ÉPICA (Epopéia: poema narrativo em versos) → Gênero literário → Narrativa
Do grego épos (canto heróico), a poesia épica ou epopéia é um longo poema narrativo, que exalta as origens ou façanhas heróicas de um povo. Na Literatura Ocidental, os primeiros poemas épicos, chamados de "primitivos" pois elaborados ainda na fase arcaica da cultura grega, são A Ilíada e A Odisséia, atribuídos ao rapsodo Homero. Já na Roma antiga temos o primeiro grande exemplo de epopéia "reflexa", de autoria conhecida (o poeta latino Virgílio), composta a partir dos poemas gregos preexistentes: A Eneida.
Na Idade Média encontramos vários poemas épicos, de autoria desconhecida, que exaltam as façanhas de heróis nacionais: o francês Roland, o espanhol Cid, o alemão Sigfrido (→ Nibelungos). A Itália medieval nos deixou a obra literária mais completa e mais fascinante: A Divina Comédia, de Dante Alighieri, a que dedicamos um estudo mais detalhado, pois, antes de ser apenas mais um poema épico, é uma obra didático-alegórica sobre toda a humanidade, colhida no penoso caminho da passagem do pecado para a purificação e a glória. Com o Humanismo e o Renascimento, a partir do século XIV, junto com a descoberta e a valorização da cultura e da civilização greco-romana, é reativado também o filão da poesia épica medieval, especialmente no tocante ao espírito da Cavalaria. A Itália renascentista cultiva abundantemente a memória coletiva do herói histórico-mítico Rolando, que se torna o protagonista de vários poemas épico-cavaleirescos. Mudando, por eufonia, o nome de Roland para "Orlando" e misturando as aventuras guerreiras, próprias do ciclo carolíngio (Carlos Magno), com as aventuras amorosas, extraídas do ciclo bretão (→ Graal), os renascentistas italianos criam um personagem, ao mesmo tempo, valoroso na guerra e apaixonado no amor. Luigi Pulci, inspirando-se no poema anônimo popular Orlando, cria o seu Morgante (1483), poema cavaleiresco que trata das aventuras militares e da morte do grande herói mítico francês. O tema é retomado por Matteo Maria Boiardo, no seu Orlando Enamorado, obra inacabada pela morte do poeta (1494). Mas o poema que mais artisticamente trata do assunto é o Orlando Furioso (1516), de Ludovico Ariosto. O poeta italiano pretende continuar a obra inacabada pelo Boiardo, começando a história de onde este tinha terminado. Ele se inspira não só nas tradições bretã e carolíngia, mas também na poesia épica greco-romana. O pretexto histórico é a descrição da luta entre muçulmanos e cristãos pela posse da cidade de Paris, mas o núcleo da narrativa é o amor de Orlando por Angélica. Este amor chega primeiramente à paixão e depois leva o protagonista à loucura, quando descobre que sua amada se casa com o negro Medoro. Nesta aventura principal encaixam-se várias outras histórias de amor, passionais e infelizes, em que se exalta o idealismo cavaleiresco, retratado especialmente na fidelidade ao sentimento amoroso. Outro poema épico-cavaleiresco italiano é a Jerusalém Libertada, de Torquato Tasso, que tem como fundo histórico a primeira Cruzada dos cristãos para a libertação da Cidade Santa do domínio dos infiéis, no fim do século XI. Mas a guerra entre cristãos e muçulmanos é apenas um pretexto para o poeta cantar os amores aventurosos das duplas Rinaldo-Armida e Tancredi-Clorinda. Esta obra, terminada em 1575, já na época do Barroco italiano, espelha o clima austero da Contra-Reforma (→ Lutero). O poeta, de constituição doentia e de sensibilidade melancólica, exprime artisticamente o contraste entre a força da paixão amorosa e o medo do pecado. Mas o poema épico que melhor expressa os ideais da Renascença é Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões, a que dedicamos um estudo mais detalhado, pois o poema camoniano reflete os dois postulados principais da cultura renascentista: a imitação dos modelos artísticos da Antiguidade greco-romana e a exaltação do homem na sua conquista de novos caminhos marítimos, com vistas a ampliar suas atividades comerciais. Outro poema famoso, mais religioso do que épico, é O Paraíso Perdido, do escritor inglês John Milton. Para o estudo da poesia épica no Brasil, cabe ressaltar que à Literatura Brasileira faltaram os dois fatores, entre si estritamente relacionados, indispensáveis para a produção de um verdadeiro poema épico: um grande herói nacional e um grande poeta capaz de exaltar o sentimento de brasilidade. Aos dois maiores poemas considerados épicos, O Uraguai, de Basílio da Gama e o Caramuru, de Santa Rita Durão, conforme análise feita nos respectivos verbetes, faltam as características principais do gênero: os assuntos não estão centrados sobre ações gloriosas e grandiosas, realizadas em benefício da nacionalidade brasileira; os protagonistas não são heróis nacionais; acontecimentos e personalidades são realidades históricas ou invenções literárias que não sofreram a recriação carismática do mito popular. Como sabemos, o material do verdadeiro poema épico não é invenção do autor, pois acontecimentos e personagens já existiam no cabedal cultural do povo. Isso não acontece com a poesia épica brasileira: Cacambo e Lindóia, Caramuru e Paraguaçu são personagens que começam a existir na consciência popular após e não antes da produção poética. Pertencem, portanto, mais ao mundo da criação lírico-romanesca do que ao universo da ficção heróico-épica. Produzidos na época do Arcadismo brasileiro, os dois poemas acusam a principal característica do Neoclassicismo: a imitação dos mais importantes gêneros literários cultivados na Renascença européia, quando se deu o retorno ao estudo dos autores clássicos da literatura greco-romana.
Com o Romantismo acabou o ciclo da poesia épica na cultura ocidental, passando a ser o romance o gênero narrativo mais adequado para expressar os anseios da nova classe social, a burguesia. Estudamos, em verbetes separados, os principais poemas épicos da Literatura ocidental. Mas, além das peculiaridades de cada obra, existem elementos em comum, que nos possibilitam determinar e qualificar o gênero épico. É bom apontar algumas características fundamentais. Antes de tudo, é preciso distinguir a poesia épica primitiva do poema épico reflexo. A forma primeira está nas origens das nacionalidades ainda na fase da cultura arcaica e oral, quando a grande massa popular se alimenta apenas das narrações míticas e lendárias, que a imaginação coletiva foi criando a partir de um acontecimento histórico. Após a fase da transmissão oral, quando um povo começa a dominar o alfabeto e a ter uma língua ou dialeto escrito, as histórias, mitos ou lendas são elaboradas por um poeta que lhes dá uma veste literária e as consagra para sempre. Assim aconteceu na Grécia Antiga: ao redor da Guerra de Tróia, que se deu em meados do século XII a.C., foram-se criando lendas sobre os heróis gregos e troianos que participaram do fabuloso evento. O fato histórico, ao longo do tempo, foi deturpado pela fantasia do povo que, misturando as ações humanas com as intervenções das divindades, transmitiu oralmente cantos que exaltavam o valor guerreiro de Aquiles, a astúcia de Ulisses, a beleza sedutora de Helena, a fidelidade de Penélope, a prepotência de Agamenão, o poder supremo de Júpiter, a rivalidade das deusas Juno e Minerva com relação a Vênus, a força inelutável do Destino (→ Fado). Tais cantos, referentes ao chamado "ciclo troiano", no século VIII a.C., quando o dialeto iônico começou a ser escrito, encontraram um poeta, chamado de rapsodo (costureiro), Homero, segundo a tradição, que os enfeixou nos dois poemas chegados até nós: A Ilíada e A Odisséia. Coisa semelhante aconteceu na Europa, na Baixa Idade Média, nos alvores das civilizações nacionais modernas. Ao redor do século XI, quando vários povos chegaram à independência lingüística pela formação de idiomas nacionais, derivados da antiga língua latina não mais falada, escritores anônimos criaram poemas épicos recolhendo os fatos gloriosos de sua terra transmitidos pela tradição oral. Na Alemanha, as lendas surgidas ao redor da invasão da Burgúndia por Átila, rei dos hunos, deram origem ao poema Os Nibelungos; na Espanha, a luta entre cristãos e muçulmanos motivou El Cantar de mio Cid; na França, a guerra de Carlos Magno contra os mouros foi o motivo de La Chanson de Roland. Este último poema pertence às chamadas "canções de gesta", palavra latina que significa "ação ilustre", tendo quase o mesmo sentido de épico. Outra variante de épico é a palavra de origem norueguesa "saga", que mais tarde passou a indicar a história de uma família ilustre (The Forsyte Saga, de John Galsworthy) ou Uma jornada heróica, de Érico Veríssimo. Notamos, de passagem, que gesta e saga, como formas simples, antes de serem absorvidas por uma forma culta (poesia épica ou romance), podem apresentar sentidos próprios, diferenciados. Assim, a saga é uma lenda pagã em torno de uma família, cuja disposição mental leva a construir o universo em termos de clã, de árvore genealógica, de relações de sangue. Alguns romances cíclicos podem ser considerados sagas: Rougon-Macquart ("Histoire naturelle et sociale d’une famille sous le Seconde Empire"), de Émile Zola; O tempo e o vento, de Érico Veríssimo. Já a gesta está mais ligada à movimentação de povos (gregos, semitas, germânicos), sendo o herói nacional o representante das altas virtudes de uma raça, como foi a figura de Roland para os franceses ou de Sigfrido para os germânicos.
Até agora falamos da poesia épica "primitiva", aquela que brota espontaneamente do seio de um povo na fase arcaica de sua formação cultural, sendo que nem sequer sabemos o nome do autor que deu forma artística aos cantos heróicos provenientes da tradição oral. Diferente é a epopéia "reflexa", criada por um poeta historicamente conhecido que, vivendo no apogeu político e cultural de sua nacionalidade, teve a intenção explícita de exaltar os fatos gloriosos de seu povo. É o caso da Eneida, de Virgílio, e de Os Lusíadas, de Camões. A primeira foi escrita sob o Principado de Octávio César Augusto (por encomenda, segundo alguns críticos) com o fim de estabelecer uma conexão entre a civilização troiana e a latina através da figura lendária de Enéias, ascendente semidivino da família Júlia; a segunda, na época da Renascença, para exaltar o ciclo das grandes navegações, especialmente a contribuição portuguesa no início da Revolução Comercial provocada pelo deslocamento do eixo do comércio do Mediterrâneo para o oceano Atlântico. Essas e outras epopéias são chamadas reflexas, quer porque imitam poemas preexistentes (Camões imitou Virgílio, que imitou Homero), quer porque não se acredita ingenuamente nos fatos narrados: eles são submetidos ao crivo da reflexão.
Quanto à sua estrutura genérica, o poema épico é composto de uma parte introdutória, que compreende a Proposição (antecipação do assunto que será tratado), a Invocação (pedido de ajuda à divindade) e, às vezes, a Dedicatória (a um homem ilustre), e da parte maior chamada de Narração. Esta, geralmente, não segue a ordem cronológica na exposição dos fatos, mas começa in medias res: a trama tem início com a narração de um episódio importante e, a partir daí, através do recurso técnico da retrospecção, uma personagem nos conta o que aconteceu anteriormente. O foco narrativo está centrado sobre um narrador onisciente, mas volta e meia aparecem outras focalizações evidenciadas pelas falas das personagens ou pela intervenção do eu poemático. O estilo é solene, a linguagem rebuscada e a composição estrófica, rímica e métrica segue cânones rígidos apropriados a esse gênero literário. Outra característica relevante é o recurso ao maravilhoso religioso ou lendário, pagão ou cristão: as divindades participam ativamente das ações humanas, privilegiando-se a força do destino que dirige os acontecimentos e as condutas dos heróis. Quanto ao sentido, a epopéia é o canto da totalidade da vida de um povo em determinado estágio de sua civilização. A narração épica, além de verter sobre um fato bélico grandioso, historicamente acontecido, mas idealizado pela imaginação coletiva criadora de mitos e de lendas, está diretamente relacionada com o surgimento ou o progresso de uma nacionalidade. A totalidade implica a transcendência: o herói épico, ser híbrido, pois humano dotado de prerrogativas divinas, representa o elo de ligação entre o humano e o divino, o sonho da humanidade de superar sua natureza contingente e de aproximar-se do absoluto. A trajetória de herói épico é longa e acidentada porque o interesse do poeta vai além da narração das aventuras de um homem, estando preocupado mais em explicar a origem de lugares, de objetos e de comportamentos, em descrever ambientes, costumes, organizações sociais, crenças religiosas, enfim, toda uma civilização. Daí o conceito de "épico" transcender os limites de uma forma narrativa em versos, aplicando-se também a outros tipos de manifestação cultural nos quais predomine a grandiosidade. É por isso que falamos de teatro épico, de cinema épico, de romance épico.