Índice
editar- Capítulo I
- Capítulo II
- Capítulo III
- Capítulo IV
- Capítulo V
- Capítulo VI
- Capítulo VII
- Capítulo VIII
- Capítulo IX
Era um dia um rapaz de vinte e cinco anos, bonito e celibatário, não rico, mas vantajosamente empregado. Não tinha ambições, ou antes tinha uma ambição só; era amar loucamente uma mulher e casar sensatamente com ela. Até então não se apaixonara por nenhuma. Estreara algumas afeições que não passaram de namoricos modestos e prosaicos. O que ele sonhava era outra coisa.
A viveza da imaginação e a leitura de certos livros lhe desenvolveram o germe que a natureza lhe pusera no coração. Alfredo Tavares (é o nome do rapaz) povoara o seu espírito de Virgínias, e aspirava noite e dia viver um romance como só ele o podia imaginar. Em amor a prosa da vida metia-lhe nojo, e ninguém dirá certamente que ela seja uma coisa inteiramente agradável; mas a poesia é rara e passageira — a poesia como a queria Alfredo Tavares, e não viver a prosa, na esperança de uma poesia incerta, era arriscar-se a não viver absolutamente.
Este raciocínio não o fazia Alfredo. É até duvidoso que ele raciocinasse alguma vez. Alfredo devaneava e nada mais. Com a sua imaginação, vivia às vezes séculos, sobretudo de noite à mesa do chá, que ele ia tomar no Carceller. Os castelos que ele fabricava entre duas torradas eram obras-primas de fantasia. Seus sonhos oscilavam entre o alaúde do trovador e a gôndola veneziana, entre uma castelã da idade média e uma fidalga da idade dos doges.
Não era isto só; era mais e menos.
Alfredo não exigia especialmente um sangue real; muita vez ia além da castelã, muita vez vinha aquém da filha dos doges, sonhava com Ruth ao mesmo tempo. O que ele pedia era o poético, o delicioso, o vago; uma mulher bela e vaporosa, delgada se fosse possível, em todo o caso vaso de quimeras, com quem iria suspirar uma vida mais do céu que da terra, à beira de um lago ou entre duas colinas eternamente verdes. A vida para ele devia ser a cristalização de um sonho. Essa era nem mais nem menos a sua ambição e o seu desespero.
Alfredo Tavares adorava as mulheres bonitas. Um leitor menos sagaz achará nisto uma vulgaridade. Não é; admirá-las, amá-las, que é a regra comum; Alfredo adorava-as literalmente. Não caía de joelhos porque a razão lhe dizia que seria ridículo; mas se o corpo ficava de pé, o coração ajoelhava. Elas passavam e ele ficava mais triste que dantes, até que a imaginação o levasse outra vez nas asas, além e acima dos paralelepípedos e do Carceller.
Mas se a sua ambição era amar uma mulher, por que razão não amara uma de tantas que adorava assim de passagem? Leitor, nenhuma delas lhe tocara o verdadeiro ponto do coração. Sua admiração era de artista; a bala que o devia matar, ou não estava fundida, ou não fora disparada. Não seria porém difícil que uma das que ele simplesmente admirava, lograsse dominar-lhe o coração; bastava-lhe um quebrar de olhos, um sorriso, um gesto qualquer. A imaginação dele faria o resto.
Do que vai dito até aqui não se conclua rigorosamente que Alfredo fosse apenas um habitante dos vastos intermúndios de * comia, passeava, londreava, e até (ó desilusão última!), e até engordava. Alfredo era refeito e corado devendo ser pálido e magro, como convinha a um sonhador da sua espécie. Vestia com apuro, regateava as suas contas, não era raro cear nas noites em que ia ao teatro, tudo isto sem prejuízo dos seus sentimentos poéticos. Feliz não era, mas também não torcia o nariz às necessidades vulgares da vida. Casava o devaneio com a prosa.
Tal era Alfredo Tavares.
Agora que o leitor o conhece, vou contar o que lhe aconteceu, por onde verá o leitor como os acontecimentos humanos dependem de circunstâncias fortuitas e indiferentes. Chame a isto acaso ou providência; nem por isso a coisa deixa de existir.
Uma noite, era em 1867, subia Alfredo pela Rua do Ouvidor. Eram oito horas; ia aborrecido, impaciente, com vontade de se distrair, mas sem vontade de falar a ninguém. A Rua do Ouvidor oferecia boa distração, mas era um perigo para quem não queria conversar. Alfredo reconheceu isto mesmo; e chegando à esquina da Rua da Quitanda parou. Seguiria pela Rua da Quitanda ou pela Rua do Ouvidor? That was the question.*
Depois de hesitar uns dez minutos, e de tomar ora por uma, ora por outra rua, Alfredo seguiu enfim pela da Quitanda na direção da de São José. Sua idéia era subir depois por esta, entrar na da Direita, onde iria tomar chá ao Carceller, depois do que se recolheria a casa estafado e com sono.
Foi neste ponto que interveio o personagem que o leitor pode chamar Dom Acaso ou madre Providência, como lhe aprouver. Nada mais fortuito que ir por uma rua em vez de ir por outra, sem nenhuma necessidade que obrigue a seguir por esta ou por aquela. Pois este ato assim fortuito é o ponto de partida da aventura de Alfredo Tavares.
Havia em frente de uma loja, que ficava adiante do extinto Correio Mercantil, um carro parado. Esta circunstância não chamou a atenção de Alfredo; ele ia cheio de seu próprio aborrecimento, de todo alheio ao mundo exterior. Mas uma mulher não é um carro, e a coisa de seis passos da loja, Alfredo via assomar à porta uma mulher, vestida de preto, e esperar que um criado lhe abrisse a portinhola.
Alfredo parou.
A necessidade de esperar que a senhora entrasse no carro, justificava este ato; mas a razão dele era pura e simplesmente a admiração, o pasmo, o êxtase em que ficou o nosso Alfredo ao contemplar, de perfil e à meia luz, um rosto idealmente belo, uma figura elegantíssima, gravemente envolvida em singelas roupas pretas, que lhe realçavam mais a alvura dos braços e do rosto. Eu diria que o rapaz ficara embasbacado, se o permitisse a nobreza dos seus sentimentos e o asseio do escrito.
A moça desceu a calçada, pôs um pé quase invisível no estribo do carro e entrou; fechou-se a portinhola, o criado subiu a almofada e o carro partiu. Alfredo só se moveu quando o carro começou a andar. A visão desaparecera, mas o rosto dela ficara-lhe na memória e no coração. O coração palpitava com força. Alfredo apressou o passo atrás do carro, mas muito antes de chegar à esquina da Rua da Assembléia, já o carro subia por esta acima. Quis a sua felicidade que um tílburi viesse atrás dele e vazio. Alfredo meteu-se no tílburi e mandou tocar atrás do carro.
A aventura sorria-lhe. O fortuito do encontro, a corrida de um veículo atrás de outro, ainda que não fossem coisas raras, davam-lhe sempre um ponto de partida para um romance. Sua imaginação estava já além deste primeiro capítulo. A moça devia ser uma Mata-cavalos, chamada hoje de Riachuelo.
O tílburi parou a alguns passos.
Não tardou que a moça saísse do carro e entrasse na casa, cuja aparência indicava certa abastança. O carro voltou depois pelo mesmo caminho, a passo lento, enquanto o tílburi, também a passo lento seguia para diante. Alfredo tomou nota da casa, e de novo mergulhou-se nas suas reflexões.
O cocheiro do tílburi que até então guardara um inexplicável silêncio, entendeu que devia oferecer os seus bons ofícios ao freguês.
— V. S. ficou entusiasmado por aquela moça, disse ele com ar sonso. É bem bonita!
— Parece que sim, respondeu Alfredo; vi-a de relance. Morará ali mesmo?
— Mora.
— Ah! o senhor já ali foi...
— Duas vezes.
— Foi naturalmente levar o marido.
— É viúva.
— Sabe disso?
— Sei, sim, senhor... Onde pus eu o meu charuto?...
— Tome um.
Alfredo ofereceu um charuto de Havana ao cocheiro, que o aceitou com muitos sinais de reconhecimento. Aceso o charuto, o cocheiro continuou.
— Aquela moça é viúva e luxa muito. Muito homem anda aí mordido por ela, mas parece que ela não quer casar.
— Como sabe disso?
— Eu moro ali na Rua do Resende. Não viu como o cavalo queria quebrar a esquina?
Alfredo esteve um instante calado.
— Mora só? perguntou ele.
— Mora com uma tia velha e uma irmã mais moça.
— Sozinhas?
— Há também um primo.
— Moço?
— Trinta e tantos anos.
— Solteiro?
— Viúvo.
Alfredo confessou a si mesmo que este primo era carta desnecessária no baralho. Palpitou-lhe que seria um obstáculo às suas venturas. Se fosse um pretendente? Era natural, se não estava morto para as paixões da terra. Uma prima tão bonita é uma Eva tentada e tentadora. Alfredo fantasiava já assim um inimigo e as forças dele, antes de conhecer a disposição da praça.
O cocheiro deu-lhe algumas informações mais. Havia umas partidas na casa da formosa dama, mas só de mês a mês, as quais eram freqüentadas por algumas poucas pessoas escolhidas. Ângela, que assim dizia ele chamar-se a moça, tinha alguns haveres, e viria a herdar da tia, que já estava muito velha.
Alfredo recolheu carinhosamente as informações todas do cocheiro, e o nome de Ângela para logo lhe ficou entranhado no coração. Inquiriu do número do tílburi, o lugar onde estacionava e o número da cocheira na Rua do Resende, e mandou voltar para baixo. Ao passar em frente à casa de Ângela, Alfredo deitou para lá os olhos. A sala estava alumiada, mas nenhum vulto de mulher ou de homem lhe apareceu. Alfredo recostou-se molemente e o tílburi partiu a todo o galope.
Alfredo estava contente consigo e com a fortuna. Depara-lhe esta uma mulher como aquela senhora, teve ele a idéia de a seguir, as circunstâncias o ajudaram poderosamente; sabia agora onde morava a bela, sabia que era livre, e enfim, e mais que tudo, amava.
Amava, sim. Aquela primeira noite foi toda dedicada à lembrança da visão ausente e passageira. Enquanto ela talvez dormia no silêncio da sua alcova solitária, Alfredo pensava nela e fazia já de longe mil castelos no ar. Um pintor não compõe na imaginação o seu primeiro painel com mais amor do que ele delineava os incidentes da sua paixão e o feliz desenlace que ela não podia deixar de ter. Escusado é dizer que não entrava no espírito do solitário amador a idéia de que Ângela fosse uma mulher vulgar. Era impossível que uma mulher tão bela não fosse igualmente, em espírito, superior ou, melhor, uma imaginação etérea, vaporosa, com aspirações análogas às dele, que eram de viver como se poetisa. Isto devia ser Ângela, sem o que não se cansaria a natureza a dar-lhe tão aprimorado invólucro.
Com estas e outras reflexões foi passando a noite, e já a aurora tingia o horizonte sem que o nosso aventuroso herói tivesse dormido. Mas era preciso dormir e dormiu. O sol já ia alto quando ele acordou. Ângela foi ainda o seu primeiro pensamento. Ao almoço pensou nela, pensou nela durante o trabalho, nela pensou ainda quando se sentou à mesa do hotel. Era a primeira vez que se sentia tão fortemente abalado; não tinha que ver; era chegada a sua hora.
De tarde foi a Mata-cavalos. Não achou ninguém à janela. Passou três ou quatro vezes por diante da casa sem ver o menor vestígio da moça. Alfredo era naturalmente impaciente e frenético; este primeiro revés da fortuna o pôs de mau humor. A noite desse dia foi pior que a anterior. A tarde seguinte, porém, alguma compensação lhe deu. Ao avistar a casa deu com um vulto de mulher à janela. Se não lho dissessem os olhos, dizia-lhe claramente o coração que a mulher era Ângela. Alfredo ia pelo lado oposto, com os olhos pregados na moça e tão apaixonados os levava, que se ela os visse, não deixaria de lhes ler o que andava no coração do pobre rapaz. Mas a moça, ou porque alguém a chamasse de dentro, ou porque já estivesse aborrecida de estar à janela, entrou rapidamente, sem dar fé do nosso herói.
Alfredo nem por isso ficou desconsolado.
Tinha visto outra vez a moça; tinha verificado que era realmente uma formosura notável; sentia o coração cada vez mais preso. Isto era o essencial. O resto seria objeto de paciência e de fortuna.
Como era natural, amiudaram-se os passeios a Mata-cavalos. A moça ora estava, ora não estava à janela; mas ainda ao cabo de oito dias não reparara no paciente amador. No nono dia Alfredo foi visto por Ângela. Não se admirou de que ele já de longe viesse a olhar para ela, porque isso era o que faziam todos os rapazes que ali passavam; mas a expressão com que ele olhava é que lhe chamou a atenção.
Desviou contudo os olhos por não lhe parecer conveniente que atendia ao desconhecido. Não tardou porém que de novo olhasse; mas como ele não houvesse desviado os seus dela, Ângela retirou-se.
Alfredo suspirou.
O suspiro de Alfredo tinha dois sentidos.
Era o primeiro uma homenagem do coração.
O segundo era uma confissão de desânimo.
O rapaz via claramente que o coração da bela não fora tomado de assalto, como ele supunha. Todavia não tardou que reconhecesse a possibilidade de pôr as coisas em bom caminho, com o andar do tempo, e bem assim a obrigação que tinha Ângela de não parecer namoradeira deixando-se ir ao sabor da ternura que naturalmente havia de ter lido nos olhos dele.
Daí a quatro dias Ângela tornou a ver o rapaz; pareceu reconhecê-lo, e mais depressa que da primeira vez, deixou a janela. Alfredo desta vez enfiou. Um monólogo triste e à meia voz entrou a correr-lhe dos lábios fora, monólogo em que ele acusava a sorte e a natureza, culpadas de não terem feito e dirigido os corações de modo que quando um amasse ao outro se afinasse pela mesma corda. Queria ele dizer na sua ([1]) que as almas deviam descer aos pares cá a este mundo. O sistema era excelente, agora que ele amava a bela viúva; se amasse alguma velha desdentada e tabaquista, o sistema seria detestável.
Assim vai o mundo.
Cinco ou seis semanas correram assim, ora a vê-la e ela a fugir-lhe, ora a não vê-la absolutamente e a passar noites atrozes. Um dia, estando em uma loja na Rua do Ouvidor ou dos Ourives, não sei bem onde foi, viu-a entrar acompanhada da irmã mais moça, e estremeceu. Ângela olhou para ele; se o conheceu não o disse no rosto, que se mostrou impassível. De outra vez indo a uma missa fúnebre na Lapa, deu com os olhos na formosa esquiva; mas foi o mesmo que se olhasse para uma pedra; a moça não se moveu; uma só fibra do rosto não se lhe alterou.
Alfredo não tinha amigos íntimos a quem confiasse estas coisas de coração. Mas o sentimento era mais forte, e ele sentia a necessidade de derramar o que sentia no coração de alguém. Deitou os olhos a um companheiro de passeios, com quem aliás não andava desde a aventura da Rua da Quitanda. Tibúrcio era o nome do confidente. Era um sujeito magro e amarelo, que se andasse naturalmente podia apresentar uma figura sofrivelmente elegante, mas que tinha o sestro de contrariar a natureza dando-lhe um jeito particular e perfeitamente ridículo. Votava todas as senhoras honestas ao maior desprezo; e era muito querido e festejado na roda das que o não eram.
Alfredo reconhecia isto mesmo; mas olhava-lhe algumas qualidades boas, e sempre o considerara seu amigo. Não hesitou portanto em dizer tudo a Tibúrcio. O amigo ouviu lisonjeado a narração.
— É de fato bonita?
— Oh! não sei como a descreva!
— Mas é rica?...
— Não sei se o é... sei que por ora tudo é inútil; pode ser que ame alguém e esteja até para casar com o tal primo, ou com outro qualquer. O certo é que eu estou cada vez pior.
— Imagino.
— Que farias tu?
— Eu insistia.
— Mas se nada alcançar?
— Insiste sempre. Já arriscaste uma carta?
— Oh! não!
Tibúrcio refletiu.
— Tens razão, disse ele; seria inconveniente. Não sei que te diga; eu nunca naveguei nesses mares. Ando cá por outros, cujos parcéis conheço, e cuja bússola é conhecida por todos.
— Se eu pudesse esquecer-me dela, disse Alfredo que nenhuma atenção prestara às palavras do amigo, já tinha deixado isto de mão. Às vezes penso que estou fazendo figura ridícula, porque enfim ela é pessoa de outra sociedade...
— O amor iguala as distâncias, disse sentenciosamente Tibúrcio.
— Então parece-te?...
— Parece-me que deves continuar como hoje; e se daqui a algumas semanas mais nada houveres adiantado, fala-me porque eu terei meio de te dar algum conselho bom.
Alfredo apertou fervorosamente as mãos do amigo.
— Entretanto, continuou este, seria bom que eu a visse; talvez que, não estando namorado como tu, possa conhecer-lhe o caráter e saber se é frieza ou soberba o que a faz até agora esquiva.
Interiormente Alfredo fez uma careta. Não lhe parecia conveniente passar por casa de Ângela acompanhado de outro, o que tiraria ao seu amor o caráter romântico de um padecimento solitário e discreto. Era entretanto impossível recusar nada a um amigo que se interessava por ele. Convieram em que iriam nessa mesma tarde a Mata-cavalos.
— Acho bom, disse o namorado alegre com uma idéia súbita, acho bom que não passemos juntos; tu irás adiante e eu um pouco atrás.
— Pois sim. Mas estará ela à janela hoje?
— Talvez; estes últimos cinco dias tenho-a visto sempre à janela.
— Oh! isso é já um bom sinal.
— Mas não olha para mim.
— Dissimulação!
— Aquele anjo?
— Eu não creio em anjos, respondeu filosoficamente Tibúrcio, não creio em anjos na terra. O mais que posso conceder neste ponto é que os haja no céu; mas é apenas uma hipótese vaga.
Nessa mesma tarde foram os dois a Mata-cavalos, na ordem convencionada. Ângela estava à janela, acompanhada da tia velha e da irmã mais moça. Viu de longe o namorado, mas não fitou os olhos nele; Tibúrcio pela sua parte não desviava os seus da formosa dama. Alfredo passou como sempre.
Os dois amigos foram reunir-se quando já não podiam estar ao alcance dos olhos dela. Tibúrcio fez um elogio à beleza da moça que o amigo ouviu encantado, como se lhe estivessem a elogiar uma obra sua.
— Oh! hei de ser muito feliz! exclamou ele num acesso de entusiasmo.
— Sim, concordou Tibúrcio; creio que hás de ser feliz.
— Que me aconselhas?
— Mais alguns dias de luta, uns quinze, por exemplo, e depois uma carta...
— Já tinha pensado nisso, disse Alfredo; mas receava errar; precisava da opinião de alguém. Uma carta, assim, sem nenhum fundamento de esperança, sai fora da norma comum; por isso mesmo me seduz. Mas como hei de mandar a carta?
— Isto agora é contigo, disse Tibúrcio; vê se tens meio de travar relações com algum criado da casa, ou...
— Ou o cocheiro do tílburi! exclamou triunfalmente Alfredo Tavares.
Tibúrcio exprimiu com a cara o último limite do assombro ao ouvir estas palavras de Alfredo; mas o amigo não se deteve em explicar-lhe que havia um cocheiro de tílburi meio confidente neste negócio. Tibúrcio aprovou o cocheiro; ficou assentado que o meio da carta seria aplicado.
Os dias correram sem incidente notável. Perdão; houve um notável incidente.
Alfredo passava uma tarde por baixo das janelas de Ângela. Ela não olhava para ele. De repente Alfredo ouve um pequeno grito e vê passar-lhe por diante dos olhos alguma coisa parecida com um lacinho de fita.
Era efetivamente um lacinho de fita que caíra no chão. Alfredo olhou para cima; já não viu a viúva. Olhou em roda de si, abaixou-se, apanhou o laço e guardou-o na algibeira.
Dizer o que havia dentro da sua alma naquele venturoso instante é tarefa que pediria muito tempo e mais adestrado pincel. Alfredo mal podia conter o coração. A vontade que tinha era beijar ali mesmo na rua o laço, que ele já considerava uma parte da sua bela. Reprimiu-se contudo; foi até o fim da rua; voltou por ela; mas, contra o costume daqueles últimos dias, a moça não apareceu.
Esta circunstância era suficiente para fazer crer na casualidade da queda do laço. Assim pensava Alfredo; ao mesmo tempo porém perguntava se não era possível que Ângela, envergonhada da sua audácia, quisesse agora evitar a presença dele e não menos as vistas curiosas da vizinhança.
— Talvez, dizia ele.
Daí a um instante:
— Não, não é possível tamanha felicidade. O grito que soltou foi de sincera surpresa. A fita foi casual. Nem por isso a adorarei menos...
Apenas chegou à casa, Alfredo tirou o laço, que era de fita azul, e devia ter estado no colo ou no cabelo da viúva. Alfredo beijou-o cerca de vinte e cinco vezes e, se a natureza o tivesse feito poeta, é provável que naquela mesma ocasião expectorasse dez ou doze estrofes em que diria estar naquela fita um pedaço da alma da bela; a cor da fita serviria para fazer bonitas e adequadas comparações com o céu.
Não era poeta o nosso Alfredo; contentou-se em beijar o precioso despojo, e não deixou de referir o episódio ao seu confidente.
— Na minha opinião, disse este, é chegada a ocasião de lançar a carta.
— Creio que sim.
— Não sejas mole.
— Há de ser já amanhã.
Alfredo não contava com a instabilidade das coisas humanas. A amizade na terra, ainda quando o coração a mantenha, está dependente do fio da vida. O cocheiro do tílburi não se teria provavelmente esquecido do seu freguês de uma noite; mas tinha morrido no intervalo daquela noite ao dia em que Alfredo o foi procurar.
— É demais! exclamou Alfredo; parece que a sorte se compraz de multiplicar os obstáculos com que eu esbarro a cada passo! Aposto que esse homem não morria se eu não precisasse dele. O destino persegue-me... Mas nem por isso hei de curvar a cabeça... Oh! não!
Com esta boa resolução se foi o namorado em busca de outro meio. A sorte trouxe-lhe um excelente. Vagou a casa contígua à de Ângela; era uma casa pequena, elegantezinha, própria para um ou dois rapazes solteiros... Alfredo alugou a casa e foi dizê-lo triunfalmente ao seu amigo.
— Fizeste muito bem! exclamou este; o golpe é de mestre. Estando ao pé é impossível que não chegues a algum resultado.
— Tanto mais que ela já me conhece, disse Alfredo; deve ver nisso uma prova de amor.
— Justamente!
Alfredo não se demorou em fazer a mudança; dali a dois dias estava na sua casa nova. É escusado dizer que o laço azul não foi em alguma gaveta ou caixinha; foi na algibeira dele.
Tanto a casa de Ângela como a de Alfredo tinham um jardim no fundo. Alfredo quase morreu de contentamento quando descobriu esta circunstância.
— É impossível, pensava ele, que aquela moça tão poética, não goste de passear no jardim. Vê-la-ei desta janela do fundo, ou por cima da cerca se for baixa. Será?
Alfredo desceu à cerca e verificou que a cerca lhe dava pelo peito.
— Bom! disse ele. Nem de propósito!
Agradeceu mentalmente à sorte que ainda há poucos dias amaldiçoava e subiu para pôr os seus objetos em ordem e dar alguns esclarecimentos ao criado.
Nesse mesmo dia de tarde, estando à janela, viu a moça. Ângela encarou com ele como quem duvidava do que via; mas passado esse momento de exame, pareceu não lhe dar atenção.
Alfredo, cuja intenção era cumprimentá-la, com o pretexto da vizinhança, esqueceu-se completamente da formalidade. Em vão procurou nova ocasião. A moça parecia alheia à sua pessoa.
— Não faz mal, disse ele consigo; o essencial é que eu esteja aqui ao pé.
A moça parecia-lhe agora ainda mais bonita. Era uma beleza que ainda ganhava mais quando examinada de perto. Alfredo reconheceu que era de todo impossível pensar em outra mulher deste mundo ainda que aquela devesse fazê-lo desgraçado.
No segundo dia foi mais feliz. Chegou à janela repentinamente na ocasião em que ela e a tia estavam à sua; Alfredo cumprimentou-as respeitosamente. Elas corresponderam com um leve gesto.
O conhecimento estava travado.
Nem por isso adiantou o namoro, porque durante a tarde os olhos de ambos não se encontraram e a existência de Alfredo parecia ser a última coisa de que Ângela se lembrava.
Oito dias depois, estando Alfredo à janela, viu chegar a moça sozinha, com uma flor na mão. Ela olhou para ele; cumprimentaram.
Era a primeira vez que Alfredo alcançava alguma coisa. A sua alma voou ao sétimo céu.
A moça recostou-se na grade com a flor na mão, a brincar distraída, não sei se por brincar, se por mostrar a mão ao vizinho. O certo é que Alfredo não tirava os olhos da mão. A mão era digna irmã do pé, que Alfredo entrevira na Rua da Quitanda.
O rapaz estava fascinado.
Mas quando ele quase perdeu o juízo foi na ocasião em que ela, indo retirar-se da janela, encarou outra vez com ele. Não havia severidade nos lábios; Alfredo viu-lhe até uma sombra de sorriso.
— Sou feliz! exclamou Alfredo entrando. Enfim, consegui já alguma coisa.
Dizendo isto deu alguns passos na sala, agitado, rindo, mirando-se ao espelho, completamente fora de si. Dez minutos depois chegou à janela; outros dez minutos depois chegava Ângela.
Olharam-se ainda uma vez.
Era a terceira naquela tarde, depois de tantas semanas da mais profunda indiferença.
A imaginação de Alfredo não o deixou dormir nessa noite. Pelos seus cálculos dentro de dois meses iria pedir-lhe a mão.
No dia seguinte não a viu e ficou desesperado com esta circunstância. Felizmente o criado, que já havia percebido alguma coisa, achou meio de lhe dizer que a família da casa vizinha saíra de manhã e não voltara.
Seria uma mudança?
Esta idéia veio fazer da noite de Alfredo uma noite de angústias. No dia seguinte trabalhou mal. Jantou às pressas e foi para casa. Ângela estava à janela.
Quando Alfredo apareceu à sua e a cumprimentou, viu que ela tinha outra flor na mão; era um malmequer.
Alfredo ficou logo embebido a contemplá-la; Ângela começou a desfolhar o malmequer, como se estivesse consultando sobre algum problema do coração.
O namorado não se deteve mais; correu a uma gavetinha de segredo, tirou o laço de fita azul, e veio para a janela com ele.
A moça tinha desfolhado toda a flor; olhou para ele e viu o lacinho que lhe caíra da cabeça.
Estremeceu e sorriu.
Daqui em diante compreende o leitor que as coisas não podiam deixar de caminhar.
Alfredo conseguiu vê-la um dia no jardim, assentada dentro de um caramanchão, e já desta vez o cumprimento foi acompanhado de um sorriso. No dia seguinte ela já não estava no caramanchão; passeava. Novo sorriso e três ou quatro olhares.
Alfredo arriscou a primeira carta.
A carta era escrita com fogo; falava de um céu, de um anjo, de uma vida toda poesia e amor. O moço oferecia-se para morrer a seus pés se fosse preciso.
A resposta veio com prontidão.
Era menos ardente; direi até que não havia ardor nenhum; mas simpatia sim, e muita simpatia, entremeada de algumas dúvidas e receios, e frases bem dispostas para espertar os brios de um coração que todo se desfazia em sentimento.
Travou-se então um duelo epistolar que durou cerca de um mês antes da entrevista.
A entrevista verificou-se ao pé da cerca, de noite, pouco depois das ave-marias, tendo Alfredo mandado o criado ao seu amigo e confidente Tibúrcio com uma carta em que lhe pedia que detivesse o portador até às oito horas ou mais.
Convém dizer que esta entrevista era perfeitamente desnecessária.
Ângela era livre; podia escolher livremente um segundo marido; não tinha de quem esconder os seus amores.
Por outro lado, não era difícil a Alfredo obter uma apresentação em casa da viúva, se lhe conviesse entrar primeiramente assim, antes de lhe pedir a mão.
Todavia, o namorado insistiu na entrevista do jardim, que ela recusou a princípio. A entrevista entrava no sistema poético de Alfredo, era uma leve reminiscência da cenaShakespeare.
— Juras então que me amas?
— Juro.
— Até à morte?
— Até à morte.
— Também eu te amo, minha querida Ângela, não de hoje, mas há muito, apesar dos teus desprezos...
— Oh!
— Não direi desprezos, mas indiferença... Oh! mas tudo lá vai; agora somos dois corações ligados para sempre.
— Para sempre!
Neste ponto ouviu-se um rumor na casa de Ângela.
— Que é? perguntou Alfredo.
Ângela quis fugir.
— Não fujas!
— Mas...
— Não é nada; algum criado...
— Se dessem por mim aqui!
— Tens medo?
— Vergonha.
A noite encobriu a mortal palidez do namorado.
— Vergonha de amar! exclamou ele.
— Quem te diz isso? Vergonha de me acharem aqui, expondo-me às calúnias, quando nada impede que tu...
Alfredo reconheceu a justiça.
Nem por isso deixou de meter a mão nos cabelos com um gesto de aflição trágica, que a noite continuava a encobrir aos olhos da formosa viúva.
— Olha! o melhor é vires à nossa casa. Autorizo-te a pedir a minha mão.
Conquanto ela já houvesse indicado isto nas cartas, era a primeira vez que formalmente o dizia. Alfredo viu-se transportado ao sétimo céu. Agradeceu a autorização que lhe dava e respeitosamente beijou-lhe a mão.
— Agora, adeus!
— Ainda não! exclamou Alfredo.
— Que imprudência!
— Um instante mais!
— Ouves? disse ela prestando o ouvido ao rumor que se fazia na casa.
Alfredo respondeu apaixonada e literariamente:
— Não é a calhandra, é o rouxinol!
— É a voz de minha tia! observou a viúva prosaicamente. Adeus...
— Uma última coisa te peço antes de ir à tua casa.
— Que é?
— Outra entrevista neste mesmo lugar.
— Alfredo!
— Outra e última.
Ângela não respondeu.
— Sim?
— Não sei, adeus!
E libertando a sua mão das mãos do namorado que a retinha com força, Ângela correu para casa.
Alfredo ficou triste e alegre ao mesmo tempo.
Ouvira a doce voz de Ângela, tivera nas suas a sua mão alva e macia como veludo, ouvira jurar que o amava, enfim estava autorizado a pedir-lhe solenemente a mão.
A preocupação porém da moça a respeito do que pensaria a tia afigurou-se-lhe extremamente prosaica. Quisera vê-la toda poética, embebida no seu amor, esquecida do resto do mundo, morta para tudo o que não fosse o bater do seu coração.
A despedida sobretudo pareceu-lhe repentinamente demais. O adeus foi antes de medo que de amor, não se despediu, fugiu. Ao mesmo tempo esse sobressalto era dramático e interessante; mas por que não conceder-lhe segunda entrevista?
Enquanto ele fazia estas reflexões, Ângela pensava na impressão que lhe teria deixado e na mágoa que por ventura lhe ficara da recusa de uma segunda e última entrevista.
Refletiu longo tempo e resolveu remediar o mal, se mal se podia aquilo chamar.
No dia seguinte, logo cedo, recebeu Alfredo um bilhetinho da namorada.
Era um protesto de amor, com uma explicação da fuga da véspera e uma promessa de outra entrevista na seguinte noite, depois da qual ele iria pedir-lhe oficialmente a mão.
Alfredo exultou.
Nesse dia a natureza pareceu-lhe melhor. O almoço foi excelente apesar de lhe terem dado um filet tão duro como sola e de estar o chá frio como água. O patrão nunca lhe pareceu mais amável. Todas as pessoas que encontrava tinham cara de excelentes amigos. Enfim, até o criado ganhou com os sentimentos alegres do amo: Alfredo deu-lhe uma boa molhadura pela habilidade com que lhe escovara as botas, que, entre parênteses, nem sequer levavam graxa.
Verificou-se a entrevista sem nenhum incidente notável. Houve os costumados protestos:
— Amo-te muito!
— E eu!
— És um anjo!
— Seremos felizes.
— Deus nos ouça!
— Há de ouvir-nos.
Estas e outras palavras foram o estribilho da entrevista que durou apenas meia hora.
Nessa ocasião Alfredo desenvolveu o seu sistema de vida, a maneira por que ele encarava o casamento, os sonhos de amor que haviam realizar, e mil outros artigos de um programa de namorado, que a moça ouviu e aplaudiu.
Alfredo despediu-se contente e feliz.
A noite que passou foi a mais deliciosa de todas. O sonho que ele procurara durante tanto tempo ia enfim realizar-se; amava a uma mulher como ele a queria e imaginava. Nenhum obstáculo se oferecia à sua ventura na terra.
No outro dia de manhã entrando no hotel, encontrou o amigo Tibúrcio; e referiu-lhe tudo. O confidente felicitou o namorado pelo triunfo que alcançara e deu-lhe logo um aperto de mão, não podendo dar-lhe, como quisera, um abraço.
— Se soubesses como vou ser feliz!
— Sei.
— Que mulher! que anjo!
— Sim! é bonita.
— Não é só bonita. Bonitas há muitas. Mas a alma, a alma que ela tem, a maneira de sentir, tudo isso e mais, eis o que faz uma criatura superior.
— Quando será o casamento?
— Ela o dirá.
— Há de ser breve.
— Dentro de três a quatro meses.
Aqui fez Alfredo um novo hino em louvor das qualidades eminentes e raras da noiva e pela centésima vez defendeu a vida romanesca e ideal. Tibúrcio observou gracejando que lhe era necessário primeiro suprimir o bife que estava comendo, observação que Alfredo teve a franqueza de achar descabida e um pouco tola.
A conversa porém não teve incidente desagradável e os dois amigos separaram-se como dantes, não sem que o noivo agradecesse ao confidente a animação que lhe dera nos piores dias do seu amor.
— Enfim, quando a vais pedir?
— Amanhã.
— Coragem!
Não é minha intenção nem vem ao caso referir ao leitor todos os episódios de Alfredo Tavares.
Até aqui foi necessário contar alguns e resumir outros. Agora que o namoro chegou ao seu termo e que o período do noivado vai começar, não quero fatigar a atenção do leitor com uma narração que nenhuma variedade apresenta. Justamente três meses depois da segunda entrevista recebiam-se os dois noivos, na igreja da Lapa, em presença de algumas pessoas íntimas, entre as quais o confidente de Alfredo, um dos padrinhos. O outro era o primo de Ângela, de quem falara o cocheiro do tílburi, e que até agora não apareceu nestas páginas por não ser preciso. Chamava-se Epaminondas e tinha a habilidade de desmentir o padre que tal nome lhe dera,* pregando a cada instante a sua peta. A circunstância não vem ao caso e por isso não insisto nela.
Casados os dois namorados foram passar a lua-de-mel na Tijuca, onde Alfredo escolhera casa adequada às circunstâncias e ao seu gênio poético.
Durou um mês esta ausência da corte. No trigésimo primeiro dia, Ângela viu anunciada uma peça nova no Ginásio e pediu ao marido para virem à cidade.
Alfredo objetou que a melhor comédia deste mundo não valia o aroma das laranjeiras que estavam florindo e o melancólico som do repuxo do tanque. Ângela encolheu os ombros e fechou a cara.
— Que tens, meu amor? perguntou-lhe daí a vinte minutos o marido.
Ângela olhou para ele com um gesto de lástima, ergueu-se e foi encerrar-se na alcova.
Dois recursos restavam a Alfredo.
1º Coçar a cabeça.
2º Ir ao teatro com a mulher.
Alfredo curvou-se a estas duas necessidades da situação.
Ângela recebeu-o muito alegremente quando ele lhe foi dizer que iriam ao teatro.
— Nem por isso, acrescentou Alfredo, nem por isso deixo de sentir algum pesar. Vivemos tão bem estes trinta dias.
— Voltaremos para o ano.
— Para o ano!
— Sim, alugaremos outra casa.
— Mas então esta?...
— Esta acabou. Pois querias viver num desterro?
— Mas eu pensei que era um paraíso, disse o marido com ar melancólico.
— Paraíso é coisa de romance.
A alma de Alfredo levou um trambolhão. Ângela viu o efeito produzido no esposo pelo seu reparo e procurou suavizá-lo, dizendo-lhe algumas coisas bonitas com que ele algum tempo mitigou as suas penas.
— Olha, Ângela, disse Alfredo, o casamento, como eu imaginei sempre, é uma vida solitária de dois entes que se amam... Seremos nós assim?
— Por que não?
— Juras então...
— Que seremos felizes.
A resposta era elástica. Alfredo tomou-a ao pé da letra e abraçou a mulher.
Naquele mesmo dia vieram para a casa da tia e foram ao teatro.
A nova peça do Ginásio aborreceu tanto o marido quanto agradou à mulher. Ângela parecia fora de si de contente. Quando caiu o pano no último ato, disse ela ao esposo:
— Havemos de vir outra vez.
— Gostaste?
— Muito. E tu?
— Não gostei, respondeu Alfredo com evidente mau humor.
Ângela levantou os ombros, com o ar de quem dizia:
— Gostes ou não, hás de cá voltar.
E voltou.
Este foi o primeiro passo de uma carreira que parecia não acabar mais.
Ângela era um turbilhão.
A vida para ela estava fora de casa. Em casa morava a morte, sob a figura do aborrecimento. Não havia baile a que faltasse, nem espetáculo, nem passeio, nem festa célebre, e tudo isto cercado de muitas rendas, jóias e sedas, que ela comprava todos os dias, como se o dinheiro nunca devesse acabar.
Alfredo esforçava-se por atrair a mulher à esfera dos seus sentimentos românticos; mas era esforço vão.
Com um levantar de ombros, Ângela respondia a tudo.
Alfredo detestava principalmente os bailes, porque era quando a mulher menos lhe pertencia, sobretudo os bailes dados em casa dele.
Às observações que ele fazia nesse sentido, Ângela respondia sempre:
— Mas são obrigações da sociedade; se eu quisesse ser freira metia-me na Ajuda.
— Mas nem todos...
— Nem todos conhecem os seus deveres.
— Oh! a vida solitária, Ângela! a vida para dois!
— A vida não é um jogo de xadrez.
— Nem um arraial.
— Que queres dizer com isso?
— Nada.
— Pareces tolo.
— Ângela...
— Ora!
Levantava os ombros e deixava-o sozinho.
Alfredo era sempre o primeiro a fazer as pazes. A influência que a mulher exercia nele não podia ser mais decisiva. Toda a energia estava com ela; ele era literalmente um fâmulo da casa.
Nos bailes a que iam, o suplício além de ser grande em si mesmo, era aumentado com os louvores que Alfredo ouvia fazer à mulher.
— Lá está Ângela, dizia um.
— Quem é?
— É aquela de vestido azul.
— A que se casou?
— Pois casou?
— Casou, sim.
— Com quem?
— Com um rapaz bonachão.
— Feliz mortal!
— Onde está o marido?
— Caluda! está aqui: é este sujeito triste que está consertando a gravata...
Estas e outras considerações irritavam profundamente Alfredo. Ele via que era conhecido por causa da mulher. A pessoa dele era uma espécie de cifra. Ângela é que era a unidade.
Não havia meio de se recolher cedo. Ângela entrando num baile só se retirava com as últimas pessoas. Cabia-lhe perfeitamente a expressão que o marido empregou num dia de mau humor:
— Tu espremes um baile até o bagaço.
As vezes estava o mísero em casa, descansando e alegremente conversando com ela, abrindo todo o pano à imaginação. Ângela, ou por aborrecimento, ou por desejo invencível de passear, ia vestir-se e convidava o marido a sair. O marido já não recalcitrava; suspirava e vestia-se. Do passeio voltava ele aborrecido, e ela alegre, além do mais porque não deixava de comprar um vestido novo e caro, uma jóia, um enfeite qualquer.
Alfredo não tinha forças para reagir.
O menor desejo de Ângela era para ele uma lei de ferro; cumpria-a por gosto e por fraqueza.
Nesta situação, Alfredo sentiu necessidade de desabafar com alguém. Mas esse alguém não aparecia. Não lhe convinha falar ao Tibúrcio, por não querer confiar a um estranho, embora amigo, as suas zangas conjugais. A tia de Ângela parecia apoiar a sobrinha em tudo. Alfredo lembrou-se de pedir conselho a Epaminondas.
Epaminondas ouviu atentamente as queixas do primo. Achou-as exageradas, e foi o menos que lhe podia dizer, porque no seu entender eram verdadeiros despropósitos.
— O que você quer é realmente impossível.
— Impossível?
— Decerto. A prima está moça, quer naturalmente divertir-se. Por que razão há de viver como freira?
— Mas eu não peço que viva como freira. Quisera vê-la mais em casa, menos aborrecida quando está só comigo. Lembra-se da nossa briga do domingo?
— Lembro-me. Você queria ler-lhe uns versos e ela respondeu que não a aborrecesse.
— Que tal?...
Epaminondas recolheu-se a um eloqüente silêncio.
Alfredo esteve também algum tempo calado. Enfim:
— Estou resolvido a usar da minha autoridade de marido.
— Não caia nessa.
— Mas então devo viver eternamente nisto?
— Eternamente já vê que é impossível, disse Epaminondas sorrindo. Mas veja bem o risco que corre. Eu tive uma prima que se vingou do marido por uma dessas. Parece incrível! Cortou a si mesma o dedo mínimo do pé esquerdo e deu-lhe a comer com batatas.
— Está brincando...
— Estou falando sério. Chamava-se Lúcia. Quando ele reconheceu que efetivamente tinha devorado a carne da sua carne, teve um ataque.
— Imagino.
— Dois dias depois expirou de remorsos. Não faça tal; não irrite uma mulher. Dê tempo ao tempo. A velhice há de curá-la e trazê-la a costumes pacíficos.
Alfredo fez um gesto de desespero.
— Sossegue. Também eu fui assim. Minha finada mulher...
— Era do mesmo gosto?
— Do mesmíssimo. Quis contrariá-la. Ia-me custando a vida.
— Sim?
— Tenho aqui entre duas costelas uma cicatriz larga; foi uma canivetada que Margarida me deu estando eu a dormir muito tranqüilamente.
— Que me diz?
— A verdade. Mal tive tempo de lhe segurar no pulso e arrojá-la para longe de mim. A porta do quarto estava fechada com o trinco mas foi tal a força com que a empurrei que a porta se abriu e ela foi parar ao fim da sala.
— Ah!
Alfredo lembrou-se a tempo do sestro do primo e deixou-o falar a gosto. Epaminondas engendrou logo ali um ou dois capítulos de romance sombrio e ensangüentado. Alfredo, aborrecido, deixou-o só.
Tibúrcio encontrou-o algumas vezes cabisbaixo e melancólico. Quis saber da causa, mas Alfredo conservou prudente reserva.
A esposa deu ampla liberdade aos seus caprichos. Fazia recepções todas as semanas, apesar dos protestos do marido que, no meio da sua mágoa, exclamava:
— Mas então eu não tenho mulher! tenho uma locomotiva!
Exclamação que Ângela ouvia sorrindo sem lhe dar a mínima resposta.
Os cabedais da moça eram poucos; as despesas muitas. Com as mil coisas em que se gastava o dinheiro não era possível que ele durasse toda a vida. Ao cabo de cinco anos, Alfredo reconheceu que tudo estava perdido.
A mulher sentiu dolorosamente o que ele lhe contou.
— Sinto isto deveras, acrescentou Alfredo; mas a minha consciência está tranqüila. Sempre me opus a despesas loucas...
— Sempre?
— Nem sempre, porque te amava e amo, e doía-me ver que ficavas triste; mas a maior parte delas opus-me com todas as forças.
— E agora?
— Agora precisamos ser econômicos; viver como pobres.
Ângela curvou a cabeça.
Seguiu-se um grande silêncio.
O primeiro que o rompeu foi ela.
— É impossível!
— Impossível o quê?
— A pobreza.
— Impossível, mas necessária, disse Alfredo com filosófica tristeza.
— Não é necessária; eu hei de fazer alguma coisa; tenho pessoas de amizade.
— Ou um Potosí...
Ângela não se explicou mais; Alfredo foi para a casa de negócio que estabelecera, não descontente com a situação.
— Não estou bem, pensava ele; mas ao menos terei mudado a minha situação conjugal.
Os quatro dias seguintes passaram sem novidade.
Houve sempre uma novidade.
Ângela está muito mais carinhosa com o marido do que até então. Alfredo atribuía esta mudança às circunstâncias atuais e agradeceu à boa estrela que tão venturoso o tornara.
No quinto dia Epaminondas foi falar a Alfredo propondo-lhe ir pedir ao governo uma concessão e privilégio de minas em Mato Grosso.
— Mas eu não me meto em explorador de minas.
— Perdão; vendemos o privilégio.
— Está certo disso? perguntou Alfredo tentado.
— Certíssimo.
E logo:
— Temos além disso outra empresa: uma estrada de ferro no Piauí. Vende-se a empresa do mesmo modo.
— Tem elementos para ambas as coisas?
— Tenho.
Alfredo refletiu.
— Aceito.
Epaminondas declarou que alcançaria tudo do ministro. Tantas coisas disse que o primo, sabedor dos carapetões que ele pregava, começou a desconfiar.
Errava desta vez.
Pela primeira vez Epaminondas falava verdade; tinha elementos para alcançar as duas empresas.
Ângela não perguntou ao marido a causa da preocupação com que ele nesse dia entrou em casa. A idéia de Alfredo era tudo ocultar à mulher, pelo menos enquanto pudesse. Confiava no resultado dos seus esforços para trazê-la a melhor caminho.
Os papéis andaram com uma prontidão rara em coisas análogas. Parece que uma fada benfazeja se encarregava de adiantar o negócio.
Alfredo conhecia o ministro. Duas vezes fora convidado para lá tomar chá e tivera além disso a honra de o receber em casa algumas vezes. Nem por isso julgava ter direito à pronta solução do negócio. O negócio, porém, corria mais veloz que uma locomotiva.
Não se haviam passado dois meses depois da apresentação do memorial quando Alfredo, ao entrar em casa, foi surpreendido por muitos abraços e beijos da mulher.
— Que temos? disse ele todo risonho.
— Vou dar-te um presente.
— Um presente?
— Que dia é hoje?
— Vinte e cinco de março.
— Fazes anos.
— Nem me lembrava.
— Aqui está o meu presente.
Era um papel.
Alfredo abriu o papel.
Era o decreto de privilégio das minas.
Alfredo ficou literalmente embasbacado.
— Mas como veio isto?...
— Quis causar-te esta surpresa. O outro decreto há de vir de aqui a oito dias.
— Mas então sabia que eu...?
— Sabia tudo.
Quem te disse?...
Ângela titubeou.
— Foi... foi o primo Epaminondas.
A explicação satisfez Alfredo durante três dias.
No fim desse tempo abriu um jornal e leu com pasmo esta mofina:
Mina de caroço,
Com que então os cofres públicos já servem para nutrir o fogo no coração dos ministros?
Quem pergunta quer saber.
Alfredo rasgou o jornal no primeiro ímpeto.
Depois...
— Mas em suma que tens? disse Tibúrcio ao ver que Alfredo não se atrevia a falar.
— O que tenho? Fui à cata de poesia e acho-me em prosa chata e baixa. Ah! meu amigo quem me mandou seguir pela Rua da Quitanda?