ABELARDO e Heloísa (mito do amor romântico e trágico) → Medievalismo

"Apaixonar-se é ingressar em um estado de anestesia da percepção"
(H.L.Mencken)

Pedro Abelardo (1079–1142) foi teólogo, filósofo e lingüista. Por seu azar, ele se apaixonou pela linda Heloísa, sobrinha de um cônego muito rico, que morava em Paris. A jovem, seduzida pela inteligência de Abelardo, a ele se entregou perdidamente. Para lavar a honra da família, o cônego Fulbert mandou castrar o jovem amante da sobrinha. As cartas trocadas entre os dois amantes constituem uma das mais belas obras do início da Baixa Idade Média (→ Medievalismo). Mas seus escritos não tratam apenas de amor. Na sua Dialética encontramos a distinção entre significante (o aspecto gráfico ou sonoro das palavras) e o significado (os conceitos universais): na articulação entre esses dois signos residiria a essência da linguagem humana, conforme o culto Abelardo. O romance entre a bela Heloísa e o filósofo Pedro Abelardo começou em Paris, no início do séc. XII.

Abelardo formara-se pela Escola Catedral de Notre Dame, tornando-se, em pouco tempo, muito conhecido por admirar os filósofos não-cristãos, numa época de forte poder da Igreja Católica. Heloísa, também ela amante da cultura, se interessava pelas teses polêmicas de Abelardo e procurou se aproximar dele através de seus professores. Mas foi em vão; até que, numa tarde, a bela jovem saiu para passear com sua criada Sibyle e se aproximou de um grupo de estudantes, que estavam discutindo sobre filosofia. Seu chapéu foi levado pelo vento, indo parar justamente nos pés do jovem que era o centro das atenções, o mestre Abelardo. Ao escutar seu nome, o coração de Heloísa disparou. Ele apanhou o chapéu e, quando Heloísa se aproximou para pegá-lo, logo a reconheceu como a Heloísa de Notre Dame, convidando-a para juntar-se ao grupo. Risos jocosos foram ouvidos, mas cessaram imediatamente quando o olhar dos dois posou um sobre o outro. Heloísa recolocou seu chapéu, fez uma reverência a Abelardo e se retirou. Desde esse encontro, Heloísa não conseguiu mais esquecer Abelardo. Fingiu estar doente, dispensou seus antigos professores e passou a interessar-se pelas obras de Platão e Ovídio, pelos versos eróticos do bíblico "Cântico dos Cânticos", pela alquimia e pelo estudo dos filtros, essências e ervas. Ela pressentira que Abelardo, atraído pelas suas atividades culturais, viria até ela. E deu certo, pois, quando Abelardo ficou a par dos estudos de Heloísa, imediatamente a procurou. Ele tornou-se amigo de Fulbert de Notre Dame, tio e tutor de Heloísa, que logo o aceitou como o mais novo professor de sua sobrinha, hospedando-o em sua casa, em troca das aulas noturnas que ele lhe daria. Em pouco tempo, essas aulas passaram a ser ansiosamente aguardadas e, contando com a confiança de Fulbert e a cumplicidade da criada, os dois ficavam cada vez mais a sós. Em alguns meses, conheceram-se muito bem, e só tinham paz de espírito quando estavam juntos. Um dia Abelardo tirou o cinto que prendia a túnica de Heloísa e os dois se amaram apaixonadamente.

A partir desse momento, Abelardo passou a se desinteressar de tudo, só pensando em Heloísa, descuidando-se de suas obrigações como professor. Não tardaram a surgir problemas, pois esse amor ia contra a moral da época, que mandava reprimir os impulsos sensuais, não aceitava a prática do prazer sexual fora do casamento e não admitia o matrimônio entre jovens de classes sociais diferentes. Assim, quando a criada Sibyle adoecera, outra serva encontrou uma carta de Abelardo dirigida a Heloísa e a entregou a Fulbert, que imediatamente expulsou o mestre de sua casa. No entanto, isso não foi suficiente para separar os jovens amantes. Heloísa preparava poções para seu tio dormir e, com a ajuda da criada Sibyle, se encontrava com Abelardo no porão, local que passou a ser o ponto de encontro dos dois amantes. Uma noite, alertado por outra criada, Fulbert acabou por descobri-los. Heloísa foi espancada e a casa passou a ser cuidadosamente vigiada. Mesmo assim, o amor de Abelardo e Heloísa não diminuiu e eles passaram a se encontrar onde pudessem, especialmente nas sacristias e confessionários das catedrais, os únicos lugares que Heloísa podia freqüentar sem acompanhantes. Heloísa acabou engravidando e, para evitar o escândalo, Abelardo levou a jovem à aldeia de Pallet, situada no interior da França. Ali, Abelardo deixou Heloísa aos cuidados de sua irmã e voltou para Paris. Não aguentando a solidão que sentia, longe de sua amada, Abelardo resolveu falar com Fulbert, para pedir seu perdão e a mão de Heloísa em casamento.

Surpreendentemente, Fulbert o perdoou e concordou com o casamento. Ao receber as boas novas, Heloísa, deixando a criança com a irmã de Abelardo, voltou a Paris, sentindo, no entanto, um prenúncio de tragédia. Casaram-se no meio da noite, às pressas, numa pequena ala da Catedral de Notre Dame, sem nem trocar alianças ou um beijo diante do sacerdote. O sigilo do casamento não durou muito, e logo começaram a zombar de Heloísa e da educação que Fulbert lhe dera. Publicamente ofendido, Fulbert resolveu dar um fim àquilo tudo. Contratou dois carrascos que invadiram o quarto de Abelardo durante a noite e cortaram sua genitálias. Após essa tragédia, Abelardo e Heloísa jamais voltaram a se falar. Ela ingressou no convento de Santa Maria de Argenteul, caindo em profundo estado de depressão e só retornando à vida aos poucos, conforme iam surgindo notícias de melhora de seu amado. Para tentar amenizar a dor que sentiam pela falta um do outro, ambos passaram a dedicar-se exclusivamente ao trabalho. Abelardo construiu uma escola-mosteiro ao lado da escola-convento de Heloísa. Viam-se diariamente, mas não se falavam nunca. Apenas trocavam cartas apaixonadas. Abelardo morreu em 1142, com 63 anos. Heloísa ergueu um grande sepulcro em sua homenagem e faleceu algum tempo depois, sendo, por iniciativa de suas alunas, sepultada ao lado de Abelardo. Conta-se que, ao abrirem a sepultura de Abelardo, para ali depositar Heloísa, encontraram seu corpo ainda intacto e de braços abertos, como se estivesse aguardando a chegada da amada. Esta história de amor infeliz, junto com a de Tristão e Isolda, inaugura na Europa o tema da paixão fatal e da morte como único lugar seguro para a união de dois seres apaixonados.

O tema, que retoma o mito pagão de Eros e Tânatos, teve muito sucesso na cultura ocidental, explorado exemplarmente por Shakespeare na sua tragédia Romeu e Julieta. Ainda hoje, o drama deste amor sublime medieval continua sendo representado, especialmente por companhias de teatro amador no meio universitário, exaltando o código individual e natural (o direito à liberdade de pensar e sentir) e condenando o código social (a opressão dos que têm o poder).