, e do amor, e do orgulho eclesiástico. E todavia o ermita sorria, sacudia a barba branca, murmurando: “Bem vejo a tua ilusão, oh Maldito, que me julgavas desprevenido! Mas a minha alma está forte, e nela, como o arqueiro na torre, a oração vigia, cheia de força!...” E com o pé espalhou os carvões ardentes. E Cristóvão pensava na sua simplicidade: “Quantas coisas vê este homem, que eu não vejo! Decerto é por causa da sua sabedoria ou da sua santidade”.
No entanto, o ermita recolhera à sua cabana: mas, apenas entrara, soltou um grito, e saiu recuando, com os braços abertos, que pareciam sacudir uma visão. Era uma mulher, de esplêndida brancura e toda nua, que ele encontrara deitada de costas sobre o seu catre de folhas, com braços abertos que o esperavam e o chamavam. E durante um momento, as suas mãos, como impelidas por força oculta, tinham-se estendido para ela irresistivelmente: mas nos pés, tão brancos, reconhecera um pé de cabra – e tendo-se benzido freneticamente, a mulher evaporara-se, como um fumo negro, através dos ramos da cabana. Mas quase cedera à temerosa ilusão – e se no momento em que lhe estendia os braços tivesse morrido, era o Inferno, a danação completa! Então agarrou violentamente as disciplinas,e arrancando a túnica, gritou: “À obra, à obra santa!” As duas correias de couro de boi, armadas de unhas de ferro, cingiamlhe a cinta, rasgavam-lhe a pele do dorso. A cada golpe, dava um gemido rouco: mas, pouco e pouco, de duros e aflitos os gemidos tornaram-se lentos e lânguidos: - e o pobre ermita, a cada vergastada, murmurava: “Socorro, meu Senhor, socorro, que estes golpes que dou em mim começam a ser com um contato delicioso!... Faz que eu sofra, Senhor! Dá ardor infinito aos vergões que sulcam a minha carne! Sopra para dentro das feridas a tua cólera! Que ela me queime e arda, como um pez inflamado!...” E, de repente, caiu como morto, com os braços estendidos.
Cheio de piedade, Cristóvão ergueu-o do chão, e empurrou-o como um corpo morto para dentro da cabana, e onde ele ficou estirado, com algum lento gemido que por vezes o sacudia.
A manhã clareava. Cristóvão adormeceu.
Então começou, desde esse dia, o seu serviço entre os ermitas. Todas as manhãs ia buscar um tonel à fonte, que brotava em cima, de entre rochas, e ia enchendo de ermida em ermida, as bilhas de barro. Depois cortava a lenha, amassava o pão, que se cozia num forno de tijolo, junto de uma capela onde os santos homens ouviam missa e comungavam. Era ele quem tocava o sino, punha giesta sobre o altar – e , por ordem do prior, espalhava seixos sobre o chão da capela, para que os joelhos dos ermitas se macerassem. Pela tarde, tendo reunido as esteiras, as alpercatas, os cestos, que os ermitas fabricavam, descia a uma povoação do outro lado da serra, onde trocava aquelas obras das santas mãos pela farinha, por ervas, e pelo vinho das galhetas. Todos estes serviços eram fáceis e doces. Mas, pouco a pouco, Cristóvão sentia como uma melancolia e um desejo das cidades e da vida dos homens. A montanha era triste e sem verdura; - mas a sua tristeza vinha sobretudo do silêncio, da amargura, da desolação dos santos que a povoavam. Todo o dia era por eles consumido a gemer, mesmo quando trabalhavam – e o seu esforço constante era a martirização dos corpos, onde se instalava o Inimigo. Mesmo imóveis, quietos, se estavam mortificando: uns traziam um cinto de pregos, que lhes rasgava a carne; outros introduziam debaixo do hábito formigas ou vespas que os picavam; outros suspendiam do pescoço uma pedra enorme, e caminhavam arquejando e tropeçando. Toda a doçura humana lhes era alheia. Ao pão que coziam misturavam terra; a água, só a queriam já envelhecida e pútrida. Por vezes alguns permaneciam, dias e dias, imóveis, de pé sobre uma pedra, com as mãos espalmadas, sob a chuva, e, quando o sono ou a fome os iam a vencer, enterravam uma espinha aguda no peito; outros dormiam com a cabeça sobre uma pedra, outra pedra sobre o estômago, outra sobre as pernas juntas, e eram como cadáveres de justos lapidados. Por vezes, Cristóvão oferecia-se para lavar as chagas, tirar os espinhos dos pés, curar com cinzas e água a mordedura dos insetos. Mas todos o repeliam, e para tornar as feridas mais irritáveis expunham-nas ao sol ardente, ou deitavam-lhes areia fina. Um imenso sofrimento cobria a montanha; e sobre ela o Sol parecia uma lâmpada triste, através dela o vento um gemido angustiado.
Era, porém, de noite, que ela se tornava terrível. Animados pela escuridão, os demônios subiam por cada caminho, para atacar os santos homens. Em cada cabana era uma luta temerosa. Os santos tinham a oração, as suas longas disciplinas armadas de unhas de ferro; mas os demônios, por seu lado, tinham as coisas deliciosas a que as almas sucumbem. Aos ermitas que vinham esfomeados, os diabos ofereciam longas mesas, cobertas de flores, onde os pavões assados arqueavam as penas entre os montes de frutas e os blocos de gelo; aos que tinham sido cavaleiros, mostravam montes de ouro, armas invencíveis, longos exércitos para ir conquistar reinos e saquear cidades ricas; aos velhos faziam ofertas de mitras, que lhes dariam entre os homens a suprema autoridade das coisas santas; - e a todos a tentação suprema, a Beleza, a Mulher, ora magnífica, desenrolando as tranças, erguendo uma túnica de gaze, ora delicada, escondendo com os braços o peito nu, e sorrindo fragilmente.
Mas quando as seduções não bastavam, os demônios, furiosos, tentavam o terror. Então eram serpentes pavorosas, surgindo de entre as rochas; vastas asas moles e fétidas que, com um golpe, derrubavam; figuras colossais, listradas de branco e negro, que brandiam forquilhas, vertendo uma baba de fogo. Os gritos dos ermitas atroavam a serra; as buzinas ressoavam; uma furiosa rajada de orações subia para as nuvens; as correias das disciplinas voavam no ar, com gotas de sangue: - e, espantados pela grandeza da penitência, os demônios cediam, abalavam, limpando o suor, esfalfados.
Uma grande piedade enchia então o coração de Cristóvão. Por que sofriam assim aqueles homens bons, que encanastravam as vergas, caminhavam com a face baixa, não faziam nenhuma ofensa e só pertenciam ao Céu? O seu desejo era ajudá-los, rechaçar ele só, com a sua grande força, as turbas negras do Inferno. Então, ao menor apelo da buzina, corria para o lado do ermita atacado. Arquejando, com os imensos punhos fechados de santa cólera, avançava na escuridão. Mas onde estava o Demônio? Ele via o santo ermita recuar com pavor, via o escuro lugar para onde ele estendia a cruz, como uma lança... Mas se se arremessava para lá, os seus braços vingadores só encontravam a noite negra. Quantas vezes ele encontrava o ermita, que tremia todo, e murmurava: “Oh, como é branca, e doce à vista, e cheia nas suas formas!...” Cristóvão compreendia: era decerto uma mulher, a temida Mulher, que arqueava os braços, descobria o peito... Para a empolgar, a esganar, ele quase rastejava no chão, colhendo o hábito. Mas as suas mãos indignadas só agarravam o tojo, os musgos de uma pedra fria. Então ele próprio clamava para os demônios: “Vinde para mim, vinde para mim!” E, arrancando um tronco, atirava tremendos golpes, ou arrancando uma imensa lasca às penedias, arremessava-a através da noite. Os troncos batiam contra os troncos; as rochas, com estridor, quebravam sobre as rochas. E diante dele, nada havia, senão a montanha; Pois era impossível que ele nunca ferisse um dos demônios inumeráveis, que ali vinham de noite? Ia então, mal clareava a madrugada, procurar, com a cabeça baixa, as pegadas dos diabos fugidos, algum chifre que lhes tivesse partido, ou sobre a terra chamuscada alguma gota do sangue maldito. Encontrava apenas as violetas lustrosas de orvalho. E então recolhia à sombra dos seus robles, bocejando com lentidão.
Pelas festas do ano, o povo da aldeia subia à montanha, vinha visitar os ermitas. Uns, doentes, aflitos com males, amparados pelos parentes, vinham implorar a saúde àqueles amigos do Senhor. Outros pediam a sua intervenção para obter uma colheita abundante, ou a herança perdida. As mulheres traziam os filhos para que eles, tocando-os na cabeça, lhes dessem vida forte e próspera: - e as que eram estéreis vinham implorar as doçuras da maternidade. A montanha era como um arraial de peregrinos. As crianças, correndo, tropeçavam nas muletas dos coxos. As raparigas, com uma flor metida na orelha, formavam danças no adro da capela. Os que tinham feito promessas arrastavam-se de joelhos sete vezes em torno das cruzes, ou penduravam no altar pés de cera, laços de fita e cestos de frutas. Como voltariam tarde para a aldeia, quase todos traziam provisões, e, dependurando os mantéus nos troncos da árvores, faziam grande círculo em torno das melancias abertas, bebendo dos pichéis de vinho.
Os ermitas iam por entre a turba, e por vezes, mal podiam mover os passos lentos, envolvidos, suplicados pelos feridos que, fartos de ungüentos, pediam que lhes tocassem nas chagas com o rosário, pelos mendigos que queriam que lhes sarassem a sarna, pelas velhas hidrópicas que descobriam o ventre, esperando um remédio do Céu. Outros queriam apenas a benção. Havia faces inquietas que pediam uma profecia sobre as vindimas. Outros estendiam os rosários para eles os benzerem. E os ermitas tocavam as feridas, prometiam boas colheitas, sossegavam as mães dos endemoninhados.
Depois o prior subia ao púlpito rústico, feito de pedras, e enumerava as obras gloriosas da montanha. Onde houvera, mesmo na Tebalda, no tempo sublime dos Antãos, dos Pacómios, uma penitência mais alta? E mostrava as suas faces emagrecidas pelos jejuns, as suas carnes rasgadas pelas flagelações. Uma imensa admiração arrebatava as turbas piedosas. E todos queriam ver nos corpos dos santos a evidência da sua santidade. E só havia então ermitas mostrando as chagas que eles tinham assanhado, as pisaduras que lhes deixavam as pedras onde dormiam, os dentes estragados pelo pão azedo a que misturavam cinza. As mulheres erguiam as mãos, chorando. As mais ardentes arrancavam pedaços da túnica dos ermitas, que guardavam o seio como relíquias. Os velhos beijavam a terra onde eles tinham pousado os pés. Diante das cabanas havia multidões a admirar a dureza dos leitos, a bilha quebrada, o grande in-fólio. Alguns julgavam ver as pegadas dos anjos que visitavam os ermitas. Outros queriam provar o pão, ou, cheios de respeito, tocavam com o dedo nas disciplinas. Cristóvão era invejado por viver entre eles. Muitos queriam abandonar os casais, para servir os santos: - e havia sempre algum que, para ficar na montanha, se escondia entre as rochas, e que era necessário expulsar quando o Sol descia, e a hora chegava da solidão e da prece.
Mas nessas noites, depois dos arraiais, as orações não eram tão profundas, nem as penitências tão altas. Cansados, sentados à porta da suas cabanas, os ermitas saboreavam, no silêncio do seu coração, a sua imensa santidade. Cada um se sentia famoso, falado nas lareiras do vale. Decerto a fama da sua santidade chegaria aos castelos. Os bispos falariam deles nos concílios. E mais tarde talvez suas imagens se ostentariam sobre os altares. E Cristóvão então via-os olhar complacentemente, acariciar as feridas da penitência, escolherem uma pedra maior para encostar à noite a cabeça. O prior vinha então congratular os seus irmãos. A sua face resplandecia. E era ele que relembrava os movimentos da multidão, e como a suas chagas tinham sido beijadas. E já certo do poder da sua voz, falava em descer à planície, pregar contra a relaxação dos Beneditinos. A sua estatura cada vez se erguia mais. Um dia mesmo mostrou em triunfo uma carta do conde de Ocitânia, que o consultava sobre os dízimos. E Cristóvão entristecia, era como uma saudade de outros homens mais humanos, e do riso das crianças. Era sobretudo como uma impaciência de toda aquela inutilidade dos ermitérios, os longos e ocos silêncios, as horas passadas com a fronte sobre uma pedra, aquela imobilidade contempladora de onde não saía nenhum bem, nada que aquecesse o coração. Povoada por toda aquela inércia, a montanha ainda lhe parecia mais inerte. E vinha-lhe como um desejo de sacudir aquela imobilidade dos homens e das coisas, e com as suas mãos arremessar conjuntamente os ermitas e os robles, as caveiras e as rochas. e empurrá-los para alguma ação útil, mandá-los de roldão, pela montanha abaixo, a ser úteis aos homens!
O seu coração pouco a pouco se destacava daqueles amores. Já não corria tão alegremente a encher as bilhas; tanta cruz envolta por tantos braços, não lhe causava doçura na alma; e aborrecia as caveiras, com seu riso imóvel, oferecendo ao Sol a sua frialdade branca. Quando de noite as buzinas soavam, implorando o auxílio de orações irmãs, não se erguia em sobressalto apiedado. Toda a flagelação o impacientava. E nos dias de festa embrenhava-se nos altos da serra, para não presenciar o orgulhos dos ermitas, mostrando as feridas das disciplinas.
Um dia o prior mandou-lhe construir, com um madeiro, uma cruz da altura de um homem. Três dias Cristóvão trabalhou. E quando, enfim, cravou a cruz num ponto evidente da serra, onde não havia arvoredos, o prior chamou os seus irmãos de ermitério. Um por um, desceram, rezando baixo. O prior encostara-se à cruz, com o corpo colado ao madeiro, e abriu os braços ao longo da cruz – cruz humana, colada à cruz da lenha. depois ordenou um cântico. Quando ele cessou:
— Agora – disse o prior – vou ficar aqui, sem comer, sem dormir, durante três dias, pelas três pessoas da Santíssima Trindade. Esta obra é gloriosa!
Todos ergueram as mãos ao Céu, edificados. Cristóvão, nessa tarde, desceu o córrego até vale, e sem sequer volver os olhos, abandonou para sempre a montanha.
Cristóvão tomou o caminho do lado oposto aos povoados – e começou a caminhar, ao acaso, pela longa ravina que contornava a serra. Era como leito de antiga torrente, que seguia funda entre rochas, seca e triste infinitamente. Toda a noite caminhou à luz de uma grande Lua cheia. De madrugada dormiu à boca de uma caverna. A solidão era como a de um mundo deserto, onde só ele habitasse. Cristóvão sonhou com prados e regatos muito frios, muito límpidos, que corriam entre aloendros em flor. Quando acordou teve sede, e em roda só havia um torrão tão estéril, que nem nele crescia o tojo.
Todo o dia, marchando sempre, Cristóvão padeceu sede. Ao pôr do Sol, julgou ver longe uma água que rebrilhava. Eram largas lajes de pedra como restos de um terraço, ou do lajedo de um solar. Deitado, esperou ali a manhã: e, através de um sono incerto, julgava ver como olhos luzidios de lobos, que passavam, se sumiam para além de um barranco. De manhã dirigiu os passos para esse barranco, e aí ao fundo havia como uma água lodosa e pútrida, que ele bebeu como delícia.
Durante dois dias mais caminhou; e o deserto não cessava, com vales estéreis, penedias alcantiladas, e um solo pedregoso, negro, gretado, que escaldava sob o sol de Agosto. Sentado por vezes contra uma rocha, Cristóvão cerrava os olhos sob a fadiga, o ardor da estiagem, e parecia-lhe ver grandes pedaços de pão, e frutos que caíam de maduros ao passar de um vento fresco. Estendia a mão, e só encontrava as pedras quentes. Retomava a marcha, e, marchando sempre, padecia fome.
Mas uma tarde que caminhava, já tão fraco que os seus pés tropeçavam a cada instante, encontrou-se de repente numa encosta, onde uma floresta sombria verdejava. Cristóvão mergulhou na espessura. Bem cedo sentiu um murmúrio de água. Mais longe, uma carvalheira estava carregada de bolota. Cristóvão ficou ali dois dias, consolando com lentidão a fome e a sede. Depois, quando emergiu da floresta, avistou diante de si uma região com árvores, um riacho que fugia, muros, e uma tranqüilidade habitada. Um fumo lento subia, a distância, para o claro céu. Cristóvão alongou para lá os passos. O fumo subia de um casebre queimado; ao lado havia barricas arrombadas; o cadáver de uma vaca, meio seco, desaparecia sob o zumbido das moscas; o pomar estava arrancado e devastado; e em redor todo o solo, a erva, estavam espezinhados, como por um tropel de cavaleiros em marcha.
Cristóvão seguiu, caminhando à beira do regato. Grandes prados verdejavam, cobertos de botões-de-ouro. As ramas dos salgueiros mergulhavam na água fugidia e clara. Os pássaros chalravam na frescura; E no meio desta paz, um moinho com a porta arrombada, e pendente dos gonzos, os grandes paus das velas partidos, as paredes chamuscadas do lume, jazia com a tristeza de um cadáver num prado de Primavera. Cristóvão dirigiu-se para o moinho. De uma árvore meio partida, que se erguia por trás, junto às escadas, pendia um velho enforcado, com uma pedra amarrada aos pés. Ao lado negrejavam os tições apagados de uma fogueira, e junto dela uma lança esquecida.
Cristóvão foi seguindo. Por todo o caminho havia as confusas pegadas de cavaleiros em marcha; todas as sebes estavam rotas; uma ponte rústica fora partida a machadadas; outros casebres apareciam devastados, nus, com o colmo queimado: - e nem uma criatura se via, entre aquelas ruínas.
Ao fim de um longo dia, porém, tendo-se sentado junto de um casebre em ruínas, sentiu um ruído entre as árvores: - e um homem apareceu em farrapos, lívido, escaveirado, e logo se sumiu entre a espessura das árvores. Para o deixar livre de medo, Cristóvão ergueu-se e foi mais adiante, onde havia uma colina com rochas. Um grande roble crescia à boca de uma caverna. E ao ruído dos seus passos, uma cabeça de velha apareceu à boca da caverna, e logo se sumiu assustada. Cristóvão pensava com dor por que se esconderiam esses homens. Por que seria aquela terra povoada por gente que se escondia nos bosques, nas tocas dos bichos, debaixo das penedias?... Por quê? Uma grande piedade já o ia tomando. Se ouvia um rugir de ramagens afastadas, gritava: Paz! Paz! para tranqüilizar aqueles corações aterrados, mas logo as ramagens se fechavam e tudo ficava mudo.
Ia caminhando. Bebia nos regatos, comia a bolota das árvores e as ervas dos prados. Um dia avistou uma aldeia e casebres de colmo juntos em torno de uma igreja, cuja torre estava em obras. Um caminho seguia entre filas de plátanos. Ao penetrar nele, uma mulher que, agachada com uma criança, procurava ervas, fugiu tão tontamente que deixou a criança no chão. Cristóvão apanhou a criança, tão magrinha que se palpavam os seus pobres ossinhos, sob a pele cheia de feridas: e nem chorava, com a mãozinha sobre a testa, onde as chagas eram maiores. Todo o coração de Cristóvão se enchia de dor. Lançou um grande brado pela mulher. Ninguém respondeu. Então, tomando a criança ao colo, seguiu sob os plátanos mas sentia, através das folhagens, alguém que o seguia. Pousou no chão a criança, afastou os passos. E voltando-se bruscamente, viu a mulher que saltava entre o tojo, arrebatava a criança e de novo sumia no mato.
Ao fim do caminho era a aldeia. As primeiras casas, junto de uma paliçada de estaca, estavam desertas, nuas por dentro, como saqueadas. Num uma rês de gado se via nos aidos. Nem uma foice pendia sobre a lareira. A uma porta, uma velha, mais magra que um esqueleto, olhava com os olhos fixos cavados no vago, e como deslumbrados de espanto. Um cadáver abandonado, que ninguém enterrara, tinha as mãos decepadas. Por vezes uma figura passava correndo, com os cabelos ao vento. Uma figura de mulher, de bruços, com os cabelos soltos, estava agarrada a um berço vazio.
Mas ao fim da aldeia, junto de um calvário, viu correr gente em magote. Um frade meio descalço, sem capuz, de olhos ardentes, erguia uma cruz, chamava a justiça de Deus. Como podiam os homens sofrer mais sobre a terra? Os senhores andavam em guerra, e daí vinha o mal dos pobres. Os barões corriam as suas terras, e tudo saqueavam. tudo roubavam para adestrar soldados, ter hostes brilhantes. Se outros, mais fortes, os faziam prisioneiros, de novo voltavam nos seus grandes corcéis, a saquear, roubar, tirar ao pobre a última acha, a última mão-cheia de favas, para reunir o preço do resgate. Se ficavam vencedores, eis que voltavam a saquear os restos, a arrancar a seara ainda mal madura, para celebrar festas, e erguer solares ricos. Depois, atrás passavam ainda as companhias de mercenários, que, nada encontrando, queimavam os muros, destruíam os arvoredos, e matavam as crianças nos berços. Quanto tempo mais consentiria o Senhor este mal que ia na terra? Por toda a parte ele andara, só vira a fome. As mulheres comiam os cadáveres dos filhos. Os homens em breve seriam como feras. E aí dos que se encontrassem no caminhos da turba esfaimada!
A sua mão tremia no ar cheia de ameaças. E em torno dele os moços lívidos apertavam os punhos, com olhares que procuram uma arma. Mas outros baixavam a cabeça. Que podia o pobre, só, na sua terra estéril? A justiça devia vir de Deus. Uma mulher gritou: “Ou antes do Demônio!...” Um murmúrio e terror passou entre a gente.
Cristóvão saiu da aldeia com o coração esmagado. Os seus olhos erguiam-se para o Céu. Ali, por trás do azul, estava o Senhor! Decerto ele via tantos sofrimentos, as guerras, as fomes, as pestes.
Por que não descia do seu trono de ouro? Uma carícia da sua mão direita daria aos pobres a abundância, os frutos, as tulhas cheias de pão; e os bandos negros dos senhores cruéis desapareceriam como nuvens que o Sol desfaz, ao mover sua mão esquerda... Por que não vinha o Senhor?
As terras que Cristóvão atravessava estavam desoladas, até que, penetrando numa região mais amável e fértil, com pradarias, aldeias, viu ao longe longos fumos esguios que se elevavam para o céu. Um grupo de soldados derrubava árvores. E bem depressa viu as barracas de um acampamento. Era uma companhia de tunos. As tendas estavam alinhadas sem ordem, ao acaso. todos procurando a maior proximidade do rio. E como era à hora do rancho, viam-se os soldados, de bruços, mergulharem nas águas as grossas panelas de ferro. Por toda a parte, sobre as fogueiras acesas, suspensos de varas de ferro ensarilhadas, ferviam os caldeirões: - e junto aos carros, onde vinham as barricas de vinho roubadas nos casais e nos mosteiros, os homens juntavam-se com os seus pichéis na mão. Dois carniceiros esfolavam um boi estirado no chão: - e o trabalho era feito num rumor incessante de pragas e cantos.
Todos os homens, de barbas incultas, grandes cicatrizes nos rostos, imundos, tinham um curto saio de malha de ferro: e como estavam num país vencido, sem receio de surpresas, os morriões e os broquéis pendiam à entrada das tendas rotas, umas de lona, outras de peles de carneiro; sobre um cômoro era a dos chefes, com bandeiras flutuando. Por todo o acampamento circulavam mulheres, que seguiam os soldados, umas roubadas nos assaltos das aldeias, outras que acompanhavam, por deboche, o bando dos homens; todas tinham o ar cansado dos grandes furores que suportavam. Aqui e além, um monge descalço, com uma adaga na corda do hábito, o olhar ardente, ia de tenda em tenda. Alguns homens jogavam os dados. Outros limpavam as armas. Os falcões gritavam sobre os seus poleiros, feitos de lanças.
Serenamente, na sua simplicidade, Cristóvão atravessou o acampamento.
Como os bandos cada dia recrutavam novos tunos, ou aprisionavam servos, ninguém estranhava a sua presença. “A quem pertences?” perguntavam-lhe. Ele atirava um gesto vago para as tendas. E julgando-o idiota, como todos os gigantes, deixavam-no ir, ou aproveitavam a sua força para mover os pipos, rachar lenhas, descarregar dos machos os grandes fardos amarrados com cordas. Tendo trabalhado, Cristóvão comeu e bebeu. A noite caiu: as estrelas luziram. Por toda a parte se acenderam fogos. Em torno deles os homens bebiam, jogavam os dados, ou escutavam um monge contando histórias do Diabo. Por vezes um grito de mulher espancada cortava o ar. As canções imundas abafavam o grito das sentinelas. E da colina, onde acampavam os chefes, vinha uma música doce de pífanos e atabales.
Cristóvão, no entanto, ia através das tendas. Se via um tuno ferido que punha pano nas chagas agachava-se para ajudar. Aos cavalos presos,que relinchavam voltando o focinho para água, ia buscar uma dorna cheia. E aliviava as mulheres dos fardos de lenha que os homens as obrigavam a acarretar. Mas aquela gente era má, queimava as aldeias, arrombava os sacrários, espancava duramente os animais, deixava as crianças morrendo à mingua nos silvados do caminho - e Cristóvão, alta noite, saiu do acampamento, pensando na sua simplicidade, que Jesus, seu amor, não o quereria entre aqueles corações duros.
Três dias e três noites caminhou, e penetrou por fim numa região de grande penúria. A terra seca, gretada, abandonada, nem produzia cardos. Toda a flor secara nas árvores. A cada instante, ossos de animais branquejavam nos caminhos. As gentes dos campos, que ele encontrava, não tinham mais que ossos sob os trapos que os cobriam, e os seus olhos brilhavam como os das feras. Por vezes, à beira de um riacho, viam-se mulheres, crianças maceradas, arrastando-se, devorando as raízes das árvores. Nas terras mais nuas, era a terra mesma que eles comiam às mãos cheias, entre lágrimas que lhes caíam nos dedos. Uma noite, passando junto de um cemitério, viu figuras sombrias, que, tendo desenterrado um morto, o talhavam em postas junto de uma fogueira. Depois foi um mendigo que lhe pediu para o proteger, porque a gente daqueles sítios atacavam os pobres mais fracos, para ter carne humana. Todo um dia Cristóvão caminhou com o mendigo às costas. E, batendo os dentes de horror, o mendigo contava de pais que comiam os filhos pequenos, de outros que atraíam os viajantes para os matar. Ao fim do dia, tendo posto o pobre coxo no chão para descansar, viu-o suspirar e morrer. De noite, por toda a parte luziam os olhos dos lobos, esfaimados também, correndo a roer os cadáveres. Negros bandos de abutres torneavam o ar.
E a dor de Cristóvão era tão grande que erguia os braços ao Céu, e gritava pelo Senhor. Ele decerto não escutava; À porta das ermidas, debalde o povo se apinhava, implorando misericórdia: os santos não desciam dos seus altares; as relíquias dos mártires pareciam ter perdido a força; e, desiludida do Céu, essa gente apedrejava os sacrários.
Quem salvaria os homens? E Cristóvão caminhava cheio de dor, por não os poder salvar. De que lhe servia a força dos seus grande braços, toda a vontade do seu coração!? Alargando os passos, atirando os olhos ao longe, ele só procurava um meio de servir aos homens – e mesmo por vezes lhe vinha a idéia de reunir alguns miseráveis, e dar-lhes a sua própria carne a comer.
Um dia que assim pensava, chegou a uma terra onde viu homens cavando o torrão, outros arando, outros semeando. Um troço de besteiros vigiava aqueles homens, que a fome emagrecera: - e um, monge, com um tinteiro metido no cinto de corda, lia um rol de nomes. Eram os abades dos mosteiros, os bispos em concílio, que assim arregimentavam os mais fortes das aldeias, e por uma ração de pão os obrigavam a trabalhar, para que as terras não ficassem incultas e não fosse maior o tormento da fome. As mulheres, os filhos, vinham com eles para partilhar da magra ração de pão. Cristóvão pediu uma enxada; e tendo admirado a força dos seus braços, o monge indicou-lhe um campo a limpar do pedregulho e do tojo. Com que paixão ele se lançou ao trabalho! Era como se já estivesse saciando todas as fomes futuras. O tojo arrancado fazia montes junto aos seus grossos pés nus: e ainda por vezes acudia a ajudar os mais fracos, que tropeçavam sob um carreto de pedras, ou, exaustos, deixavam fugir a enxada das mãos. Em torno as mulheres, sentadas, imóveis, com os filhos em redor, esperavam que os homens trouxessem ao fim da tarde a ração de pão, junta num cesto que os besteiros guardavam: mas a sua fome era tanta, que se precipitavam sobre os semeadores, quando, mergulhando a mão na sacola, atiravam, com um gesto lento, um punhado de grãos. Os besteiros tinham de correr, repelir as crianças que gritavam.
Os olhos de Cristóvão estavam cheios de lágrimas. Por vezes, cavando a terra, dizia baixo: “Oh terra, dá depressa o pão! Oh terra, tem piedade!” E então os seus golpes de enxada tornavam-se mais doces, quase tímidos, como se receasse magoar aquela que implorava. Quando se distribuía o pão, ele tomava apenas uma côdea, e fazia partes iguais que dava às escondidas às crianças. Todos os olhos das mães se voltavam para ele. Os homens murmuravam pensativamente: “Tu és o melhor...” De noite ele seguia o bando dos cavadores, que iam dormir em largos alpendres, à orla da floresta. Mas raros eram os que se atiravam para cima dos molhos de palha. Uma grande velha, descarnada e esguedelhada, cujos olhos rebrilhavam como brasas, vinha rondar em torno dos casebres apoiada a uma forte vassoura. Ao encarar a sua sombra negra passando no luar, os homens soltavam um suspiro, outros murmuravam: “É a sina!” As mulheres, à pressa, adormentavam as crianças, procuravam entre a palha vassouras, ou pequenas cabaças, ou um pedaço de véu branco. E todos, uns depois dos outros, em silêncio, desapareciam sob o arvoredo. Uma noite uma forte criatura, de olhos ardentes, disse a Cristóvão: “Vem”. E ele, na sua simplicidade, tomou o bordão e partiu. Por toda a floresta, por baixo de toda a folha, se sentia o roçar de gente que caminhava em silêncio. Por vezes um grito prolongado cortava o grande silêncio. E, mais rápidas, as formas perpassavam sob a folhagem que rumorejava. Assim, Cristóvão chegou a uma clareira, cercada de velhos e altos carvalhos, onde a Lua mal penetrava. Uma multidão já a atulhava, trazendo candeias, ou alguma tocha fumarenta que bailava entre os ramos. Uma vasta mesa de pedra alvejava no meio, e um raio de luar, caindo em cima, alumiava um alguidar de ferro, junto com uma tripeça, coberta por uma pele de chibo. Uma impaciência parecia agitar toda aquela negra turba, onde por vezes um olhar reluzia, como o de uma fera na espessura. Uma voz, ao longe, gania: “Voa, voa!” E, umas após outras, vozes lamentosas e dolentes murmuravam: “Voa!”
Então a grande velha descarnada avançou, escarranchada sobre a vassoura. Outra correu atrás dela, com os grossos cabelos ao vento; e outra ainda – até que uma longa cauda de mulheres esguedelhadas, com o peito nu, grande cendal branco voando ao vento, começou a girar em torno da mesa, lamentável com um mover de braços abertos semelhantes a um bater de asas cansadas. Deram assim uma volta lenta – até que, parando diante da tripeça vazia, a grande velha estacou, e erguendo os braços lançou uma invocação:
S. Marcos te amarque,
S. Manços te amanse,
A Graça te fique,
A Hóstia te pique!
Sempre que me vires
Em mim te remires,
E quanto me não vires
Contra mim suspires!
E soturnamente toda a turba gemeu, com a cadência de um martelo que cai na bigorna:
S. Marcos te amarque,
S. Manços te amanse!
Subitamente a grande fila de mulheres largou numa correria, onde os cabelos se misturavam, as saias meio rotas se espedaçavam, clamando, uivando. desesperadamente:
Sempre que me vires
Em mim te remires,
Quando me não vires
Contra mim suspires.
Cada vez mais rápida girava a grande ronda, com pulos enormes, que atiravam as fraldas brancas pela cabeça, misturavam as grenhas, faziam entrechocar no ar as vassouras e rocas. Já de entre a turba, que olhava em volta, partiam grandes brados. Aqui e além um braço erguia-se, sacudindo furiosamente uma tocha. Pulos furiosos mostravam uma saia esvoaçando no ar. Havia uivos de lobisomens. E entre as pernas de Cristóvão, aterrado, grandes figuras, como cães, fugiam com as mãos galopando na terra. Mas mais alta que todos os clamores, uma buzina de corno ressoou. Então houve um silêncio tão grande, que se sentia as folhas mover-se ao vento lento da noite.
De novo a grande velha estava diante da tripeça, agitando a sua grande vassoura. E, lentamente, baixo, numa súplica humilde, começou:
Eu te encanto e recanto
E ainda te sobrecanto,
E por um sino-saimão
Metido num coração,
E por fel d’excomungado,
E por bode pintado,
E pela asa do morcego,
E pelo seixo do rego
E pelo sangue do drago,
E por tudo o que te trago,
Vem!
Um imenso apelo ressoou: “Vem!” Todos os braços se erguiam desesperadamente para a tripeça vazia. E a velha, como possuída do delírio, bradava em apelos agudos que varavam o ar:
— Vem contra o Senhor! Vem contra o Bispo! Vem contra o Letrado! Vem contra o Rico!
E cada vez a turba clamava mais ansiosamente: “Vem! Vem!”
Uma grande restolhada cortou a espessura – e soprou sobre a mesa, escarranchado, apareceu um homem enorme, de longa barba preta, todo coberto de pêlo preto, que o assemelhava a um bode. Uma aclamação soou, um delírio arrebatou a todos. As mulheres pulavam, os homens sacudiam os barretes – enquanto a criatura negra, imóvel, dardejava em silêncio os seus olhos coruscantes. Depois, quando se fez de novo um silêncio, a criatura, estendendo o pé, gritou numa voz rouca:
— Adorai!
Todos lhe beijaram o pé, que desaparecia sob os felpos longos do p êlo.
Mas então um homem, envolto num grande lençol branco arranjado como uma dalmática de bispo, e com uma mitra negra na cabeça, veio caminhando a coxear para o altar, a ler um livro que segurava nas mãos. Cristóvão conhecia-o. Era o coxo que trabalhava ao lado dele, rosnando palavras ininteligíveis.
Tendo o posto o livro sobre o altar, o homem abriu os braços, e começou a celebração de um rito, que, com horror, parecia a Cristóvão, semelhante à missa de sua aldeia. Curvado sobre o livro, com a mãos postas, ele resmungava uma leitura; erguendo os braços, saudava a criatura felpuda; e quando, voltando-se para a turba, lançava uma benção, todos se curvavam, e risos bestiais estalavam com amargura. Imóvel, a criatura, com as mãos pousadas nos joelhos, recebia o culto, Um acólito, lindo como um pajem, misturava um líquido negro num vaso. E dos grandes carvalhos em redor caía uma sombra negra, que a Lua, aqui e ali, cortava de manchas lívidas.
Como na missa, uma campainha ressoou. O homem mitrado encheu o vaso, fez uma invocação, derramou um gota sobre os pés juntos da criatura negra, bebeu o resto – e tendo limpado os beiços à ponta de sua dalmática, subiu a uma tripeça, e ficou recolhido, como um pregador que vai lançar o seu texto. Um silêncio caiu, tão fundo, que se sentia o rumor das folhas. Um raio de Lua batia a face barbuda do coxo, que começou a pregar.
Erguendo os braços, perguntou onde se encontraria a felicidade para o pobre? A terra era para ele um lugar de desolação. E desde que nascia até que o levavam para a vala, ele não fazia mais que gemer na escravidão. Da alvorada à noite, trabalhava. E para quem ia todo o fruto do seu trabalho? Para o Senhor, para o Bispo, para o Intendente que vinha com os arqueiros. Para que o Senhor tivesse armas, ele não tinha lume, e tremia de frio. Para que o Bispo tivesse banquete, ele não tinha pão, e empalidecia de fome. Para que o Intendente vivesse em casas cobertas, ele vivia em tocas que as suas mãos cavavam na terra.
E era só necessidades que sofria? Não. Era espancado, arremessado para o fundo das prisões, morria ente os tormentos... Se a sua mulher era bela, vinham homens de armas que a levavam. Se a sua cabra dava bom leite, vinha o senescal do convento que a confiscava. Tinha que pagar para nascer, tinha de pagar para morrer. Nos homens, para ele, não havia piedade. E havia-a porventura no Céu? O Céu mandava as fomes, mandava as pestes. Quem salvaria o pobre?... Amo forte, que o protegesse, só lhe restava Aquele que vive debaixo da terra e que tem todos os poderes. Ele reunia os seus filhos, ali, onde eram livres e onde não chegava a lança do Senhor, nem o báculo do Abade. Ele ensinava os remédios que livram a peste. Ele fazia achar os tesouros. Ele fazia reflorir a terra. Ele dava do seu corpo o comer aos que têm fome, do seu sangue a beber aos que têm sede. Glória a ele nas trevas!
E a multidão gritava: “Glória a ele nas trevas!”
Então, saltando da tripeça, o coxo gritou:
— É a hora! Vinde comer e beber, amai a quem vos ame, e sede homens livres no fundo da noite livre!...
Subitamente, dois homens apareceram, trazendo um grande carneiro assado que, com facas, começaram a retalhar. Outros colocaram na mesa de pedra uma pipa de vinho. Com um clamor bestial, toda a turba se arremessou para o feiticeiro. A criatura negra bradava; “Comei do meu corpo, bebei do meu sangue!” Os pedaços sangrentos da rês desapareciam nas bocas vorazes. Em malgas de louça, em vasos de buxo, o vinho negro espumava. Alguns fugiam com sua ração para a devorar em silêncio. Outros lutavam entre si, como cães disputando um osso. As mulheres empinavam as malgas de vinho, que lhes escorria nos peitos. Havia outros que, na alegria do comer, dançavam, brandindo um osso esburgado. Sob a mesa, havia braços descarnados lutando pelos restos. Já uma embriaguez aquecia as almas. Gritos roucos partiam das bocas das mulheres. E de pé, o grande bruxo, intimava a Lua a que se escondesse, para que os homens fossem mais livres, no fundo da noite livre. Cristóvão, imóvel, olhava, encostado a um tronco, a cabeça escondida na ramagem ligeira. Por vezes, um pastor, agarrando uma das mulheres, arrebatava-a para a escuridão. Gemidos de pecado contente soavam na negra espessura. As feiticeiras rasgavam os últimos trapos, e nuas, hediondas, galopavam escarranchadas sobre as vassouras. A grande mulher trigueira arrebatou e enlaçou Cristóvão, com olhos que o devoravam, murmurando: “Vem!”
Ele suavemente empurrou a criatura – e só, triste, de uma tristeza infinita, começou a caminhar através do mato espesso. O seu coração sangrava. Aquela gente clamorosa não era amiga do Senhor. Perdidas estavam as suas almas. Mas por que sofriam eles tanto? O coxo dissera a verdade. Para o pobre só havia a miséria. O Senhor vinha com sua grande lança, depois o Bispo com o seu duro báculo. E quando nada restava ao pobre, uma mulher branca surgia, encostada a uma vara branca – que era a Peste. Pobres homens! Pobres criaturas! Por que não vinha o Senhor?
Assim pensando, caminhava Cristóvão. Todo o dia caminhou. Desde a véspera não tivera pão, nem água: - e ao fim do dia, sentado numa pedra à beira do caminho, ele pensava onde encontraria o pão dessa ceia. O sítio em torno era deserto e triste. Nenhum caminho conduzia a moradas humanas. Ao lado, estendia-se uma grande lagoa dourada. Altos canaviais erguiam as suas maçarocas negras. E a água parecia dourada, tocada do sol que descia. Um bando de patos bravos voava no alto. E o silêncio era triste e profundo.
Cristóvão ia seguir, marchar, quando o rumor de uma cavalgada ressoou ao longe, e uma comitiva apareceu, caminhando com lentidão. Dois besteiros a pé, marchavam na frente. Um servo trazia molhos de archotes, para a primeira escuridão da noite. E logo atrás caminhava uma vasta liteira, com cortinas de couro vermelho e topes de plumas aos cantos. Duas damas, ao lado, montavam mulas brancas. Em roda vinham cavaleiros com lanças. E as arcas das bagagens carregavam duas fortes mulas, emplumadas de vermelho.
Cristóvão, logo de pé, tirou humildemente o seu barrete. E vendo aquela forma enorme, esguedelhada, negra, na claridade da tarde, os dois arqueiros, estacando, retesavam o arco, uma das damas deu um grito. A liteira parara, e de entre as cortinas uma dama muito velha, envolta em peles, espreitou, pondo ante os olhos a mão, coberta com um guante de caça. Mas Cristóvão, humildemente, caíra de joelhos. Então a dama deu uma ordem: - e um escudeiro, rudemente, mandou aproximar o homem enorme. Ele veio por entre os cavaleiros, cujas altas lanças direitas, nas selas, não lhe chegavam aos ombros largos. E pelas cortinas da liteira, descerradas, a velha dama, outra mais nova e pálida, e uma criança loura como um anjo, olhavam com espanto. Cristóvão caiu de joelhos junto da liteira. E como lhe perguntassem a que terra senhorial pertencia, e porque andava só nos caminhos, Cristóvão, na sua simplicidade, só pode murmurar que vinha de além e tinha fome. A dama mais nova palpou a sua escarcela – e a criança gritou: “É o gigante que servia Roldão!” Em roda os cavaleiros riram com respeito. E subitamente o pequeno fidalgo, sentado sobre os joelhos da velha, pediu, com um lindo mimo, para ter ele também um gigante, que o seguisse, com uma clava. A velha sorria. E, sem hesitar, deu ordem aos cavaleiros para que trouxessem Cristóvão. Com um gesto foi mandado marchar ao lado das bagagens. E de novo os guizos dos machos tilintaram, e a comitiva seguia lentamente. O Sol descera. Os escudeiros acenderam os archotes. E a cada instante, de entre as cortinas da liteira, aparecia a cabeça loura da criança que espreitava, queria ver se vinha o seu gigante. E Cristóvão soube, pelos estribeiros, que aqueles eram os senhores do castelo de Riba Dona, que ficava para além das lagoas.
Bem depressa, no alto de uma colina, entre os grandes bosques que desciam para o vale, surgiram as altas torres. Na mais alta ardia uma chama, que se torcia ao vento. Longas buzinas soaram. E à entrada da ponte levadiça, apareceram tochas inumeráveis, que os escudeiros erguiam alto.
O intendente, o senescal, dois frades com hábito, outros cavaleiros esperavam no pátio. Nas janelas ogivais brilhavam claridades. E o sino da capela repicava alegremente. Um escudeiro, cuja barba branca caía sobre um corpete de couro branco, recebeu nos braços a criança loura, que as damas cortejavam, mergulhando nas suas longas saias de cauda, orladas de peles. Um tapete fora desenrolado sobre a vasta escadaria. Os cães latiam alegremente. E sob a grande porta, que sustentava um escudo de armas, uma camareira esperava, com um jarro de prata na mão, enquanto outras ao lado tinham uma bacia que rebrilhava, e uma branca toalha fina. A cauda enorme da velha que levava a criança pela mão, desapareceu sob o alto portão. Os estribeiros levavam os cavalos à rédea, outros recolhiam as lanças. E os cavaleiros, cujas esporas retiniam sobre os lajedos do pátio, contavam ao intendente e ao padre como a jornada fora boa, com a ajuda do Senhor, sem encontro de touros, nem de lobisomens.
Mas, no entanto, todos os criados cercaram Cristóvão, com espanto. Ele torcia o seu barrete nas mãos, humildemente. Os pajens riam da sua grenha hirsuta, da imensidade dos seus pés cheios de terra. Os mesmos cozinheiros tinham corrido, para o admirar. Os cães, assustados, latiam.
Mas um pajem veio correndo chamar Cristóvão à sala de armas: - e através de um corredor abobadado, por onde ele tinha de caminhar todo vergado, e de portas de carvalho que mal podia passar, levou-o a uma sala que era grande como a nave de uma igreja. Pelas paredes estavam encostados molhos de lanças. Das traves do teto pendiam bandeiras, e ao fundo, numa vasta chaminé, ardiam troncos de árvores, a que os cavaleiros, de pé, aqueciam as mãos. Uma cortina ergueu-se e as duas damas apareceram com a criança no meio delas, e seguidas dos pajens, que traziam tochas de cera.
O pequeno Senhor do castelo (porque seu pai morrera, havia dois anos, na guerra do rei da Ocitânia) tinha feito seis anos pelo Natal, e era tão delicado e louro, que pareceu a Cristóvão o Menino Jesus que havia no altar da capela. Mas, desde criança, fora educado para ser um cavaleiro forte: todas as manhãs lhe esfregavam os lábios com um pedaço de ouro bento, para que suas falas fossem honestas e brilhantes; a sua roupa era secada ao lume sobre o fio de uma grande espada, para que crescesse forte e amigo das armas; e trazia ao pescoço uma pedaço do Santo Lenho, para que o seu coração se enchesse de amor do Céu. O seu encanto fora sempre ouvir as histórias dos Paladinos. De noite sonhava com Roldão, e estendia os braços para empunhar a grande trompa que soara em Roncesvales. E desejava libertar damas presas em torres, domar dragões e ser servido por um gigante armado de uma clava.
E ali o tinha, o seu gigante, maior de que todos aqueles de que ouvira falar, nos serões de Inverno, aos trovadores de passavam esmolando, ou aos peregrinos que tinham visto as maravilhas da Terra Santa. Direito, a mãozinha assente na cinta, o olhar rebrilhante, estava diante de Cristóvão – que sorria, com a vasta face barbuda toda pendida e enternecida para ele. Então, erguendo o dedo para o alto, onde estava o ombro de Cristóvão, disse muito sério:
— Quero subir lá cima.
O seu aio ergueu-o nos braços, mas não chegava àquela altura. As damas riam; os cavaleiros também, metendo os dedos entre os fios das barbas. Então Cristóvão agarrou delicadamente na criança, e pousou-a no seu grande ombro. Lá no alto, a criança sorria, vendo todos embaixo, tão pequenos, junto dos joelhos do gigante. Espicaçou o ombro de Cristóvão, gritou: “Caminha!” E Cristóvão marchou, através da sala. Para passar, a criança afastava as bandeiras que pendiam. Os seus olhos, cheios de orgulho, reluziam como estrelas, mas a mãe inquieta erguia as mãos, chamava: “Ruperto! Ruperto!” – E o aio, todo erguido na ponta dos pés, estendia os braços para as alturas de Cristóvão, para receber Ruperto que se atirara de lá, rindo e sem medo.
Então a dama velha deu suas ordens ao senescal. Cristóvão foi levado às cozinhas – onde os pajens, os criados, correram para ver Cristóvão, sentado no chão, com uma bacia de barro nos joelhos, cheia de vinho, esfarelar dentro grandes broas, que um criadito lhe trazia, ajoujado.
Deitado, nessa noite, numa velha cavalariça abandonada, Cristóvão sentiu uma grande paz, e como um calor que o envolvia, vindo menos da palha fresca em que jazia do que do sentimento vago de que alguém o estimava, o queria, necessitava dele. Era aquela criança tão linda, tão nobre, com os seus longos cabelos de ouro. E toda a noite sonhou que uma criança assim, cujos cabelos louros caindo sobre a camisa branca o envolviam num brilho de ouro, vinha desde a ponta dos seus pés, caminhava ao comprido do seu corpo, como por uma estrada desigual que galga montes e vales: os seus pezinhos mal pousavam; e chegada junto da sua face, a criança parava, e debruçada sobre os seus grandes olhos, parecia contemplar dois lagos tranqüilos e claros como espelhos. Depois no mesmo silêncio, e caminhando sobre o seu corpo, recuava até a ponta dos seus pés, de onde se elevava para o ar, resvalando num raio oblíquo da Lua, que entrava por uma fenda.
Ao primeiro alvor da madrugada, antes que a buzina das sentinelas anunciasse o dia, Cristóvão, saindo por uma porta aberta, foi rondar em torno do castelo. Nunca ele vira construções tão magníficas. Uma longa muralha envolvia toda a colina. Os nenúfares cresciam na água dos fossos. E para além eram arvoredos, terras de cultura, por onde um rio, coberto àquela hora de névoa, serpeava por entre grandes choupos.
Desde tanto tempo havia paz naqueles feudos senhoriais, que a erva crescia nas fendas da ponte levadiça. A forca patibular, sob a clemência da damas que governavam, tinha as vigas apodrecidas e verdes de musgo. E sobre o torreão erguia-se uma lança, com um morrião espetado, e uma cabaça. significando que ali se dava hospitalidade a cavaleiros e peregrinos. As torres, de telhados agudos, eram inumeráveis, tendo todas bandeiras ou flâmulas, vermelhas e verdes, que esvoaçavam na brisa. Dragões, debruçados das ameias, vomitavam a água das chuvas. E em cada janela ogival, com brasões nas vidraças, havia um vaso escarlate, onde crescia uma açucena.
Dentro das muralhas, tudo era magnífico. Os lajedos dos pátios, polidos como os de uma igreja, eram cercados de uma bordadura de terra onde cresciam roseiras. O poço era encimado por um pombal que terminava por uma imagem de S. Marcos, onde as pombas vinham pousar, beijando-se sobre o seu grande livro aberto. Por trás da negra torre isolada, que servia de tesouro e de arquivo, havia um jardim em flor: e aos lados a um coberto para o jogo da bola, uma aléia para o jogo da lança.
E na tranqüilidade daquele solar de damas, alheias a coisas de guerra, respeitadas nas longas léguas dos arredores, as sentinelas, sobre as ameias, jogavam os dados, ou dormiam como frades repletos.
Cristóvão pasmava destas maravilhas, quando um pajem o chamou à presença de um intendente. Numa sala abobadada, sentado numa vasta cadeira de carvalho lavrado, diante de uma mesa coberta de rolos de pergaminhos, de in-fólios com armas estampadas, o intendente marcou a Cristóvão as suas obrigações, que consistiriam em acompanhar o Senhor sempre que ele saísse, a pé, ao lado do seu ginete, e armado de um clava. Depois um homem, um corcunda entrou, e trepando vivamente a uma cadeira mediu Cristóvão com um côvado de madeira, desde a cabeça aos pés, e saiu, recuando e saudando, com um molho de tesouras e de agulheiros tinindo à cinta.
Quando o fato que ele assim medira ficou pronto, Cristóvão recebeu ordem para talhar uma maça um tronco de árvore, e, vestido, acompanhar o Senhor, que ia visitar as suas florestas: e enquanto o esperava, na clara manhã de Agosto, Cristóvão não cessava de se mirar na água clara da cisterna, pasmado das bragas de pano às listas azuis e vermelhas, que lhe cobriam as pernas, e do gibão vermelho e azul, que lhe cobria o peito, tendo bordadas as armas da senhoria.
Bem depressa o Senhor apareceu montado num potro branco, com plumas brancas na gorra, sob a qual caíam os seus cabelos louros. Um aio, ao seu lado, levava o falcão no punho. E dois cavaleiros seguiam, de lança alta. Vendo Cristóvão, o menino gritou de alegria: e três vezes fez correr o potro, que se espantava, em torno de Cristóvão imóvel, com a sua maça no ombro. Depois, atravessando a ponte levadiça, correu pelo caminho largo, voltando-se na sela, airoso e vivo, para ver Cristóvão, que trotava com as suas vastas passadas, a longa guedelha ao vento. Pelas portas dos casebres, os vilões do castelo ajoelhavam à passagem do Senhor, que lhes atirava moedas de cobre, da sua escarcela; depois, em grupo, com os braços estendidos, ficavam a olhar o gigante que corria atrás.
Ao fim do passeio, tendo parado numa clareira onde se erguia uma torre, o menino não quis montar no potro, mas voltar ao castelo, cavalgando Cristóvão. Debalde o aio, com um joelho em terra, o potro pelas rédeas, lhe pediu para montar. Com o olhar vivo, ele disse só: “Mas quero!” E, suspirando, o velho aio ajudou-o a trepar até ao pescoço de Cristóvão, onde ele montou, com as suas esporas fixadas no peito de couro.
Então a sua alegria foi extrema. Era como se estivesse no alto de uma torre que caminhasse. Ora o fazia parar para apanhar as mais altas flores dos medronheiros, que atirava ao chão; ora queria espreitar os ninhos; ora, espicaçando o peito de Cristóvão, corria agarrado aos seus cabelos, como as rédeas de um ginete. E assim voltou ao castelo, onde a mãe e a avó, na grande varanda de pedra, apertavam as mãos, entre inquietas e agradadas, ao ver assim o menino cavalgar o gigante, como nos contos dos menestréis.
E desde esse dia a melhor alegria do menino foi cavalgar Cristóvão. Eram então grandes correrias em torno às muralhas, ou em volta dos fossos, por vezes mais longe, até a floresta, Cristóvão sempre trotando, o menino sempre rindo. E assim pouco a pouco o menino se afeiçoara a Cristóvão, como um cavalo que o compreendia, o fazia rir, com corcovos violentos, ou passos largos e ondulados, como os de um vasto dromedário. Cristóvão também, pouco a pouco, se dera de todo o coração à criança. Quando o sentia sobre os ombros, toda a sua face se alumiava. Por mais fortemente que lhes puxasse os cabelos, só sentia a carícia das suas mãos. Para o fazer rir, relinchava como um corcel de guerra; ou fingia medo, não queria avançar, e as esporas do menino rasgavam o couro do seu tabardo. Nos dias em que chovia e o menino não saía do castelo, todo o dia Cristóvão rondava tristemente pelos pátios, com a melancolia da sua ociosidade: e de noite não recolhia à sua estrebaria, com os olhos na janela onde luzia a luz que alumiava o menino.
Por vezes, porém, o menino queria que Cristóvão viesse assistir ao seu jantar: - e então dois pajens abriam mais largos os grandes reposteiros de tapeçaria para que Cristóvão penetrasse na vasta sala, onde o teto era pintado de azul, e salpicado de flores que brilhavam como recortadas em ouro. Imóvel a um canto, ele contemplava o menino, que se sentava ao lado da avó, numa cadeira de alto espaldar como a dela. Por trás, o seu aio tomava os pratos da mão do escudeiro. Sobre a mesa, coberta de linho fino, retiniam os copos de prata. Os bufetes vergavam ao peso das baixelas. Uma grande fogueira bailava na chaminé, onde estava representado o cerco de Antioquia: - e sobre os poleiros de ferro polido, os falcões afiavam o bico.
Mas, por vezes, o menino queria Cristóvão mais perto. Então a mãe, resignada, fazia um gesto seco: - e Cristóvão, muito humilde, assustado dos esplendores senhoriais, vinha, vergando os ombros, com o seu barrete na mão. O menino queria-o de joelhos, com as mãos no chão, e batia-lhe nas costas, estendia-lhe pedaços de carne, que ele comia com ruído para o divertir mais.
Outras vezes, à noite, um pajem vinha buscar Cristóvão às cozinhas, e entrava na grande sala, onde ardia uma fogueira na chaminé. Sentada na sua cadeira, a avó tinha um livro de horas aberto nos joelhos, com o menino ao lado. Defronte a mãe fazia tapeçaria. E um trovador, ao pé, sentado num escabelo, contava um longo romance de cavalaria e de amor. Era sempre um paladino de armas negras, uma dama encerrada nalguma alta torre, um gigante guardando a porta de um castelo encantado. O menino exclamava:
— Também eu tenho um gigante!
E fazia então erguer Cristóvão, que parecia monstruoso, com os grossos joelhos vivamente alumiados pela chama dos trocos ardendo, a cabeça quase perdida na sombra das altas vigas. O frade erguia as pálpebras dormentes; a dama ficava com a longa agulha suspensa sobre a tapeçaria; e todos, olhando Cristóvão, sentiam mais real e viva a longa história de fadas e cavaleiros. Depois os escudeiros serviam bolos secos, e as grandes canecas do hipocraz.
Assim os dias tranqüilos passavam no castelo tranqüilo. O vigia, invariavelmente, ao anunciar, com um longo toque de buzina, o nascer do Sol, içava no mastro da torre de menagem a grande bandeira de seda com as armas do Senhor. As janelas do castelo abriam-se; o sacristão varria a capela; o servo dos currais chegava, ajoujado com os seus cântaros de leite; e os pajens, cantando como pássaros que acordam, desciam correndo para o jogo de bola, ou para a liça coberta, onde o mestre de armas já experimentava as espadas, vergando as lâminas, ou examinava os ferros das lanças.
Se o tempo era claro, as damas e os meninos davam um passeio pelos altos terraços. O menino, por vezes, debruçando-se, gritava por Cristóvão, enquanto as damas respiravam o ar fresco, ou seguiam o vôo dos falcões novos, que os falcoeiros adestravam.
Ao meio dia dois trombeteiros anunciavam o jantar dos Senhores; ao portão do castelo iam-se juntando os pobres das terras senhoriais, pare receberem depois nos salões estendidos o resto dos pães, ou a carcaça das aves.
Às vezes, pela tarde, um repique de pandeiretas, de guizos, anunciava a chegada de uma companhia de menestréis e jograis: um deles, com o barrete na mão, pedia permissão para dar uma representação no pátio. As damas vinham ao balcão; todos os pajens corriam, o arquivista deitava a cabeça fora da janela da torre, os cozinheiros espreitavam de entre as reixas de feno: - e no pátio os jograis, atirando bolas, dançando na corda, erguendo pesos, ou representando farsas, levantavam grandes ah!, ah! lentos e maravilhados. Quando saíam, sempre algum deles chamava Cristóvão com um gesto discreto – e fora da ponte levadiça, persuadiam-no a vir com eles, na vida livre e alegre, a percorrer castelos, visitar as feiras, entrar nas cidades, ganhar dinheiro para a velhice. Ele recusava, com um mover lento da cabeça. E eles seguiam voltando-se ainda para o ver, calculando os ganhos que teriam com a exibição daquele gigante.
Outras vezes era uma comitiva de fidalgos que chegava em visita. O pátio estava todo sonoro com o relinchar dos corcéis. Os pajens corriam azafamados. Nas janelas batiam-se as alcatifas: - e nas cozinhas, o mestre, mais afogueado e vermelho que um pimentão, preparava grandes empadões, de onde sairiam pombas vivas. Nesses dias o menino tinha orgulho em mostrar o seu gigante: e diante dos cavaleiros pasmados, Cristóvão corria em torno com o menino a cavalo no ombro. E o capelão dos hóspedes tomava sempre as medidas de Cristóvão, para relatar nas histórias.
Outras vezes, já por noite escura, ressoava às portas do castelo um trombeta de guerra. E um cavaleiro entrava, silencioso, coberto de ferro, seguido por seu escudeiro. Uma camareira corria com o gomil de água perfumada para lhe derramar nas mãos; um pajem desembaraçava-o de sua lança; outro marchava adiante, com uma tocha de cera; - e o cavaleiro, com o seu elmo na mão, sacudindo os cabelos, lançava um nome sonoro de paladino, famoso já naquelas terras. Ou então era um peregrino, que os escudeiros levavam primeiro à cozinha, onde ele alargava o seu manto diante do lume, para o secar da umidade dos caminhos. Cristóvão segurava com respeito o seu bordão, de onde pendia uma cabaça. Em breve um capelão o conduzia às damas, a quem ele contava as suas jornadas, as maravilhas do Santo Sepulcro: - e Cristóvão esperava, para lhe beijar a orla da sua esclavina, que tocara no túmulo do Senhor.
Assim os anos passavam. O menino crescia – e agora começava a ser ensinado em tudo o que respeita às coisas da caça e às coisas da guerra. Todos os dias o monteador trazia cães, para completar a matilha do Senhor: e chegavam, às costas das mulas, caixas contendo armas tauxiadas, para o menino lhes aprender o manejo. Mas, por desejo da avó, que era dada às coisas do alegre saber, o menino passava longas horas com o capelão, que lhe ensinava a conhecer as letras, os números, a traçar o seu nome num pergaminho. Pouco a pouco, o menino perdera a sua curiosidade por Cristóvão. E já por vezes passava diante dele sem lhe sorrir, ou lhe acenar com a mão, já calçadas com o guantezinho de caça.
Mas Cristóvão não vivia ocioso. Os pajens davam-lhe as armas para limpar. O sacristão, velho e trôpego, pedia-lhe para varrer a capela – e mesmo era ele quem acendia os fornos da cozinha, ou lavava a baixela suja. Depois, um dia, a avó, lendo uma história em que um gigante guardava um tesouro, quis que Cristóvão guardasse a torre onde estavam os arquivos e as arcas de dinheiro. A torre, então, foi o seu cuidado: constantemente vigiava para a limpar dos musgos ou das ervas. Todas as manhãs e todas as tardes batia as reixas das janelas esguias, para que nenhum ferro estivesse frouxo ou dessoldado. Era ele que levava o jantar, a ceia, ao arquivista, sempre debruçado sobre os seus pergaminhos. E agora dormia à porta da torre, com a grande chave de ferro toda fechada na mão. Todavia o menino, às vezes, ainda queria ser seguido por Cristóvão. Eram esses os seus dias alegres. Como um cão meio abandonado, os seus olhos simples e bons imploravam uma carícia. Mas em breve, o menino, com um gesto, o despedia: agora só se interessava por armas, por falcões, por ginetes de guerra. E Cristóvão, suspirando, com o coração pesado, ia estirar-se junto da torre, com a sua grossa chave sobre os joelhos.
Depois, um dia, um parente chegou ao castelo, trazendo de presente ao menino um anão disforme, pouco mais alto que uma seta, com uma cabeça enorme de olhos maus, e um longa barbicha rala, que lhe fazia como o queixo de um bode. O menino teve então a paixão do seu anão. E nunca mais reparou em Cristóvão.
A dor de Cristóvão foi imensa. E o castelo tornou-se-lhe subitamente tão frio e deserto, como um cerro que as nortadas bate. Todo o dia seus olhos espreitavam os terraços onde o menino passeava, a porta por onde saía, a liça onde ele vinha jogar a seta. E quando ele aparecia, Cristóvão escondia-se por entre os ângulos das torres – não se querendo mostrar por sentir que não era desejado, ou pelo receio de ver que não era chamado com o riso alegre de outrora. E na sua simplicidade pensava: “Que lhe fiz eu? Por que me não quer?” Todas as noites sonhava com ele. Era sempre a mesma criança, com os cabelos louros sobre uma camisa muito branca, que caminhava sobre o seu corpo, mas, em lugar de vir espreitar a sua face, só vinha para lhe enterrar a ponta da sua seta, no sítio onde sentia bater o coração, com um jeito que era seco e cruel.
Sentado à porta da torre, pensando naquela ingratidão, soltava grandes suspiros: e o arquivista debruçava a cabeça calva pelo postigo, aos ruídos daquela dor. Para ao menos estar misturado às coisas do menino, era ele quem limpava o seu potro favorito: mesmo por vezes lhe beijava o focinho; e a sela em que o menino montava, as rédeas cobertas de veludo, os seus estribos de prata, eram como coisas sagradas, em que tocava com devoção.
Por esse tempo, uma manhã, houve um grande rumor no castelo. O menino estava doente. Bem depressa dois pajens partiram galopando – e não tardou a chegar, montado na sua mula, o Físico, com a sua caixa de drogas. Foram então dias de inquietação. A capela estava todo o dia acesa, e as aias rezando. De um convento vizinho vieram as relíquias de S. Teódulo. Os pajens, sem jogar, sem lutar, cochichavam com medo pelos cantos: - e outros iam procurar pelos caminhos peregrinos, ou mercadores ambulantes, que trouxessem de longe alguma receita nova e ignorada. Cristóvão não dormia. Toda a noite, os seus olhos estavam cravados na janela dos aposentos do menino. Interrogava, tremendo, as camareiras. Ia pelos casais de colmo, dos servos, perguntando por ervas. Foi muito longe consultar um pastor feiticeiro. E para que nenhum rumor inquietasse o menino, ia de noite, com uma grande vara, bater a água dos fossos, para fazer calar as rãs.
Um dia, porém, o menino apareceu no terraço do castelo, apoiado às duas senhoras, pálido ainda, sorrindo ao sol de Inverno. Todos os criados, os servos, correram, saudando-o de longe com os barretes. A sineta da capela repicava alegremente. E Cristóvão, com as mãos postas, esperava ansiosamente que os olhos do menino se pousassem nele. O menino acercou-se da beira do terraço – e os seus olhos, ainda vagos e tristes, pareceram nem reparar no seu gigante. Cristóvão foi recolher à sua torre, com duas grossas lágrimas rolando-lhe por entre as barbas.
O castelo perdeu então para ele todo o seu encanto: - e como que sufocado entre os seus altos muros, voltava os seus pensamentos para os campos e para as moradas dos servos, entre quem nascera. Como a paz era tão grande, nenhum dos serviços de guarda era feito com exatidão: as sentinelas dormiam nos torreões, como frades no locutório; os porteiros deixavam os molhos de chaves pendentes das argolas de ferro; e a torre dos arquivos não precisava ser guardada. Logo pois que a varria, Cristóvão, tomando o bordão, ia pelas terras do feudo, pelos casebres dos colonos e servos.
Todos o conheciam. Havia sempre para ele um pichel de vinho:- e Cristóvão brincava com as crianças ou ajudava a tosquiar os anhos. Pouco a pouco, tornou-se o serviçal de todos, e, como outrora na sua aldeia, era ele que acarretava os fardos, rachava a lenha, compunha os telhados, lavrava os chãos mais duros. Mesmo por vezes ia pastorear os rebanhos, ou guardava os moinhos. À noite ficava entre aquela pobre gente, sem pena do bom calor das cozinhas do castelo, do pão fresco, e da sua larga porção de carne salgada. Reunidos à lareira, num dos casebres, eles passavam o fim da tarde já escuro, olhando o lume, onde as raparigas assavam castanhas na cinza. E Cristóvão, no meio deles, escutava o seu falar lento e grave. Os mais velhos contavam histórias do velho conde, homem cruel, que nos campos impelia o seu corcel contra os lavradores, ou talava os vergéis. Diz-se que tinha pacto com o Demônio:- e muitos o tinham visto caçar de noite, à luz de tochas, guiado por um caçador todo escarlate , que tocava uma trompa de onde saíam chispas de lume. Outros tempos mais doces tinham vindo com o outro conde, o que morrera nas guerras, e com as damas, tão clementes, que as forcas patibulares estavam apodrecendo. Mas quanto lhes pesava ainda aquele alto castelo, de brasões e de flâmulas! Que dura era ainda a vida, sempre sujeita, toda de duro trabalho! E cada um contava a sua miséria, o labutar incessante, o pão escasso, os filhos rotos pelos grandes frios, a fome por vezes vindo com os seus dentes de loba... As vozes iam-se tornando mais tristes. O vento entrava pelas frestas dos casais. As mães, com um suspiro, embalavam os berços, onde dormiam inocentes, votados à mesma servidão e à mesma miséria. Cristóvão sentiu o seu coração doer, com uma compaixão infinita.
Às vezes um frade mendicante batia ao portão, e entrando, deitando as bênçãos, arrumando a um canto o seu alforje, ia aquecer às lareiras os pés doridos dos caminhos, lacerados pelas urzes, e o hábito de burel que fumegava. Filho de vilões, tendo nascido nas lavouras, conhecia as misérias da servidão: e, frade pobre, sofria da opressão, do orgulho dos prelados ricos, com castelos e terços armados. Então sentado na melhor tripeça, com o seu rosário caído entre os joelhos, ele falava também da miséria dos tempos. Certamente Nosso Senhor, cansado de tanta maldade dos grandes, não tardaria a voltar à terra, distribuir melhor o pão, reformar as ordens, abater o orgulho dos rico-homens. E quem sabe? Incompreensíveis são os caminhos da providência! Talvez, para castigar os castelos, Deus revoltasse as cabanas. Um chuço fura melhor a armadura, quando é a mão de S. Miguel Arcanjo que o impele. Talvez na Terra se repetisse em breve a batalha do Arcanjo e do Demônio. Já um fogo andara no céu, para o lado do oriente. E sobre o mar tinham-se visto, erguidas e entrechocando-se, uma foice e uma lança. E então, baixando a voz, contava como nos condados que atravessava, os homens se juntavam de noite numa floresta e tramavam o fim da servidão.
Cristóvão recolhia ao castelo pensativo. E todas aquelas torres, aquelas muralhas lhe pareciam de um aspecto cruel e hostil ao pobre. Por que não haveria para todos a mesma lareira, o mesmo pão? Aqueles tesouros, que ele guardava na torre, seriam a abundância para criancinhas sobre toda a terra. Para que eram tantas armas? Os homens não se deviam combater, mas somente abraçar, em concórdia.
Um dia que ele assim pensava, sentado à beira dos fossos, um velho veio a passar, um dos servos do castelo, picando o seu burro carregado de erva. Parecia ter pressa, e no seu olhar havia como uma inquietação. Ao ver Cristóvão, parou dizendo: “Novas más, novas más!” E como Cristóvão arregalava os olhos simples, o servo contou que no mercado, de onde viera, corria entre a gente que um bando de servos se levantara, num domínio, além, para trás das colinas, tendo por brado: “Morte aos castelos!” Outros servos se tinham juntado, com chuços. Toda a terra parecia em revolta. E já dois castelos tinham sido atacados, as damas mortas, as crianças mortas, e agora as duas torres ardiam sobre a colina. E, sem outra palavra, picou o seu burro carregado de erva. Mas imediatamente Cristóvão se ergueu e o começou a seguir. Quando chegou, atrás dele, à aldeia, já havia grupos no adro, já se falava baixo à porta dos casais. A nova viera no vento, e a todos espantava. Nas faces dos homens moços havia como uma emoção, uma dúvida, se não seria o dever de todos os homens tomar as foices, as enxadas, fazer armas com o ferro dos arados, ir juntar-se aos irmãos de servidão, vingar os pobres. Os velhos abanavam a cabeça, numa grande prudência. De que serviria? Sempre os barões venceriam, descendo dos seus grandes corcéis. E as mulheres, inquietas, lembravam a bondade das donas do castelo, as suas esmolas, os pedaços de anho que pelo Natal mandavam a todas os casais. Que seria se o bando viesse atacar o castelo? Não havia soldados para o defender, nem armas. Pobres senhoras, tão sós e fracas. Pobre condezinho, tão fraco e só!
Cristóvão escutara em silêncio. E em silêncio, também, recolheu ao castelo. Toda essa tarde rondou as muralhas, como para lhes estudar a solidez e a resistência. Depois, com os seus punhos fortes, palpou as portas. E como nesse momento o intendente passava, seguido do seu grande cão, perguntou:
— Que fazes, Cristóvão?
Ele respondeu:
— Anda gente má pelos campos: é necessário levantar a ponte.
O intendente sorriu, encolheu os ombros – e nessa noite fez rir as damas, contando os terrores do gigante. Cristóvão, porém, não dormia. No alto da torre da almenara, toda a noite espreitou as terras em redor. Ao longe, sobre uma colina, havia como fogos de um acampamento, mas nenhum rumor se ouvia, senão o cantar dos sapos na planície. Quando a alvorada veio, Cristóvão desceu: - e indo às abegoarias, escolheu duas trancas enormes de ferro, que serviam para trancar as portas, agora desusadas. Depois a sineta tocou à missa no ar fino. O arquivista veio sentar-se entre os in-fólios, e as damas distribuíam o trabalho às fiandeiras e às servas. E todo o castelo repousava na santa paz do domingo – quando um pajem, que nas ameias fazia uma armadilha aos pássaros, soltou um grito que acordou os arqueiros, adormecidos na sua guarita de pedra. Logo um som de buzina, um grande apelo de alarme ressoou. Todos os pajens correram às ameias. As damas apareceram por trás das vidraças do balcão. E os cozinheiros saíam aos pátios, com as suas caçarolas na mão.
Bem depressa correu o grito que um bando armado avançava sobre o castelo. Os pajens correram, em confusão, à sala de armas, a tomar espadas, lanças. Os guardas trancavam as portas, desesperadamente. E o intendente, com os cabelos ao vento, gritava que se aquecesse o pez, o alcatrão, para despejar sobre o bando se ele quisesse escalar as muralhas, Mas ninguém escutava, na desordem. A longa paz desabituara os habitantes do castelo da disciplina, da prontidão. Não havia um cavaleiro para comandar. E as mulheres, correndo para a capela, e chorando, amoleciam os corações.
Subitamente um grande alarido ressoou sob os muros. Cristóvão subiu às ameias: - viu um bando imenso e homens, servos em farrapos, brandindo foices, chuços, tochas, amontoando-se na ponte levadiça, que ninguém se lembrara de erguer, enquanto outros em redor, a grandes machadadas, abatiam as forcas patibulares e o banco de pedra a justiça, que o musgo cobria, sob o olmo senhorial. Já golpes de machado ressoavam contra a porta, fazendo saltar faíscas. Um tronco enorme, que mãos inumeráveis sustentavam, foi trazido, arremessado, como um aríete, contra a porta, em que ele marrava como um carneiro. De cima, os arqueiros despediam flechas com mão mal segura. Cada grito de ferido mais excitava a turba, as machadadas redobravam – e a velha porta bem depressa foi aberta em lascas. Então os arqueiros, os pajens, desceram para se refugiar na torre – e Cristóvão, tomando nas mãos as trancas de ferro, correu para o torre senhorial. Dentro, na grande sala abobadada, estavam as damas pálidas, uma junto da outra, com o condezinho entre elas, quase escondido nos seus vestidos. O velho senescal rezava de joelhos. E, em torno, amontoavam-se os in-fólios, os arquivos da casa, as grandes árvores genealógicas, tudo o que fazia o orgulho daquela família. Era como uma cidadela do feudalismo, onde tudo se achava resumido, a esperança de uma casa, os seus títulos, os seus tesouros, todo o seu orgulho. E tudo aquilo era ameaçado por uma plebe revolta!
Cristóvão fora humildemente postar-se ao funda da sala abobadada. E tão grande era o seu terror, tão arraigado o desdém pelos servos que não era nele que os Senhores pensavam, nem no poderoso socorro de sua força indomável, mas nas espadas dos pajens, a quem elas gritavam que defendessem a porta.
Através dos pátios, no entanto, já os gritos dos feridos ressoavam por entre o clamor da turba de Jacques, que vinha como uma onda que arrebentou os diques. E mal a porta da torre fora fechada, que sobre ela caíram enormes machadadas, entre uivos de furor, o ruído dos vidros que se partiam, os gritos dos servos assassinados. Dentro ninguém falava, todos com olhos cravados naquela porta atacada – velhas pranchas de carvalho e ferrugentas chapas de ferro, que eram a única defesa contra a morte. Os pajens, mas pálidos que a cera, amolecidos pelos anos de paz, sem educação guerreira, faziam diante das mulheres uma sebe de espadas – espadas cujas pontas tremiam. O capelão rezava de bruços. E o arquivista estendia os braços por cima dos seus in-fólios, como para os proteger, com os olhos cravados na porta, e estremecendo a cada machadada. Só a avó parecia serena, sustentada pelo seu orgulho, com o peito direito, preparado para a morte, enquanto a nora sucumbia agarrada ao filho, banhando-o de lágrimas. E pela escada de caracol, que subia ao pavimento superior, apinhava-se a criadagem, as aias – algumas ainda com a sua roca na mão.
Sob os golpes desesperados a porta cedia! Pelas fendas da muralha entrava o fumo das fogueiras, que os Jacques acendiam no pátio para pegar o fogo ao castelo, com os móveis que arrastavam das salas, cadeiras brasonadas, arcas cheias de estofos. Já ninguém contava com a vida. Duas aias velhas, de rosário na mão, pediam a absolvição, ao padre, que as não escutava, de joelhos, batendo os queixos, entre os gritos de misereres.
De repente a porta cedeu, tombou sob os seus grandes gonzos estalados – e pontas de chuços, de foices, faces lívidas, braços descarnados. irromperam numa fúria de matança. As damas tinham fugido. Já um grande velho, em farrapos, pulava por sobre a porta, com uma foice em cada mão – quando, do fundo da abóbada, Cristóvão surgiu, enorme, com a face ardente, uma barra de ferro em cada mão.
Foi como uma aparição – e a turba furiosa recuou com terror. Era como se surgisse ante ela, visível, real, esse gigante monstruoso, guardador de torres, de que eles tinham ouvido falar, pálidos de espanto, nas histórias contadas à lareira. E nesse momento de espanto, Cristóvão, com um grande brado, carregou sobre a turba, que recuou em tropel, recolhendo os chuços e as foices. Baixando a cabeça, Cristóvão rompeu da porta como uma grande torre, e no grande ar do pátio a sua figura escura, coberta de uma pele de lobo, com duas chamas brilhando sob a hirsuta sebe das sobrancelhas, pareceu saída do Inferno, e como cheia de força invencível. Os seus brados faziam tremer os muros: - e as duas barras de ferro furiosamente cortavam o ar, silvando. A cada um dos seus largos passos, a turba recuava, com um rouco murmúrio de terror. Alguns tinham fugido por entre as fogueiras, onde ardiam os grandes móveis de carvalho lavrado. As mulheres do bando gritavam que era o Demônio: - e um ou outro chuço que se erguia, voava em lascas sob os golpes da barra de ferro.
Para trás, para trás, sempre para trás, ia a turba, reatravessando os pátios, tropeçando nos servos que matara, caindo por sobre os lumes que acendera. Já estavam contra a muralha. Já as costas se voltavam para fugir. Então, com um último urro, que atroou toda a colina. carregou sobre a turba – que, num súbito pavor, varou a porta aberta, galgou a ponte levadiça. desceu de roldão a colina, até parar no vale, onde os carros esperavam. E Cristóvão, passando também a ponte, ficou no meio da colina imóvel, grande como uma torre, apoiado à sua barra de ferro e limpando o suor. Mas então, de entre a multidão que embaixo se agitava, um velho avançou, sem armas, com um ramo de oliveira na mão – e caminhou para Cristóvão. A meio da colina parou, e erguendo os braços perguntou a Cristóvão, porque os atacava ele, servo, que decerto sofria da servidão, a eles, servos também, que no fim de tantos tempos de sofrimento, só queriam partilhar de algumas doçuras da terra? Não era só pelo mal de destruir que eles atacavam os castelos. É que ali, entre as suas muralhas, estava a gente orgulhosa que os escravizava, causava a fome dos seus filhos, o frio das suas moradas, as fadigas sem nome – e eles vinham simplesmente matar o mal da terra. Ele, velho, que lhe falava, trabalhara cinqüenta anos a gleba, tivera o corpo vincado pelos azorragues, vira a sua choupana queimada pelo Senhor: em torno dele, longos tempos seus filhos tinham gritado de fome, tremendo de frio – e, escorraçado, esmagado, pisado, espremido pela força com um trapo vil, tomara uma faca, e partira a fazer justiça no mundo. De todos os seus, só lhe restava um neto, um neto pequenino, de seis anos, inocente e simples como um anho. E porque ele tirara uma maçã das macieiras do pomar do castelo, onde era servo, o Senhor fizera-o dependurar pelas mãos de uma árvore, acirrara contra ele os cães, e toda uma noite de inverno o deixara nuzinho sob a neve. Quando o despregaram da árvore estava moribundo. E a voz do velho tremia. Cristóvão deixara cair a barra de ferro, e com as mãos vazias e vagas, e abertas no ar, a cabeça caída, parecia pensar, no fundo da sua simplicidade. E o velho, avançando, perguntava-lhe por que não viria com eles abater os monstros que matam crianças nos seus negros castelos, acabar com os amos cruéis, para que sob o céu, um momento, os humildes respirem e limpem as lágrimas. E o velho limpava as suas lágrimas, com as suas pobres mãos que tremiam. Então, lentamente, Cristóvão apanhou a sua barra. Pouco a pouco desceu a colina. E o velho adiante gritava agitando o ramo, tropeçando nos pedregulhos.
— Este é o grande gigante que nos vem libertar!
Os Jacques mal compreendiam. Alguns, vendo descer Cristóvão, fugiam saltando os valados. Outros, furiosos, enristavam os chuços. Mas Cristóvão, brandindo a barra, gritou:
— Vinde!
E num impulso irresistível, todo o bando o seguiu numa aclamação – enquanto das muralhas do castelo o intendente, entre os homens de armas, de pé nas ameias, estendia o braço, mostrando Cristóvão, que se bandeava com os Jacques, e partia através das campinas.
Todas as manhãs marchavam através de terras, duramente. Era o velho que os guiava – e Cristóvão, em silêncio, caminhava ao seu lado, com a sua barra de ferro ao ombro. Atrás era a longa fila dos maltrapilhos em farrapos, com velhas cotas de armas, cuja malha se desfazia, morriões amolgados, onde alguns tinham espetado plumas, as pernas nuas, as mãos erguendo foices, chuços, fueiros. As mulheres vinham depois, umas com filhos magros pendurados das saias, outras trazendo os mais pequeninos ao colo, e as mais velhas vergando sob fardos, onde se tinha reunido o que restava nas arcas, algum escasso alqueire de pão, uma almotolia de azeite, um pedaço de carne salgada; e atrás ainda era outra fila de homens, velhos, pastores com o seu cajado e o seu molosso, ceifeiros erguendo ao alto a foice, servos fugidos, mendigos, longas filas de miseráveis que de esfomeados não podiam marchar depressa, e deixavam uma longa nuvem de poeira, que ficava suspensa no ar.
Pelo começo da tarde, guiados pelo velho, acharam-se subitamente, depois de terem costeado um pinheiral, diante de um castelo que duas torres flanqueavam: e nesse momento, vinha saindo da ponte levadiça, a cavalo, um Senhor de longas brabas brancas, sem armas; ao seu lado, montada numa hacanéia branca, uma aia sustentava no colo uma menina, e atrás seguiam quatro escudeiros armados de lanças. Ao ver subitamente aquela turba que avançava, o Senhor estacou, um dos escudeiros tocou desesperadamente a buzina, enquanto outros toques respondiam sobre as ameias. E, voltando a égua, a aia galopou para dentro do castelo. Já as muralhas se cobriam de soldados. Mas o Senhor, desarmado, fixara, sem se mover, os seus olhos de águia sobre a turba imensa de maltrapilhos, que numa fila, sobre o caminho tortuoso, soltava grandes gritos de ataque, brandindo os ferros. Então Cristóvão, com um grande gesto de sua barra de ferro deteve a turba que parou. E, arrojando a barra, avançou só com os braços abertos para o Senhor, imóvel no seu grande corcel. Toda a muralha em cima estava coberta de arqueiros, de homens de armas. Todo o caminho embaixo estava negro da multidão dos maltrapilhos. E na ponte levadiça, o cavaleiro e o gigante ficaram sós, face a face.
Então, arrancando uma grande voz do peito, Cristóvão gritou:
— Vimos em paz. Trazemos as mulheres e as crianças. Nada temos contra ti... Mas todos os que me seguem têm fome. Detrás das tuas muralhas, há tesouros, arcas cheias de pão, grandes peças de carne diante da lareira... Estes, que vêm comigo, não têm uma moeda de cobre, trabalham toda a vida, sofrem da fome, vêem as criancinhas devorar as raízes, morrem pelos cantos dos bosques como um lobo, e a vida toda para eles é um tormento... Dá uma esmola da tua abundância a toda essa pobreza que passa. Se queres, vem, não receies, passa através dessa multidão, olha para esses corpos magros, vê as criancinhas chorando com fome, as velhas tropeçando sob os fardos, toda uma miséria que já não pode sofrer mais... Tem piedade!
E tendo assim falado, Cristóvão recaiu na sua simplicidade, ficou mudo, estúpido, com os seus grandes olhos de boi de trabalho pregados nos castelo. Devagar, o Senhor voltou as rédeas, e a passo, com a cabeça baixa e pensativa, sumiu-se sob a porta do castelo. Mas as portas não se fecharam – e dentro em pouco, um servo saiu arrastando uma vaca; outros trouxeram carneiros; outros fortes gigos com pão, sacos de fava; outros uma arca, que vinha cheia de dinheiro; e tendo juntado tudo num monte diante da ponte levadiça, uma dos servos gritou, retirando:
— Este é o dom do meu Senhor aos pobres que passam!
E a ponte levadiça subiu com um forte ranger de correntes de ferro.
Comandada pelo velho, sem desordem, os Jacques carregaram às costas, nos carros, o dom do Senhor, e de novo se meteram ao caminho, levando na frente Cristóvão, que parecia mudo e como espantado, com sua grande barra de ferro.
Um regato corria, na falda da colina. E aí ficaram os Jacques, para passar a noite. Em breve se acenderam fogos. O velho pôs sentinelas em todos os cantos. E nessa noite as crianças não choraram com fome, e houve uma gratidão no coração dos homens. Cristóvão não quis mais que um pedaço de pão. Bebeu da água pura do regato – e toda a noite, sentado numa pedra, enquanto estirados no chão, sob as árvores, os Jacques dormiam, ele olhou as estrelas, e pensou em Jesus, que estava por trás, e àquela claridade das suas lâmpadas, o via talvez entre esses desgraçados, como um pai entre os seus filhos.
De madrugada, os Jacques levantaram o campo, e guiados sempre pelo velho e pelo frade, partiram ao longo do regato, até que chegando aos primeiros carvalhos de um grande bosque, sentiram um cheiro nauseabundo, e viram um homem, um servo, enforcado num ramo de árvore, e já meio roído pelos corvos. Uma indignação correu entre os Jacques, quando alguns que se tinham adiantado descobriram outros corpos pendentes das árvores. Ao rumor da turba, os corvos fugiam de entre as ramagens: e sob os pés dos mortos, suspenso no alto, o chão estava todo espezinhado das patas dos lobos. Lá em cima, numa colina, negras na luz clara, apareciam as torres de um castelo. E aquilo era decerto a justiça do Senhor!
Então um clamor de cólera correu entre os Jacques. Uns queriam lançar fogo à floresta, para envolver o castelo. Outros falavam em abater as árvores, para fazer aríetes com que bater as muralhas. E Cristóvão, impelido pela multidão, que atrás dele brandia as foices e os chuços, começou a subir um caminho que levava ao castelo, entre as rochas que o musgo cobria.
Avistaram, por fim, ladeando uma torre de menagem, altas muralhas negras e sombrias, com grandes manchas brancas de pedra nova, que eram como cicatrizes de assédios. A ponte levadiça estava fechada, o gradil de ferro descido. E uma estacada de vigas cercava o fosso, de água esverdeada. Nem um rumor saía das muralhas. Tudo parecia abandonado. De um dos lados, grandes rochas rolavam em desordem, para um precipício. Uma águia voava nas alturas.
Uma inquietação deteve os Jacques ante aquele silêncio sinistro. Alguns, pensando o castelo abandonado, gritavam que se seguisse. Outros falavam de o escalar. E Cristóvão, ao acaso, caminhou para a ponte levadiça. Mas, subitamente, as correntes rangeram, a ponte abateu, e das portas que se escancararam, um troço de cavaleiros saiu, de viseira baixa, a lança em riste, num grande galope e estridor de armaduras. Os Jacques recuaram em massa. Cristóvão estava só no planalto.
À frente dos cavaleiros, um, de grandes plumas brancas no elmo, a lança enristada, correu sobre ele. Cristóvão já não tinha a sua barra de ferro.
Mas correu a um pinheiro, agarrou-o às mãos ambas, arrancou-o da terra, e tomando-o como uma monstruosa vassoura, atirou-o num gesto de servo que varre, contra o cavaleiro e o cavalo, que rolaram, com um estampido de armas, embrulhados na rama densa. Num pulo Cristóvão empolgou o cavaleiro, e segurando-o entre os joelhos como uma criança débil, partiu-lhe as fivelas do elmo, descobriu uma cabeça lívida, uma espessa barba ruiva. Depois, erguendo-o ao ar como um broquel contra os outros cavaleiros, que tinham estacado num espanto mudo, gritou desesperadamente: “resgate, resgate!” Os Jacques cercavam Cristóvão, querendo despedaçar o Senhor prisioneiro. E ele erguia mais alto o miserável, que nem se movia, seguro nas mãos de ferro, e gritava: “Resgate, resgate!”
Os outros cavaleiros, num furor súbito, correram sobre ele. Mas Cristóvão, saltando para a beira do precipício, debruçou sobre ele o prisioneiro, como se fosse despenhar na corrente e nas penedias, gritando sempre: “Resgate!” Então os cavaleiros pararam, e rapidamente consultaram-se, com grandes gestos dos seus guantes de ferro até que um, avançando, bradou: “Está resgatado!”
O velho avançou também, e expôs o resgate. Queria dinheiro, vinte sacos de pão, vacas, vinho, para sustentar a sua gente, um juramento sobre a cruz que não seriam perseguidos, e dois carros para levar os mantimentos. O cavaleiro estendeu a mão sobre a cruz do frade, e jurou.
Então os Jacques, abaixando as armas, esperaram – enquanto Cristóvão, sentado na rocha, tinha o cavaleiro atravessado sobre os joelhos, com a mão direita agarrando-lhe as pernas, com a esquerda a garganta. Pouco a pouco os servos saíram da castelo trazendo o resgate – e os Jacques desceram o caminho, rodeando os animais e os dois carros com os sacos, o ouro e os odres de vinho; Cristóvão ficara só com o cavaleiro. Quando o último homem desapareceu para além da colina, ele pousou o cavaleiro no chão com cuidado, e murmurou simplesmente: “Vai”.
E, sem se voltar, passo a passo, foi-se juntar aos Jacques.
Então começou, de castelo em castelo, através das províncias, a marcha dos Jacques. Das aldeias por onde eles passavam corriam a juntar-se-lhes miseráveis, servos revoltados, mendigos. Agora era uma multidão imensa que enchia os caminhos. Mas não havia neles nem violência, nem cólera. Iam mostrando, através das baronias ricas, a sua miséria de servos, e sem violência pediam esmolas. Cristóvão era como um grande pai, que mendigava junto com os seus filhos, pelos caminhos. Ao chegar diante dos castelos, mostravam os seus andrajos, as faces maceradas, as cicatrizes da servidão, e gritavam por pão. As portas abriam-se com fragor, e uns por piedade, outros por temor, davam dos seus cofres e dos seus celeiros. Dia e noite, Cristóvão mantinha a ordem na turba imensa. Não permitiam que despojassem as árvores dos frutos, que se tomasse o gado nas pastagens. Só era aceite o que a caridade dava. Se encontrava mendigos, histriões famintos, gritava com um grande gesto: “Vinde também”. O seu coração queria abrigar toda a miséria humana, levá-la a esmolar pelas estradas do mundo. Do dinheiro recebido, repartia com as aldeias pobres. As crianças corriam, estendendo os saios, que ele às mãos-cheias enchia de grão, de fava. Uma doçura ia tomando aqueles corações da turba miserável. Alguns tinham arrojado a foice. Outros, ao passar pelas ermidas ou pelos cruzeiros, caíam de joelhos chorando.
E sempre adiante, Cristóvão ia como uma torre que marchava. Uma adoração subia para ele. “Santo é o nosso gigante” – diziam. E, na sua confiança, julgavam que a vida seria assim, eternamente, uma marcha pelos caminhos, recolhendo os bens que os nobres repartiam com os pobres. Decerto Jesus voltara à Terra. Em breve todos os castelos se abririam, e partilhadas as riquezas, quebradas as armas, não haveria fomes nem guerras, e apenas, na paz dos campos doces, irmãos abastados. O acampamento, quando paravam, era como aldeia em festa, onde a carne abunda no espeto, e todas as mãos têm uma fatia de pão. Já a marcha se abrandava, e por vezes ficavam num vale, ou à beira de um ribeiro, num repouso feliz, esquecidos de todas as misérias . Dos filhos, das mulheres que tinham ficado nas aldeias, ninguém se inquietava – porque, cada dia, partiam mensageiros a levar aos casebres dinheiro e provisões. Mas alguns, tendo feito o seu pecúlio, recolhiam às suas moradas distantes, sem receio, tanta era a confiança em Jesus.
E Cristóvão sentia uma alegria imensa. De dia e de noite vigiava a turba enorme, para que nela nada houvesse de violento ou de brutal. As questões que surgissem, aplacava-as estendendo os braços. Se alguém roubava as frutas dos caminhos, expulsava-o da turba. A todos distribuía a sua justiça. A todos dava a sua caridade. E era ele, não outro, que tirava os espinhos dos pés feridos, ou amparava os velhos fatigados das marchas.
Assim vagueavam, quando uma tarde, chegando a uma grande lagoa, que, orlada de canaviais, brilhava ao sol do Outono, viram do outro lado um longo troço de cavaleiros, cujos pendões tremulavam no ar. Costeando a lagoa, decerto se encontrariam: e os Jacques e os cavaleiros pararam, um momento surpresos.
Uma grande planície estendia-se entre eles, toda cheia e coberta da erva amarelada do Outono, desenrolando-se até a uma fileira de colinas, que grandes pinheirais vestiam. O sol brilhava sobre as águas das lagoa – e havia um vasto silêncio.
À frente dos Jacques inquietos, Cristóvão ficara pensativo, um instante: - e ia marchar para os cavaleiros, pedir a caridade para os seus pobres, quando por trás a turba gritou: “Para! para!” Os homens de armas, desenrolando uma longa linha de batalha, galopavam com as lanças enristadas contra a turba miserável. Com um brado, o velho mandou-os erguer os chuços, as foices, as lanças, fazendo uma sebe de ferro contra aquela pesada cavalaria, toda negra e de ferro, que fazia tremer o chão. Já chegavam, já Cristóvão sentia o arquejar dos cavalos – quando um grande, imenso clamor soou, e a confusa massa de ferro abateu sobre os Jacques, com um grande ruído de armas, furiosos golpes de montantes, cavando, com o peitoral em esporão dos cavalos, grandes sulcos entre os Jacques, que tombavam varados pelas lanças, decepados pelos espadões vibrados às duas mãos. A legião dos Jacques ficou separada em dois pedaços – com uma grande fenda no meio, toda cheia de cadáveres , espezinhados pelas patas dos grandes corcéis. E já esses dois pedaços corriam sobre o troço dos cavaleiros, quando este se separou em dois, fazendo face às duas alas dos Jacques e enchendo a planície com o clamor de duas batalhas. Peões, cavaleiros, misturados, faziam duas massas clamorosas, onde os chuços dos Jacques se quebravam contra as armaduras, a as longas clavas com puas dos cavaleiros esmagavam crânios, que apenas algum velho morrião de ferro protegia. Os clarins dos cavaleiros tocavam furiosamente. Um relampejar de ferro enchia o ar, por entre o esvoaçar dos grandes penachos.
Os Jacques, tendo bem depressa quebrado o seu pobre armamento, arremessavam-se sobre os pescoços e garupas dos cavalos e derrubavam a braço o cavaleiro que, tombando com um grande ruído de armas, desaparecia, sob os braços armados de facas. Outros, com foices, abriam o ventre aos cavalos. Alguns cavaleiros combatiam a pé, fazendo largos círculos com as espadas: - e as pedras, que os Jacques lhes arremessavam, soavam furiosamente sobre o metal das couraças. Quatro grandes ceifeiros, caminhando a passo como num milharal maduro, iam, com um movimento regular, lançando as suas foices, que apanhavam os jarretes dos cavalos, levavam braços de onde se tinham desprendido as braceiras de ferro, apanhavam pelas gorjas guerreiros sem capacete. E no meio do combate, sem armas, como não querendo derrubar sangue, Cristóvão, esguedelhado, enorme, ia com os seus braços enormes arrancando cavaleiros das selas e atirando-os para o chão como fardos de ferragens. O sangue já lhe escorria, da face, do peito, através do seu saião de couro, retalhado em longas fendas. Os seus imensos brados faziam empinar os cavalos. Lançando mão aos montantes, quebrava-os como palha. As puas e os broquéis que arrancava iam pelos ares, como folhas que uma rajada leva. Por vezes, correndo, com os dois braços e os punhos fechados, mais grossos que cabeças de carneiros, atirava por terra, com um baque seco, os cavalos e os seus cavaleiros. Tendo dado com o pé num montão de cordas, apanhou-o, e quando agarrava algum passava-lhe um nó nas pernas e assim o deixava deitado no chão, como uma rês num mercado. Pouco a pouco, todos os guerreiros se tinham voltado contra ele. E sem armas, tendo apanhado pelos pés um cadáver coberto de armadura, que usava como uma maça, ele ia recuando, até a alta colina coberta de pinheiros. Sobre ele caíam as flechas, sobre ele ressoavam as pedras dos fundeiros. O gigante recuava mais – e subitamente, correndo contra os assaltantes, derribava um, prostrava outro, com grandes pancadas do cadáver, que já perdera o capacete. O círculo dos cavaleiros crescia todavia sobre ele, gritando-lhe injúrias, arremessando-lhe de longe as maças. E cada vez mais esse círculo era mais estreito, e todo eriçado de ferros que rebrilhavam. Ele, sereno, fazia girar em torno o cadáver, cuja armadura se quebrara pouco a pouco, não tendo mais que os coxotes das pernas por onde o segurava Cristóvão, e mostrando já a carne branca, os cabelos duros do peito. Mas de tanto bater, por fim, foi pouco a pouco perdendo a força da ossatura, tinha o crânio quebrado, os braços moles como trapos, a arca do peito esmigalhada – e aquela arma terrível não era já nas mãos de Cristóvão, mais que uma tira de carne mole. Mas chegara à colina. Aí, em cada pinheiro tinha uma arma. E já se voltara, atirava as mãos a um tronco enorme para o desarraigar, quando uma flecha, varando-lhe o joelho, o abateu um momento, fazendo-o escorregar no declive úmido da colina. Então, num instante, um grande corcel negro veio sobre ele, uma lança faiscou – e Cristóvão ficou prostrado, imóvel, com uma espuma de sangue na boca.
Todos se tinham precipitado sobre ele, quando um clamor surgiu por trás. Eram os Jacques que se tinham reunido, e, guiados pelo frade, vinham contra aquele grupo de cavaleiros, entalados contra a colina, nas terras moles onde os pés dos cavalos se enterravam. Então os homens de lança voltaram rédeas, e fugiram entre a colina e os Jacques, de novo diretos à planície, juncada de mortos. Os Jacques bradavam vendo fugir os cavaleiros, e começaram a correr atrás deles, atirando as últimas flechas – arremessando mesmo por escárnios grossos torrões de terra lamacenta. Mas, vendo os peões assim expostos na planície, os cavaleiros deram um volta brusca, e abaterem-se contra os miseráveis. Foi uma grande matança, o frade caíra logo com o crânio aberto, a sua cruz apertada na mão. E os que fugiam eram perseguidos por toda a parte, até que, atirando-se para a lagoa, as grandes lanças por trás os faziam arremessar à água.
Agora, na vasta planície, só havia homens de armas. Os Jacques juncavam a terra em negras poças de sangue. Lentamente, trotando, os cavaleiros acabavam os feridos, que gritavam de sede. Outros, parados, tirando os morriões, limpavam as grossas gotas de suor. Os físicos amarravam os braços feridos. E os pajens passavam com grandes pichéis de vinho. O sol desaparecia, e toda a lagoa era como de ouro, por trás dos seus grandes canaviais negros. Uma revoada de patos passou no céu, já pálido. E ao toque de clarim os Senhores, ainda esparsos, vieram-se juntando, retomando a fila. Os feridos foram postos sobre as carretas. E, a passo, o troço dos cavaleiros retomou o caminho em torno à lagoa, onde o brilho de ouro se apagara, deixando-a agora negra e triste.
Na vasta planície, jazem os Jacques mortos. Findou a grande marcha, que levava aos castelos e abadias a visão estranha das grandes misérias da terra. Nenhum mais voltará às cabanas da aldeia, onde os filhos esperam até tarde na lareira apagada. Os Jacques estão mortos, a terra limpa dos seus andrajos.
Cristóvão jaz estendido na colina, entre os pinheiros. Um vento passa, frio e triste. Ele abre os olhos, e a custo, erguendo-se sobre a mão, olha a planície. E em toda a sua extensão, vê montões de corpos mortos, entre os quais reluzem já os olhos dos lobos. A grande lagoa está imóvel. Por cima passa a lua cheia. Uma dor imensa arrefece o seu coração. De novo os seus olhos se fecharam – e caiu inanimado.
Toda a noite, no entanto, ele reviu a batalha. De montões de Jacques mortos outros Jacques se levantavam com outros trajes, outras armas, impelidos à revolta pela mesma miséria que os oprimia. E sempre do fundo do horizonte, dos altos montes, dos cimos, desciam cavaleiros, que tinham armas diversas, gritos de guerra diversos, que carregavam, esmagavam os Jacques, os deixavam mortos, sob a grande lua cheia. mas desses, pouco a pouco, mais pálidos, outros se erguiam, brandindo picaretas de mineiros, ferramentas de oficina, mostrando os seus andrajos, os filhos esfaimados, clamando justiça. E logo, a um brado do alto, fortes esquadrões desciam, trazendo à frente magistrados, togados, homens carregados de sacos de ouro, e essa massa, caindo sobre os Jacques, de novo os prostrava, os deixava num montão, que a Lua, mais pálida e mais desmaiada, cobria de alvura e silêncio. E assim, indefinidamente, os Jacques renasciam, dos ossos dos Jacques mortos, cada vez mais numerosos, até que a planície toda era uma sarça de braços magros, clamando, pedindo igualdade. E imediatamente outros esquadrões desciam, mais diminuídos, com um arranque menos vivo, hesitando, lançando golpes mais frouxos. Até que. por fim, os Jacques eram tão inumeráveis, que da planície se estendiam aos montes, e a Lua, que já desmaiara de todo, alumiava multidões disciplinadas, armadas, conscientes, que avançavam com ordem e ritmo. Os esquadrões, mandados contra estas coortes, fundiam-se como cera numa chama; Os Jacques ocupavam a terra. Um último cavaleiro veio ainda, e, derrubado, largou as armas, desapareceu. E sobre a terra só ficavam Jacques, que cantavam em triunfo na frescura da manhã clara.
Então, sentindo na face esta frescura, Cristóvão entreabriu os olhos, ainda vago, meio dormente, como num sonho. A luz fria e pura da manhã penetrava sob as ramagens que o cobriam. As aves cantavam finamente nos ninhos, com frufrus de asas, de ramo em ramo. Um doce cheiro de rosmaninho e verduras novas perfumava o ar. E na relva toda úmida, lustrosa de orvalho, havia em redor flores silvestres, botões de ouro, papoulas frescas, um fio de água cantava friamente de pedra em pedra.
E então pareceu a Cristóvão que via um moço, de longos cabelos louros, com uma túnica branca, onde se cruzavam as pregas de um manto branco, surgir entre as ramas dos pinheiros, ao longe, vir para ele encostado a uma vara branca. Os seus passos eram tão leves, tão leve decerto o linho do seu vestido, que as papoulas não se dobravam, quando ele sobre elas passava, ligeiro e branco. E na penumbra dos arvoredos, um sulco branco ficava, por onde ele passava, com um aroma tão doce como se desabrochassem naquela terra flores que não são da terra. Pouco a pouco se aproximou: - e Cristóvão podia ver os seus olhos pousados sobre ele, como duas estrelas da tarde. Docemente ajoelhou ao lado de Cristóvão, pousando o seu bastão tão levemente que nem vergou as pontas finas das ervas. Com os dedos mais macios que veludo, percorreu as feridas de Cristóvão, que sentia as dores desaparecerem e como uma força nova que lhe voltava. Depois rasgou uma tira do seu manto, pousou-a sobre as feridas,a da perna, a do peito; e aquela tira de linho parecia a Cristóvão leve como o ar e perfumada como um jasmim. Depois, apanhando os eu bastão branco, em silêncio, partiu, penetrou no bosque, e pouco a pouco se perdeu entre os troncos negros, que um momento conservaram como a claridade daquela passagem branca. Os pássaros recomeçaram a cantar. De novo as ramagens se moveram brandamente. Então Cristóvão moveu os braços – depois ergueu o seu imenso corpo. Todas as suas feridas estavam fechadas. E sentindo uma força nova, aquele bom gigante cortou através do pinheiral, e recomeçou a correr mundo.
Percorreu então longas terras. E por cidades e campos só buscou na simplicidade do seu coração ser útil e bom. Batia à porta das cabanas, perguntava se eram necessários ali dois braços fortes, para todos os trabalhos. Não pedia salário. A côdea menor de pão era a que lhe bastava. E a água tinha-a nos regatos mais frescos. Nenhum serviço por mais forte, ou vil, lhe custava. Limpava todas as imundícies, com um cuidado piedoso: e pedia sempre para si o maior fardo. Tirava a machada das mãos dos lenhadores, para abater as florestas. Puxava os barcos à sirga. Atrelava-se aos varais dos carros. E se um camponês queria mandar o seu burro à igreja, para ser benzido e liberado de todo o mal, ele carregava o burro às costas, com tanto cuidado como se fosse uma donzela. Se o injuriavam, baixava a face humildemente. Se o espancavam, ficava imóvel e quieto sob os golpes. Se o despediam, apanhava o seu bordão e saía suspirando.
Nos caminhos, sentava-se nas encruzilhadas para guiar os peregrinos ou histriões. Se havia algum grande lamaçal, ficava à beira dele para passar aos ombros os homens e os animais. Era ele que partia as rochas, para se construírem caminhos. E nas florestas onde sabia que deviam passar caravanas de mercadores, acendia grandes fogueiras para afugentar os javalis.
Por vezes aceitava servir só um amo. Foi assim o servo de um curandeiro e puxava, como um macho, a grande carriola, onde tilintavam os boiões das ervas simples e dos ungüentos, e que parava nos adros das igrejas à tarde, depois das missas. Mas sentindo que o físico era interesseiro e duro – deixou o serviço. Foi depois o escudeiro de um cavaleiro errante, que encontrou banhando a ferida de uma perna à beira de uma fonte. Cristóvão sarou-lhe a ferida, e começou a seguí-lo nas suas aventuras, caminhando, atrás do seu corcel, com uma maça feita de um pinheiro. Com o cavaleiro fez grandes proezas. Libertou servos que um Senhor duro levara a enforcar por eles não lhe terem tirado o barrete na estrada; desbaratou salteadores que infestavam os bosques; restituiu a um órfão o condado que lhe haviam roubado parentes avaros: - mas, como o cavaleiro tivesse ajudado a salvar uma dama, veio a casar com ela, teve um solar, abandonou os caminhos, e Cristóvão não querendo ficar naquela ociosidade, deixou o bom cavaleiro, levando, como paga, uma bolsa farta de ouro, bons vestidos quentes, que ele logo distribuiu aos pobres.
Então, seguindo o exemplo do cavaleiro, passou a socorrer os oprimidos. De noite, ao passar pelos castelos, derrubava as forcas patibulares. Se sabia de um campo que fora roubado, forçava o ladrão à restituição. Salvou os bandos de mercadores que os Senhores, com grandes lanças, assaltavam nos caminhos para os roubar. Onde soubesse que o Senhor tinha imposto um trabalho excessivo aos servos, ia ele, não outro, fazer o trabalho. Nunca diante dele deixava castigar uma criança. Se, passando num casal, ouvia uma mulher chorar, e rumor de pancadas, quebrava a porta, tirava o pau das mãos do marido. Quando soldados deviam passar numa aldeia, ele ficava de guarda, para impedir as crueldades da tropa. E ninguém ousava afrontá-lo. Já ia, então, envelhecendo. Os seus cabelos tinham se tornado mais crespos, hirsutos: trazia sobre o corpo farrapos, e a barba era rude e forte como um mato. Sob a barba, e sob as sobrancelhas ficava invisível a doçura incomparável do seu olhar, do seu sorrir – e para os que o viam, na verdade o seu aspecto era horrendo e temeroso.
Quando entrava nas cidades, as crianças fugiam, todas as portas se fechavam – e os homens de guarda acudiam a saber de onde viera, a que baronia pertencia, e se tinha licença de vaguear nos caminhos. Ele respondia que só queria trabalhar: e tão humilde e quieto ficava, junto de uma fonte ou ao canto de uma praça, que bem depressa as portas se abriam, e, já sorrindo, as crianças voltavam. Todas faziam lembrar a Cristóvão a Joana da sua aldeia. A essa hora ela devia ser mulher, e talvez, por seu turno, trouxesse pendurada das saias uma criança loura e graciosa como ela fora. Chamava algumas das crianças espantadas, fazia-as saltar sobre os joelhos. Das gelosias as mães sorriam. Já ninguém receava o gigante – e ele sentido-se aceite, começava logo a ajudar as trolhas que erguiam uma casa, ou a um empurrar um carro atolado nas lamas. Bem depressa, todos queriam os serviços daquela força imensa. E era ele que limpava os mercados, caiava as torres de fresco, transportava os fardos, apanhava a neve dos rios no Inverno, regava o pó das ruas no Verão, consertava os telhados, apagava os incêndios – e, sentado à porta dos hospitais, ia enterrar os mortos pobres. Colando a face às altas grades das prisões, consolava os presos, ajudava nos seus trabalhos os forçados, e tendo reunido o seu salário em pão ou em dinheiro, sentava-se num adro, e distribuía-o pelos mendigos.
Ora um dia, saindo de uma cidade, encontrou no caminho um pobre histrião, com uma perna de pau, e acompanhado pela mulher doente, que amamentava o filhinho. Eram tão miseráveis e tristes, ele com uma espada debaixo do braço, ela suspendendo aos ombros um saco de bolas e peloticas, que Cristóvão começou a caminhar ao seu lado. Assim soube que outrora percorriam os caminhos e as feiras, ganhando amplamente a sua vida, e (desde que ele, numa queda, perdera a perna) mostrando cães sábios e um macaco, que faziam sortes maravilhosas. Havia dias, porém, estando numa taberna, numa estrada, a repousar, tinham chegado os escudeiros e homens de armas de um Senhor, que, embriagados, e numa rixa, lhe tinham, a grandes cutiladas, morto o macaco e os pobres cães. Com eles se fora a sua fortuna. Trabalhar não podia, assim manco. E agora só lhes restava mendigarem, até que o frio, a fome, os prostrassem uma noite, a eles e à criança, mortos à beira de um caminho. E o saltimbanco acrescentava: “Bem feliz és tu, que te fez Deus tão grande, e te podes mostrar nas feiras ganhando mais que um letrado a escrever!” – Decerto, o saltimbanco o tomava a ele, Cristóvão por um desses gigantes que se mostram nas feiras. E apenas assim pensara, Cristóvão, com simplicidade, propôs ao saltimbanco que a troco do pão, e da metade do ganho, o levasse a uma feira, para o mostrar numa barraca. O pobre saltimbanco quase chorou de alegria – e logo dali partiram para uma grande feira, que todos os anos, pelo S. Miguel, se fazia junto de uma grande cidade murada.
Chegaram lá de noite, e tendo obtido licença dos guardas para entrar, o saltimbanco foi logo a um desses judeus que trocam dinheiro, pediu emprestado o que era necessário para construir uma barraca, erguer os estrados, lonas vermelhas, e possuir um tambor que anunciasse o gigante. O judeu, tendo examinado Cristóvão e certo que era um monstro de boa mostra e de boa renda, contou, uma a uma, dez peças de prata na palma do saltimbanco: - e tendo assinado o papel diante do corregedor da feira, o saltimbanco partiu com Cristóvão, a construir a barraca. Toda a noite trabalharam, pregando, martelando, enquanto a mulher do palhaço cosia à pressa uma túnica escarlate para Cristóvão.
Ao outro dia tudo estava pronto, e posta sobre dois postes a grande peça de paninho branco, em que se anunciava o maior gigante e o maior atleta de Navarra e dos Mundos. Cristóvão, sentado numa vasta caixa que um tapete recobria, esperava, enquanto fora o saltimbanco, tocando o tambor, anunciava a maravilha, e a mulher, com cequins de metal nas tranças caídas, como uma moura, esperava diante de um prato de cobre, onde deviam cair as entradas.
A feira era enorme, num vasto prado que defrontava com os muros da cidade. As barracas de lona, de madeira, de tapetes, de ramagens, alinhavam-se em grandes ruas. No topo dos mastros flutuavam bandeirolas. E homens enfardelados como orientais, mulheres com plumas nas cabeças, outras com trajes de nações estranhas, conservavam-se por trás dos balcões, onde, segundo a rua, e os mesteres, se desdobravam panos, reluziam jóias em caixas gradeadas, se perfilavam os frascos de essências, se amontoavam as peles, se confundiam as armas tauxiadas. Noutras ruas, sob tendas de lona, havia cozinhas, grandes barricas de cerveja ou e vinho. E os saltimbancos ocupavam um lugar perto do rio, que longos olmeiros assombreavam. Em volta, por toda a vasta planície, era uma confusão de carros descarregados, de pilhas de madeira, de cavalgaduras presas pelas patas, de grandes gigos onde se debatiam aves...
Apenas as portas da cidade se abriram, a multidão começou a encher as ruas da feira, onde a erva desaparecera sob os pés. E bem depressa começou o vozear dos pregões, os brados dos que chamavam fregueses, os atabales tocando à porta das tabernas, as sinetas repicando.
Mas ninguém fazia maior barulho que o saltimbanco coxo, rufando desesperadamente o tambor, diante da tenda onde aquele bom gigante esperava, pensativo. Bem depressa, homens do burgo, mulheres com crianças pela mão, os feirantes, começaram a entrar, deixando cair uma moeda de prata no vasto prato de cobre. E apenas se levantava a cortina, era em todos os lábios um longo ah! lento e maravilhado. A barraca era alta, em forma de torre: - e, vestido com uma longa túnica escarlate, bordada a lantejoulas e ouropéis, com um turbante onde ondeavam enormes plumas verdes, um colossal alfanje de pau passado na cinta amarela, Cristóvão era, na verdade, um assombro, e como um ogro disforme dos contos de fadas. Cheio de timidez, não movia os braços: e um grande rubor invadia-o todo diante daquelas faces atônitas, onde havia terror da sua força, e como uma piedade da sua deformidade. As crianças escondiam-se nas saias das mães: - e os homens espantados, queriam apalpar a rijeza dos seus músculos. Cada grupo que saía ia contar nas tabernas, espalhar por toda a feira a maravilha daquele gigante. Já uma lenda circulava – e era ele, não outro, que derrotara o imperador da Ocitânia, matara um grande dragão que infestara os Algarves, e, só com a empurra, derrubara a torre construída pelo Diabo para o Roberto de Normandia. Todo dia uma grande fila esperou à porta da barraca – e à noite sobre o prato de cobre havia um monte de dinheiro esboroado.
Pouco a pouco, Cristóvão habituara-se à multidão – e mesmo, para fazer rir as crianças, fazia esgares, ou agarrava um homem pelas pernas e erguia-o como uma palha ligeira. Depois levantou com dois dedos uma barrica cheia de pedras, torceu com os dentes grossas barras de ferro, e de uma só pancada, com o punho fechado, fendeu uma mó de moinho.
À noite estava coberto de suor: - e enquanto o saltimbanco e a mulher, com a face radiante, faziam as pilhas do dinheiro, ele tomava ao colo e embalava a criancinha, que nos seus braços tinha um sono mais doce.
A sua fama correra no burgo – e o próprio príncipe que ali reinava, e o bispo, vieram em grande comitiva, com cavaleiros e pajens, ver o gigante. Foi grande neles a maravilha. E o príncipe, homem de grandes músculos, queria media as forças com Cristóvão, jogando a qual deles vergaria a mão do outro. E diante daqueles cavaleiros, por humildade, Cristóvão cedeu, e deixou que a mão cabeluda do príncipe vergasse a sua. Os cavaleiros aclamavam o Senhor. E o príncipe, radiante, despejou a sua bolsa cheia de ouro nas mãos de Cristóvão, isentou a barraca do saltimbanco de todos os impostos ao corregedor, e mandou, de noite, moços da cozinha com tochas, trazer uma perna de veado e empadões de sua mesa.
Toda a noite, os saltimbancos, partindo o dinheiro, dava a sua metade a Cristóvão – que ele guardava numa cova, a um canto da barraca, coberto com uma mó de moinho. Depois ia pela feira solitário, e todo o serviço era ele que o fazia. Carregava as barricas de vinho, descarregava os fardos, limpava o chão das barracas, e, à porta das cozinhas, fazia a lavagem dos pratos de estanho.
Mas o fim da feira chegara, e uma noite, em que sentia o barulho das barracas que se desmanchavam, o saltimbanco contou os seus ganhos – e as lágrimas bailaram-lhe na face, porque para sempre estava ao abrigo da miséria. Então Cristóvão desenterrou o seu tesouro e, em silêncio, veio juntá-lo ao dinheiro do saltimbanco, murmurando: “É para a criança”. Duas moedas de cobre tinham rolado no chão. Cristóvão apanhou-as, beijou-as como uma esmola que lhe atirassem, beijou a criança, saiu da barraca. E, tendo comprado uma broa e um pichel de vinho, deixou a feira que se desmanchava.
De novo Cristóvão correu o mundo, servindo os homens. Pelos descampados e pelos povoados, por longos Invernos, por longas Primaveras, correu o mundo, oferecendo os seus braços. Os anos tinham passado, e Cristóvão era mais velho que os mais velhos carvalhos. Os seus longos cabelos tinham embranquecido, e a sua força já não era tão forte. Mas cada dia o seu coração se enchia de uma ternura maior e mais vaga. Por vezes, sentado numa pedra, à beira de um caminho, olhava as árvores, os campos, os montes, e as simples flores silvestres, e sentia então como o desejo de apertar toda a terra contra o seu peito. Depois pensava que sobre ela viviam tantos miseráveis, tantos humildes, tantos enfermos – e era um desejo de sondar até aos últimos recantos aquele mundo, e de curar cada dor, matar cada fome, tornar o mundo alegre, são, perfeito. Partia então – e através das estradas mendigava para dar aos mendigos. Colocava-se à entrada das pontes, como um socorro sempre pronto – a ajudar um velho ou a carregar um fardo. O seu desejo seria sofrer ele só todas as opressões, carregar ele só todos os fardos humanos. E por vezes parava, olhava em redor, como procurando, nos vastos horizontes, serviços a prestar, fraquezas a socorrer. Depois pensava que eles, inumeráveis decerto se apresentariam cedo aos seus olhos; e partia, ficando triste, quando durante o daí os seus braços tinham permanecido ociosos. Para que lhos dera então Jesus tão grosso e fortes? Ia então sentar-se à entrada das pontes, onde a passagem era maior, como uma força pronta a trabalhar, pronta a socorrer. Se era um cavaleiro que passava, corria a buscar água para dar ao cavalo. Se era um carreteiro, ajudava as mulas a empurrar o carro. Se era um mendigo, mendigava para ele.
Pouco a pouco, a sua bondade ocupou-se dos animais. Também eles sofriam e tinham sobre a Terra o seu quinhão de miséria e de dor. Quando via então um animal carregado, tomava sobre os seus ombros o fardo. Recolhia ossos, pelas esquinas dos mercados, para distribuir aos cães famintos. era o enfermeiro dos animais feridos, a quem lavava as chagas, onde as moscas se prendiam. Um passarinho, voando, enchia-lhe o peito de ternura. E penetrava nas florestas, na esperança de cuidar dos velhos lobos doentes, ou dos veados que morrem de fome pelos tempos de neve.
Depois, pouco a pouco, na sua alma densa e simples veio a nascer lentamente a idéia de que as árvores também sofriam, bem como as florinhas dos campos. E desde então nunca mais cortou um tronco, para dele fazer um cajado. Todo o ramo, partido e seco no chão, o compadecia. Arredava-se para não pisar a erva. E pelos tempos de seca fazia longas caminhadas ao rio para trazer água, e dar de beber às plantas sufocadas pelo pó dos caminhos. Nas pedras mesmo, veio por fim a suspeitar que havia algum sofrimento. A picareta que as cortava, as duras rodas que as vincavam, o sol que as escaldava, a neve que as cobria, não lhes fariam uma dor, que elas guardavam na profundidade da sua mudez? E muitas vezes, com o seu vasto corpo, fez sombra às rochas: com as suas mãos, à maneira de longas pás, livrava as pedras da frialdade do gelo.
A sua ternura abrangia o Universo. Por vezes, de noite, olhando o céu, vinha-lhe como um grande amor pelas estrelas. Elas eram claras e puras. Um momento brilhavam, depois partiam. E a Lua que chegava então era tão triste, que um suspiro, sem som, levantava o coração de Cristóvão. Para onde iam assim todos aqueles astros, correndo, correndo? E viera a pensar que seriam almas subindo, subindo nos espaços, mais altas à medida que eram mais puras, ganhando uma légua por cada bondade que realizavam, e tendendo assim à perfeição, até se tornaram dignas de se abismar no seio sublime de Jesus.
Assim envelhecia aquele bom gigante. Ora, um dia que caminhava por uma colina ente rochedos, ouviu um rumor de vozes que parecia vir do fundo do despenhadeiro. Desceu, agarrando-se à ponta das rochas. E viu um largo rio, negro e tumultuoso, que corria espumando sobre as rochas que o cortavam, com um mugido sombrio. À beira dele, estava um grupo de mercadores com os seus machos carregados. E do outro lado, eram rochas, a pique, um monte que se elevava, coroado de negros pinheiros.
Cristóvão desceu, apareceu diante dos homens. Todos se juntaram, tirando facalhões do cinto, no terror daquela força e daquela deformidade. Depois, como ele de longe lhes falou com humildade, todos, pouco a pouco, o cercaram, perguntando o que acontecera à ponte que ali havia. Cristóvão não sabia. E então disseram-lhe que aquele era um caminho curto e fácil que havia naquelas terras. Mas tinha aquela passagem lá, o rio tumultuoso. Outrora houvera ali uma ponte de barcas amarradas com correntes. Mas o rio quebrara as correntes, levara as barcas, como palhas secas. Depois tinham lançado uma ponte de madeira e o rio outra vez levara a ponte. No entanto o Senhor daquelas terra morrera, e tendo elas passado a um outro que vivia nas cidades, ninguém mais se ocupara de fazer uma ponte aos viandantes. E agora ali estavam eles, sem poderem passar, e as mulheres e os filhos esperavam-nos, debalde, nas suas moradas para além dos montes.
Cristóvão, no entanto, olhava a águia. E em silêncio mergulhou no rio, e começou a atravessá-lo. A água cobriu seus joelhos, subiu até a à cintura, por fim bateu furiosamente sobre o seu peito, como sobre o pilar de uma ponte. E Cristóvão caminhava. Depois a cinta de Cristóvão saiu da água, depois apareceram os seus joelhos, e a escorrer, ele pôs pé, enfim, nas rochas duras da outra margem, onde um caminho íngreme subia entre as fragas. Cristóvão passara o rio.
Voltou, e abrindo os braços para os mercadores espantados, gritou:
— Quem quer passar?
Um mais novo logo se ofereceu. Cristóvão tomou-o sobre os seus largos ombros, em cada braço carregou um fardo, enquanto os outros ansiosos, rezavam à Virgem. Cristóvão passou – e do outro lado, o mercador radiante, fazia grandes gestos aos companheiros, gritava que o gigante era seguro. Então Cristóvão passou os homens, depois os fardos. E por fim agarrando as mulas, que zurravam espantadas, conduziu para o lado de lá toda a caravana, sem que um pêlo dos animais, ou uma corda dos fardos, ou um sapato dos homens se tivesse molhado. Tendo combinado baixo, os homens puseram-lhe na mão um punhado de dinheiro, deram-lhe um rolo de cordas, e deixaram-lhe pão para uma semana.
Logo nesta tarde Cristóvão, examinando aquele lugar agreste, recolheu troncos quebrados, ramarias secas, e calando a madeira na fenda das rochas, arranjou com a corda um longo, estreito telheiro, onde o seu corpo se abrigasse das chuvas e das neves. Depois, tendo desembaraçado dos pedregulhos o caminho, esperou, sentado na grande solidão, que aparecessem viandantes. Não tardaram a aparecer na outra margem um grupo de frades, que viajavam com o abade, montado numa mula. Apenas os viu, Cristóvão atravessou – enquanto os frades aterrados, lhe faziam acenos, para que se não arriscasse naquelas águas da torrente. Mas quando o viram chegar, enorme, a escorrer água, e com os braços abertos para os receber, hesitam, pensando ser uma cilada do Demônio. A cruz que o abade traçou no ar, e que Cristóvão repetiu sobre peito, logo os tranqüilizou – murmurando entre si que então, certamente, era um auxílio do Senhor. Um por um, arregaçando o hábito, cavalgaram Cristóvão, e no meio do rio, sentindo a água furiosa bater a cinta do gigante, gritavam o nome da Virgem, estrela dos Náufragos. Depois, quando Cristóvão os pousava na outra margem, enxutos, era um espanto, e baixando os hábitos, reapertando as sandálias, riam daquela ponte viva que trabalhava nas águas. O abade passou, passou a sua mula. E os frades deixaram a sua benção ao gigante e um ramo de buxo benzido.
Começou então para Cristóvão uma vida estável, quieta, junto daquele rio. Nas horas em que não havia gente, esperava sentado numa pedra, olhando correr a água, ou então alargava o caminho e construía à beira da água, com pedras, como um cais onde a gente lhe subia para as costas. A cada instante, porém, havia alguém a passar – e como Cristóvão era já conhecido, os viandantes, do alto da colina, vinham logo gritando: “Eh gigante!” Alguns, mais brutais, se ele se demorava, rompiam em injúrias. Outros, que o vinho bebido nas tabernas da estrada excitava, arrepelavam-lhe os cabelos. Ele, quieto e humilde, fendia as águas. Por vezes era um cavaleiro que, com a sua pesada armadura, lhe esmagava os ombros, e rindo o espicaçava com os acicates. Outras vezes era uma dama que se horrorizava com a fealdade de Cristóvão, tapava a face, e apenas passada para a outra margem lhe fugia das mãos, mostrando o seu nojo. O maior trabalho era com os animais. Havia rebanhos que levavam todo um dia a passar. Os ginetes de guerra, furiosos, mordiam-lhe os braços. E os galgos, latindo, queriam saltar para o rio, entre a indignação dos fidalgos, que atiravam pedras a Cristóvão. Nenhum esforço custava ao bom gigante. Passava os fardos mais duros, grossas barricas de vinho. pedras enormes para a construção das abadias. Passou touros, que iam para um curro de fidalgos. E passou um bando de leprosos, que fugiam de uma cidade, e lhe deixavam sobre a pele o pus das duas fístulas.
Se lhe não pagavam, baixava a cabeça, saudando com humildade. Se lhe pagavam, beijava a escassa moeda de cobre: - e guardava debaixo de uma pedra esse dinheiro, para o repartir com os mendigos.
Assim vivia desde longos anos. A sua cabeça já se vergava, os seus braços já não eram tão fortes. Por vezes, sob os grandes fardos, gemia lamentavelmente. Todos os seus membros estavam como troncos nodosos, inchados pela umidade constante. De todo ele saía um cheiro a vasa e a limo. E as suas pernas, sempre na água, tinham um tom verde, como as estacas de uma levada.
O seu leito de folhas secas era-lhe doce, e quando sentia vozes que o chamavam, era com um gemido que se erguia. Já lhe levava o dobro do tempo a cortar a corrente – e por isto eram constante as injúrias que recebia. Para se apoiar na água, sentindo que suas forças diminuíam, teve de fazer um grande bastão aguçado, com um tronco. E cada Inverno pensava, com inquietação, se a força lhe sobraria para fender a corrente furiosa do rio mais cheio.
Agora, apenas passava os viajantes, logo se vinha deitar. E chegou mesmo a pedir, por caridade, que lhe deixassem um pouco de vinho, para tomar nas noites mais duras, como um cordial que o amparasse. Oh! muito pouco, um pichel somente... Ele, cautelosamente, o pouparia.
Ora uma noite de grande Inverno, em que ventava, nevava, e o rio muito cheio mugia furiosamente, Cristóvão, já muito velho, trôpego, com feridas nas pernas, dormia no seu chão molhado – quando fora, na noite agreste, uma voz pequenina e dolorida gritou: “Cristóvão! Cristóvão!”
Com um gemido, logo se ergueu aquele bom gigante. Abriu o loquete da sua choça. E viu diante de si uma criancinha, pisando descalça a relva, com os cabelos a esvoaçar no vento e na chuva, e apertando sobre o peito, com as mãozinhas, a camisa muito branca que o cobria. Espantado, com lágrimas, Cristóvão abriu os braços.
— Oh meu menino, quem te trouxe?
E tremendo toda, no frio e na neve, a criancinha murmurou:
— Cristóvão, Cristóvão, estou sozinho e perdido, e por quem és te peço que me leves para a casa do meu pai!
Já Cristóvão arrancara dos ombros a pele em que se agasalhava, e envolvia nela o corpinho tenro que tremia.
— Oh meu menino, onde é a casa do teu pai?
A criancinha estendeu o braço para o outro lado, onde os montes negros se erguiam. E murmurou muito baixo:
— Além, para além, muito longe...
Mas um espanto tomava Cristóvão. Porque debaixo da pele negra de cabra, de novo a camisinha da criança aparecia rebrilhando na noite negra, toda branca de linho. Muito humilde, baixando para ele a face, o bom gigante disse, muito humilde:
— Oh meu menino, vem que eu te levo ao colo.
A criança estendeu os braços pequeninos. Cristóvão com cuidado e docemente a foi pondo ao ombro. Mas, bruscamente, os seus joelhos vergaram, tocaram a rocha, sob o imenso peso que o esmagava, Ah! quanto pesava o menino! Com custo, se firmou nas suas velhas pernas doridas. Desceu, arrimado ao seu bastão, o caminho escorregadio, mergulhou na água os pés – e logo a corrente mugiu furiosamente em redor, atirando a espuma até os pés da criança. Arquejando, Cristóvão rompeu a água. O vento imenso silvava, e atirava-lhe sobre os olhos, que a umidade embaciava, os seus longos cabelos grisalhos. Ele disse: “Ah! meu menino, meu menino!” A cada passo sentia que o leito limoso do rio lhe fugia sob os pés. Todo ele tremia, firmado no bordão. E a água, toda branca de espuma, empurrava-o furiosamente, com um marulho medonho. Na densa escuridão, nada distinguia, nem sabia onde estava a outra margem. Grossas pedras de granizo de repente caíram, e o menino, arrepiado, todo se aconchegava à sua face. Já a água temerosa lhe chegava ao peito. Tropeçou numa rocha, e, quando se susteve, sentiu a água, furiosa, gelada, correndo a roçar-lhe as barbas. Arrojou o bordão, e com as mãos ambas ergueu o menino ao ar. Mas mal o podia sustentar, grandes vagas já lhe batiam a face. Arquejando, parava para respirar fora da água, e bebia a espuma turva e amarga. Grossas traves que a corrente acarretava, batiam-lhe o corpo. Os seus pés rasgavam-se em pedras agudas. E ele, num esforço enorme, os braços esticados ao alto e todo a tremer, sustentando o menino, arrojava o peito para a frente, com gemidos que eram mais fortes que o vento. Duas vezes os seus joelhos fraquejaram, ia cair sob a força da torrente; duas vezes, com esforço sobre-humano, se manteve firme, erguendo ao alto o menino. A água já lhe chegava pela barba, e a espuma das vagas umedecia-lhe os olhos. E, sempre arquejando, rompia, com as mãos a tremer todas do peso imenso do menino. Mas os seus pés encontraram uma rocha firme, e a água desceu outra vez até ao peito. Na rocha resvaladiça, porém, os seus passos mal se podiam sustentar. E era por um esforço da alma, que se empinava arquejando. Mas ia saindo do rio. A água já lhe descera à cintura. E o fragor da corrente parecia abrandado e como remoto. Grandes pedras emergiam da água. Já apenas tinha mergulhado os pés, que ele sentia dilacerados. Um esforço mais, e estava na margem, salvo, apertando contra o peito o menino.
Mas, naquele esforço supremo toda sua vida se fora. Não podia mais. E já se sentava, exausto, numa rocha, quando o menino lhe murmurou que não parasse, que marchasse ainda, o conduzisse à casa de seu pai. E Cristóvão, arquejando, começou a trepar o íngreme caminho da serra. Uma vaga claridade errava nos altos. E as rochas, os abetos, emergiam da treva densa, que os afogara. Uma frialdade trespassava o ar – e Cristóvão tiritava, com o seu pobre saião de estamenha encharcado, que ia pingando na terra mole. E mais baixo murmurava: “Ah! meu menino! meu menino!”
Cada vez mais escarpado, entre rochas, se empinava o caminho da serra. E Cristóvão todo curvado, com os seus cabelos caídos sobe a face e pingando, arquejava a cada passo. Subiria ele jamais até a morada do menino? E uma grande dor batia-lhe o coração, no terror de cair sem força, e a criancinha ficar ali, naquele ermo rude, entre as feras, sob a tormenta. A cada instante tinha de arrimar a mão a uma rocha, desfalecido, de se pender à ramagem de um abeto. E a claridade crescia; já, no alto dos montes, ele via palidamente alvejar a neve.
— Oh meu menino, onde é a casa de teu pai?
— Mais longe, Cristóvão, mais longe...
E aquele bom gigante, agasalhando os pés do menino na dobra da pele de cabra, que o vento desmanchava, seguia com longos gemidos no caminho infindável, que mais apertava entre rochas, eriçadas de silvas enormes. Por fim, mal podia passar: as pontas das rochas rasgavam-lhe os braços, os longos espinhos atravessados, levavam-lhe a pele rude da face. E seguia! Já das feridas lhe pingava o sangue, e os olhos embaciados mal distinguiam o caminho, que parecia oscilar todo como abalado num tremor de terra. Uma luz, no entanto, mais viva, cor-de-rosa, já subia por trás das linhas dos cerros.
Mas Cristóvão parou, sem poder mais. Com o menino agarrado nos braços, ficou encostado a uma pedra, arquejando.
— Onde é a casa de teu pai?
— Muito longe, Cristóvão, mais longe...
Então o bom gigante fez um prodigiosos esforço, e a cada passo, meio desfalecido, os olhos turvos, a cada instante lançando a mão para se arrimar, tropeçando, com grossas gotas de suor que se misturavam a grossa gotas de sangue, rompeu a caminhar, sempre para cima, sempre para cima. Os seus pés iam ao acaso, no desfalecimento que o tomava. Uma grande frialdade invadia todos os seus membros. Já se sentia tão fraco como a criança que levava aos ombros. E parou, sem poder, no topo do monte. Era o fim: um grande Sol nascia, banhava toda a Terra em luz. Cristóvão pousou o menino no chão, e caiu ao lado, estendendo as mãos. Ia morrer. Mas sentiu as suas grossas mãos presas nas do menino – e a terra faltou-lhe debaixo dos pés. Então entreabriu os olhos, e no esplendor incomparável reconheceu Jesus, Nosso Senhor, pequenino, como quando nasceu no curral, que docemente, através da manhã clara, o ia levando para o Céu.