ROMANCEGênero literário → Narrativa

O verdadeiro escritor nada tem a dizer.
O que ele tem é apenas um modo de dizê-lo.
(Alain Robbe-Grillet)

Etimologicamente, a palavra "romance" deriva da expressão latina romanice loqui, "falar românico", ou seja, falar num dos vários dialetos europeus que se formaram a partir da língua da antiga Roma, em oposição ao latine loqui, que era a língua culta da Idade Média (→ Medievalismo), falada e escrita apenas por clérigos e nobres. E porque nesses dialetos populares contavam-se histórias de amor e de aventuras cavaleirescas, transmitidas oralmente, a palavra "romance" passou a indicar uma longa narrativa sentimental, forma cultural que viveu à margem da literatura oficial durante a época medieval e renascentista. Também no mundo greco-romano aconteceu o mesmo fenômeno: paralelamente aos gêneros literários considerados "clássicos", porque modelares e ensinados nas escolas (tragédia, comédia, épica, lírica, historiografia, oratória), havia outras formas de cultura que circulavam entre a grande massa do povo. Tratava-se de narrativas mais transmitidas oralmente do que escritas, visto que a maioria era analfabeta. Pelos textos que chegaram até nós podemos detectar duas vertentes da ficção em prosa: a narrativa "idealizante" do romance grego e a narrativa "satírica" do romance latino. A primeira é composta de longas histórias de amor e de aventuras, centradas sobre um casal de namorados que, após superarem incríveis obstáculos, com a ajuda divina, chegam a realizar seu sonho de amor. De cunho profundamente sentimental, tais histórias, como as novelas da televisão da época atual, cultivavam o desejo utópico do triunfo do amor, da verdade, da justiça.

Lembramos alguns títulos de obras escritas nos últimos dois séculos antes de Cristo: Dafnis e Cloe, de Longo; As Aventuras de Quereas e Calíroe, de Caritão de Afrodísia; Teágenes e Cariclea, de Heliodoro de Émeso; Habrócomes e Antia, de Xenofonte de Éfeso. A outra vertente da prosa ficcional difundiu-se mais no mundo latino: de cunho fortemente realístico, apresentava quadros da vida cotidiana nos quais estavam anotadas as mazelas das várias classes sociais. O Satíricon, de Petrônio, e O Asno de Ouro (→ Metamorfoses), de Apuleio, são bons exemplos do tipo de literatura picaresca produzida no inicio da era cristã. Essas narrativas apresentam uma visão dionisíaca do mundo, sendo formas literárias miméticas da realidade. São representações artísticas da experiência cotidiana, sem transposição ideal. Neste sentido, representam a paródia do gênero romanesco, cultivado pelos escritores heleno-alexandrinos. O tipo de romance em língua latina corresponde ao que os ingleses chamam de novel pela sua forma "anatômica", embora não faltem elementos de outras espécies de ficção em prosa. A "anatomia", no sentido de dissecação da realidade, predomina no romance romano, aparecendo no enredo fracamente estruturado, nos personagens, fortemente caracterizados, na temática ou pensamento inspirador continuamente envolto num dialogismo (→ Dialética) que tende a pôr em evidência o caráter poliédrico da verdade. A tendência para as discussões caracteriza a literatura de inspiração satírica e irônica, cujo arquétipo se encontra, conforme o estudioso N. Frye (Anatomia da Crítica) no "mito do inverno" que, em oposição ao "mito do verão" da narrativa idealizante e romanesca, simboliza a outra face da psique humana: a tendência para viver segundo o instinto, a revolta, a crítica, a paródia, a negação dos valores socialmente aceitos. O crítico russo M. Bakhtine (A Poética de Dostoievski) admite uma ligação profunda deste tipo de Literatura com o espírito do Carnaval e considera as narrativas de Petrônio e de Apuleio, junto com as sátiras do grego Menipo, como obras "carnavalizadas", pela linguagem de baixo calão e pelos motivos recorrentes: a aventura do herói como forma de aprendizagem, o inconformismo e a curiosidade, o sparagmos (a descrição de corpos dilacerados e de outras obscenidades), o mundo às avessas, estados psíquicos anormais, superstição e magia.

Portanto, quer a narrativa sentimental, quer a ficção realista, embora sem o nome de romance, têm origens muito remotas, contrariando a opinião de críticos que colocam a origem do romance na época do Romantismo. Ocorre que esse tipo de ficção em prosa viveu por longo tempo ofuscado pelos gêneros literários clássicos e não recebeu a devida apreciação crítica. Todas as teorias poéticas da época do Classicismo se preocuparam apenas com os textos versificados de Homero, Virgílio, Dante Alighieri, Camões etc. Somente com o declínio da poesia épica, a partir do início do séc. XVIII, a ficção em prosa, assumindo o papel da epopéia de expressar a totalidade da vida, passou a adquirir o estatuto de gênero artístico. O romance, considerado o filho bastardo da epopéia, tornou-se, então, a forma literária que melhor exprimia os anseios da nascente burguesia, produto das revoluções Comercial e Industrial, que derrubaram o absolutismo político e cultural. A ficção em prosa passou a ser literatura não mais destinada a um pequeno círculo de gente culta, mas à classe média, ávida de encontrar, consignados em forma de arte, seus problemas existenciais e suas aspirações. Enquanto antes o romance era considerado uma forma de literatura amena, feita para o entretenimento e a diversão de uma camada da sociedade não-educada na severidade dos estudos clássicos, com o advento do Romantismo a narrativa em prosa passa a exercer a função da antiga poesia épica, que tinha a finalidade de representar a totalidade da vida, quer explorando os conflitos existenciais, quer analisando comportamentos e paixões humanas.

Mas o romance, muito embora conquistasse um lugar de destaque na história da literatura ocidental na época romântica, é com o movimento realista que ele se afirma como o gênero artístico mais cultivado. Segundo a especiosa tese do lingüista russo Roman Jakobson, o Romantismo está vinculado mais diretamente ao plano metafórico da linguagem, em que o eixo da similaridade predomina sobre o da contigüidade (o que acontece mais na poesia lírica), enquanto a literatura realista se relaciona melhor com a figura retórica da metonímia, mais indicada para expressar as complexas conexões de tempo, de espaço, ações e personagens, que povoam o mundo da ficção em prosa. Nas duas épocas (romântica e realista), porém, o protagonista do romance, diferentemente do herói da poesia épica, não é mais um varão de ilustre prosápia que tem uma nobre missão a cumprir, mas um homem comum que enfrenta a dura realidade cotidiana: um médico, uma prostituta, um operário, uma jovem apaixonada. A temática é variada como a vida, que é multiforme. A tipologia da ficção em prosa é muito vasta. Temos, por exemplo, o romance picaresco (Vida de Lazarillo de Tormes, de autor anônimo), cavaleiresco (Dom Quixote, de Cervantes), de aventura (Robinson Crusoé, de Daniel Defoe), sentimental (Manon Lescaut, do Abade Prévost), histórico (Ivanhoé, de Walter Scott), autobiográfico (Confissões, de Rousseau), de capa e espada (Os três mosqueteiros, de Alexandre Dumas), psicológico (O vermelho e o negro, de Stendhal), romântico (Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe), gótico ou de terror (Moby Dick, de Melville), realista (Madame Bovary, de Flaubert; Dom Casmurro, de Machado), de formação (O ateneu, de Raul Pompéia), naturalista (Germinal, de Zola), existencialista (A náusea, de Sartre), de realismo crítico (Faulkner, Steinbeck, Hemingway, Graciliano Ramos), de realismo fantástico (Borges, Cortázar, Asturias, Carpentier, Fuentes, Gabriel Garcia Márquez), psicanalítico (Marcel Proust, Albert Camus, Virgínia Woolf, Clarice Lispector), de experimentalismo formal (James Joyce, Guimarães Rosa, Osman Lins), do absurdo humano (Franz Kafka).

Outras classificações são feitas não em função do aspecto temático, mas tendo em conta a predominância de um dos elementos constitutivos do gênero narrativo. Assim, fala-se em "romance de ação", quando predomina o nível fabular: o autor dá mais importância à intriga, o que acontece no romance de aventura, de capa e espada, de reconstrução histórica. É chamado de "romance de personagem" à narrativa em que se dá preferência à caracterização do protagonista e de outros atores: um bom exemplo é Dostoievski, considerado o pai do romance psicológico. Chama-se romance "de espaço" a narrativa centrada na descrição de um ambiente: Notre Dame de Paris, de Victor Hugo; O Cortiço, de Aluísio Azevedo. Distingue-se ainda o romance urbano, campesino, regionalista. O romance de "fluxo de consciência" põe em destaque a problemática do tempo psicológico e do foco narrativo. O crítico Alfredo Bosi (História concisa da Literatura Brasileira), estudando o romance moderno e contemporâneo, detecta três filões de narrativa ficcional. 1) os romances de "tensão crítica": narrativas voltadas para os problemas sociais, com várias modalidades de descrição da realidade, mas sem o pretenso cientificismo da corrente naturalista; 2) de "tensão interiorizada": os romances preocupados com o mundo subjetivo do personagem, influenciados pela narrativa psicológica de Dostoiévski e pelas doutrinas psicanalíticas; 3) "de tensão transfigurada": as narrativas com tendência a renovar o gênero literário, experimentando novas estruturas narrativas e novos padrões lingüísticos.

Mais importante do que qualquer classificação tipológica, sempre fluida e aleatória, é relevar o papel de predominância no campo da literatura que o gênero romanesco exerceu do romantismo para cá. Especialmente no século XX, o romance tornou-se, sem dúvida alguma, a forma artística mais apta a expressar as perplexidades da nossa realidade. Os melhores ficcionistas em prosa da modernidade souberam revestir fábulas e personagens do mais profundo sentido humano, enriquecendo suas histórias imaginárias com a reflexão histórica, o ensaio filosófico, a descoberta científica, o pensamento político, a introspecção psicológica, a revolução ética, a renovação lingüística. Do irlandês James Joyce (Ulisses, 1922) ao alemão Thomas Mann (A montanha mágica, 1924), do francês Marcel Proust (Em busca do tempo perdido, 1913–1927) ao austríaco Robert Musil (O homem sem qualidades, 1930–1940), do tcheco Franz Kafka (O processo, 1925) ao seu compatriota Milan Kundera (A insustentável leveza do ser, um dos últimos best-sellers da Literatura Ocidental), o romance deu mostra de uma extraordinária vitalidade, impondo-se como a forma de arte mais rica e mais surpreendente.