ODISSÉIA (a epopéia da viagem) → HomeroÉpicaUlisses

Odisseu é o nome grego do latino Ulisses, uma das figuras mitológicas melhor acabada da cultura grega. O mito de Ulisses traspassa a história da Literatura de ponta a ponta: da poesia épica da Grécia primitiva (Odisséia, de Homero: séc. VIII AC.) ao romance moderno de experimentalismo formal (Ulisses, de James Joyce: 1921), influenciando também outras produções artísticas na pintura, na escultura, no cinema. Começamos a delinear a figura de Ulisses a partir do início do poema homérico:

"Canta para mim, ó musa, o varão industrioso que,
depois de haver saqueado a cidadela sagrada de Tróade,
vagueou errante por inúmeras regiões, visitou cidades
e conheceu o espírito de tantos homens...
Deusa, filha de Zeus, conta-nos, a nós também, algumas destas façanhas,
começando onde quiseres...
Encontravam-se já em suas pátrias todos os outros heróis que,
na guerra ou sobre as ondas do mar, haviam escapado da morte violenta.
Ulisses era o único que todavia ansiava pelo regresso e pela esposa,
retido como estava em gruta profunda pela veneranda ninfa Calipso,
deusa entre as deusas, que ardia no desejo de o tomar como esposo...
"

Como a Ilíada, este outro poema atribuído a Homero inicia com um "prólogo" ou "exórdio", em que o autor invoca a divindade protetora dos poetas para que se digne contar para ele façanhas divinas e humanas. O poeta, portanto, se apresenta como intermediário entre a divindade e a humanidade: ele contará para os ouvintes o que a musa lhe revelar. É a concepção do poeta "vate", cujo canto é inspirado pela divindade, assim como os escritores dos Livros Sagrados (Bíblia, Corão>Maomé, Vedas>Buda). Além da Invocação, o trecho inicial contém a Proposição, isto e, a síntese do assunto, objeto do poema: "o varão industrioso". Como o título exprime, a Odisséia é a narração das aventuras de Odisseu, nome grego de Ulisses, desde sua partida de Tróia, saqueada pelos príncipes gregos, seus confederados, até a chegada em Ítaca, sua pátria. O exórdio não faz referência a dois episódios que ocupam vários cantos do poema: a visita de Telêmaco, filho de Ulisses, a Pilos e a Esparta e a matança dos pretendentes à mão de Penélope. Por isso, alguns críticos consideram a Odisséia composta pela aglutinação de três rapsódias, originariamente separadas: "a viagem de Ulisses", "a viagem de Telêmaco" e "a vingança de Ulisses". O que chegou até nós foi um poema composto de uma história central, a das peripécias de Ulisses na sua viagem de volta para Ítaca, e de duas histórias secundárias que, embora encaixadas, mantêm com a primeira uma conexão estrutural e semântica não desprezível, se considerar que o substrato factual de toda poesia épica primitiva é proveniente da sutura de várias lendas preexistentes à elaboração artística da obra.

A situação inicial da trama está in medias res: o poema começa quando Ulisses já se encontra retido pela ninfa Calipso, há mais de sete anos, na ilha Ogígia, nas proximidades do estreito de Gibraltar, que separa o Mediterrâneo do Atlântico, o fim do mundo conhecido pelos gregos antigos. O que lhe aconteceu antes, desde sua partida de Tróia, situada no litoral da Ásia Menor, é contado mais tarde, na corte de Alcino, rei dos feácios, na ilha Esquéria, na Grécia insular. A técnica narrativa da inversão temporal, apresentando parte do relato através do olhar retrospectivo, constitui um recurso estilístico de grande valor estético: os fatos passados são narrados como se estivessem acontecendo, conferindo um aspecto dramático à narrativa. Seu inconveniente é uma certa dificuldade em acompanhar a sucessão dos acontecimentos, o fio da história. É de se salientar, porém, que a dificuldade do entendimento da fábula da Odisséia atinge apenas o leitor moderno da obra atribuída a Homero, pois ele não conhece as histórias, os mitos e as lendas, que formavam o patrimônio cultural dos gregos da época pré-clássica. Lembramos que Homero (ou outro rapsodo) elaborou artisticamente um material histórico e religioso já do conhecimento de seus contemporâneos. Para darmos uma idéia do conteúdo da obra, reduzimos os 24 cantos em 10 núcleos fabulares, seguindo a ordem cronológica dos fatos: 1) De Tróia ao sul da Itália; 2) Um ano com a deusa Circe; 3) No reino dos mortos; 4) Entre Cila e Caribdes; 5) Sete anos com a ninfa Calipso; 6) Ulisses e Nausica; 7) O regresso a Ítaca; 8) A viagem de filho Telêmaco; 9) Encontro de Ulísses e Telêmaco; 10) A vingança e a paz final.

Sentido do poema

Enquanto a Ilíada é a epopéia da guerra (→ Marte), em que se exalta a afirmação dos valores individuais de heróis, transformados em personagens profundamente humanos, tratando do esforço coletivo dos gregos em suas conquistas de novos territórios, a Odisséia é a epopéia do mar, visto que seu tema principal é a narração das viagens marítimas de Ulisses, rumo à volta para a sua cidade de origem. Os gregos da época dos poemas homéricos conheciam apenas as ilhas e os territórios banhados pelos mares Iônio e Egeu. A Odisséia é a descrição poética de longínquas regiões, banhadas pelo Mediterrâneo e pelo Tirreno; assim como o mito dos Argonautas, cantado por Eurípides na sua tragédia Medeia, ilustra a luta dos gregos para desenvolverem o comércio no mar Negro. Pelo canto das peripécias do andarilho Ulisses, os ouvintes de Homero podiam admirar os costumes de países estranhos. O grande valor didático deste poema reside, portanto, na abertura para o conhecimento de um mundo novo e maravilhoso. Junto com as narrativas das aventuras fantásticas de lotófagos, ciclopes e sereias, temos a descrição de episódios realísticos que ocorrem nas cortes das cidades de Esparta, de Pilos, de Esquéria e de Ítaca. A viagem de Ulisses é retardada em dez anos porque ao poeta interessa, mais do que a narração do regresso do herói, a descrição dos lugares por ele visitados. Para superar as dificuldades e os perigos inerentes a uma longa viagem por frágeis embarcações e num mundo estranho, exige-se do herói uma qualificação específica: ele deve ser sábio, inteligente, astuto, prudente. Esta caracterização acompanha o herói desde seu nascimento, como podemos verificar pelo estudo do mito de → Ulisses. Filho de Sísifo e neto de Autólico, os dois homens mais inteligentes da Grécia mítica (Laertes foi apenas o pai adotivo de Ulisses), a vida lendária do protagonista da Odisséia é constelada de episódios em que sobressai sua sagacidade: a) aconselha o pai de Helena a estabelecer, entre os noventa e nove príncipes pretendentes a mão de sua filha, o pacto de respeitar a liberdade de escolha da moça e de zelar pela união do casal; b) desmascara Aquiles disfarçado de mulher para não ir à guerra contra Tróia; c) inventa o cavalo de madeira para penetrar na cidade assediada; d) engana o ciclope Polifemo, salvando a si e a seus companheiros; e) amarra-se ao mastro do barco e coloca cera nos ouvidos dos companheiros para resistirem ao canto das sereias; f) passa incólume entre Cila e Caríbdis, os temidos rochedos-monstros; g) é o único grego a não comer das carnes dos bois consagrados ao deus Sol, fugindo ao castigo divino; h) chega a Ítaca disfarçado de mendigo, para sondar o ambiente e maquinar a vingança contra os pretendentes à mão de sua esposa. A Odisséia, epopéia de regresso do herói à terra de origem, representa a passagem da era de migrações e de conquistas dos povos gregos para a época de fixação nas várias "póleis". A fidelidade da esposa Penélope, o amor filial de Telêmaco, a afeição do cão Argos, do porqueiro Eumeu e da escrava Euricléia, são bens estáveis, cujo valor é considerado superior aos encantamentos de Circe, à divinização prometida por Calipso, à beleza e à juventude da princesa Nausica. Acima das aventuras maravilhosas, gozadas ou sofridas pelo herói em regiões estranhas, está o desejo da volta ao lar e da reconquista de seu patrimônio material e espiritual.