Anexo:Imprimir/Contos para a infância

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Estava uma mãe muito aflita, sentada ao pé do berço do seu filho, com medo que lhe morresse. A criancinha pálida tinha os olhos fechados. Respirava com dificuldade, e às vezes tão profundamente, que parecia gemer; mas a mãe causava ainda mais lástima do que o pequenino moribundo.

Nisto bateram à porta, e entrou um pobre homem muito velho, embuçado numa manta de arrieiro. Era no Inverno. Lá fora estava tudo coberto de neve e de gelo, e o vento cortava como uma navalha.

O pobre homem tremia de frio; a criança adormecera por alguns instantes, e a mãe levantou-se a pôr ao lume uma caneca com cerveja. O velho começou a embalar a criança, e a mãe, pegando numa cadeira, sentou-se ao lado dele. E contemplando o seu filhinho doente, que respirava cada vez com mais dificuldade, pegou-lhe na mãozinha descarnada e disse para o velho:

Oh! Nosso Senhor não mo há-de levar! não é verdade?—

E o velho, que era a Morte, meneou a cabeça duma maneira estranha, em ar de dúvida. A mãe deixou pender a fronte para o chão, e as lágrimas corriam-lhe em fio pela cara. Sentiu-se estonteada com um grande peso de cabeça; estava sem dormir havia três dias e três noites. Passou ligeiramente pelo sono, durante um minuto, e despertou sobressaltada a tremer de frio.

— Que é isto! exclamou, lançando à volta de si o olhar alucinado. O berço estava vazio. O velho tinha-se ido embora, roubando-lhe a criança.

A pobre mãe saiu precipitadamente, gritando pelo filho. Encontrou uma mulher sentada no meio da neve, vestida de luto. «A Morte entrou-te em casa, disse-lhe ela. Via sair a correr levando teu filho. Anda mais depressa que o vento, e o que ela furta nunca o torna a entregar.»

— Por onde foi ela? gritou a mãe. Diz-mo pelo amor de Deus!»

— Sei o caminho por onde ela foi, respondeu a mulher vestida de preto. Mas só to ensino, se me cantares primeiro todas as canções que cantavas ao teu filho. São lindas, e tens uma voz harmoniosa. Eu sou a Noite e muitas vezes tas ouvi cantar, debulhada em lágrimas.

— Cantar-tas-ei todas, todas, mas logo, disse a mãe. Agora não me demores, porque quero encontrar o meu filho.—

A Noite ficou silenciosa. A mãe então, desfeita em lágrimas, começou a cantar. Cantou muitas canções, mas as lágrimas foram mais do que as palavras.

No fim disse-lhe a Noite: «Toma à direita, pela floresta escura de pinheiros. Foi por aí que a Morte fugiu com o teu filho.»
A mãe correu para a floresta; mas no meio dividia-se o caminho, e não sabia que direcção havia de seguir. Diante dela havia um matagal, cheio de silvas, sem folhas nem flores, de cujos ramos pendia a neve cristalizada.

— Não viste a Morte que levava o meu filho?» perguntou-lhe a mãe.

— Vi, respondeu o matagal, mas não te ensino o caminho, senão com a condição de me aqueceres no teu seio, porque estou gelado.»

E a mãe estreitou o matagal contra o coração; os espinhos dilaceraram-lhe o peito, donde corria sangue. Mas o matagal vestiu-se de folhas frescas e verdejantes, e cobriu-se de flores numa noite de Inverno frigidíssima, tal é o calor febricitante do seio duma mãe angustiosa.

E o matagal ensinou-lhe o caminho que devia seguir. Foi andando, andando, até que chegou à margem dum grande lago, onde não havia nem barcos, nem navios. Não estava suficientemente gelado para se andar por ele, e era demasiadamente profundo para o passar a vau. Contudo, querendo encontrar o seu filho, era necessário atravessá-lo. No delírio do seu amor, atirou-se de bruços a ver se poderia beber toda a água do lago. Era impossível, mas lembrava-se que Deus, por compaixão, faria talvez um milagre.

— Não! não és capaz de me esgotar, disse o lago. Sossega, e entendamo-nos amigavelmente. Gosto de ver pérolas no fundo das minhas águas, e os teus olhos são dum brilho mais suave do que as pérolas mais ricas que eu tenho possuído. Se queres, arranca-os das órbitas à força de chorar, e levar-te-ei à estufa grandiosa, que está do outro lado: essa estufa é a habitação da Morte; e as flores e as árvores que estão lá dentro, é ela quem as cultiva; cada flor e cada árvore é a vida duma criatura humana.»

— Oh! o que não darei eu, para reaver o meu filho!» disse a mãe. E apesar de ter já chorado tantas lágrimas, chorou com mais amargura do que nunca, e os seus olhos destacaram-se das órbitas e caíram no fundo do lago, transformando-se em duas pérolas, como ainda as não teve no mundo uma rainha.

O lago então ergueu-a, e com um movimento de ondulação depositou-a na outra margem, aonde havia um maravilhoso edifício, com mais de uma légua de comprido. De longe não se sabia se era uma construção artística ou uma montanha com grutas e florestas. Mas a pobre mãe não podia ver nada; tinha dado os seus olhos.

— Como hei-de eu reconhecer a Morte que me roubou o meu filho!» bradou ela desesperada.

— A Morte ainda não chegou, respondeu-lhe uma boa velha, que andava dum lado para o outro, inspeccionando a estufa e cuidando das plantas. Como vieste tu aqui parar? Quem te ensinou o caminho?»

— Deus auxiliou-me, respondeu ela. Deus é misericordioso. Compadece-te de mim, e diz-me onde está o meu filho.»

— Eu não o conheço, e tu és cega, disse a velha. Há aqui muitas plantas e muitas árvores, que murcharam esta noite: a Morte não tarda aí para as tirar da estufa. Deves saber, que toda a criatura humana tem neste sítio uma árvore ou uma flor, que representam a sua vida e que morrem com ela. Parecem plantas como quaisquer outras, mas tocando-lhes, sente-se bater um coração. Guia-te por isto, e talvez reconheças as pulsações do coração de teu filho. E que davas tu por eu te ensinar o que tens ainda de fazer?»

— Já não tenho nada que te dar, disse a pobre mãe. Mas irei até ao fim do mundo buscar o que tu quiseres.—«Fora daqui não preciso de nada, respondeu a velha. Dá-me os teus longos cabelos negros; tu sabes que são belos, e agradam-me. Trocá-los-ei pelos meus cabelos brancos.»—Não pedes mais nada do que isso? disse a mãe. Aí os tens, dou-tos de boa vontade.»

E arrancou os seus magníficos cabelos, que tinham sido outrora o seu orgulho de rapariga, recebendo em troca os cabelos curtos e inteiramente brancos da velha.

Esta levou-a pela mão à grande estufa, onde crescia exuberantemente uma vegetação maravilhosa. Viam-se debaixo de campânulas de cristal jacintos mimosíssimos ao lado de peónias inchadas e ordinárias. Havia também plantas aquáticas, umas cheias de seiva, outras meio murchas, e em cujas raízes se enovelavam cobras asquerosas.

Mais longe erguiam-se palmeiras soberbas, carvalhos e plátanos frondosos; depois num outro sítio isolado havia canteiros de salsa, tomilho, hortelã e outras plantas humildes que representavam o género de utilidade das pessoas que elas simbolizavam.

Havia ainda grandes arbustos em vasos demasiadamente estreitos, que pareciam rebentar; mas viam-se também florzitas insignificantes, em vasos de porcelana, na melhor terra, circundadas de musgo, tratadas com esmero delicadíssimo. Tudo isso representava a vida dos homens, que a essa hora existiam no mundo, desde a China até à Groenlândia.

A velha queria mostrar-lhe todas estas coisas misteriosas, mas a mãe impacientada pediu-lhe que a levasse ao sítio onde estavam as plantas pequeninas; tacteava-as, apalpava-as, para lhes sentir o bater do coração, e, depois de ter tocado em milhares delas, reconheceu as pulsações do coração do seu filho.

— É ele!» exclamou, lançando a mão a um açafroeiro, que, pendido sobre a terra, parecia completamente estiolado.

— Não lhe toques, disse a velha. Fica neste sítio; e quando a Morte vier, que não tarda, proíbe-lhe que arranque esta planta; ameaça-a de arrancar todas as flores que estão aqui. A Morte terá medo, porque tem de dar conta delas a Deus. Nenhuma pode ser arrancada sem o seu consentimento.»

Nisto sentiu-se um vento glacial, e a mãe adivinhou que era a Morte, que se aproximava.

— Como é que deste com o caminho? perguntou-lhe a Morte. Chegar ainda primeiro do que eu! Como o conseguiste?—«Sou mãe» respondeu ela.
E a Morte estendeu a sua mão ganchosa para o pequenino açafroeiro.

Mas a mãe protegia-o violentamente com ambas as mãos, tendo o cuidado de não ferir uma só das pequeninas pétalas. Então a Morte soprou-lhe nas mãos, fazendo-lhas cair inanimadas. O hálito da Morte era mais frio do que os ventos enregelados do Inverno.

— Não podes nada comigo!» disse a Morte.—Mas Deus tem mais força do que tu, respondeu a mãe.»—«É verdade, mas eu não faço senão aquilo que ele manda. Sou o seu jardineiro. Todas estas plantas, árvores e arbustos, quando começam a murchar, transplanto-as para outros jardins, um dos quais é o grande jardim do Paraíso. São regiões desconhecidas; ninguém sabe o que se lá passa.»

— Misericórdia! misericórdia! soluçou a mãe. Não me roubem o meu filho, agora que acabo de o encontrar!» Suplicava e gemia. A Morte conservava-se impassível; agarrou então instantaneamente em duas flores lindíssimas e disse à Morte: «Tu desprezas-me, mas olha, vou arrancar, despedaçar não só esta, mas todas as flores que estão aqui!

— Não as arranques, não as mates, bradou a Morte. Dizes que és desgraçada, e querias ir partir o coração de outra mãe!—«Outra mãe!» disse a pobre mulher, largando as flores imediatamente. —Toma, aqui tens os teus olhos, disse a Morte. Brilhavam tão suavemente que os tirei do lago. Não sabia que eram teus. Mete-os nas órbitas, e olha para o fundo deste poço; vê o que ias destruir, se arrancasses estas flores. Verás passar nos reflexos da água, como numa miragem, a sorte destinada a cada uma dessas duas flores, e a que teria tido o teu filho, se porventura vivesse.»

Debruçou-se no poço, e viu passar imagens de felicidade e alegria, quadros risonhos e deliciosos, e logo depois cenas terríveis de miséria, de angústias e de desolação.

— Nisto que eu vejo, disse a mãe aflitíssima, não distingo qual era a sorte que Deus destinava ao meu filho.»

— Não posso dizer-to, respondeu a Morte. Mas repito-te, em tudo isto que te apareceu viste o que no mundo havia de suceder ao teu filho.»

A mãe desvairada, lançou-se de joelhos exclamando: Suplico-te, diz-me: era a sorte infeliz a que lhe estava reservada? Não é verdade! Fala! Não me respondes? Oh! na dúvida, leva-o, leva-o, não vá ele sofrer desgraças tão horríveis. O meu querido filho! Quero-lho mais que à minha vida. As angústias que sejam para mim. Leva-o para o reino dos céus. Esquece as minhas lágrimas, as minhas súplicas, esquece tudo o que fiz e tudo o que disse.»

— Não te compreendo, respondeu a Morte: Queres que te entregue o teu filho ou que o leve para a região desconhecida de que não posso falar-te!» Então a mãe alucinada, convulsa, torcendo os braços, deitou-se de joelhos e dirigindo-se a Deus exclamou: «Não me ouças, Senhor, se reclamo no fundo do meu coração contra a tua vontade que é sempre justa! Não me atendas meu Deus!»

E deixou cair a cabeça sobre o peito, mergulhada na sua agonia dilacerante.

E a Morte arrancou o pequenino açafroeiro, e foi transplantá-lo no jardim do paraíso.

Era uma vez um rei, que, tendo achado no seu reino algumas minas de ouro, empregou a maior parte dos vassalos a extrair o ouro dessas minas; e o resultado foi que as terras ficaram por cultivar, e que houve uma grande fome no país.

Mas a rainha, que era prudente e que amava o povo, mandou fabricar em segredo frangos, pombos, galinhas e outras iguarias todas de ouro fino; e quando o rei quis jantar mandou-lhe servir essas iguarias de ouro, com que ele ficou todo satisfeito, porque não compreendeu ao princípio qual era o sentido da rainha; mas, vendo que não lhe traziam mais nada de comer, começou a zangar-se. Pediu-lhe então a rainha, que visse bem que o ouro não era alimento, e que seria melhor empregar os seus vassalos em cultivar a terra, que nunca se cansa de produzir, do que trazê-los nas minas à busca do ouro, que não mata a fome nem a sede, e que não tem outro valor além da estimação que lhe é dada pelos homens, estimação que havia de converter-se em desprezo, logo que ouro aparecesse em abundância.

A rainha tinha juízo.

Há entre vós, meus filhos, índoles violentas, que não sabem dominar-se, e que são arrastadas pelas primeiras impressões. É uma péssima disposição, que é necessário corrigir; dá lugar a disputas, e a que se cometam acções, cujo arrependimento chega demasiadamente tarde. Citar-vos-ei dois exemplos de que fui testemunha.

Um rapaz, sacudido violentamente na rua por um homem que vinha diante dele, volta-se e dá-lhe uma bofetada.

— Oh! senhor! exclamou o outro, mal sabe a pena que vai ter! Bateu num cego!»

Um homem ainda novo montado num burro, atravessava uma aldeia, e uns camponeses grosseiros começaram a apupá-lo e a bater no burro, para o fazer correr. O homem apeou-se, foi direito a eles, e, mostrando-lhes a sua perna aleijada, disse-lhes: «Se soubésseis que eu era coxo, não teríeis sido tão covardes.»

Os camponeses, envergonhados, coraram, afastando-se sem pronunciar uma palavra.

Que vos parece estas duas lições? Estou convencido que aproveitaram a quem as recebeu.

Ouvi com atenção esta pequenina história!

No campo, junto da estrada real, havia uma casinha muito bonita, que deveis ter visto muitas vezes. Há na frente um jardinzinho com flores, rodeado por uma sebe verdejante. Ali perto nas bordas do valado, no meio da erva espessa, floria um pequenino malmequer. Desabrochava a olhos vistos, graças ao sol, que repartia igualmente a sua luz tanto por ele como pelas grandes e maravilhosas flores do jardim. Uma bela manhã, já inteiramente aberto, com as folhinhas alvas e brilhantes, parecia um sol em miniatura circundado dos seus raios. Pouco se lhe dava que o vissem no meio da erva e não fizessem caso dele, pobre florinha insignificante. Vivia satisfeito, aspirando deliciosamente o calor do sol, e ouvindo o canto da cotovia, que se perdia nos ares.

Nesse dia o pequeno malmequer, apesar de ser numa segunda-feira, sentia-se tão feliz como se fosse um domingo. Enquanto as crianças sentadas nos bancos da escola estudavam a lição, ele, sentado na haste verdejante, estudava na formosura da natureza a bondade de Deus, e tudo o que sentia misteriosamente, em silêncio, julgava ouvi-lo traduzido com admirável nitidez nas canções alegres da cotovia. Por isso pôs-se a olhar com uma espécie de respeito, mas sem inveja, para essa avezinha feliz que cantava e voava.

«Eu vejo e oiço, pensou o malmequer; o sol aquece-me e o vento acaricia-me. Oh! não tenho razão de me queixar.»

Dentro da sebe havia muitas flores altivas, aristocráticas; quanto menos aroma tinham, mais orgulhosas se aprumavam. As dálias inchavam-se para parecerem maiores do que as rosas; mas não é o tamanho que faz a rosa. As tulipas brilhavam pela beleza das suas cores, pavoneando-se pretensiosamente. Não se dignavam de lançar um olhar para o pequeno malmequer, enquanto que o pobrezinho admirava-as, exclamando: «Como são ricas e bonitas! A cotovia irá certamente visitá-las. Graças a Deus, poderei assistir a este belo espectáculo.» E no mesmo instante a cotovia dirigiu o seu voo, não para as dálias e tulipas, mas para a relva, junto do pobre malmequer, que morto de alegria não sabia o que havia de pensar.

O passarinho pôs-se a saltitar à roda dele, cantando: «Como a erva é macia! oh! que encantadora florinha, com um coração de oiro, vestida de prata!»

Não se pode fazer ideia da felicidade do malmequer. A ave acariciou-o com o bico, cantou outra vez diante dele, e perdeu-se depois no azul do firmamento. Durante mais de um quarto de hora não pôde o malmequer reprimir a sua comoção. Meio envergonhado, mas todo contente, olhou para as outras flores do jardim, que, como testemunhas da honra que acaba de receber, deviam avaliar muito bem a sua alegria natural; mas as tulipas estavam cada vez mais aprumadas; a sua haste vermelha e pontiaguda manifestava o despeito. As dálias tinham a cabeça toda inchada. Se elas pudessem falar, teriam dito coisas bem desagradáveis ao pobre malmequer. A florinha viu isto, e ficou triste.

Passados alguns momentos, entrou no jardim uma rapariguita com uma grande faca afiada e brilhante, aproximou-se das tulipas, e cortou-as uma a uma.

«Que desgraça! disse o malmequer suspirando; é horrível; foram-se todas.»

E enquanto a rapariguinha levava as tulipas, o malmequer alegrara-se por ser simplesmente uma pequenina flor no meio da erva. Apreciando reconhecido a bondade de Deus, cerrou ao cair da tarde as suas folhas, adormeceu, e sonhou toda a noite com o sol e com a cotovia.

No dia seguinte de manhã, assim que o malmequer abriu as suas folhas ao ar e à luz, reconheceu a voz do passarinho, mas o seu canto era triste, muitíssimo triste. A pobre cotovia tinha boas razões para se afligir: haviam-na agarrado e metido numa gaiola, suspensa entre uma janela aberta. Cantava a alegria da liberdade, a beleza dos campos e as suas antigas viagens através do espaço ilimitado.

O pequenino malmequer tinha boa vontade de lhe acudir: mas como? Era difícil. A compaixão pelo pobre passarinho prisioneiro, fez-lhe esquecer inteiramente as belezas que o cercavam, o doce calor do sol e a alvura resplandecente das suas próprias folhas.

Nisto dois rapazinhos entraram no jardim. O mais velho trazia na mão uma faca comprida e afiada como a da pequerrucha, que tinha cortado as tulipas. Encaminharam-se para o malmequer, que não podia compreender o que desejavam.

«Podemos arrancar daqui um pedaço de relva para a cotovia, disse um dos rapazes, e começou a fazer um quadrado profundo à volta da florinha.

— «Arranca a flor, disse o outro.»

A estas palavras o malmequer estremeceu de terror. Arrancarem-no era morrer; e nunca tinha abençoado tanto a existência, como no momento em que esperava entrar com a relva na gaiola da cotovia.

«Não; deixemo-la, disse o mais velho. Está aí muito bem.»

Foi por conseguinte poupado, e entrou na gaiola da cotovia.

O pobre passarinho, queixando-se amargamente do seu cativeiro, batia com as asas nos arames da gaiola. O malmequer não podia, apesar dos seus desejos, articular-lhe uma palavra de consolação.

Passou-se assim toda a manhã.

«Já não tenho água, exclamou a prisioneira. Saiu toda a gente, sem me deixarem ao menos uma gota de água. A garganta queima-me, tenho uma febre terrível, sinto-me abafada! Ai! Não há remédio senão morrer, longe do sol esplêndido, longe da fresca verdura e de todas as magnificências da criação!»

Depois enterrou o bico na relva húmida para se refrescar um pouco. Viu então o malmequer; fez-lhe um sinal de cabeça amigável, e disse-lhe, afagando-o: «Também tu, pobre florinha, morrerás aqui! Em vez do mundo inteiro, que eu tinha à minha disposição, deram-me um pedacito de relva, e a ti só por única companhia. Cada pezinho de relva substitui para mim uma árvore, e cada uma das tuas folhas brancas, uma flor odorífera. Ah! como me fazes recordar de todas as coisas que perdi!

— Se eu pudesse consolá-la! pensava o malmequer, incapaz de fazer o mínimo movimento.

Contudo o perfume que ele exalava, tornou-se mais forte que de costume; a cotovia sentiu-o, e, apesar da sede devoradora que a obrigava a arrancar a erva, teve todo o cuidado em não tocar nem sequer de leve na flor.

Caiu a noite; não estava ali ninguém, para trazer uma gota de água à desditosa cotovia; Estendeu então as suas belas asas, sacudindo-as convulsivamente, e pôs-se a cantar uma cançãozinha melancólica; a sua cabecinha inclinou-se para a flor, e o seu coração quebrado de desejos e de angústias cessou de bater. Vendo este triste espectáculo, o malmequer não pôde como na véspera fechar as suas folhas para dormir; curvou-se para o chão, doente de tristeza.

Os rapazitos só voltaram no dia seguinte, e, vendo o passarinho morto, rebentaram-lhe as lágrimas e abriram uma cova. Meteram o cadáver dentro de uma caixa vermelha, lindíssima, fizeram-lhe um enterro de príncipe, e cobriram o túmulo com folhas de rosas.

Pobre passarinho! Enquanto vivia e cantava, esqueceram-se dele e deixaram-no morrer de fome na gaiola; depois de morto é que o choraram e lhe fizeram honrarias pomposíssimas.

A relva e o malmequer lançaram-nas para a poeira da estrada; daquele que com tanta ternura tinha amado a cotovia, ninguém se lembrou.

Um dia, passando na estrada, ouvi dois rapazitos que falavam muito alto: «Não, dizia um com voz enérgica, não quero.» Parei e perguntei-lhe:—O que é que tu não queres, meu rapaz?—«Não quero dizer à mamã que venho da escola, porque é mentira. Sei que me há-de ralhar, mas antes quero que me ralhe do que mentir.»—E tens razão, disse-lhe eu. És um rapaz como se quer.» Apertei-lhe a mão, enquanto que o outro pequeno, que lhe aconselhava que se desculpasse mentindo, ia-se embora todo envergonhado.

Daí a alguns meses, passando pela mesma aldeia e tendo de falar com o professor, entrei na escola, onde reconheci imediatamente os meus dois pequenos; o que não quis mentir, sorria-me, enquanto que o outro, vendo-me, baixou os olhos. Ao despedir-me interroguei o mestre sobre os dois alunos: Oh! disse-me ele, falando do primeiro, é um magnífico estudante, um pouco teimoso, mas honrado, sincero, sempre pronto a confessar as suas faltas e o que é ainda melhor, a repará-las. O outro pelo contrário, é mentiroso, covarde e incorrigível.»—Não me espanto, disse eu, já tinha tirado o horóscopo destas duas crianças; e contei-lhe o que tinha ouvido.

Piloto era o mais inteligente e o mais afectuoso dos cães, e o infatigável companheiro dos brinquedos das crianças da quinta.

Fazia gosto vê-lo atirar-se ao tanque a agarrar o pau, que João lhe lançava o mais longe que podia; pegava nele, metia-o na boca e trazia-o à margem, com grande alegria do pequerrucho e da sua irmã Joaninha.

Esta brincadeira recomeçava vinte vezes sem cansar nunca a paciência do Piloto. Depois eram corridas, festas, gargalhadas, saltos, até que o assobio do criado da quinta chamava o fiel animal às suas obrigações: partia então como um raio, para escoltar as vacas, que levavam aos pastos, e impedi-las de entrar no lameiro do vizinho.

Quando o hortelão ia vender os legumes ao mercado, era o Piloto o guarda da carroça; e muito atrevido seria quem saltasse à noite a parede da quinta.

Uma vez deu prova de uma extraordinária sagacidade; um jornaleiro, que se empregava muitas vezes em levar sacos de trigo da quinta para casa, tentou de noite roubar um saco.

Piloto, que o conhecia, não fez a menor demonstração de hostilidade em quanto o homem seguiu o caminho da quinta, mas, desde que se afastou tomando por outra estrada, o guarda vigilante agarrou-o pela blusa sem o largar.

Era como se dissesse: «Onde vais tu com o trigo de meu dono?»

O ladrão quis pôr então outra vez o saco donde o tinha tirado; Piloto não consentiu, e teve-o em guarda, sem o morder nem o ferir, até de manhã; o quinteiro foi dar com ele nesta difícil posição, repreendeu-o vivamente, e despediu-o sem divulgar o caso para o não desonrar.

Mas o homem ficou com ódio ao cão, e muito tempo depois, aproveitando a ausência do quinteiro e de seus filhos, chamou o Piloto, que correu para ele sem desconfiança; atou-lhe uma corda ao pescoço e arrastou-o até à margem do ribeiro.

Atou uma grande pedra à outra extremidade da corda e levantando o animal atirou-o à água; mas arrastado ele próprio com o peso e com o esforço, caiu também.

Como não sabia nadar, teria sido despedaçado pela roda do moinho, se o corajoso Piloto, obedecendo ao seu instinto de salvador e desembaraçando-se da pedra mal atada, não tivesse mergulhado duas vezes e trazido para terra o seu mortal inimigo.

Este, que estava quase desmaiado, compreendeu quando voltou a si, que o cão que ele tinha querido afogar, lhe salvara a vida.

Teve vergonha de seu acto miserável; e desde esse dia, violentou-se a si mesmo e combateu as suas más inclinações.

O exemplo do cão corrigiu o homem.

Martinho era um rapazito, que ganhava a sua vida a fazer recados; um dia, voltando de uma aldeia muito distante da sua, achou-se cansado e deitou-se debaixo de uma árvore, à porta de uma estalagem, junto da estrada. Estava comendo um bocado de pão que tinha trazido para jantar, quando chegou uma bela carruagem em que vinha um fidalguinho, com o seu preceptor. O estalajadeiro correu imediatamente e perguntou aos viajantes se queriam apear-se, mas responderam-lhe que não tinham tempo, e pediram-lhe que lhes trouxesse um frango assado e uma garrafa de vinho.

Martinho estava pasmado a olhar para eles; olhou depois para a sua côdea de pão, para a sua velha jaqueta, para o seu chapéu todo roto, e suspirando exclamou baixinho: Oh! se eu fosse aquele menino tão rico, em vez do desgraçado Martinho! Que fortuna se ele estivesse aqui, e eu dentro daquela carruagem!» O preceptor ouviu casualmente o que dizia Martinho e repetiu-o ao seu aluno, que, lançando a cabeça fora da carruagem, chamou Martinho com a mão.

— Ficarias muito contente, não é verdade, meu rapaz, podendo trocar a minha sorte pela tua?»—Peço que me desculpe senhor, replicou Martinho corando, o que eu disse não foi por mal.»—Não estou zangado contigo, replicou o fidalguinho, pelo contrário, desejo fazer a troca.»

— Oh! está a divertir-se comigo! tornou Martinho, ninguém quereria estar no meu lugar, quanto mais um belo e rico menino como o senhor. Ando muitas léguas por dia, como pão seco e batatas, enquanto que o senhor anda numa carruagem, pode comer frangos e beber vinho.»—Pois bem, volveu o fidalguinho, se me queres dar tudo aquilo que tens e que eu não tenho, dou-te em troca de boa vontade tudo o que possuo.» Martinho ficou com os olhos espantados, sem saber o que havia de dizer; mas o preceptor continuou: «Aceitas a troca?»—Ora essa! exclamou Martinho, ainda mo pergunta! Oh! como toda a gente da aldeia vai ficar assombrada de me ver entrar nesta bela carruagem!» E Martinho desatou a rir com a ideia da entrada triunfante na sua aldeia.

O fidalguinho chamou os criados, que abriram a portinhola e o ajudaram a descer. Mas qual foi a surpresa de Martinho, vendo que ele tinha uma perna de pau e que a outra era tão fraca, que se via obrigado a andar em duas muletas: depois, olhando para ele de mais perto, Martinho observou que era muito pálido e que tinha cara de doente.

Sorriu para o rapazito com ar benévolo, e disse-lhe:—Então sempre desejas trocar? Querias porventura, se pudesses, deixar as tuas pernas valentes e as tuas faces coradas, pelo prazer de ter uma carruagem e andar bem vestido?»—Oh! não, por coisa nenhuma! replicou Martinho.—«Eu, disse o fidalguinho, de boa vontade seria pobre, se tivesse saúde. Mas, como Deus quis que fosse aleijado e doente, sofro os meus males com paciência e faço por ser alegre, dando graças a Deus pelos bens que me concedeu na sua infinita misericórdia.

«Faz o mesmo, meu amiguinho, e lembra-te que, se és pobre e comes mal, tens força e saúde, coisas que valem mais que uma carruagem, e que não podem comprar-se com dinheiro.

Tinha o coração duro, e não dava esmolas. Foi-se confessar uma vez, e o confessor deu-lhe por penitência rezar sete vezes o Padre Nosso.

«Não o sei, e nunca o pude aprender, respondeu o aldeão.»
«Pois nesse caso, tornou o confessor, imponho-te por penitência dar a crédito um alqueire de trigo a todas as pessoas que to forem pedir da minha parte.»

No dia seguinte de manhã apresentou-se o primeiro pobre.

«Como te chamas? perguntou-lhe o camponês.

«Padre—Nosso—Que—Estais—No—Céu, respondeu o pobre.»

«E o teu apelido?»

«Seja—Santificado—O—Vosso—Nome.»

E o pobre foi-se embora com o seu alqueire de trigo.

Ao outro dia chega segundo pobre.

«Como te chamas?

«Venha—A—Nós—O—Vosso—Reino.»

«E o teu apelido?»

«Seja—Feita—A—Vossa—Vontade.»

E partiu com o seu alqueire de trigo.

Veio terceiro pobre.

«Como te chamas?»

«Assim—Na—Terra—Como—No—Céu.»

«E o teu apelido?»

«Dai-nos—Hoje—O—Pão—Nosso—De—Cada—Dia.»

E levou o seu alqueire.

Vieram ainda dois pobres sucessivamente, e passou-se tudo da mesma forma até chegar ao Amen.

Pouco tempo depois o confessor encontrou o aldeão.

«Então já sabes o Padre Nosso?»

«Não, sr. cura, sei só os nomes e apelidos dos pobres a quem emprestei o meu trigo.»

«Quais são? tornou o padre.»

E o aldeão enumerou-lhos a seguir, e pela ordem porque cada um se tinha apresentado.

«Já vês, disse o confessor, que não era muito difícil aprender o Padre Nosso, porque já o sabes perfeitamente.»

O talismã editar

Dois habitantes da mesma cidade exerciam nela a mesma indústria, mas com resultados bem diversos; um enriquecia-se e o outro arruinava-se, o que não era de espantar, porque o primeiro zelava os seus negócios com uma actividade infatigável, enquanto que o segundo, entregue inteiramente aos seus prazeres, encarregava os estranhos da direcção da sua casa.

«Explica-me, disse um dia este último ao seu colega, qual é a razão porque a sorte nos trata de um modo tão diferente? Vendemos as mesmas mercadorias, a minha loja está tão bem situada como a tua, e apesar disso, enquanto tu ganhas, eu não faço senão perder. E não é porque eu seja estroina; não bebo, nem jogo. Já tenho pensado algumas vezes se não terás tu por acaso algum precioso talismã.»

«Efectivamente, respondeu o outro, herdei de meu pai um talismã de uma virtude incomparável. Trago-o ao pescoço, e ando assim com ele todo o dia por toda a casa, do celeiro para a adega, e da adega para o celeiro. E o caso é que tudo me corre perfeitamente.»

«Olé meu querido colega, empresta-me pelo amor de Deus essa relíquia preciosa de que tanto necessito; podes ter a certeza de que ta restituo.»

«Pois vem buscá-la amanhã de manhã.»

Quando ao outro dia foi procurar o seu generoso concorrente, apresentou-lhe este uma avelã, através da qual tinha passado um fio de seda.

O nosso homem a colocou imediatamente no pescoço, e começou a correr toda a casa com o talismã. Observou então a completa desordem que por toda a parte ali havia. Na adega faltava-lhe vinho, cerveja e azeite; na cozinha o pão, a carne e os legumes; no celeiro, o milho, o trigo, o feijão; na estribaria, o feno e a aveia, roubados das manjedouras dos cavalos; viu, finalmente, como os seus livros e registros estavam mal escriturados; viu tudo isto, e que era necessário dar-lhe remédio, compreendendo que o dono da casa nunca pode ser substituído por terceira pessoa na direcção dos seus negócios.

Passados alguns dias foi entregar ao dono o precioso talismã, agradecendo-lhe duplamente, em primeiro lugar, o seu bom conselho, e em segundo lugar, a maneira delicada porque lho tinha dado.



«Mamã, nem todas as crianças que morrem vão para o Paraíso. O outro dia vi levar para o cemitério um menino que tinha morrido; o seu papá e as suas duas irmãzinhas acompanhavam o caixão, e choravam tanto que me fazia pena. Iam a chorar porque aquele menino tinha sido mau, não é verdade?»

«Não; naturalmente foi sempre bom, e a sua alma, enquanto choravam seus pais e suas irmãs, já estava vivendo feliz no Paraíso.»

«A alma? mamã; não sei o que é; não compreendo bem.»

«Maria, acabas de me dizer que tiveste pena de ver chorar as duas pequerruchas.»

«Tive sim, mamã, tive muita pena.»

«Ora bem, o que é que no teu corpo estava desconsolado e triste? eram os braços?»

«Não, mamã.»

«Eram as orelhas?»

«Oh! não mamã, era cá dentro

«Esse lá dentro, Maria, é a tua alma que se alegra ou se entristece, que te repreende quando fazes o mal, e que está satisfeita quando praticas o bem.

Alberto tinha seis anos. Era filho de um jardineiro. Via seu pai e seus irmãos, que eram activos e laboriosos, plantar árvores e fazer sementeiras, que nasciam, cresciam e davam fruto. Tinha visto um único feijão produzir cem feijões e muitas vezes mais, e de uma talhada de batata nascerem quarenta batatas magníficas; sabia que a terra pagava com juros exorbitantes o que lhe emprestavam. Um dia achou uma libra no quarto do pai, e foi enterrá-la imediatamente no seu jardinzinho. «Há-de nascer uma árvore, dizia ele consigo, que dará libras como uma cerejeira dá cerejas, e irei entregá-las ao papá, que ficará muito contente.» Todas as manhãs ia ver se a libra tinha nascido, mas não rebentava nada. Entretanto o pai procurava a libra por toda a parte. Por fim perguntou ao Albertinho se a tinha visto.

«Vi papá; achei-a e fui semeá-la.»

«Como, semeá-la? doido! julgas talvez que vai nascer como uma couve?»

«Mas, papá, ouvi dizer que o oiro se encontrava na terra.»

«É verdade, mas não nasce como uma semente; o oiro não tem vida.»

Desenterrou-se a libra, e Alberto foi castigado por dispor do que lhe não pertencia.

Há contudo, meus filhos, uma maneira de semear o oiro, fazendo-lhe produzir os mais belos frutos que existem no mundo. Quereis saber como é? É dando-o aos pobres. Faz-se no Paraíso a colheita dessa sementeira.

Disse Deus na Primavera: «Ponham a mesa às lagartas!» E a cerejeira cobriu-se imediatamente de folhas, milhões de folhas, fresquinhas e verdejantes.

A lagarta, que estava dormindo dentro de casa, acordou, espreguiçou-se, abriu a boca, esfregou os olhos e pôs-se a comer tranquilamente as folhinhas tenras, dizendo: «Não se pode a gente despegar delas. Quem é que me arranjou este banquete?»

Então Deus disse de novo: «Ponham a mesa às abelhas!» E a cerejeira cobriu-se imediatamente de flores, milhões de flores delicadas e brancas.

E a abelha matinal aos primeiros raios da aurora pousou sobre elas, dizendo: «Vamos tomar o nosso café; e que chávenas tão bonitas em que o deitaram!»

Provou com a linguita, exclamando: «Que deliciosa bebida! Não pouparam o açúcar!»

No Verão disse Deus: «Ponham a mesa aos passarinhos!» E a cerejeira cobriu-se de mil frutos apetitosos e vermelhos.

«Ah! ah! exclamaram os passarinhos, foi em boa ocasião; temos apetite, e isto dar-nos-á novas forças para podermos cantar uma nova canção.» No Outono disse Deus: «Levantai a mesa, já estão satisfeitos.» E o vento frio das montanhas começou a soprar, e fez estremecer a árvore.

As folhas tornaram-se amarelas e avermelhadas, caíram uma a uma, e o vento que as lançou ao chão erguia-as novamente, fazendo-as esvoaçar.

Chegou o Inverno e disse Deus: «Cobri o resto!» E os turbilhões dos ventos trouxeram a neve, sob cuja mortalha tudo dorme e descansa.

Era uma vez uma família de gigantes, que viviam num castelo na montanha: um dos gigantes tinha uma filha de seis anos, da altura dum álamo. Era curiosa e andava com vontade de descer à planície a ver o que faziam lá em baixo os homens, que de cima do monte lhe pareciam anões. Um belo dia, em que seu pai o gigante tinha ido à caça e sua mãe estava dormindo, a jovem giganta desatou a correr para um campo, onde os jornaleiros trabalhavam. Parou surpreendida a ver a charrua e os lavradores, coisas inteiramente novas para ela. «Oh! que lindos brinquedos!» exclamou. Abaixou-se e estendeu por terra o avental, que quase que cobriu o campo. Lançou-lhe dentro os homens, os cavalos, a charrua; de dois passos tornou a subir a montanha, e entrou no castelo, onde seu pai estava a jantar.

— Que trazes aí, minha filha?» perguntou ele.

— Olhe, disse ela, abrindo o avental, que lindos brinquedos. São os mais bonitos que tenho visto.»

E pô-los em cima da mesa, a um e um,—os cavalos, a charrua e os trabalhadores, que estavam todos espantados, como formigas a quem tivessem transportado dum formigueiro para um salão. A gigantinha pôs-se a bater as palmas e a rir com uma alegria doida, mas o gigante fez-se sério e franziu o sobrolho. «Fizeste mal, disse-lhe ele. Isso não são brinquedos, mas coisas e pessoas que devem estimar-se e respeitar-se. Mete tudo isso com cuidado no teu avental, e põe-no imediatamente onde o achaste; porque fica sabendo que os gigantes da montanha, morreriam de fome, se os anões da planície deixassem de lavrar a terra e de semear o trigo.

Quando morre uma criança, desce um anjo do céu, toma-a nos braços, e desdobrando as asas imaculadas, voa por cima de todos os sítios que ela amara durante a sua pequenina existência; o anjo abaixa-se de quando em quando para colher flores, que leva a Deus, para que floresçam no paraíso ainda mais belas do que tinham sido na terra. Deus recebe todas as flores, escolhe uma delas, toca-a com os lábios, e a flor escolhida, adquirindo voz imediatamente, começa a cantar os coros maviosos dos bem-aventurados. Ora escutai o que disse o anjo a uma criança morta, que o estava ouvindo como num sonho. Pairaram primeiro sobre a casa em que a criança brincara, e depois sobre jardins deliciosos, cobertos de flores.

«Qual é a flor que desejas para plantar no paraíso?» perguntou o anjo.

Havia nesse jardim uma roseira que tinha sido direita, vigorosa, magnífica; mas quebraram-lhe o pé, e todos os seus ramos cheios de botõezinhos lindíssimos pendiam estiolados para o chão.

«Pobre roseira! disse a criança ao anjo; vamos buscá-la para que possa reflorir no paraíso.»

O anjo foi buscá-la, e abraçou a criança. Colheram muitas flores brilhantes, boninas humildes e violetas silvestres.

A colheita estava terminada, e contudo não voavam ainda para Deus. Caiu a noite silenciosa, e a criança e o seu guia Divino andavam ainda por cima da grande cidade. Atravessaram uma das ruas mais estreitas, cheia de cacos de louça, de vidros partidos, de farrapos, de toda a casta de imundície. Entre estes destroços distinguiu o anjo um vaso de flores com a terra pelo chão, onde pendiam as longas raízes duma flor dos campos, já murcha, e que parecia não poder reverdecer: tinham-na atirado para a rua como inútil e morta.

«Vale a pena levantá-la disse o anjo; levemo-la, e pelo caminho, voando, te contarei a história da florinha. Lá ao fundo, lá ao fundo, naquela rua estreita e tortuosa, morava um pequerrucho, uma criança miserável e doente. Quando se sentia melhor, o mais que podia conseguir era passear com a ajuda das muletas ao longo de seu pequenino quarto. Em certos dias de Verão os raios do sol visitavam-lhe a alcova, durante meia hora. Então a criança sentada à janela, aquecida pelo sol, sem o cansaço do andar, imaginava-se passeando; não conhecia da floresta, da fresca verdura da primavera, senão o ramo de faia, que uma vez o filho do vizinho tinha colhido para ele. Suspendia por cima da cabeça o ramo verdejante, e, supondo-se debaixo das árvores abrigadas do sol, sonhava com o doce canto dos passarinhos. Um dia o filho do vizinho trouxe-lhe flores do campo, e por acaso entre elas apareceu uma que tinha ainda raízes; o pequerrucho plantou-a num vaso, e pô-lo à janela, junto da cama. A flor plantada por mão abençoada, cresceu, tornou-se grande, e todos os anos dava novas flores. Era o seu jardinzinho, o seu único tesouro neste mundo; regava-a, tratava-a, adorava-a; fazia-lhe aproveitar os raios do sol até ao último. A flor aparecia-lhe em sonhos, porque era para ele que floria, que espalhava o seu aroma e ostentava as suas cores; quando se sentiu morrer foi para ela que se voltou.

«Faz hoje um ano que esse pequerrucho habita no paraíso; a sua querida flor, esquecida à janela desde então, murchou, estiolou-se e atiraram-na à rua finalmente. E contudo esta flor quase seca é o tesouro do nosso ramalhete. Deu mais prazer e alegria do que todos os canteiros dum jardim realengo.»

«Como sabes tu isso?» perguntou a criança, que o anjo levava para o céu.

— Sei-o, respondeu o anjo, porque era eu o pequenino doente que andava em muletas; como não havia de eu reconhecer a minha flor bem amada!»

A criança abriu os olhos, e viu a radiosa figura do anjo quando entravam no céu onde tudo era alegria e felicidade. Deus pegou nas flores, levou-as ao coração, mas a que ele beijou foi a florinha silvestre, desprezada e murcha: a flor adquiriu voz imediatamente, pôs-se a cantar com as almas que rodeiam o Criador, umas junto dele, outras ao longe, formando círculos que vão aumentando sucessivamente, multiplicando-se até ao infinito, povoados de seres inteiramente felizes, cantando todos harmoniosamente—desde a criança abençoada até à humilde florinha do campo, levantada do lodo, dentre os tristes despojos da rua sombria e tortuosa.

Um grande fidalgo, que se tinha perdido numa floresta, foi dar de noite à choupana de um pobre carvoeiro. Como este ainda não tinha chegado, foi a mulher que recebeu o importante personagem. Acolheu-o o melhor que pôde, desculpando-se da miserável hospitalidade que lhe ia dar, porque eram batatas cozidas a única coisa que lhe poderia oferecer; cama não a tinha, por conseguinte dormiria sobre a palha. Mas o estrangeiro estava morto de fome e de fadiga; as batatas souberam-lhe mais do que faisões, e dormiu melhor em cima da palha do que num leito de príncipes. Ao outro dia pela manhã disse isto mesmo à pobre mulher, gratificando-a ao despedir-se com uma moeda de ouro. Mas, como o desconhecido lhe tinha dito que a guardasse como uma pequena lembrança, a boa camponesa julgou que seria uma medalha, e sentiu que não tivesse um buraquito para a trazer ao pescoço. Quando o carvoeiro chegou a casa, contou-lhe logo o que lhe tinha acontecido, mostrando-lhe a moeda preciosa. O carvoeiro examinou os cunhos e o valor da moeda de ouro, e disse para a mulher:

«Esse forasteiro era nada mais nada menos do que o nosso príncipe!

E o bom do homem não podia conter-se de alegria, por sua alteza ter achado as suas batatas melhores do que faisões.

«É necessário confessar, disse ele com um ar triunfante, que não há talvez no mundo um terreno mais favorável do que este para a cultura das batatas; hei-de lhe levar um cesto delas, já que as acha tão boas.

E partiu imediatamente para o palácio com uma provisão de batatas escolhidas.

Os lacaios e as sentinelas ao princípio não o queriam deixar entrar; mas insistiu energicamente, dizendo que não vinha pedir nada, e que pelo contrário vinha trazer alguma coisa.

Foi, pois, introduzido na sala da audiência.

«Meu senhor, disse ele ao príncipe: Vossa alteza dignou-se recentemente pedir hospitalidade a minha mulher, e dar-lhe uma peça de ouro, em troca duma enxerga miserável e de um prato de batatas cosidas. Era pagar demasiadamente, apesar de serdes um príncipe muito rico e poderoso. Eis o motivo porque eu venho trazer ainda a vossa alteza um cestito das batatas, que vos souberam melhor do que os vossos faisões. Dignai-vos aceitá-las, e, se nos fizerdes de novo a honra de ser nosso hospede, lá as encontrareis sempre ao vosso dispor.»

A honrada simplicidade do camponês agradou ao príncipe, e, como estava num momento de bom humor, fez-lhe doação de uma quinta com trinta jeiras de terra.

Ora o carvoeiro tinha um irmão muito rico, mas invejoso e avarento, que, sabendo da fortuna do irmão mais novo, disse consigo: «Porque não me há de suceder a mim outro tanto? O príncipe gosta do meu cavalo, pelo qual lhe pedi sessenta libras, que ele me recusou. Vou-lhe fazer presente dele: se deu ao João uma quinta com trinta jeiras de terra, simplesmente por um cesto de batatas, a mim com certeza me há de recompensar ainda mais generosamente.»

Tirou o cavalo da estrebaria e levou-o para defronte das portas do palácio; recomendou ao criado que o segurasse, e, atravessando com ar altivo as alas dos lacaios, penetrou na sala da audiência.

«Ouvi dizer, disse ele, que vossa alteza gosta do meu cavalo; não tenho querido trocá-lo a dinheiro, mas dignai-vos permitir-me que vo-lo ofereça.»

O príncipe viu imediatamente onde o nosso homem queria chegar, e disse consigo: «Deixa estar, tratante, que te vou dar a paga que mereces:

Depois dirigindo-se a ele:

«Aceito a tua dádiva, mas não sei como agradecer-ta condignamente. Oh! espera um pouco: Eis aqui um cesto de batatas mais saborosas do que faisões. Custaram-me trinta jeiras de terra. Parece-me que é um bom preço para um cavalo, que eu poderia ter comprado por sessenta libras.»

E entregando-lhe o cesto, mandou-o embora.

Era uma vez um pinheiro, que não estava contente com a sua sorte. «Oh! dizia ele, como são horrorosas estas linhas uniformes de agulhas verdes, que se estendem ao longo dos meus ramos! Sou um pouco mais orgulhoso que os meus vizinhos, e sinto que fui feito para andar vestido de outro modo. Ah! se as minhas folhas fossem de oiro!»

O Génio da montanha ouviu-o, e no dia seguinte pela manhã acordou o pinheiro com folhas de oiro. Ficou radiante de alegria, e admirou-se, pavoneou-se todo, olhando com altivez para os outros pinheiros, que, mais sensatos do que ele, não invejavam a sua rápida fortuna. À noite passou por ali um judeu, arrancou-lhe todas as folhas, meteu-as num saco, e foi-se embora, deixando-o inteiramente nu dos pés à cabeça.

«Oh! disse ele, que doido que eu fui! não me tinha lembrado da cobiça dos homens. Fiquei completamente despido. Não há agora em toda a floresta uma planta tão pobre como eu. Fiz mal em pedir folhas de oiro; o oiro atrai as ambições.

Ah! se eu arranjasse um vestuário de vidro! Era deslumbrante, e o judeu avarento não me teria despido.»

No dia seguinte acordou o pinheiro com folhas de vidro, que reluziam ao sol como pequeninos espelhos. Ficou outra vez todo contente e orgulhoso, fitando desdenhosamente os seus vizinhos. Mas nisto o céu cobriu-se de nuvens, e o vento rugindo, estalando, quebrou com a sua asa negra as folhas de cristal.

«Enganei-me ainda, disse o jovem pinheiro, vendo por terra todo feito em pedaços o seu manto cristalino. O oiro e o vidro não servem para vestir as florestas. Se eu tivesse a folhagem acetinada das aveleiras, seria menos brilhante, mas viveria descansado.»

Cumpriu-se o seu último desejo, e, apesar de ter renunciado às vaidades primitivas, julgava-se ainda assim mais bem vestido do que todos os outros pinheiros seus irmãos. Mas passou por ali um rebanho de cabras, e vendo as folhas acabadas de nascer, tenrinhas e frescas, comeram-lhas todas sem deixar uma única.

O pobre pinheiro, envergonhado e arrependido, já queria voltar à sua forma natural. Conseguiu ainda este favor, e nunca mais se queixou da sua sorte.

A filha.—Oh! mamã quebrou-se-me a agulha.

A mãe.—Vou-te dar outra.

A filha.—Como se fazem as agulhas, mamã?

A mãe.—Vê se adivinhas.

A filha.—Não sei, mamã.

A mãe.—Conheces os metais?

A filha.—Conheço mamã; tenho lá dentro muitos bocadinhos dentro de uma caixa.

A mãe.—Ora muito bem, diz-me lá, as agulhas são de pau, de pedra, de mármore?

A filha.—Oh! não; são de metal; mas de que metal?

A mãe.—Antes de perguntar qualquer coisa, vê sempre se a adivinhas primeiro.

A filha.—Ora espere!... uma agulha é de metal: não é de prata, porque não é branca; não é de oiro, porque não é de um lindo amarelo muito brilhante; não é de cobre, porque não é de um amarelo muito feio, que cheira mal... Então é de ferro, mamã?

A mãe.—Adivinhaste.

A filha.—Mas, mamã, o ferro não é liso e brilhante como as agulhas.

A mãe.—É que é primeiro polido e preparado de certo modo, e depois já se não chama ferro, é aço.

A filha.—Bem, as agulhas são de aço. Agora quero adivinhar como é que as fazem.

A mãe.—É impossível, não és capaz disso; mas hei de levar-te a uma fábrica onde se fazem agulhas. Hás-de vê-las fazer, e hás-de gostar muito.

A filha.—Tinha vontade de saber como se fazem todas as coisas de que nos servimos.

A mãe.—Tens razão; é uma vergonha ignorá-lo.

A filha.—Mamã, deixe-me ver as suas agulhas.

A mãe.—Olha, aí tens o meu estojo.

A filha.—Meu Deus! Que pequeninas algumas! Que lindas! São tão fininhas, tão fininhas!... Muita habilidade há-de ser necessária para fazer uma coisinha tão delicada!

A mãe.—Lembras-te de ver na feira um carrinho de marfim puxado por uma pulga, presa por uma cadeia de oiro?

A filha.—Lembro, mamã; era tão bonito!

A mãe.—Li num jornal alemão que um operário chamado Nerlinger fez um copo de um grão de pimenta, e que dentro deste copo havia mais doze...

A filha.—Que pequeninos deviam ser os doze copos para caberem num grão de pimenta!

A mãe.—E ainda não é tudo; cada um desses copinhos tinha as bordas doiradas, e sustentava-se no pé.

A filha.—Que vontade eu tinha de ver isso!

A mãe.—Tens razão de te admirares da habilidade dos homens. É efectivamente espantoso, e deve saber-se, o modo porque se fabricam certas coisas; contudo ainda há outras obras mais dignas de admiração.

A filha.—Quais, mamã?

A mãe.—Já to digo. (Levanta-se.)

A filha.—Que quer, mamã?

A mãe.—Quero que vejas o microscópio de teu papá.

A filha.—Pois sim; eu gosto de olhar pelo microscópio.

A mãe.—Este é magnífico, e aumenta prodigiosamente os objectos. Vais ver a mais pequenina das minhas agulhas. Repara primeiro como é fina, lisa e brilhante... Agora olha; o que é que vês?

A filha.—Meu Deus, que coisa tão feia! Que agulha tão grosseira!

A mãe.—Vês-lhe buracos, riscos, asperezas, não é verdade?

A filha.—Parece um prego muito grande e muito mal feito.

A mãe.—Pois todas essas imperfeições são verdadeiras, existem na agulha; a nossa vista, por ser muito fraca, é que não dá por elas.

A filha.—O operário que fez esta agulha ficaria envergonhado, se a visse ao microscópio.

A mãe.—Tiremos a agulha, e vejamos outra coisa.

A filha.—O quê, mamã?

A mãe.—O aguilhãozinho de uma abelha.

A filha.—Oh! que pequenino, que bonito!... Como é liso, como é brilhante!... Mas já sei que visto ao microscópio há de acontecer o mesmo que com a agulha.

A mãe.—Pronto: olha.

A filha (olhando).—É esquisito, mamã!

A mãe.—Então?

A filha.—Aumentou, aumentou como a agulha, mas não é áspero, pelo contrario, é perfeitamente liso... A agulha parecia que não tinha ponta, e o ferrãozinho da abelha tem uma ponta tão fina como um cabelo. Porque será isto, mamã?

A mãe.—É porque o operário que fez este aguilhão é muito mais hábil do que o que fez a agulha.

A filha.—Quem é esse operário tão hábil?

A mãe.—É o mesmo que fez o céu, os astros, a terra, as plantas e as criaturas.

A filha.—É Deus.

A mãe.—Exactamente. Pois não é Deus que fez as abelhas e todos os animais?

A filha.—De certo.

A mãe.—Foi ele por conseguinte que fez o aguilhão desta abelha; e aí tens porque o aguilhão é superior à agulha: é obra de Deus. Mas continuemos a olhar pelo microscópio. Aqui está um pedacinho de musselina finíssima. Olha pelo microscópio; o que é que vês?

A filha.—Vejo uma rede grossa, desigual, muito mal feita.

A mãe.—Aqui tens agora um pedacinho de renda delicadíssima.

A filha.—Essa estou bem certa que há de ser linda, mesmo vista pelo microscópio.

A mãe.—Então?

A filha.—É horrorosa... Parece feita de pelos grosseiros com grandes buracos desiguais.

A mãe.—As obras do homem são todas assim.

A filha.—Oh! mamã, vejamos agora as obras de Deus.

A mãe.—Sabes o que é isto?

A filha.—Sei, mamã, é um casulo de bicho de seda.

A mãe.—Os fiozinhos que o compõem são muito finos, muito lisos; olha pelo microscópio a ver se te parecem desiguais.

A filha (olhando pelo microscópio).—Não, mamã; os fios são todos iguais, e o casulo é sempre muito liso, muito brilhante.

A mãe.—É porque é obra de Deus. Examinemos outras coisas. O que há sobre este papel?

A filha.—Pontinhos feitos com tinta e manchazinhas redondas feitas também com tinta.

A mãe.—Estes pontinhos e estas manchas parecem-te perfeitamente redondos?

A filha.—Sim, mamã, perfeitamente redondos.

A mãe.—Vê-os agora ao microscópio.

A filha.—Oh! já não são redondos, são todos desiguais.

A mãe.—Tira o papel; vejamos a obra de Deus. É uma asa de borboleta; vês que está mosqueada de pequeninas manchas redondas; olha pelo microscópio; o que é que vês?

A filha.—Vejo a mesma coisa que via sem o vidro, só com a diferença que agora é maior. Que belas que são as obras de Deus!

A mãe.—Merece bem a pena estudá-las.

A filha.—De certo. Farei sempre por isso, comparando-as com as obras dos homens.

A mãe.—E sempre e em tudo hás-de encontrar defeitos nas obras do homem, enquanto que as obras de Deus, quanto mais se observam, mais perfeitas se acham. Deve isto fazer-nos meditar em duas coisas: a primeira é que Deus merece tanto a nossa admiração como o nosso amor; a segunda é que os homens orgulhosos são insensatos, porque não podem fazer nada perfeitamente belo, perfeitamente regular, e as suas obras mais primorosas são cheias de imperfeições, se as compararmos com as obras do Criador.

Era uma vez uma viúva com um filho único. Ao cabo dum Inverno rigoroso, possuía apenas um galo, e meio alqueire de farinha. João resolveu-se a correr mundo, à busca de fortuna. A mãe cozeu o resto da farinha, matou o galo, e disse-lhe:

«O que é que preferes: metade desta merenda com a minha bênção, ou toda com a minha maldição?»

«Que pergunta! respondeu o pequeno. Nem por quantos tesouros há no mundo eu quereria a tua maldição.»

«Bem, meu filho, replicou a mãe carinhosamente. Leva tudo, e Deus te abençoe.»

E partiu. Foi andando, andando, até que encontrou um jumento, que tinha caído num atoleiro, donde não podia sair.

«Oh! João, exclamou o burro, tira-me daqui, que estou quase a afogar-me.»

«Espera, respondeu João.»

E, formando uma ponte com pedras e ramos de árvores, conseguiu tirar o quadrúpede do atoleiro.

«Obrigado, disse-lhe ele, aproximando-se de João. Se te posso ser útil, aqui me tens ao teu dispor. Aonde vais tu?»

— «Vou por esse mundo fora, a ver se ganho a minha vida.»

«Queres tu que eu te acompanhe?

«Anda daí.»

E puseram-se a caminho.

Ao passarem por uma aldeia, viram um cão perseguido pelos rapazes da escola, que lhe tinham atado ao rabo uma chocolateira velha. O pobre animal correu para João que o acariciou, e o jumento pôs-se a ornear de tal maneira, que os rapazes com o medo deitaram todos a fugir.

«Obrigado, disse o rafeiro a João. Se para alguma coisa te for prestável, aqui me tens às tuas ordens. Aonde vais tu?»

«Vou por esse mundo de Cristo, a ver se ganho a minha vida.»

«Queres que te acompanhe?»

«Anda daí.»

Quando saíram da aldeia pararam junto duma fonte. O pequeno tirou a merenda do alforge, e repartiu-a com o cão. O burro pastou alguma erva que por ali havia. Enquanto jantavam, apareceu um gato esfaimado a miar lastimosamente.

Coitado, exclamou João!» E deu-lhe uma asa do frango.

— «Obrigado disse o gato. Oxalá que um dia eu te possa ser útil. Aonde vais tu?

— «Procurar trabalho. Se queres, anda connosco.»

— De boa vontade.

Os quatro viajantes puseram-se a caminho. Ao cair da tarde, ouviram um grito dilacerante, e viram uma raposa correndo a toda a brida com um galo na boca.

«Agarra! agarra!» bradou o pequeno ao cão.

E no mesmo instante o cão atirou-se atrás da raposa, que, vendo-se em perigo, largou o galo para correr melhor. O galo saltando de contente disse a João:

— «Obrigado. Salvas-te-me a vida. Nunca me esquecerei. Aonde vais tu?»

— Arranjar trabalho. Queres vir connosco?

— «De boa vontade.»

— Então anda. Se te cansares, empoleira-te no jumento.»

Os viajantes continuaram a jornada com o seu novo companheiro. Sentiram-se todos fatigados e não avistavam à roda nem uma quinta, nem uma cabana.

— «Paciência, disse João, outra vez seremos mais felizes. Resignemo-nos hoje a dormir ao ar livre; além disso a noite está sossegada, e a relva é macia.»

Dito isto estendeu-se no chão; o jumento deitou-se ao lado dele, o cão e o gato aninharam-se entre as pernas do burro complacente, e o galo empoleirou-se numa árvore.

Dormiam todos um sono profundíssimo, quando de repente o galo começou a cantar.

— «Que demónio! disse o jumento acordando todo zangado. Porque é que estás a gritar?»

— «Porque já é dia, respondeu o galo. Não vês ao longe a luz da madrugada, que vem rompendo?»

— «Vejo uma luz, disse João, mas não é do sol, é duma lanterna. Provavelmente há ali alguma casa, onde nos poderíamos recolher o resto da noite.»

Foi aceita a proposta. Partiu a caravana; foi andando, andando, através dos campos, até que parou junto da casa do guarda dum grande castelo, donde subiam gargalhadas, gritos confusos, cantos grosseiros e blasfémias horríveis.

— Escutem, disse João; vamos devagarinho, muito devagarinho, a ver quem é que está lá dentro.»

Eram seis ladrões armados de pistolas e de punhais, que se banqueteavam alegremente, sentados a uma mesa principesca.

— «Que bom assalto acabámos de dar, disse um deles, ao castelo do conde, graças ao auxilio do seu porteiro. Que bom homem que é este porteiro. À sua saúde!»

— «À saúde do nosso amigo!» repetiram em coro todos os ladrões.

E dum trago despejaram os copos.

João voltou-se para os companheiros, e disse-lhes em voz baixa:

— «Uni-vos uns aos outros o melhor que puderdes, e, assim que vos der sinal, rompei todos ao mesmo tempo numa gritaria diabólica.»

O burro, levantando-se nas patas traseiras, lançou as mãos ao peitoril duma janela, o cão trepou-lhe à cabeça, o gato à cabeça do cão e o galo à cabeça do gato. João deu o sinal, e estoirou à uma o ornear do jumento, os latidos do cão, o miar do gato e os gritos estridentes do galo.

— «Agora, bradou João, fingindo que comandava um destacamento, carregar armas! Dai-me cabo dos ladrões; fogo!»

No mesmo instante o jumento quebrou a janela com as patas, zurrando cada vez mais; os ladrões atemorizados refugiaram-se no bosque, saindo precipitadamente por uma porta falsa.

João e os seus companheiros penetraram na sala abandonada, comeram um excelente jantar, e deitaram-se em seguida—João numa cama, o burro na cavalariça, o cão numa esteira ao pé da porta, o gato junto do fogão e o galo num poleiro.

Ao principio os ladrões ficaram muito contentes, por se verem sãos e salvos na floresta. Mas depois, começaram a reflectir.

— «Era bem melhor a minha cama, do que esta erva tão húmida, disse um deles.»

— «Tenho pena do frango que eu começava a saborear, disse um outro.»

— «E que rico vinho aquele! acrescentou o terceiro.»

— «E o que é mais lamentável, exclamou um quarto, é ficar-nos lá todo o dinheiro, que, com a ajuda do criado do conde, tínhamos tirado das gavetas.»

— Vou ver se torno lá a entrar! disse o capitão.

— Bravo! exclamaram os ladrões.

E pôs-se a caminho.

Já não havia luz na casa; o capitão entrou às apalpadelas, e dirigiu-se para o fogão; o gato saltou-lhe à cara e esfarrapou-lha com as garras. Soltou um grito doloroso, correu para a porta, mas infelizmente pisou o rabo do cão, que lhe deu uma grande dentada. Gritou de novo, e conseguiu por fim transpor o limiar da porta. Mas quando ia a sair, o galo atirou-se a ele, rasgando-o com o bico e com as unhas.

— Anda o diabo nesta casa! exclamou o capitão, como poderei eu sair!»

Julgou encontrar refúgio na estrebaria; mas o burro atirou-lhe uma parelha de coices, que o deitou quase morto ao meio do chão.

Passado algum tempo veio a si; apalpou o corpo, viu que não tinha nem pernas nem braços partidos, ergueu-se e tornou para a floresta.

— Então? então?—perguntaram-lhe os camaradas assim que o viram.

— Nada feito, exclamou ele. Mas antes de tudo arranjem-me uma cama para me deitar e cataplasmas de linhaça para pôr neste corpo, que o trago num feixe. Não podeis imaginar o que sofri. Na cozinha fui assaltado por uma velha que estava a cardar lã, e arrumou-me na cara com o sedeiro, deixando-me neste miserável estado. Quando ia a sair a porta, um demónio dum remendão atravessou-me as pernas com a sovela. Logo depois Satanás em pessoa atirou-se a mim, despedaçando-me com as garras. Na estrebaria deram-me uma paulada que me ia matando. Se vocês me não acreditam, vão lá, e experimentem.»

— Acreditamos, disseram os companheiros, vendo-lhe a cara e o corpo todo ensanguentado: Não seremos nós que lá tornaremos.»

Pela manhã, João e os seus camaradas almoçaram ainda excelentemente, e partiram em seguida para restituir ao conde o dinheiro que os ladrões lhe tinham roubado. Meteram-no cuidadosamente dentro de dois sacos, com que carregou o jumento. Foram andando, andando, até que chegaram à porta do castelo. Diante dessa porta estava o malvado do porteiro, com uma libré esplêndida, meias de seda, calções escarlates e cabelo empoado.

Olhou com ar de desprezo para a pequenina caravana, e disse a João:

— Que vindes aqui buscar? Não há lugar para os recolher, vão-se embora.»

— Não queremos nada de ti, respondeu João. O dono do castelo far-nos-á um bom acolhimento.

— Fora daqui vagabundos, exclamou o porteiro enfurecido. Ponham-se a andar imediatamente, quando não atiro-lhes já às pernas os meus cães de fila.»

— Perdão, só um instante, replicou o galo empoleirado na cabeça do jumento; não me poderias dizer quem é que abriu aos ladrões na noite passada a porta do castelo?»

O porteiro corou. O conde que estava à janela, disse-lhe:

— Ó Bernabé, responde ao que esse galo te acaba de perguntar.

— Senhor, replicou Bernabé, este galo é um miserável. Não fui eu que abri a porta aos seis ladrões.

— Como é então, meu velhaco, tornou o conde, que tu sabes que eram seis?

Seja como for, disse João, aqui lhe trazemos o dinheiro roubado, pedindo-lhe unicamente que nos dê de jantar e nos recolha esta noite, porque vimos cansados do caminho.

— Ficai certos que sereis bem tratados.

O burro, o cão e o galo, levaram-nos para a quinta. O gato ficou na cozinha. E enquanto a João, o conde reconhecido, vestiu-o dos pés à cabeça com um vestuário magnífico, deu-lhe um relógio de ouro, e disse-lhe:
— Queres ficar comigo? És esperto e honrado, serás o meu intendente.»

João aceitou a proposta, e mandou vir a sua velha mãe para o pé de si. Casou depois com uma linda rapariga, e viveu sempre felicíssimo.

Em tempos muito remotos os habitantes duma grande cidade levantaram uma igreja magnífica a Santa Cecília, padroeira dos músicos.

As rosas mais vermelhas e os lírios mais cândidos enfeitavam o altar. O vestido da santa era de filigrana de prata e os sapatinhos eram de oiro, feitos pelo melhor ourives que havia na cidade. A capela estava constantemente cheia de peregrinos e devotos. Uma vez foi lá em romaria um pobre rabequista, pálido, magro, escaveirado. Como a jornada tinha sido muito longa, estava cansado, e já no seu alforge não havia pão nem dinheiro no bolso para o comprar.

Assim que entrou na capela, começou a tocar na sua rabeca com tal suavidade, com tanta expressão, que a santa ficou enternecida ao vê-lo tão pobre e ao escutar aquela música deliciosa. Quando terminou, Santa Cecília abaixou-se, descalçou um dos seus ricos sapatos de ouro, e deu-o ao pobre músico, que tonto de alegria, dançando, cantando, chorando, correu à loja dum ourives para lho vender. O ourives, reconhecendo o sapato da santa, prendeu o pobre rabequista e levou-o à presença do juiz. Instauraram-lhe processo, julgaram-no, e foi condenado à morte.

Chegara o dia da execução. Os sinos dobravam lastimosamente, e o cortejo pôs-se em marcha ao som dos cânticos dos frades, que ainda assim não chegavam a dominar os sons da rabeca do condenado, que pedira, como última graça, o deixarem-lhe tocar na sua rabeca até ao último momento. O cortejo chegou defronte da capela da santa, e quando pararam suplicou o triste desgraçado, que o levassem lá dentro para tocar a sua derradeira melodia.

Os padres e os chefes da escolta consentiram, e o rabequista entrou, ajoelhou aos pés da santa, e debulhado em lágrimas começou a tocar. Então o povo, maravilhado e aterrado, viu Santa Cecília curvar-se de novo, descalçar o outro sapato e metê-lo nas mãos do infeliz músico. À vista deste milagre, todos os assistentes, levaram em triunfo o rabequista, coroaram-no de flores, e os magistrados vieram solenemente prestar-lhe as mais honrosas homenagens.

Um lavrador que tinha quatro filhos trouxe-lhes um dia cinco pêssegos. Os pequenos, que nunca tinham visto semelhantes frutos, extasiaram-se diante das suas cores e da fina penugem que os cobria. À noite o pai perguntou-lhes:

— Então comeram os pêssegos?

— Eu comi, disse o mais velho. Que bom que era! Guardei o caroço, e hei-de plantá-lo para nascer uma árvore.»

— Fizeste bem, respondeu o pai, é bom ser económico e pensar no futuro.»

— Eu, disse o mais novo, o meu pêssego comi-o logo, e a mamãe ainda me deu metade do que lhe tocou a ela. Era doce como mel.»

— Ah! acudiu o pai, foste um pouco guloso, mas na tua idade não admira; espero que quando fores maior te hás-de corrigir.»

— Pois eu cá, disse um terceiro, apanhei o caroço que o meu irmão deitou fora, quebrei-o, e comi o que estava dentro, que era como uma noz. Vendi o meu pêssego, e com o dinheiro hei de comprar coisas quando for à cidade.»

O pai meneou a cabeça:

— Foi uma ideia engenhosa, mas eu preferia menos cálculo. E tu, Eduardo, provaste o teu pêssego?

— Eu, meu pai, respondeu o pequeno, levei-o ao filho do nosso vizinho, ao Jorge, que está, coitadinho, com febre. Ele não o queria, mas deixei-lho em cima da cama, e vim-me embora.

— Ora bem, perguntou o pai, qual de vós é que empregou melhor o pêssego que eu lhe dei?

E os três responderam à uma voz:

— Foi o mano Eduardo.

Este, no entanto, não dizia palavra, e a mãe abraçou-o com os olhos arrasados de lágrimas.

Era uma vez uma viúva, que tinha uma filhinha muito linda, a quem adorava sobre todas as coisas. Não se separava dela um só momento; mas um dia a pobre pequerrucha começou a sofrer, adoeceu e morreu. A desditosa mãe, que tinha passado as noites e os dias, sem repousar um momento, à cabeceira da filha, julgou endoidecer de mágoa e de saudades. Não comia, não fazia senão chorar e lamentar-se. Uma noite em que estava acabrunhada, chorando no mesmo sítio em que a filha tinha morrido, abriu-se de repente a porta do quarto e viu-a aparecer a ela, a sua querida filha, sorrindo com uma expressão angélica e trazendo nas mãos uma urna, que vinha cheia até às bordas.

— «Oh! minha querida mãe, disse-lhe ela, não chores mais. Olha, o anjo das lágrimas recolheu as tuas nesta urna. Se chorares mais, transbordará, e as tuas lágrimas correrão sobre mim, inquietando-me no túmulo e perturbando a minha felicidade no paraíso.

A pequenina desapareceu, e a mãe não tornou a chorar para a não afligir.

Os vossos filhos serão para vós como vós tiverdes sido para vossos pais. E é natural. As crianças vêem diariamente o que fazem seus pais, e imitam-nos. Justifica-se desta maneira o provérbio que diz,—que a bênção ou a maldição dum pai cai sobre a cabeça de seus filhos, terminando sempre por se realizar. Citaremos dois exemplos, que merecem ser meditados.

Um príncipe, passeando no campo, viu um pobre homem, que andava muito satisfeito, a lavrar a terra. Pôs-se a conversar com ele. Depois de algumas perguntas, soube que o campo não pertencia ao homem, mas que trabalhava nele mediante um salário de doze vinténs por dia. O príncipe, que para as suas despesas de administração e representação necessitava de quantias avultadas, custou-lhe ao principio a perceber, como se vivia com doze vinténs diários, andando-se ainda por cima satisfeito. Manifestou o seu espanto ao aldeão, que lhe respondeu:

«Gasto diariamente comigo a terça parte dessa quantia; outro terço é para pagar as minhas dividas; e o resto é para ir juntando algumas economias.»

Era um novo enigma para o príncipe. Mas o alegre camponês explicou-lho deste modo.

«Reparto quanto ganho com os meus velhos pais, que já não podem trabalhar, e com os meus filhos, que ainda não têm força para isso. Aos primeiros pago-lhes o amor de que me deram tantas provas na minha infância; e espero que os segundos não me abandonem, quando os anos tiverem pesado sobre mim.»

O príncipe, ouvindo isto, quis premiar o honrado camponês; encarregou-se da educação de seus filhos; e a bênção que lhe deram os seus velhos pais, os seus filhos merecerem-na depois pela sua vez, rodeando igualmente a sua velhice de cuidados piedosos e da mais terna dedicação.

Mas posso desgraçadamente citar-vos outro filho, que procedeu duma maneira tão indigna com seu velho pai doente e aleijado, que este teve de pedir que o levassem para o hospital da misericórdia. O filho ingrato recebeu com alegria o desejo do infeliz velho, que nessa mesma tarde foi conduzido ao hospital. Como este estabelecimento de caridade fosse muito pobre, decidiu-se o velho a mandar pedir a seu filho, como última esmola, um par de lençóis, para cobrir a palha que lhe servia de leito. O mau filho escolheu os lençóis mais usados, e disse ao seu pequeno, de dez anos de idade, que os fosse levar a esse velho rabujento. Mas notou que a criança ao partir tinha escondido um dos lençóis a um canto, atrás da porta.

Quando voltou perguntou-lhe o pai, porque fizera aquilo.

«Foi, respondeu a criança desabridamente, para me servir mais tarde deste lençol, quando pela minha vez te mandar também para o hospital.

Era uma vez um sultão, que despendia em vestuário todo o seu rendimento.

Quando passara revista ao exercito, quando ia aos passeios ou ao teatro, não tinha outro fim senão mostrar os seus fatos novos. Mudava de traje a todos os instantes, e como se diz dum rei: Está no conselho; dizia-se dele: Está-se a vestir. A capital do seu reino era uma cidade muito alegre, graças à quantidade de estrangeiros que por ali passavam; mas chegaram lá um dia dois larápios, que, dando-se por tecelões, disseram que sabiam fabricar o estofo mais rico que havia no mundo. Não só eram extraordinariamente belos os desenhos e as cores, mas além disso os vestuários feitos com esse estofo, possuíam uma qualidade maravilhosa: tornavam-se invisíveis para os idiotas e para todos aqueles que não exercessem bem o seu emprego.

— São vestuários impagáveis, disse consigo o sultão; graças a eles, saberei distinguir os inteligentes dos tolos, e reconhecer a capacidade dos ministros. Preciso desse estofo!»

E mandou em seguida adiantar aos dois charlatães uma quantia avultada, para que pudessem começar os trabalhos imediatamente.

Os homens levantaram com efeito dois teares, e fingiram que trabalhavam, apesar de não haver absolutamente nada nas lançadeiras. Requisitavam seda e oiro fino a todo o instante; mas guardavam tudo isso muito bem guardado, trabalhando até à meia noite com os teares vazios.

— «Preciso saber se a obra vai adiantada».

Mas tremia de medo ao lembrar-se que o estofo não podia ser visto pelos idiotas. E, apesar de ter confiança na sua inteligência, achou prudente em todo o caso mandar alguém adiante.

Todos os habitantes da cidade, conheciam a propriedade maravilhosa do estofo, e ardiam em desejos de verificar se seria exacto.

— Vou mandar aos tecelões o meu velho ministro, pensou o sultão; tem um grande talento, e por isso ninguém pode melhor do que ele avaliar o estofo.

O honrado ministro entrou na sala em que os dois impostores trabalhavam com os teares vazios.

— Meu Deus! disse ele consigo arregalando os olhos, não vejo absolutamente nada!» Mas no entanto calou-se. Os dois tecelões convidaram-no a aproximar-se, pedindo-lhe a sua opinião sobre os desenhos e as cores. Mostraram-lhe tudo, e o velho ministro olhava, olhava, mas não via nada, pela razão simplicíssima de nada lá existir.

— Meu Deus! pensou ele, serei realmente estúpido? É necessário que ninguém o saiba!... Ora esta! Pois serei tolo realmente! Mas lá confessar que não vejo nada, isso é que eu não confesso.»

«Então que lhe parece?» perguntou um dos tecelões:

— «Encantador, admirável! respondeu o ministro, pondo os óculos. Este desenho... estas cores... magnífico!... Direi ao sultão que fiquei completamente satisfeito.»

— «Muito agradecido, muito agradecido», disseram os tecelões; e mostraram-lhe cores e desenhos imaginários, fazendo-lhe deles uma descrição minuciosa. O ministro ouviu atentamente, para ir depois repetir tudo ao sultão.

Os impostores requisitavam cada vez mais seda, mais prata e mais oiro; precisavam-se quantidades enormes para este tecido. Metiam tudo no bolso, é claro; o tear continuava vazio, e apesar disso trabalhavam sempre.

Passado algum tempo, mandou o sultão um novo funcionário, homem honrado, a examinar o estofo, e ver quando estaria pronto. Aconteceu a este enviado o que tinha acontecido ao ministro: olhava, olhava e não via nada.

— Não acha um tecido admirável?» perguntaram os tratantes, mostrando o magnífico desenho e as belas cores, que tinham apenas o inconveniente de não existir.

— Mas que diabo! Eu não sou tolo! dizia o homem consigo. Pois não serei eu capaz de desempenhar o meu lugar? É esquisito! mas deixá-lo, não o deixo eu.»

Em seguida elogiou o estofo, significando-lhes toda a sua admiração pelo desenho e o bem combinado das cores.

— É duma magnificência incomparável, disse ele ao sultão. E toda a cidade começou a falar desse tecido extraordinário.

Enfim o próprio sultão quis vê-lo enquanto estava no tear. Com um grande acompanhamento de pessoas distintas, entre as quais se contavam os dois honrados funcionários, dirigiu-se para as oficinas, em que os dois velhacos teciam continuamente, mas sem fios de seda, nem de oiro, nem de espécie alguma.

— Não acha magnífico? disseram os dois honrados funcionários. O desenho e as cores são dignos de vossa alteza.»

E apontaram para o tear vazio, como se as outras pessoas que ali estavam pudessem ver alguma coisa.

— Que é isto! disse consigo mesmo o sultão, não vejo nada! É horrível! serei eu tolo, incapaz de governar os meus estados? Que desgraça que me acontece!» Depois de repente exclamou: «É magnífico! Testemunho-vos a minha satisfação.»

E meneou a cabeça com um ar satisfeito, e olhou para o tear, sem se atrever a declarar a verdade. Todas as pessoas de seu séquito olharam do mesmo modo, uns atrás dos outros, mas sem ver coisa alguma, e no entanto repetiam como o sultão: «É magnífico!» Até lhe aconselharam a que se apresentasse com o fato novo no dia da grande procissão. «É magnífico! é encantador! é admirável!» exclamavam todas as bocas, e a satisfação era geral.

Os dois impostores foram condecorados e receberam o titulo de fidalgos tecelões.

Na véspera do dia da procissão passaram a noite em claro, trabalhando à luz de dezasseis velas. Finalmente fingiram tirar o estofo do tear, cortaram-no com umas grandes tesouras, coseram-no com uma agulha sem fio, e declararam, depois disto, que estava o vestuário concluído.

O sultão com os seus ajudantes de campo foi examiná-lo, e os impostores levantando um braço, como para sustentar alguma coisa, disseram:

«Eis as calças, eis a casaca, eis o manto. Leve como uma teia de aranha; é a principal virtude deste tecido.»

— Decerto, respondiam os ajudantes de campo, sem ver coisa alguma.

— Se vossa alteza se dignasse despir-se, disseram os larápios, provar-lhe-íamos o fato diante do espelho.»

O sultão despiu-se, e os tratantes fingiram apresentar-lhe as calças, depois a casaca, depois o manto. O sultão tudo era voltar-se defronte do espelho.

— Como lhe fica bem! que talhe elegante! exclamaram todos os cortesãos. Que desenho! que cores! que vestuário incomparável!»

Nisto entrou o grão-mestre de cerimónias.

— Está à porta o dossel sobre que vossa alteza deve assistir à procissão, disse ele.»

— Bom! estou pronto, respondeu o sultão. Parece-me que não vou mal.»

E voltou-se ainda uma vez diante do espelho, para ver bem o efeito do seu esplendor. Os camaristas que deviam levar a cauda do manto, não querendo confessar que não viam absolutamente nada, fingiam arregaçá-la.

E, enquanto o sultão caminhava altivo sob um dossel deslumbrante, toda a gente na rua e às janelas exclamava: «Que vestuário magnífico! Que cauda tão graciosa! Que talhe elegante!» Ninguém queria dar a perceber, que não via nada, porque isso equivalia a confessar que se era tolo. Nunca os fatos do sultão tinham sido tão admirados.

— Mas parece que vai em cuecas», observou um pequerrucho, ao colo do pai.

— É a voz da inocência, disse o pai.

— Há ali uma criança que diz que o sultão vai em cuecas.

«Vai em cuecas! vai em cuecas!» exclamou o povo finalmente.

O sultão ficou muito aflito porque lhe pareceu que realmente era verdade. Entretanto tomou a enérgica resolução de ir até ao fim, e os camaristas submissos continuaram a levar com respeito a cauda imaginária.

Um homem rico, mas avarento, tinha perdido dentro dum alforge uma quantia em oiro bastante avultada. Anunciou que daria cem mil réis de alvíssaras a quem lha trouxesse. Apresentou-se-lhe em casa um honrado camponês levando o alforge. O nosso homem contou o dinheiro, e disse:

— Deviam ser oitocentos mil réis, que foi a quantia que eu perdi; no alforge encontro apenas setecentos; vejo, meu amigo, que recebeste adiantados os cem mil réis de alvíssaras: estamos pagos por conseguinte.»

O bom camponês, que nem por sombras tocara no dinheiro, não podia nem devia contentar-se com semelhantes agradecimentos. Foram ter com o juiz, que, vendo a má fé do avarento, deu a seguinte sentença:

— Um de vós perdeu oitocentos mil réis; o outro encontrou um alforge apenas com setecentos: Resulta daí claramente que o dinheiro que o último encontrou não pode ser o mesmo a que o primeiro se julga com direito. Por consequência tu, meu bom homem, leva o dinheiro que encontraste, e guarda-o até que apareça o indivíduo que perdeu somente setecentos mil réis. E tu, o único conselho que passo a dar-te, é que tenhas paciência até que apareça alguém que tenha achado os teus oitocentos mil réis.

Um rei, que viajava nos seus estados, encontrou uma vez um homem a quem perguntou como se chamava, de donde era, e que oficio tinha. Este respondeu:

— «Senhor: eu sou um desgraçado, um miserável; nasci no vosso reino, e chamo-me Ingratidão

— «Se pudesse contar com a tua fidelidade, disse o rei, tomava-te ao meu serviço.»

O nosso homem prometeu ser fiel, e o rei ordenou-lhe que o seguisse. Desde que chegaram a palácio, deu tais provas de habilidade, mostrou-se tão esperto e tão solícito, que o rei afeiçoou-se-lhe de tal modo, que o nomeou seu intendente, confiando-lhe a administração da sua casa. Deslumbrado por uma fortuna tão rápida, o seu orgulho desde então não conheceu limites; maltratava os inferiores, e não tinha compaixão dos desventurados.

Ora, na vizinhança do palácio havia uma floresta cheia de animais selvagens e perigosíssimos. O intendente mandou aí fazer por toda a parte covas profundas, cobertas com folhas, de modo que as feras, caindo dentro, pudessem ser agarradas. Um dia que o intendente atravessava a floresta, ia tão absorvido pelos seus pensamentos orgulhosos, que se precipitou ele mesmo dentro duma das covas.

Passado um instante, caiu um leão dentro do mesmo poço; caiu depois um lobo e em seguida uma enorme serpente, de aspecto horroroso. O governador, ao ver-se em tão extraordinária companhia, ficou tão horrorizado, que lhe embranqueceram os cabelos; e toda a esperança de salvação lhe parecia inteiramente perdida, porque por mais que gritasse, ninguém o vinha socorrer.

Esqueceu-nos dizer que havia na cidade um homem extremamente pobre, chamado António, que todos os dias ia rachar lenha à floresta, para ganhar o pão necessário à sua mulher e aos seus filhos. António também lá foi nesse dia, como de costume, e pôs-se a trabalhar não longe da cova em que caíra o intendente, cujos gritos de aflição não tardou a ouvir. O pobre rachador aproximou-se e perguntou, quem era que estava ali.

— «Sou o governador do palácio do rei, e, se me tirares daqui, prometo encher-te de riquezas; estou em companhia dum leão, dum lobo e duma enorme serpente.»

— «Eu, respondeu o lenhador, sou um miserável jornaleiro, não tendo para sustentar a minha família, mais que o produto do meu trabalho; bastava um dia perdido para me causar um grande desarranjo; vê lá pois, se cumpres a tua promessa?

O intendente continuou:

— «Pela fé que devo a Deus e a el-rei nosso senhor, juro-te que cumprirei a minha palavra.»

Confiado nisto o rachador de lenha foi à cidade, e voltou com uma corda muito comprida, que deixou correr dentro do abismo. O leão atirou-se a ela, e suspendeu-se com uma tal energia que o lenheiro julgava que era o intendente.

Quando chegou acima, o leão agradeceu ao seu salvador com a maior amabilidade, e foi-se embora à procura de jantar, porque tinha fome.

António deitou outra vez a corda ao fundo do poço, e, julgando tirar o governador, enganou-se, porque era o lobo; à terceira vez subiu a serpente; foi necessário fazer uma quarta tentativa, para sair o governador. Este não perdeu tempo em agradecimentos, e partiu a correr para o palácio. O jornaleiro voltou para casa, e contou à mulher tudo o que se tinha passado, não lhe esquecendo, é claro, as brilhantes promessas do intendente. No dia seguinte logo pela manhã, foi o pobre homem bater à porta do palácio. O porteiro perguntou-lhe o que queria.

— «Faça-me o favor, respondeu o rachador de dizer a s.ex.ª o intendente que o homem com quem ele esteve ontem na floresta lhe deseja falar.»

O porteiro foi levar o recado, mas o intendente zangou-se, e exclamou:

— «Vai dizer a esse homem, que eu não vi ninguém na floresta; que se ponha a andar, porque o não conheço.»

O porteiro voltou, e repetiu o que o governador lhe tinha dito.

O pobre homem tornou para casa mui descorçoado, e contou à mulher a odiosa perfídia de que tinha sido vitima.

A mulher disse-lhe:

— «Tem paciência; o sr. intendente estava hoje decerto muito ocupado, e foi talvez por isso que te não pôde receber.»

Estas palavras sossegaram o rachador que outra vez nutriu esperanças.

Na manhã seguinte, ainda muito cedo, bateu de novo à porta do palácio. Mas o intendente mandou-lhe dizer em termos ásperos, que não tornasse ali a aparecer, quando não ver-se-ia obrigado a empregar meios violentos. A mulher ainda desta vez procurou consolá-lo:

— «Experimenta terceira e última vez, disse-lhe ela, talvez Deus o inspire melhor. E se assim não for, ainda que te custe, não penses mais nisso.»

No dia seguinte o bom do homem voltou à carga; e tendo o porteiro consentido à força de suplicas em anunciá-lo ainda ao governador, este encolerizado atirou-se praguejando fora do quarto, e crivou o pobre homem duma tal chuva de bengaladas, que o deixou quase morto no meio do chão. A mulher dele, sabendo disto, correu imediatamente com um burro, pôs-lhe em cima o marido, e levou-o para casa: As feridas levaram-lhe seis meses a curar, estando sempre de cama, vendo-se obrigado a contrair dividas para pagar ao médico. Quando finalmente tinha recobrado algumas forças, voltou ao bosque segundo o costume para fazer alguma lenha. Apenas lá chegou, apareceu-lhe o leão, que ele tinha ajudado a sair do poço. O leão conduzia um burro diante de si, e este burro estava carregado de sacos cheios de preciosidades. O leão, vendo António, parou e inclinou-se diante dele com um ar de respeitoso agradecimento. Depois disto continuou o seu caminho, fazendo-lhe sinal de que ficasse com o jumento. António doido de alegria levou o animal para casa, abriu os sacos, e viu que estava rico.

No dia seguinte, voltando de novo à floresta, apareceu-lhe o lobo, que o ajudou no seu trabalho, querendo provar-lhe desta maneira o quanto lhe era agradecido. Quando a tarefa estava concluída, e tinha carregado o burro com a lenha, viu vir ao seu encontro a serpente, que ele tinha tirado do fôjo, e que trazia na ponta da língua uma pedra preciosa, em que brilhavam três cores,—o branco, o preto e o vermelho. Quando a serpente chegou ao pé do rachador de lenha, deixou cair a pedra junto dele, e depois dando um salto desapareceu no matagal. António levantou a pedra, examinou-a por todos os lados, para ver que propriedade ou virtude ela teria. Para isto foi ter com um velho, afamado pela sua habilidade em decifrar o que diziam os astros. Este, assim que viu a pedra, ofereceu-lhe por ela uma grande quantia. António respondeu-lhe que a não queria vender, mas simplesmente saber se seria boa.

O velho respondeu:

— «São três as virtudes desta pedra: abundância contínua, alegria imperturbável e luz sem trevas. Se alguém ta comprar por menos dinheiro do que vale, tornará imediatamente para a tua mão.»

António ficou muito contente com esta resposta, agradeceu ao velho da ciência maravilhosa, e correu a contar à mulher a sua felicidade. Como se imagina, graças à virtude da famosa pedra, não lhe faltaram daí em diante, nem honras nem riquezas.

Tendo chegado aos ouvidos do rei a noticia destas prosperidades, mandou chamar António, e mostrou-lhe desejos de adquirir o precioso talismã.

António, vendo que semelhante desejo era uma ordem, respondeu:

— «Devo prevenir a vossa majestade de que, se esta pedra me não for paga pelo que vale, tornará ela mesma para o meu poder.»

— «Hei de pagar-ta bem, disse o rei.»

E mandou-lhe dar trinta mil libras em oiro. No dia seguinte de manhã, António achou outra vez a pedra em cima da mesa; e a mulher sabendo isto disse-lhe:

— «Torna a levá-la ao rei imediatamente; não vá ele persuadir-se que lha furtaste.»

O nosso homem seguiu este conselho, e, quando chegou à presença de sua majestade, pediu-lhe que lhe dissesse aonde tinha guardado a pedra preciosa.

— «Mandei-a meter com todo o cuidado dentro dum cofre de ferro, fechado com sete chaves, disse o rei.»

António mostrou-lhe então a jóia preciosa, e o rei ficou extraordinariamente espantado, e quis saber como ele tinha adquirido semelhante tesouro.

António contou-lhe tudo que tinha havido, a ingratidão do governador e o reconhecimento dos animais ferozes. O rei indignado, mandou chamar o seu intendente, e disse-lhe:

— «Homem perverso, com justo motivo te puseram o nome de Ingratidão, porque és mais falso e mais pérfido que os animais ferozes, e pagaste com o mal o bem que te fizeram. Mas justiça será feita. Dou a António as tuas honras e os teus bens, e a ti, hoje mesmo, o castigo de seres enforcado.»

Admiraram todos a sentença do rei, e António desempenhou as suas altas funções com tanta sabedoria e bondade, que depois da morte do rei foi escolhido para o substituir, e reinou pacificamente durante longos anos gloriosos.

Um homem, animado pela mais ardente crença religiosa, deliberou retirar-se a uma gruta solitária para se consagrar inteiramente ao trabalho da sua salvação. Jejuando sempre, orando, ciliciando-se, os seus pensamentos não se desviavam nunca da ideia de Deus. Depois de ter assim vivido durante muitos anos, uma noite lembrou-se de que já tinha merecido um lugar glorioso no paraíso, e podia ser contado entre os santos mais notáveis.

Na noite seguinte o anjo Gabriel apareceu-lhe, e disse-lhe:

— Há no mundo um pobre músico, que anda de porta em porta, tocando viola e cantando, e que mereceu mais do que tu as recompensas eternas.

O ermitão, atónito, ao ouvir estas palavras, levantou-se, agarrou no seu bordão, foi em busca do músico e mal o encontrou disse-lhe:

— Irmão, diz-me que boas obras fizeste, e por meio de que orações e penitências te tornaste agradável a Deus.

— Ora, respondeu-lhe o músico, abaixando a cabeça, santo padre, não zombes de mim. Nunca fiz boas obras, e quanto a orações não as sei, pobre de mim, que sou um pecador. O que faço é andar de casa em casa a divertir os outros.»

O austero ermitão continuou a insistir:

— Estou certo que, no meio da tua existência vagabunda, praticaste algum acto de virtude.»

— Em verdade não poderia citar nem um só.»

— Mas então como chegaste a este estado de pobreza? Tens vivido loucamente como os que exercem a tua profissão? Dissipaste frivolamente o teu património e o produto do teu ofício?»

— Não; mas um dia encontrei uma pobre mulher abandonada, cujo marido e filhos tinham sido condenados à escravidão para pagar uma dívida. Essa mulher era nova e bela, e queriam seduzi-la. Recolhi-a em minha casa, protegia-a em todos os perigos, dei-lhe tudo que possuía para resgatar a sua família, e levei-a à cidade, onde ela devia encontrar-se com seu marido e com seus filhos. Mas quem não teria feito outro tanto?»

A estas palavras o ermitão pôs-se a chorar, e exclamou:

— Nos meus setenta anos de solidão nunca pratiquei uma obra tão meritória, e apesar disso chamo-me o homem de Deus, enquanto que tu não passas dum pobre músico.»

Carlos Magno numa das suas frequentes viagens viu o abade de S. Gall, preguiçosamente reclinado sobre almofadas à porta da abadia, fresco, rosado, bem disposto. Carlos Magno adorava os homens enérgicos e activos, e o abade era indolente. Além disso o imperador tinha mais dum motivo de queixa contra ele.

— Bons dias, senhor abade. Ainda bem que o encontro. Tenho a submeter à sua esclarecida razão três perguntas, às quais terá a bondade de me responder daqui a três meses, contados dia a dia, em sessão solene do nosso conselho imperial. Primeiro que tudo, desejo saber o meu valor em dinheiro; em segundo lugar, quanto tempo levaria a dar a volta ao mundo; em terceiro lugar, que estarei eu pensando no momento em que v. rev.ma vier à minha presença, pensamento que deve ser um erro. Trate de arranjar resposta satisfatória a tudo, aliás deixa de ser abade de S. Gall, e tem de abandonar a abadia, montado num burro com a cara voltada para o rabo.»

O abade não sabia a que santo se apegar. Mandou a todas as escolas, mas os doutores mais famosos pela sua ciência, não lhe souberam dar resposta. No entanto os dias iam correndo, e a época fatal aproximava-se; já não faltava senão um mês, já não faltavam senão semanas, e afinal só dias. O abade, que noutro tempo era gordo e anafado, estava magro como um esqueleto. Perdera o sono e o apetite. Andava errante nos bosques lamentando a sua desgraça, quando se encontrou com o seu pastor.

— Bons dias senhor abade. Parece que está mais magro! Está doente?»

— Estou, meu caro Félix, estou muito doente.»

— Oh! meu rico amigo, eu lhe darei alguma erva que o possa curar.»

— Infelizmente não são ervas que eu preciso, mas resposta às minhas três perguntas.»

— É então latim?»

— Não, não é latim, senão os doutores tinham-me arranjado tudo.»

— Visto que não é latim, queira v. rev.ma dizer-me o que é: minha mãe era uma pobre de Cristo, mas tinha resposta para tudo.»

Quando o abade lhe formulou as três perguntas, o pastor atirou com o barrete ao ar, e disse-lhe:

— Se é apenas isso, eu me encarrego de responder por si, e v. rev.ma pode continuar a engordar; mas para isso é necessário que eu vista o seu hábito.»

Quando chegou o dia, o pastor disfarçado com o hábito do abade de S. Gall, foi introduzido na sala onde o imperador presidia o conselho imperial.

— Então, senhor abade, parece que está mais magro, deu-lhe muito que pensar a chave do enigma? Vamos lá a ver a primeira pergunta: Quanto valho eu em dinheiro?»

— Senhor, o filho de Deus Nosso Senhor Jesus Cristo foi vendido por trinta dinheiros, sua majestade vale à justa vinte e nove, só um dinheiro menos.»

— Bravo, senhor abade, a resposta é hábil, e na realidade não posso deixar de me mostrar satisfeito. Mas vamos à segunda pergunta, não há de ser tão fácil dar a resposta. Vamos lá a ver: quanto tempo levaria eu a dar a volta ao mundo?»

— Senhor, se vossa majestade se levantar ao romper do dia e puder seguir constantemente passo a passo o sol no seu giro, bastam-lhe vinte e quatro horas.»

— Decididamente, v. rev.ma é um grande finório, e desta vez, confesso-me vencido; mas a terceira, não dessas à que se responde com suposições. Quem lhe há de dizer o que eu estou pensando, e como me há de provar que este pensamento é um erro? Tem a palavra senhor abade.»

— Senhor: Vossa majestade imagina que eu sou o abade de S. Gall; está enganado, porque eu sou o seu pastor.»

— Mas então tu é que deves ser o abade de S. Gall, e desde já o ficas sendo.»

— Não sei latim, mas, se vossa majestade quer fazer-me um favor, peço-lhe outra coisa.»

— Não tens mais que falar.»

— Peço a vossa majestade que perdoe ao meu amigo.»

Carlos Magno não era homem que faltasse à sua palavra.


Deixe-me agora, leitor, contar-lhe uma historia — a historia d'uma boneca!

Não ha muitos annos, mas ainda não era a cordoaria do Porto o ameno jardim, onde a infancia folga por entre macissos de flores e sob o sorriso do sol, sem que lhe ennegreça o espirito a vista dos dois monumentos, que a meu ver symbolisam as duas mais horriveis calamidades, que podem aniquillar um homem — o hospital e a cadeia! — ainda não ha muitos annos, repito, estava eu, uma noite, encostado a uma barraca da feira, divertindo-me a meu modo.

Cançado das innumeras figuras, que tinha visto passar por aquella especie de lanterna magica, dispunha-me a dar por findo o espectaculo, quando novos personagens me chamaram a attenção.

Eram os meus visinhos ricos.

Aqui é preciso uma rapida explicação.

Das famílias da minha visinhança, só conheço tres.

Qual d'estas tres familias será mais feliz?...

Pelo que tenho notado, não tem que invejar umas ás outras.

São todas felizes; cada qual a seu modo.

Vi, pois, chegar os meus visinhos ricos.

Parou o carro, o creado saltou da almofada e veio, de chapéu na mão e dorso ligeiramente curvado, abrir a portinhola; o meu visinho saltou, tomou nos braços a filhinha e depol-a no chão, e offerecendo, em seguida, a mão á esposa, para a ajudar a apeiar, dirigiu-se com ella e com a menina para a barraca onde eu estava.

Não havia ali segredo a surprehender.

Havia um homem, exemplar como marido, rico, doido pela filha, e que parecia agradecer áquella formosa criança a manifestação de qualquer desejo.

No fim de meia hora possuia a minha pequena, visinha com que fazer a felicidade de dez crianças menos abastadas.

Tinha o necessario para montar completamente a casa d'uma boneca... rica.

Faltava apenas a dona da casa — a boneca.

Todo risos e attenções, o logista apresentou o que tinha de melhor.

Depois de muita hesitação e de, já com os olhos, já com a voz, consultar a mamã, a gentil creança acabou por escolher uma magnifica boneca de dois palmos d'altura, com cabello em bandeaux e olhos azues.

Uma boneca como as outras: cabeça e collo de massa, corpo de pellica recheada, braços e pernas de páu.

Uma vive na loja da casa, que habito. É uma tribu de crianças, que fazem o martyrio e a alegria da pobre mãe, e tem por chefe um honrado sapateiro.

Alguns d'elles, se andassem limpos, seriam encantadores; assim, parecem anjos, caidos do céo sobre um monte de lama.

São os meus visinhos pobres.

A segunda compõe-se de marido, mulher e filha, e occupa a casa immediata.

É como se costuma dizer, gente que vae muito bem com a sua vida.

A filha que terá dez annos, tem d'estas faces rosadas, rijas e carnudas, cuja solidez a gente gosta de experimentar com o dedo, e que resistem à pressão.

São os meus visinhos remediados.

A terceira é a dos meus visinhos ricos.

Casa nobre, jardim espaçoso, cavallos, creados, nome inscripto nas listas dos accionistas de todos os bancos e no rol dos credores do estado — nada falta áquella ditosa gente!

Compõe-se egualmente de marido, mulher e filha.

Que formosa criança!... Terá oito annos.

Franzina e pallida, com os cabellos negros, os olhos grandes e scismadores, nunca lhe contemplo as pequeninas mãos de dedos compridos e esguios, terminados por unhas d'uma côr de rosa transparente, que não sinta antecipada inveja do feliz namorado — provavelmente ainda a crescer — que hade um dia ter o direito de lh'as cobrir de beijos.

Feita a compra, o pai pagou, chamou o creado, e este mudou todas aquellas preciosidades de sobre o balcão da barraca para dentro do carro.

A boneca teve a honra de ser transportada pela aristocratica criança.

Sai d'ali, logo que o trem rodou, e fui fazendo até casa variadissimas considerações, suggeridas pela quasi indiferença, com que aquella menina recebera brinquedos, que representavam um par de moedas.

Que contraste com os olhares de cubiça, com que outras raparigas da mesma idade namoravam uma d'estas bonecas de cabeça de panno, horrivel artefacto portuguez, em que os olhos são representados por dois pontos de linha azul, o nariz por um alinhavo de retroz côr de rosa, a bôca por outro de fio vermelho, e os cabellos por flocos de lã preta!

Quando cheguei a casa, já na dos meus visinhos remediados não havia luz.

Na dos meus visinhos pobres, o pai batia a sola, cantando ao som de tres assobios e duas campainhas de barro, com que os anjos, por lavar, provocavam os ralhos da mãe.

Quando, no dia seguinte, cheguei á janella, seriam onze horas da manhã.

Na rua agenciavam nova camada de immundicie os filhos do sapateiro; na casa immediata não se via ninguem — estava a pequena na mestra; no palacio, sentada n'um tapete estendido sobre a ampla pedra da varanda, divertia-se a minha pequena milionaria fazendo rodar, com auxilio d'uma linha, uma magnifica caleche descoberta, puxada por cavallos brancos.

Dentro da caleche pavoneava-se a boneca opulentamente vestida.

— «Ahi está a tua caricatura, minha feiticeira!...» — disse eu de mim para mim. «Ensaias nas bonecas o que vês no mundo a que pertences!... Estás a aprender a copiar... Sempre este mundo!...»

Retirei-me da janella.

Durante uma semana vi muitas vezes repetida a mesma scena.

A boneca ostentava todos os dias novas galas, e havia dia em que se vestia tres e quatro vezes!

Ao que eu, porém, achava mais graça, era ao respeito com que a dona a tratava!

Chamava-lhe sr.a D. Luiza; dava-lhe excellencia; sustentava finalmente com a boneca um d'estes dialogos de senhoras da alta sociedade, em que se falla de tudo, sem se dizer coisa alguma.

Um dia, — estava eu de costas voltadas para a janella dos meus visinhos ricos — ouvi um grito de susto.

Era devido a um accidente, a que está sujeito quem anda de carro.

Voltára-se este, e a boneca caíra, ferindo a fronte na pedra da janella.

O primeiro movimento da pequena foi beijar e prantear a victima; vendo, porém, que a ferida havia forçosamente de deixar cicatriz, e lembrando-se de que só lhe bastava querer, para que lhe dessem outra nova, agarrou-a pelos pés e ia atiral-a com despeito á rua, quando mais perto de mim bradou voz timida e suplicante:

«Não atire!... Dê-m'a.»

Era a minha pequena visinha da casa pegada, de quem eu não déra fé até então.

Assim invocada, a menina rica franziu levemente as sobrancelhas e lançou um olhar de rainha para o sitio d'onde vinha a supplica.

Vendo uma criança, pouco mais ou menos da sua idade, serenou e, encolhendo os hombros, respondeu:

— «Já não presta!... Está esmurrada!...»

— É o mesmo!... Dá-m'a?... — bradou a outra, cujos olhos brilhavam de cubiça.

— «Dou...» — volveu a rica, encolhendo novamente os hombros.

E, caminhando para o canto da varanda, deixou cair a boneca nas mãos da visinha, que tremia, receiosa de que aquelle thesouro fosse despedaçar-se nas lages da rua.

Fugiram ambas as pequenas a um tempo: a rica para exigir nova boneca; a outra, para mostrar á mãe a que ella ainda não podia acreditar, que fosse sua!

Por espaço de mezes foi a boneca a principal occupação da nova dona.

A pobre perdêra na troca. Ia longe o tempo em ella se vestia quatro vezes em quatro horas!... Já lhe não davam excellencia! Chamavam-lhe sr.a D. Anna; fallavam-lhe de arranjos domesticos, do desmazello da creada, da missa das almas, de coisas finalmente, completamente estranhas para ella!

E a desgraçada perdia as côres; os olhos tornavam-se-lhe cada vez menos azues; mas o que mais a desfigurava era a cicatriz, que de dia para dia se tornava mais escura: parecia uma nodoa, um estygma!

Nos primeiros tempos, emquanto durou o vestido, que trouxera no corpo, ainda não poderia enganar olhos pouco conhecedores.

Não tardou, porém, que arrebiques de máo gosto, fitas velhas, rendas amarelladas, chapéos impossiveis, viessem contrastar com a elegancia do vestido. Dava ares de se ter equipado ao acaso, na loja d'uma adeleira.

Mas o vestido foi-se tornando velho; desappareceu o brilho, e com elle as ondulações do _moiré_, até que, um bello dia, vi a boneca vestida de cassa — -no inverno! — chaile e manta na cabeça.

Muito mal lhe ficava aquillo!... Áquella boneca custava-lhe de certo o vêr-se tão mal arranjada.

Eu retirei-me da janella soltando um suspiro, e balbuciei:

— É justo!... Cada qual segundo as suas posses.»

Por esse tempo, entrei em relações com o meu visinho sapateiro.

O honrado homem soubera, que eu me queixara da bulha, que os filhos faziam logo ao amanhecer, e aproveitàra a primeira occasião, para me pedir desculpa.

Vendo-me conversar com o honrado pai, tinham-se os filhos animado a aproximar-se de nós e, desde então, nunca saio de casa nem entro, sem grave risco de soffrer as consequencias da sua travessa familiaridade.

Entre os filhos do sapateiro, porém, ha uma pequenita d'onze annos, com quem sympathisei logo á primeira vista.

Chama-se Maria.

Por um d'estes acasos da Providencia, que parece ás vezes comprazer-se em crear contrastes, Maria destaca no meio de todos os irmãos.

Acostumado ás travessuras e desalinho dos outros filhos do sapateiro, fiquei devéras pasmado quando o pai m'a apresentou.

E bem verdade que elle conhecia o valor d'aquella criança, porque havia verdadeiro orgulho no olhar do pobre homem quando me disse: «Esta é a minha Maria!»

E tinha razão!

Não podia ser mais discreta do que já n'esse tempo era.

— É quem vale á mãe!... — accrescentou o velho.» — Ali, onde a vê, faz o serviço d'uma mulher!... Ha seis mezes, quando a minha santa esteve doente — bem pensei que não arribasse! — a pequena era quem cosinhava e olhava pelos irmãos!... E caridade como ella tem!?... Olhe que aquella pequena esteve tres dias sem se deitar... ali... ao pé da mãe! Foi preciso eu obrigal-a, que ella não a queria deixar!...»

E o desvanecido pai enxugou, com a manga da camisa, uma lagrima, que, havia muito, hesitava sobre se sim ou não se devia despenhar.

Fazia gosto ver aquella pequena com o seu vestidinho de chita escura e a cabeça coberta por um lenço branco.

Desde que o pai me deu tão boas informações da rapariga, nunca mais passei por defronte da porta da loja, sem dar pelo menos os bons dias á pequena.

Uma vez recolhia eu para jantar, quando vi a Mariquitas, com uma boneca deitada nos joelhos.

— Eu conheço aquella boneca!... — disse eu de mim para mim.

E, não podendo resistir á curiosidade, bradei:

— Ó Maricas!... Quem te deu a boneca?...

Foi ali a menina da visinha! — respondeu a pequenita, córando de prazer.

Era escusado dizer-m'o.

Maria pegara na boneca e voltára-a de face para mim. Não podia duvidar... Era ella; lá estava a mancha, o estygma cada vez mais visivel na fronte.

De tempos a tempos, nas raras horas de descanço, Maria entretinha-se com ella.

— Quem te viu e quem te vê!... — pensava eu.

Ás vezes, se Maria se descuidava e os irmãos lh'a podiam apanhar, que tratos que sofria a desgraçada!

Roçada por aquellas mãos, de que um carvoeiro se envergonharia, empregada como pella, submettida a torturas, era, ainda assim, singularissimo o aspecto da triste!

Dava ares d'uma duqueza que, por necessidade, houve sido levada a fraternisar com o povo.

A misera mudára mais uma vez de nome!...

De sr.ª D. Anna passara a ser sr.a Rosinha e tratavam-n'a por vocemecê.

Trajava vestido de chita, capote velho de panno verde e lenço na cabeça.

Era um prazer para mim o escutar as conversas, que Maria sustentava com a boneca.

Esta, umas vezes, representava o papel de mulher casada, e Maria, encarregando-se de perguntar e responder por ella, obrigava a pobre boneca a lastimar-se por estar tudo tão caro, por haver falta de trabalho, por ter os filhos doentes, todos os assumptos, finalmente, que mais familiares eram á pequena.

Outra vezes passava a boneca a ser creada de servir. Reprehendiam-n'a, mandavam-n'a buscar agua á fonte, pagavam-lhe, regateando, a soldada, e acabavam por a despedir.

Já o leitor vê que, apesar da bondade Maria, deixára de ser feliz.

Iam longe os bons tempos em que ella, rica, morava no palacio visinho!

Desmaiada de côres, quasi perdido o cabello, semi-apagados os olhos, desfeito o carmim dos labios, a boneca não promettia longa duração.

Foi este pelo menos, o prognostico que fiz a ultima vez que a vi, tentando em vão agradar á ultima dona que o seu destino lhe dera.

Coitada!... Bem longe estava de lhe imaginar o fim!

Um dia chovia a cantaros! — o enxurro, mal cabendo nas valetas da rua, espadanava em cachão para cima dos passeios, arastando na passagem mil immundicies.

Eu estava á porta de casa, esperando que a chuva cessasse, e olhava melancolicamente para a agua negra, que corria. Nisto ouvi um grito, que partia da loja do sapateiro. Voltei machinalmente o rosto... Um objecto, arremessado de dentro da loja, atravessou o espaço voando, e foi cair no leito do enxurro...

Olhei... Era a boneca!...

A misera, arrastada pela agua, vogou rua abaixo até esbarrar n'uma pedra; mas o redemoinho envolveu-a, e, depois de a fazer girar tres ou quatro vezes, obrigou-a a passar pelo estreito, traçado entre a pedra e o passeio, e a triste seguiu no fio da corrente, até ir sumir-se nas profundezas da primeira boca de lobo, que encontrou na passagem!

Será pieguice, será o que o leitor quizer; mas, confesso-lhe, que me impressionou o fim da pobre boneca.

Mal passou a chuva, desci o degrau da porta e, chegado á vidraça do sapateiro, perguntei com voz involuntariamente severa:

— Porque deitaste fóra a boneca, Maricas!?

— Não fui eu... — balbuciou a pequena, chorando. — Foi ali o Joaquim!...

— E porque fizeste tu aquillo, Joaquim?...

— Ora!... — respondeu o garoto com enfado. — Ora!... Estava velha... e feia!...

Curvei a cabeça ante aquella razão, e segui o meu caminho.

Pobre boneca!

Um dia Nosso Senhor Jesus Cristo, viajando na Alsácia, foi surpreendido pela noite à entrada duma aldeia. Procurou dum lado para outro uma casa, onde pudesse pedir pousada, mas as portas estavam já todas fechadas, não se via nem um raio de luz através das janelas, tudo estava adormecido. Apenas no fim dum beco se ouvia o barulho do mangual com que se bate o trigo, e nesse sítio havia uma pequena luz. Nosso Senhor dirigiu-se para lá, chegou ao pé do muro duma quinta, e bateu à porta. Foi um camponês que lha veio abrir.

— Fazia favor, disse-lhe o bom Jesus, de me dar agasalho por esta noite? Não se havia de arrepender.»

E acrescentou:

— Visto que já todos estão deitados, para que é que você está ainda a trabalhar?»

— Ora, respondeu o camponês, soube ontem à noite que ia ser perseguido por um credor desapiedado, se lhe não pagasse amanhã o que lhe devo, portanto eu e meus filhos estamos a bater o pouco trigo que colhi, para o vender no mercado, e pagar a minha dívida. Depois disto não nos fica nada, e não sei como havemos de atravessar o Inverno. Seja o que Deus quiser!»

Ao dizer isto o camponês limpava o suor da testa, e passava a mão pelos olhos arrasados de lágrimas. O Senhor teve dó dele, e disse-lhe:

— «Não desanimes. Quando te pedi hospitalidade, disse-te que não te havias de arrepender de ma ter dado. Vou provar-to.»

Pegou na candeia, que estava suspensa numa das traves do celeiro, e aproximou-a do trigo.

— Que vai fazer? disseram assustados os trabalhadores, vai deitar fogo a tudo!»

Mas no mesmo instante, da palha, que eles receavam ver inflamar-se, de cada espiga, desceu uma chuva de grãos prodigiosa. À vista dum tal milagre os camponeses maravilhados caíram de joelhos.

— Visto que foste caritativo, disse Jesus, visto que recebeste na tua pobreza o forasteiro que veio ter contigo como um pobre mendigo, serás recompensado. Foi Deus que entrou na tua fazenda, é Deus que te enriquece.»

Dito isto desapareceu.

E a chuva dos grãos não parou em toda a noite, e fez um monte tão alto como a igreja.

O camponês pagou as suas dividas, comprou terras, e construiu uma bela casa. Era rico, e tornou-se orgulhoso e altivo com os pobres. Ele e seus filhos adquiriram costumes perdulários, tanto e tanto fizeram, que se arruinaram, e, como tinham sido maus nos tempos em que eram ricos, ninguém os ajudou na sua miséria. Uma noite o velho camponês, que bebera enormemente, entrou no celeiro, e, recordando-se do milagre que o enriquecera, imaginou que também ele o poderia fazer. Agarrou na candeia, aproximou-a dum feixe de palha, comunicou-se o fogo, ardeu a casa e tudo o que lhe restava, e passado tempo morreu na miséria mais absoluta.

— Quem procura sempre encontra, diz um velho provérbio; quero ver por experiência, disse um dia um rapaz, se esta máxima é verdadeira.

Pôs-se a caminho, e foi apresentar-se ao governador duma grande cidade.

— Senhor, disse-lhe ele, há muitos anos que vivo tranquilo e solitariamente, e a monotonia fatigou-me. Meu amo disse-me muitas vezes—Quem procura sempre encontra, e quem porfia mata caça. Tomei uma grande resolução. Quero casar com a filha do rei.

O governador mandou-o embora, imaginando que era um doido.

O rapaz voltou no dia seguinte, no outro e no outro, e assim durante uma semana, sempre com a mesma vontade inabalável, até que o rei ouviu falar o rapaz da sua louca pretensão. Surpreendido com uma ideia tão extravagante, e, querendo divertir-se, disse-lhe o rei:

— Que um homem distinto pela hierarquia, pela coragem, pela ciência, pensasse em casar com uma princesa, nada mais natural. Mas tu, quais são os teus títulos? Para seres o marido de minha filha é necessário que te distingas por alguma qualidade especial ou por um acto de valor extraordinário. Ouve. Perdi há muito tempo no rio um diamante dum valor incalculável. Aquele que o encontrar obterá a mão de minha filha.

O rapaz, contente com esta promessa, foi estabelecer-se nas margens do rio; logo de manhã começava a tirar água com um balde pequeno, e deitava-a na areia, e, depois de ter assim trabalhado durante horas e horas, punha-se a rezar.

Os peixes inquietos ao verem tão grande tenacidade, e receando que chegasse a esgotar o rio, reuniram-se em conselho.

— Que quer este homem? perguntou o rei dos peixes.»

— Encontrar um diamante que caiu ao rio.»

— Então, respondeu o velho rei, sou de opinião que lho entreguem, porque vejo qual é a têmpera da vontade deste rapaz; mais fácil seria esgotar as últimas gotas do rio, do que desistir da sua empresa.»

Os peixes deitaram o diamante no balde do rapaz, que casou com a filha do rei.

Morreu uma vez um rei, deixando quatro filhos, e sem ter designado o sucessor. Reuniu-se a corte, e decidiu-se que a coroa devia pertencer, não ao mais velho dos quatro filhos, mas sim ao mais digno.

Resolveram além disso que o cadáver do rei fosse posto de pé contra um muro, e que o príncipe que acertasse melhor com uma flecha naquele alvo, seria o escolhido para sucessor.

Começou o mais velho. Esticou a corda do arco, apontou durante muito tempo, e a flecha foi atravessar a mão esquerda do defunto. O príncipe soltou grito de alegria, cuidando que seus irmãos atirariam pior, e que por conseguinte seria ele quem viria a reinar.

O segundo acertou em cheio na cara do rei, soltando um grito ainda mais alegre do que o outro príncipe.

O terceiro varou o coração de seu pai, e os seus gritos de triunfo quase que chegavam ao céu, porque lhe parecia impossível acertar melhor.

Quando chegou a vez do quarto filho, tiveram de lhe meter nas mãos as flechas e o arco: mas, desde que olhou para o alvo, arrojou as armas longe de si, e desatou a chorar:

— «Oh! meu pai! meu querido pai! exclamou ele, como poderei eu jamais consolar-me de ver o teu corpo crivado de flechas pela mão de teus próprios filhos!»

Os grandes da corte ouvindo isto proclamaram-no rei, como sendo o mais digno.

O primeiro véu de Maria era dum linho mais alvo do que a neve. Bordara-o com as suas mãos, e ornara-o com uma grinalda de flores de seda tão bem imitadas, que as abelhas, iludidas, vinham pousar-lhe em cima.

Este véu branco só o trouxe uma vez, no dia da sua primeira comunhão.

O segundo véu de Maria era de lã negra. Principiou-o no mesmo dia em que sua mãe lhe morrera, deixando-a sozinha, sem amparo, na casa triste e abandonada. Era bordado de perpétuas roxas, como as dos sepulcros de mármore, e os olhos de Maria tinham-no orvalhado com todas as suas lágrimas.

O véu negro só o trouxe uma vez,—no dia em que se tornou esposa de Jesus no convento da Avé-Maria.

O terceiro véu era feito dum retalho do azul celeste, bordado de estrelas, e perfumado com aromas suavíssimos.

Foi o seu anjo da guarda, que lho deu no mesmo dia em que ela entrou no paraíso.

Um dia três pequenos iam juntos para a escola, e disseram uns aos outros, que não havia nada no mundo mais aborrecido que estudar: «Vamos para o bosque que encontraremos lá toda a espécie de lindos bichinhos, que não fazem outra coisa senão brincar, e nós brincaremos com eles.»

Foram logo, e passaram sem fazer caso ao pé da activa formiga e da abelha diligente. Mas o besoiro, que eles convidaram a vir patuscar, disse-lhes:

— Brincar? Preciso construir com estas ervas uma ponte nova, porque a outra já não está sólida.»

— Eu, disse o rato, tenho que fazer as minhas provisões para o Inverno.»

— Eu, disse dali a pomba, tenho muitas coisas que levar para o meu ninho.»

— Eu, disse a lebre, gostava bem de me ir divertir com vocês, mas ainda hoje não lavei o meu focinho. Antes de mais nada, tenho que fazer a minha toilette

E tu, lindo regato, disseram os pequenos desertores, que passas o tempo a saltar e a tagarelar, também não queres brincar connosco?»

— Estes pequenos são tolos, disse o regato. Como? Vocês então imaginam que eu não tenho que fazer? De noite ou de dia, não descanso nem um momento. Tenho que dar de beber aos homens e aos animais, às colinas, aos vales, aos campos e aos jardins. Tenho que apagar os incêndios, tenho que fazer mover as forjas, os moinhos, as serralharias. Nem hoje acabara, se lhes quisesse contar o que tenho que fazer. Não posso perder um instante. Adeus, adeus. Estou com muita pressa.»

Os pequenos, desconcertados, puseram-se a olhar para o ar, e viram um pintassilgo, em cima dum ramo.

— Olha! tu, que não tens nada que fazer, queres brincar connosco?»

— Nada que fazer? vocês estão a mangar comigo, disse o pintassilgo. Todo o dia tenho que apanhar moscas para comer. Tenho além disso que tomar parte no concerto dos passarinhos, tenho que alegrar o operário com o meu chilrear, e tenho que adormecer as crianças com uma outra cantiga, que à noite e de madrugada celebre a bondade do Criador. Ide-vos embora, preguiçosos, ide cumprir o vosso dever, e não tornem a vir incomodar os habitantes das florestas, que cada um tem a sua tarefa a desempenhar.»

Os pequenos aproveitaram a lição, e compreenderam que o prazer só é legítimo, quando é a recompensa do trabalho.

Era uma vez uma rapariguinha muito bonita e cheia de bondade, a quem sua mãe e sua avó adoravam extremosamente. A boa da avozinha, que passava o tempo a imaginar o que poderia agradar à neta, deu-lhe um dia um chapéu de veludo vermelho. A pequenita andava tão contente com o seu chapéu novo, que já não queria pôr outro, e começaram a chamar-lhe a menina do chapelinho encarnado.

A mãe e a avó moravam em duas casas separadas por uma floresta de meia légua de comprido. Uma manhã a mãe disse à pequenita:

— Tua avó está doente, e não pôde vir ver-nos. Eu fiz estes doces, vai levar-lhos tu com esta garrafa de vinho. Toma cuidado não quebres a garrafa, não andes a correr, vai devagarinho e volta logo.»

— Sim, mamã, respondeu ela, hei-de fazer tudo como deseja.»

Atou o seu avental, meteu num cestinho a garrafa e os doces, e pôs-se a caminho. No meio da floresta um lobo aproximou-se dela. A pequenita, que nunca vira lobos, olhou para ele sem medo algum.

— Bons dias, chapelinho encarnado.»

— Bons dias, meu senhor, respondeu delicadamente a pequena.»

— Onde vais tão cedo?»

— A casa da minha avó que está doente.»

— E levas-lhe alguma coisa?»

— Levo, sim senhor; levo-lhe uns bolos e uma garrafa de vinho para lhe dar forças.»

Diz-me onde mora a tua, avó, que também a quero ir ver.»

— É perto, aqui no fim da floresta. Há ao pé uns carvalhos muito grandes, e no jardim há muitas nozes.»

— Ah! tu é que és uma bela noz, disse consigo o lobo. Como eu gostava de te comer.» Depois continuou em voz alta:—Olha, que bonitas árvores e que lindos passarinhos. Como é bom passear nas florestas, e então que quantidade de plantas medicinais que se encontram!»

— O senhor, é com certeza um médico, respondeu a inocente pequenita, visto que conhece as ervas medicinais. Talvez me pudesse indicar alguma que fizesse bem a minha avó.»

— Com certeza, minha filha, olha, aqui está uma, e esta também, e aquela.» Mas todas as plantas que o lobo indicava, eram plantas venenosas. A pobre criança, queria-as apanhar para as levar a sua avó.

— Adeus, meu lindo chapelinho encarnado, estimei muito conhecer-te. Com grande pena minha, tenho de te deixar para ir ver um doente.»

E pôs-se a correr em direcção da casa da avó, enquanto que a pequerrucha se entretinha em apanhar as plantas que ele tinha indicado.

Quando o lobo chegou à porta da velha, achou-a fechada e bateu, mas a avó não se podia levantar da cama, e perguntou: Quem está aí?»

— É o chapelinho encarnado, respondeu o lobo imitando a voz da pequerrucha. A mamã manda-te bolos e uma garrafa de vinho.»

— Procura debaixo da porta disse a avó, que encontrarás a chave.»

Encontrou-a, abriu a porta, engoliu duma bocada a pobre velha inteira, e depois, vestindo o fato que ela costumava usar, deitou-se na cama.

Pouco depois entrou a pequenita, assustada e admirada de encontrar a porta aberta, porque sabia o cuidado com que a avó a costumava ter fechada.

O lobo tinha posto uma touca na cabeça, que lhe escondia uma parte do focinho, mas o que lhe ficava descoberto era horrível.

— Ai! avozinha, disse a criança, porque tens tu as orelhas tão grandes?»

— É para te ouvir melhor, minha filha.»

— E porque estás com uns olhos tão grandes?»

— É para te ver melhor.»

— E para que estás com os braços tão grandes?»

— É para te poder abraçar melhor.»

— E Jesus! para que tens hoje uma boca tão grande e uns dentes tão agudos?»

— É para te comer melhor.» A estas palavras o lobo arremessou-se à pobre pequena, e engoliu-a. Como estava repleto, adormeceu, e começou a ressonar muito alto. Um caçador que passava por acaso, perto da casa, e que ouviu aquele barulho, disse consigo: A pobre velha está com um pesadelo, está pior talvez, vou ver se precisa dalguma coisa.» Entra, e vê o lobo estendido na cama.

— Olá, meu menino, diz ele: há muito tempo que te procuro.»

Armou a sua espingarda, mas parando logo: Não, disse ele, não vejo a dona da casa. Talvez o lobo a engolisse viva. E em lugar de matar o animal com uma bala, pegou na sua faca de mato, e abriu-lhe cuidadosamente a barriga. Apareceu logo o chapelinho encarnado e saltou para o chão, gritando:

— Ai! que sítio medonho onde eu estive fechada!

A avó saiu também contentíssima por ver outra vez a luz do dia.

O lobo continuava a dormir profundamente, e o caçador meteu-lhe então duas grandes pedras na barriga, coseu tudo, e escondeu-se com a avó e a neta para verem o que se ia passar.

Decorrido um instante o lobo acordou, e como tinha sede, levantou-se para ir beber ao lago. Ao andar ouvia as pedras baterem uma na outra, e não podia compreender o que aquilo era; com o peso, caiu no lago, e afogou-se.

O caçador tirou-lhe a pele, comeu os bolos e bebeu o vinho com a velha e a sua neta. A velha sentia-se remoçar, e o chapelinho encarnado prometeu não tornar a passar na floresta, quando sua mãe lho proibisse.

Andando um dia Carlos Magno à caça com uma comitiva numerosa, perseguiu um veado, que dava tais saltos, e corria por tal forma, que, apesar da ligeireza do seu cavalo, o rei perdeu-lhe completamente a pista. Foi só então que viu que estava só, tendo a sua corte ficado muito para traz; sentindo-se fatigado, entrou ao cair da noite numa choupana solitária no meio da floresta. Em roda da lareira estavam deitados quatro ladrões. Os salteadores levantaram-se logo, como despertados pelo barulho da entrada do viajante; cada um deles tinha tido um sonho, que lhe quiseram logo contar.

O primeiro que tomou a palavra exprimiu-se desta maneira:

— No meu sonho, tirava eu o capacete de ouro à pessoa que acaba de entrar aqui, e punha-o na minha cabeça.»

— Eu, disse o outro, sonhei que vestia a sua couraça.»

— E eu que estava pondo o seu manto.»

— E eu, disse o quarto ladrão, para lhe fazer favor, passava em roda do meu pescoço aquela pesada cadeia de ouro, da qual está pendurada a sua trompa de caça.»

— Vejo bem, disse o imperador, que têm tenção de me roubar tudo, e mesmo a vida. Reconheço que estou em poder de vocês, e que toda e qualquer resistência seria inútil. Não lhes peço senão uma coisa, é que me deixem tocar pela última vez na minha trompa de caça.»

Os salteadores responderam que consentiam, visto que o último pedido dum moribundo deve ser respeitado.

Carlos Magno levou à boca a sua magnífica trompa de marfim, e tirou dela sons tão fortes e sonoros, que em menos dalguns minutos todos os seus companheiros de caça e a sua comitiva estavam ao pé dele.

— Agora, disse o imperador, dirigindo-se aos salteadores, agora também eu devo contar o sonho que tive. Sonhei que vocês todos iam ser enforcados diante deste casebre.»

E o sonho realizou-se imediatamente.

Era uma vez um rei, que quis levantar uma igreja magnífica em honra da Virgem, decretando que ninguém nos seus estados pudesse contribuir para a obra, ainda mesmo com a mais pequena quantia. Quando o edifício se concluiu, enorme, soberbo, grandioso, mandou o rei gravar numa pedra do mármore uma inscrição em letras de ouro, que dizia que só ele, e mais ninguém, tinha levado a cabo aquela obra monumental. Mas na noite seguinte o nome do rei foi apagado da inscrição, e substituído por o duma pobre mulherzinha do povo. O rei no dia seguinte tornou a mandar pôr o seu nome na inscrição, e de novo foi substituído pelo da pobre mulher; à terceira vez sucedeu o mesmo. O rei, cheio de cólera, ordenou então que lhe trouxessem a mulher à sua presença:

— Proibi a todos os meus vassalos, disse-lhe ele, que contribuíssem fosse com o que fosse para a edificação desta igreja; vejo que não cumpriste as minhas ordens.»

— «Senhor, respondeu a velhinha toda trémula, eu respeitei as vossas ordens, apesar da mágoa que sentia por não poder oferecer o meu pequenino óbolo em honra da Virgem; mas julguei não desobedecer a vossa majestade, deixando por vezes de jantar para comprar um pouco de feno, que eu levava às escondidas aos bois que conduziam as pedras destinadas à construção da igreja.»

— «O teu nome é mais digno do que o meu de figurar em letras de ouro na inscrição do monumento, disse-lhe o rei.»

Mas na noite seguinte uma mão invisível restabeleceu na lápide da igreja o nome do rei, que desde então lá se conserva ainda.

O valente soldado de chumbo editar

ra uma vez vinte e cinco soldados de chumbo, todos irmãos, por todos terem nascido da mesma colher de chumbo. Vede-os: que atitude marcial, de espingarda ao ombro, olhar fixo, e ricos uniformes azuis e vermelhos! A primeira coisa que ouviram neste mundo, quando se levantou a tampa da caixa em que eles estavam, foi este grito: «Olha soldados de chumbo!» que soltou um rapazito, batendo as palmas de alegria. Tinham-lhos dado de presente no dia dos anos, e o seu divertimento era formá-los sobre a mesa, em linha de batalha. Todos os soldados se pareciam maravilhosamente uns com os outros, excepto um, que tinha uma perna de menos, porque o tinham deitado na forma em último lugar, e já não havia chumbo suficiente. Apesar deste defeito, os outros não estavam mais firmes nas duas pernas do que ele na sua única, e é este o que precisamente nos interessa.

Sobre a mesa em que os nossos soldados estavam formados havia mil outros brinquedos, mas o mais bonito de todos, era um lindíssimo castelo de papel. Pelas suas pequeninas janelas via-se-lhe o interior dos salões. À volta era circundado duma floresta em miniatura, que se reflectia poeticamente num pedaço de espelho que fingia um lago, onde nadavam pequeninos cisnes de cera. Tudo isto era encantador, mas não tanto como uma menina que estava à porta, e que era também de papel, vestida com um lindo vestido de cassa, apertado com um cinto de fivela azul. A menina tinha os braços arqueados, porque era dançarina, e tinha uma perninha levantada a tal altura, que o soldado de chumbo não a podia ver, e imaginou que, como ele, não tinha senão uma perna.

— Ali está a mulher que me convém, pensou ele, mas é uma grande fidalga. Mora num palácio, eu numa caixa em companhia de vinte e quatro camaradas, e não haveria cá lugar para ela. No entanto preciso conhecê-la.»

Deitou-se atrás duma caixa de tabaco, e dali podia ver à sua vontade a elegante dançarina, que estava sempre num pé só, sem perder o equilíbrio.

À noite todos os outros soldados foram metidos na caixa, e as pessoas da casa foram deitar-se. Apenas os brinquedos perceberam isto, começaram a divertir-se, fizeram guerras, e a final deram um baile. Os soldados de chumbo mexiam-se, e remexiam-se na sua caixa, porque queriam lá ir; mas como haviam eles tirar a tampa? O quebra-nozes começou a dar cabriolas e saltos mortais, o lápis traçou mil arabescos fantásticos numa lousa, enfim o barulho tornou-se tal que o canário acordou, e pôs-se a cantar. Os únicos que estavam quietos eram o soldado de chumbo e a dançarinazinha. Ela no bico do pé, e ele numa perna só, a espreitá-la.

Deu meia noite, e zás, a tampa da caixa de rapé levanta-se, e em lugar de rapé, saiu um feiticeirozinho preto. Era um brinquedo de surpresa.

— Soldado de chumbo, disse o feiticeiro, trata de olhar para outro sítio.»

Mas o soldado fez que não ouvia.

— Espera até amanhã, e verás o que te acontece, continuou o feiticeiro.»

No dia seguinte, quando os pequenos se levantaram, puseram o soldado de chumbo à janela, mas de repente ou por influência do feiticeiro ou por causa do vento caiu à rua de cabeça para baixo. Que tombo! Ficou com a perna no ar, o peso do corpo todo sobre a barretina, e com a baioneta enterrada entre duas lajes.

criada e o rapazito foram lá abaixo procurá-lo, mas estiveram quase a esmagá-lo, sem darem por ele. Se o soldado tivesse gritado: «Cautela!» te-lo-íam achado, mas ele julgou que seria desonrar a farda. A chuva começou a cair em torrentes, e tornou-se num verdadeiro dilúvio. Depois do aguaceiro passaram dois garotos.

— Olá! disse um deles, um soldado de chumbo por aqui! Vamos fazê-lo navegar.»

Construíram um barco dum bocado de jornal velho, meteram o soldado de chumbo dentro, e obrigaram-no a descer pelo regato abaixo. Os dois garotos corriam ao lado, e davam grito de prazer. Que ondas! Santo Deus! Que força de corrente! Mas também tinha chovido tanto! O barco jogava duma maneira horrorosa, mas o soldado de chumbo conservava-se impassível, com os olhos fixos e a espingarda ao ombro.

De repente o barco foi levado para um cano, onde era tão grande a escuridão como na caixa dos soldados.

— Onde irei eu parar? pensou ele. Foi o tratante do feiticeiro que me meteu nestes trabalhos. Se, apesar de tudo, aquela linda menina estivesse no barco, não importava, ainda que a escuridão fosse duas vezes maior.»

Dali a pouco apresentou-se um enorme rato de água; era um habitante do cano.

— Venha o teu passaporte.»

Mas o soldado de chumbo não disse nada, e agarrou com mais força na espingarda. O barco continuava o seu caminho, e o rato perseguia-o, rangendo os dentes, e gritando às palhas, e aos cavacos:—Façam-no parar, façam-no parar! Não pagou a passagem, não mostrou o passaporte.»

Mas a corrente era cada vez maior, o soldado via já a luz do dia, e sentia ao mesmo tempo um barulho capaz de assustar o homem mais valente. Havia na extremidade do cano uma queda de água tão perigosa para ele, como é para nós uma catarata. Aproximava-se dela cada vez mais, sem poder parar, com uma rapidez vertiginosa. O barco lançou-se sobre a queda de água, e o pobre soldado firmava-se o mais possível, e ninguém se atreveria a dizer que o tinha visto fechar os olhos com o susto.

barco, depois de ter andado à roda durante muito tempo, encheu-se de água, e estava a ponto de naufragar. A água já chegava ao pescoço do soldado, e o barco afundava-se cada vez mais. O papel desdobrou-se, e a água passou por cima da cabeça do nosso herói. Nesse momento supremo, pensou na gentil dançarinazinha, e pareceu-lhe ouvir uma voz que dizia:

— Soldado: o perigo é enorme, a morte espera-te.»

O papel rasgou-se, e o soldado passou através dele. Nesse momento foi devorado por um grande peixe.

Lá é que era escuro, ainda mais que dentro do cano. E além disso, que talas em que ele estava metido! Mas, sempre intrépido, o soldado estendeu-se ao comprido com a espingarda ao ombro.

O peixe mexia-se e remexia-se, dava saltos de meter medo, até que enfim parou, e pareceu que o atravessava um relâmpago. Apareceu a luz do dia, e alguém exclamou:

— Olha um soldado de chumbo!»

O peixe tinha sido pescado, exposto na praça, vendido, e levado para a cozinha, e a cozinheira tinha-o aberto com uma enorme faca. Pegou no soldado de chumbo com dois dedos, e levou-o para a sala, onde toda a gente quis admirar esse homem extraordinário, que tinha viajado na barriga dum peixe. No entretanto o soldado não se sentia orgulhoso. Colocaram-no em cima da mesa, e ali—tanto é verdade que acontecem coisas extraordinárias neste mundo—achou-se na mesma sala, de cuja janela tinha caído. Reconheceu os pequenos e os brinquedos que estavam em cima da mesa, o lindo palácio, e a adorável dançarina sempre de perna no ar. O soldado de chumbo ficou tão comovido, que de boa vontade teria derramado lágrimas de chumbo, mas não era conveniente. Olhou para ela, ela olhou para ele, mas não disseram uma palavra um ao outro.

e repente um dos pequenos pegou nele, e sem motivo algum deitou-o no fogão; eram obras do feiticeiro da caixa do rapé.

O soldado de chumbo lá estava perfilado, alumiado por um clarão sinistro, e sofrendo um calor terrível. Todas as cores lhe tinham desaparecido, sem que se pudesse dizer, se era por causa das suas viagens, ou por causa dos seus desgostos. Continuava a olhar para a dançarina, que também olhava para ele. Sentia-se derreter, mas, sempre intrépido, conservava a espingarda ao ombro. De repente abriu-se uma porta, o vento arremessou a dançarina ao fogão para junto do soldado, que desapareceu no meio das labaredas. O soldado de chumbo, já não era mais que uma pequena massa informe.

No dia seguinte, quando a criada veio tirar a cinza, encontrou um objecto que tinha o feitio dum pequeno coração de chumbo, e tudo o que restava da dançarina era a fivela do cinto azul que o lume tinha enegrecido.

Links externos editar

João era filho de uma pobre viúva, bom rapaz, mas um pouco simplório. A gente da aldeia chamava-lhe por brincadeira João Pateta. Um dia sua mãe mandou-o à feira comprar uma foice. À volta, começou a andar com a foice à roda, de maneira que a foice caiu em cima duma ovelha, e matou-a.

Pateta, disse-lhe sua mãe, o que deverias ter feito era pôr a foice em um dos carros de palha ou de feno dalgum dos vizinhos.»

Perdão, mãe, respondeu humildemente João, para a outra vez serei mais esperto.»

Na semana seguinte mandaram-no comprar agulhas, recomendando-lhe que as não perdesse.

Fique descansada. E voltou todo orgulhoso.»

Então, João, onde estão as agulhas?»

Ah! estão em lugar seguro. Quando saí da loja em que as comprei, ia a passar o carro do vizinho carregado de palha; meti lá as agulhas, não podem estar em sítio melhor.»

De certo, estão em lugar de tal modo seguro, que não há meio de as tornar a ver. Devias tê-las espetado no chapéu.»

Perdão, respondeu João, para a outra vez, hei-de ser mais esperto.»

Na outra semana, por um dia de calor, João foi dali uma légua comprar uma pouca de manteiga. Lembrando-se do último conselho de sua mãe, pôs a manteiga dentro do chapéu e o chapéu na cabeça. Imagine-se o estado em que voltou para casa, com a cara a escorrer manteiga derretida.

A mãe já tinha medo de o mandar fazer qualquer recado. No entanto um dia resolveu-se a mandá-lo à feira vender duas galinhas.

Ouve bem, não vendas pelo primeiro preço. Espera que te ofereçam outro.»

Está entendido, respondeu João.»

Foi para a feira. Um freguês chegou-se a ele.

Queres seis tostões por essas galinhas?»

Ora adeus! minha mãe recomendou-me, que não aceitasse o primeiro preço, mas que esperasse o segundo.»

E tens muita razão. Dou-te um cruzado.»

Está bem. Parece-me que tinha feito melhor em aceitar o primeiro, mas, como cumpro as ordens de minha mãe, ela não tem que me ralhar.»

Depois disto, João foi condenado a ficar em casa. Sua mãe sabia que mangavam com ele, e se riam dela. Uma manhã quis fazer uma experiência, e disse-lhe:

Vai vender este carneiro à feira. Mas não te deixes enganar. Não o entregues senão a quem te der o preço mais elevado.»

Está bem, agora entendo, e sei o que hei de fazer.»

Quanto queres por esse carneiro?

Minha mãe disse-me que o não vendesse senão pelo preço mais elevado.

Quatro mil réis?»

É o preço mais elevado?»

Pouco mais ou menos.»

É minha a lã e o carneiro, disse um rapaz que trepara a uma escada.

Quanto?»

Dez tostões:»

É menos, respondeu timidamente o João.»

Sim, mas vês até onde chega esta escada. Em toda a feira não há um preço mais elevado.»

Tem razão. É seu o carneiro.»

Desde esse dia o João Pateta não tornou a ser encarregado de vender ou comprar coisa alguma.

Era uma vez uma rainha, que se lastimava por não ter filhos. Um dia de Inverno, enquanto bordava num bastidor de ébano olhando de vez em quando pela janela, para ver cair os flocos de neve no chão, distraída, picou-se num dedo e saiu uma gota de sangue.

— Como eu desejaria ter uma filha, que tivesse uns beiços tão vermelhos como este sangue, uma pele branca como esta neve, e uns cabelos negros como este ébano.»

Algum tempo depois os seus desejos realizaram-se, e deu à luz uma filha, que tinha uma linda boca vermelha, cabelos negros e o corpo tão branco, que lhe chamavam Branca de Neve. Porém esta feliz mãe não gozou muito tempo da sua felicidade. Morreu, e o rei tornou a casar com uma mulher duma grande beleza, e dum orgulho não menos extraordinário. Era tão formosa que se considerava a mulher mais perfeita do universo. Algumas vezes fechava-se no seu quarto, e colocando-se diante dum espelho mágico dizia-lhe:

— Meu fiel espelho, responde-me: qual é a mulher mais linda que há no mundo?»

— És tu, respondia o espelho.»

No entanto Branca de Neve crescia, e de dia para dia se tornava mais formosa. Tinha apenas sete anos, e já ninguém a podia ver sem ficar maravilhado. Um dia a orgulhosa rainha, sentando-se diante do seu espelho, disse-lhe:

— Meu fiel espelho, responde-me: qual é a mulher mais linda que há no mundo?»

— Não és tu, não és tu. Branca de Neve é mais linda.»

A estas palavras a orgulhosa rainha sentiu no coração uma dor aguda, como uma punhalada, e ao mesmo tempo sentiu um ódio mortal pela inocente Branca. Não podia sossegar nem de dia, nem de noite. Para satisfazer o seu ódio, chamou um criado, e disse-lhe:

— Quero que Branca desapareça. Conduze-a à floresta, mata-a, e, para me provar que as minhas ordens foram executadas pontualmente, traz-me o coração.»

O criado levou Branca para o fundo da floresta, pegou numa faca, e dispunha-se a executar a ordem que recebera. A pobre criança chorava e lamentava-se, e pedia-lhe que a não matasse, porque ela não tinha feito mal a ninguém, e queria viver. O criado, comovido com aquelas lágrimas, não teve coragem, e abandonou-a na floresta, pensando que se as feras a devorassem a culpa não era dele, mas sim da rainha. Assim fez, e para mostrar o coração de Branca à rainha, matou um cabrito, e tirou-lhe o coração. A rainha ao ver aqueles despojos sangrentos ficou contentíssima, e disse consigo: Enfim, morreu a minha rival, e nenhuma mulher no mundo é tão bela como eu.

A pobre Branca, abandonada na floresta, não tinha morrido, mas estava cheia de medo. Pela primeira vez na sua vida punha os pés nas pedras, e andava pelo meio do mato que lhe rasgava o vestido, e pela primeira vez também via animais ferozes. Mas as feras não lhe faziam mal algum, o deixavam-na andar. No fim do dia tinha atravessado sete montanhas.

À noite chegou ao pé duma casinha muito pequenina. Estava morta de fome e de sede. Entrou na casa, onde tudo estava muito arranjado e muito limpo. Havia uma mesa pequena, e sobre a mesa, coberta com uma toalha de brancura irrepreensível, sete pratos pequenos, sete garrafas pequenas, e ao longo da parede sete camas muito pequeninas. Branca comeu um pouco do que estava nos pratos, bebeu uma gota de vinho de cada copo, deitou-se na cama, rezou, e adormeceu profundamente.

Momentos depois os donos da casa entraram. Eram sete mineiros pequeninos, cada um com uma lanterna dependurada na cintura. Viram logo que tinham gente em casa. Um deles disse:

— Quem comeu o meu pão?»

E os outros sucessivamente:

— Quem pegou no meu garfo?»

— Quem comeu o meu caldo?»

— Quem bebeu o meu vinho?»

E enfim um deles:

— Quem está aí deitado na minha cama?»

Reuniram-se todos à roda do pequeno leito em que dormia Branca. À luz das lanternas viram o doce rosto da criança, que dormia tranquilamente, e afastaram-se sem fazer bulha, para a não acordar. Branca no dia seguinte de manhã ficou um pouco assustada, quando viu perto de si aqueles sete anões das montanhas. Mas eles disseram-lhe com brandura, que não tivesse medo, e perguntaram-lhe donde vinha, e como se chamava. Branca contou a sua triste história, e os anões disseram-lhe:

— Queres tu ficar connosco, para tomar conta da nossa casa?»

— Da melhor vontade, respondeu Branca, completamente sossegada.»

Começou logo o seu serviço, e continuou-o regularmente todos os dias. Limpava os móveis, e fazia o jantar. Os anões iam trabalhar para as minas de ouro e de diamantes, e quando voltavam achavam tudo em ordem.

Durante esse tempo a rainha andava satisfeita, quando pensava que já não tinha que recear uma rival. Sentou-se outra vez diante do seu espelho, e disse-lhe:

— Meu fiel espelho, não é verdade que eu sou agora a mulher mais linda que há no mundo?»

E o espelho respondeu:

— Sim, nos teus palácios e nos teus castelos, mas Branca está nas sete montanhas, e Branca é mais linda do que tu.»

Ouvindo esta resposta a orgulhosa rainha, sentiu de novo um golpe cruel, e determinou tornar a fazer desaparecer a inocente Branca. Mas de que modo? Uma manhã partiu disfarçada em vendedeira ambulante, com um cesto cheio de objectos de fantasia. Foi direita às sete montanhas, e bateu à porta da casinha, gritando: «Quem quer comprar bonitas jóias?»

Os anões tinham recomendado a Branca que desconfiasse das caras estranhas, receando os emissários da rainha, e ela tinha prometido ser prudente. Mas, quando viu as lindas coisas que a vendedeira tinha no cesto, esqueceu-se das suas promessas.

— Veja este rico colar, minha menina, eu mesmo lho vou pôr ao pescoço.»

Branca consentiu, e a rainha estrangulou-a, e foi-se embora. Quando os anões voltaram, viram a infeliz Branca estendida no chão e completamente inanimada. Arrancaram-lhe o colar, e deitaram-lhe nos lábios algumas gotas dum licor amarelo. Branca começou a respirar, voltou a si pouco a pouco, e contou aos seus bons amigos o que lhe tinha acontecido.

— Podes estar certa, disseram-lhe eles, que essa vendedeira não era outra pessoa, senão a tua inimiga, a rainha. Toma cautela, não deixes entrar aqui ninguém, quando não estivermos em casa.»

Ao entrar no seu palácio toda contente, colocou-se a rainha diante do espelho, e disse-lhe:

— Meu fiel espelho: Qual é agora a mulher mais linda que há no mundo? Responde.

E o espelho respondeu:

— És tu nos teus grandes palácios e nos teus castelos, mas Branca está nas sete montanhas, e Branca é mais linda do que tu.»

A rainha enfureceu-se, e resolveu mais uma vez tentar aniquilar a infeliz Branca. Tornou-se a disfarçar em vendedeira. Chegou às sete montanhas, e bateu à porta da cabana.

— Quem quer comprar lindas jóias? Branca veio à janela, e respondeu:

— Vá-se embora, aqui não entra ninguém.»

— Tanto pior para si, respondeu a malvada, olhe este pente de ouro. Já viu outro tão bonito?»

Branca não pôde resistir ao desejo de possuir aquela jóia. Abriu a porta.

— Oh! minha linda menina, deixe-me pôr-lho na cabeça.»

Ao dizer isto enterrou-lhe na cabeça o pente, que estava envenenado, e Branca caiu morta.

À noite quando regressaram os anões, acharam-na pálida e fria. Tiraram-lhe o pente envenenado, reanimaram-na com a sua bebida, e tornaram a recomendar-lhe que fosse prudente.

No entanto a cruel rainha voltava contentíssima para o seu palácio. Apenas chegou, foi direita ao espelho, e fez-lhe a mesma pergunta, a que o espelho respondeu como antecedentemente.

— Ah! é preciso que ela morra, ainda que para isso eu tenha de me sacrificar.

Vestiu-se de camponesa com um cesto de maçãs. Entre elas havia uma que estava envenenada dum lado. Foi, e bateu à porta da cabana.»

— Quem quer comprar fruta, quem quer comprar?»

— Retire-se, disse Branca vendo-a pela janela, não deixo entrar ninguém, nem compro coisa alguma.»

— Está bem, não faltará quem compre estas ricas maçãs. Mas por ser tão bonita, quero dar-lhe uma.»

— Obrigada, não posso aceitar.»

— Imagina que está envenenada. Olhe, eu vou comer um pedaço. Ah! que boa que é! Nunca provei nada assim. Ao pronunciar estas palavras, a traidora mordia no lado da maçã, que não estava envenenado. Branca deixou-se tentar, levou à boca o outro pedaço, e caiu fulminada.

— Aí tens, para castigo da tua formosura.»

Quando chegou ao palácio a rainha foi direita ao espelho, e perguntou-lhe:

— Meu fiel espelho, quem é agora a mulher mais linda?»

E o espelho respondeu:
— És tu, és tu.»

— Até que enfim!»

Os anões estavam inconsoláveis. Debalde tinham tentado reanimá-la com o licor de ouro, e com outras bebidas ainda mais fortes. Branca continuava fria e inanimada. Choraram por ela durante três dias, e os passarinhos da floresta choraram também. No entanto as boas avezinhas não podiam acreditar que ela estivesse morta, e vendo o seu rosto tão tranquilo, as suas faces tão frescas, parecia que estava a dormir. Não quiseram enterrá-la. Meteram-na num caixão de cristal, e escreveram em cima. «Aqui jaz a filha dum rei;» puseram o caixão numa das sete montanhas, e um deles devia estar de guarda constantemente. Branca conservou-se assim durante muitos anos, sem que se notasse no seu rosto a mais pequena alteração.

Um dia um formoso rapaz, filho dum rei, tendo-se perdido ao andar à caça, viu o caixão, e pediu aos anões que lho cedessem, fosse por preço que fosse.

— Somos muito ricos, e por nada deste mundo venderemos este caixão, que é o nosso tesouro.»

— Então dêem-mo, já não posso viver sem contemplar este rosto de mulher. Guardá-lo-ei na melhor sala do meu palácio. Peço-lhes que me façam isto.»

Os anões, comovidos, consentiram. Quatro homens pegaram no caixão para o levarem. Um deles tropeçou numa raiz, e o caixão sofreu um balanço, que fez cair o bocado da maçã envenenada, que Branca não tinha engolido, e que lhe ficara na boca. Abriu logo os olhos, e ressuscitou. O jovem príncipe levou-a para o seu castelo, e casou com ela. O casamento fez-se com grande pompa. O príncipe convidou todos os reis e rainhas dos diferentes países, e entre elas a rainha inimiga de Branca. Apenas acabou de vestir um rico vestido, que devia atrair todos os olhares, pôs-se diante do espelho, e disse a rainha:

— Meu fiel espelho, qual a mulher mais linda que há do mundo?»

E o espelho respondeu:

— Branca é mais formosa que tu.

A estas palavras a rainha estremeceu, e teve tal medo que os seus crimes fossem descobertos, que morreu de repente.

Branca viveu muitos anos, adorada de todos, e no seu palácio de princesa não se esqueceu dos anões que tinham sido os seus benfeitores.

Veja também editar

Que frio! a neve caía, e a noite aproximava-se; era o último de Dezembro, véspera de Ano Bom. No meio deste frio e desta escuridão passou na rua uma desgraçada pequerrucha, com a cabeça descoberta e os pés descalços. É verdade que trazia sapatos ao sair de casa, mas tinham-lhe servido pouco tempo: eram uns grandes sapatos, que sua mãe já tinha usado, tão grandes, que a pequenita perdeu-os ao atravessar a rua a correr, entre duas carruagens. Um dos sapatos perdeu-o realmente; quanto ao outro fugiu-lhe com ele um garotito, com a intenção de fazer dele um berço para o seu primeiro filho.

A pequenita caminhava com os pezinhos nus, arroxeados pelo frio; tinha no seu velho avental uma grande quantidade de fósforos, e levava na mão um maço deles. O dia correra-lhe mal; não tinha havido compradores, e por isso não apurara cinco réis.

Pobre pequerrucha! que frio e que fome! Os flocos de neve caiam-lhe nos longos cabelos loiros, adoravelmente anelados em volta do pescoço; mas pensava ela porventura nos seus cabelos anelados?

As luzes brilhavam nas janelas, e sentia-se na rua o cheiro dos manjares; era a véspera de dia de Ano Bom: eis no que ela pensava.

Deixou-se cair a um canto, entre dois muros. O frio enregelava-a cada vez mais, mas não se atrevia a voltar para casa: o pai bater-lhe-ia, porque não tinha vendido os seus fósforos. Além disso em sua casa fazia tanto frio como na rua. Moravam debaixo de um telheiro que o vento atravessava, apesar de o terem calafetado com palha e farrapos. As suas mãozinhas já quase que as não sentia. Ai! como um fosforozinho aceso lhe faria bem! Se tirasse do maço apenas um, um único, e ascendendo-o aquecesse os dedos enregelados! Tirou um: ritche! como estoirou! como ardeu! Era uma chama tépida e clara, como uma pequena lamparina. Que luz esquisita! Parecia-lhe estar sentada defronte de um enorme braseiro de ferro, cujo lume magnífico aquecia tão suavemente, que era um regalo.

A pequerrucha ia já a estender os pezitos para os aquecer também, quando a chama se apagou repentinamente: achou-se sentada, tendo na mão uma pontita de fósforo consumido.

Acendeu segundo fósforo, que ardeu, que brilhou, e o muro onde bateu a sua chama tornou-se transparente como vidro. Olhando através desse muro, a pequerrucha viu uma sala com uma mesa coberta de uma toalha alvíssima, deslumbrante de finas porcelanas, e sobre a qual uma galinha assada com recheio de ameixas e de batatas fumegava exalando um perfume delicioso. Oh surpresa! oh felicidade! De repente a galinha saltou do prato, e caiu no chão ao pé da pequerrucha, com o garfo e a faca espetada no lombo. Nisto apagou-se o fósforo, e viu apenas diante de si a parede fria e tenebrosa.

Acendeu terceiro fósforo, e achou-se imediatamente sentada debaixo de uma magnífica árvore do Natal; era ainda mais rica e maior do que a que tinha visto no ano passado através dos vidros de um armazém sumptuoso.

Nos ramos verdes brilhavam centenares de balões acesos, e as estampas coloridas, como as que há às portas das lojas, pareciam sorrir-lhe. Quando ia agarrá-las com as duas mãos, apagou-se o fósforo; todos os balões da árvore do Natal começaram a subir, a subir, e viu então que se tinha enganado, porque eram estrelas. Caiu uma delas, deixando no céu um longo rasto de fogo.

— É alguém que está a morrer, disse a pequerrucha; porque a sua avó, que lhe queria tanto, mas que já morrera, dissera-lhe muitas vezes: «Quando cai uma estrela, sobe para Deus uma alma.»

Acendeu ainda outro fósforo: deu uma grande luz, no meio da qual lhe apareceu sua avó, de pé, com um ar radioso e suavíssimo.

— Minha avó, exclamou a pequenita, leva-me contigo. Eu sei que te vais embora quando se apagar o fósforo. Desaparecerás como a panela de ferro, a galinha assada, e a bela árvore do Natal.

Acendeu o rosto do maço, porque não queria que sua avó lhe fugisse, e os fósforos espalharam um clarão mais vivo que a luz do dia. Nunca sua avó tinha sido tão formosa. Pôs ao colo a pequerruchinha, e ambas alegres, no meio deste deslumbramento, voaram tão alto, tão alto, que já não tinha nem frio, nem fome, nem agonias: haviam chegado ao Paraíso.

Mas quando rompeu a fria madrugada, encontraram a pequerrucha, entre os dois muros, ao canto, com as faces incendiadas, o sorriso nos lábios... morta, morta de frio na última noite do ano. O dia de Ano Bom veio alumiar o pequenino cadáver, sentado ali com os seus fósforos, a que faltava um maço, que tinha ardido quase inteiramente.—Quis aquecer-se, disse um homem que passou.» E ninguém soube nunca as lindas coisas que ela tinha visto, e no meio de que esplendor tinha entrado com a sua velha avó no dia do Ano Novo.

Chamava-se Margarida, e estavam à espera dela no céu, porque Deus tinha dito:—É uma boa alma, e, como lá em baixo no mundo lhe pode acontecer alguma desgraça, vou trazê-la um destes dias para o paraíso.»

Margarida era uma virgem cândida, matinal como a aurora, fresca como ela; todos os dias ao acordar rezava as orações, que sua mãe lhe tinha ensinado, e vestia-se depois na sua pequenina alcova. E, como não tinha jóias preciosas nem ricos adornos, dispensava o espelho.

Depois disto, para viver honradamente, punha-se a trabalhar.

E, ao mesmo tempo cigarra e abelha, trabalhava cantando uma bela canção de amor e de glória, que já embalara muitos berços, e que podia sensibilizar uma alma inocente, sem lhe perturbar a limpidez.

Numa tarde de Verão, estava ela sentada à porta de casa fiando linho, à hora em que as estrelas começam a aparecer, uma a uma no firmamento.

Estava Margarida cantando a sua canção, quando passou por ali uma das suas vizinhas, que ia a uma romaria, muito asseada, com um vestido novo. Parou diante de Margarida, para que lhe admirasse os seus brincos e o colar de ouro que levava ao pescoço; apertou-lhe a mão para que visse bem o anel que brilhava no seu dedo, e foi-se embora a rir, toda contente. E Margarida foi-a seguindo com um olhar de inveja, o que inquietou no paraíso o seu anjo da guarda.

O fio de linho já não passava tão rapidamente entre os dedos de Margarida, a roda cessara o seu barulho monótono, e o fuso caíra-lhe das mãos.

Ao cair o fuso despertou do êxtase, abriu os olhos, e viu diante de si um cavaleiro magnificamente vestido, tendo na mão um gorro de veludo preto, com uma pluma vermelha, da cor do fogo. O cavaleiro saudou-a respeitosamente, e, com uma voz harmoniosa e galanteadora, perguntou-lhe:

— Qual é o caminho da cidade?»

Margarida estendeu a mão para lho indicar, e o forasteiro inclinando-se tirou do dedo um anel de ouro com um diamante, que brilhava como uma estrela, e meteu-o no dedo de Margarida, que o achou mais belo do que o anel da sua companheira. O rosto do cavaleiro alumiou-se então com um sorriso estranho e diabólico.

Nisto passou por ali um mendigo coberto de farrapos, parou diante de Margarida, e pediu-lhe uma esmola.

Margarida tirou do dedo o anel, e ofereceu-o ao pobre desgraçado.

O cavaleiro então, soltando um grito de cólera, ia lançar-se sobre Margarida, mas o mendigo—que era o seu anjo da guarda disfarçado—cobriu-a com as asas. E o cavaleiro, isto é Satanás, que tinha vindo para a tentar, recuou aniquilado diante do espírito celeste.

Era uma vez um pobre mendigo, que bateu à porta duma humilde cabana a pedir esmola, para poder continuar a sua viagem. Mas não vendo, nem ouvindo ninguém, abriu a porta de mansinho e entrou no casebre; viu então uma pobre velhinha muito doente, que lhe disse:

— «Ai! não te posso dar nada, porque nada tenho.»

E foi-se embora o mendigo, voltando dali a instantes, a bater à mesma porta.

— Pelo amor de Deus! gritou a velhinha, já te disse que não tenho nada que te dar.»

— Foi por isso que eu voltei—disse em voz baixa o mendigo.

E, aproximando-se da velha carinhosamente, tirou do bolso, pondo-os em cima da mesa, muitos bocados de pão e algumas moedas de dez réis, que lhe tinham dado depois de ter estado com a velha a primeira vez.

— Aqui te fica isto, santinha—disse-lhe ele afectuosamente, indo-se embora sem que a pobre mulher tivesse tempo de lhe agradecer.»

Não sabemos qual era o nome do mendigo; mas os anjos escrevê-lo-ão no Paraíso, e mais tarde nós o viremos a saber.

O linho estava coberto de flores admiravelmente belas, mais delicadas e transparentes do que asas de moscas. O sol espalhava os seus raios sobre ele, e as nuvens regavam-no, o que lhe causava tanto prazer, como o dum filho quando a mãe o lava e lhe dá um beijo.

— Segundo dizem sou bem bonito, murmurou o linho, estou muito crescido, e serei brevemente uma rica peça de pano. Sinto-me feliz. Não há ninguém que seja mais feliz do que eu sou. Tenho saúde e um belo futuro. A luz acaricia-me, e a chuva encanta-me e refresca-me. Sim, sou feliz, feliz a mais não poder ser!»

— Como és ingénuo! disseram as silvas do valado; tu não conheces o mundo, de que nós outras temos uma larga experiência.»

E rangendo lastimosamente, cantaram:

— Cric, crac! cric, crac! crac!
— Acabou-se! acabou-se! acabou-se!

— Não tão cedo como vocês imaginam, respondeu o linho; está uma bela manhã, o sol resplandece, e a chuva faz-me bem; sinto-me crescer e florir. Sou muitíssimo feliz.»

Mas um belo dia vieram uns homens que agarraram no linho pela cabeleira, arrancaram-no com raízes e tudo, e deram-lhe tratos de polé. Primeiro mergulharam-no em água, como se o quisessem afogá-lo, e depois meteram-no no lume para o assar. Que crueldade!

— Não se pode ser mais feliz, pensou o linho de si para si; é necessário sofrer, o sofrimento é a mãe da experiência.»

Mas as coisas iam de mal para pior. Partiram-no, assedaram-no, cardaram-no, e ele sem compreender o que lhe queriam. Depois, puseram-no numa roca, e então perdeu a cabeça inteiramente.

— Era feliz de mais, pensava o desgraçado linho no meio daquelas torturas; devemo-nos regozijar, mesmo com as felicidades perdidas.»

E ainda estava dizendo—perdidas, e já o estavam a meter no tear e a transformá-lo numa peça de pano.

— Isto é extraordinário, nunca o imaginei; que boa sorte a minha, e que grandes tolas aquelas silvas quando cantavam:

Cric, crac! cric, crac! crac!
Acabou-se! acabou-se! acabou-se!

Agora é que eu principio a viver. Padeci muito, é verdade, mas por isso também agora sou mais feliz do que nunca. Sinto-me tão forte, tão alto, tão macio! Ah! isto é bem melhor do que ser planta, mesmo florida, ninguém trata da gente, e não bebemos outra água a não ser a da chuva. Agora é o contrário: que cuidados! As raparigas estendem-me todas as manhãs, e à noite tomo o meu banho com um regador. A criada do sr. cura fez um discurso a meu respeito, e provou perfeitamente que era eu a melhor peça da paróquia. Não posso ser mais feliz.»

Levaram o pano para casa, e entregaram-no às tesouras. Cortaram-no e picaram-no com uma agulha. Não era lá muito agradável, mas em compensação fizeram dele uma dúzia de camisas magníficas.

— Agora decididamente começo a valer alguma coisa. O meu destino é abençoado, porque sou útil neste mundo. É preciso isso para se viver em paz, e ser-se feliz. Somos hoje doze pedaços, é verdade, mas formamos um só grupo, uma dúzia. Que incomparável felicidade!

O pano das camisas foi-se gastando com o tempo.

— Tudo tem fim, murmurou ele. Eu estava disposto a durar ainda, mas não se fazem impossíveis.»

E as camisas foram reduzidas a farrapos, a trapos, e imaginaram que era finalmente a sua morte, porque foram rasgados, amassados, fervidos, sem adivinharem o que lhes queriam. Mas de repente transformaram-se em papel branco magnífico.

— Oh que agradável surpresa! exclamou o papel, agora sou muito mais fino do que dantes, e vão cobrir-me de letras. O que não escreverão em cima de mim! Tenho uma fortuna maravilhosa!»

E escreveram nele as mais belas histórias, que foram lidas diante de inúmeros ouvintes, e os tornaram mais sábios e melhores.

— Ora aqui está uma coisa muito superior a tudo que eu tinha imaginado, quando vivia na terra, coberto de flores. Como poderia eu imaginar que ainda havia de servir para alegrar e instruir os homens! Não sei explicar o que me está acontecendo, mas é verdade. Deus sabe perfeitamente que nunca fui ambicioso, e que nunca me queixei da minha sorte; foi Ele que gradualmente me elevou, até chegar à maior glória. Cada vez que me lembro da cantiga das silvas: «Acabou-se, acabou-se» tudo pelo contrário se me apresenta debaixo do aspecto mais risonho. Vou viajar, percorrer o mundo inteiro, para que todos me possam ler e instruir-se. Antigamente eu estava carregado de florinhas azuis; agora as minhas flores são os mais elevados pensamentos. Sinto-me feliz, imensamente feliz!»

Mas o papel não foi viajar; entregaram-no ao tipógrafo, e tudo que lá estava escrito, foi impresso para fazer um livro, milhares de livros, que recrearam e instruíram uma infinidade de pessoas. O nosso bocado de papel não teria prestado o mesmo serviço, ainda que desse a volta à roda do mundo. A meio caminho já estaria gasto.

— É justo, disse o papel, não tinha pensado nisso. Fico em casa, e vou ser considerado como um velho avô! fui eu que recebi as letras, as palavras caíram directamente da pena sobre mim, fico no meu lugar, e os livros vão por esse mundo fora. A sua missão é realmente bela, e eu estou contente, e julgo-me feliz.

O papel foi empacotado, e lançado para uma estante.

— Depois do trabalho é agradável o descanso, pensou ele. É neste isolamento que a gente aprende a conhecer-se. Só de hoje em diante é que eu sei o que contenho, e conhecermo-nos a nós mesmo é a verdadeira perfeição. Que me irá ainda acontecer? Progredir, está claro.»

Passados tempos, o papel foi atirado ao fogão para o queimarem, porque o que o não queriam vender ao merceeiro para embrulhar açúcar. E todas as crianças da casa se puseram à roda; queriam vê-lo arder, e ver também, depois da labareda, as milhares de faíscas vermelhas, que parecem fugir, e se apagam instantaneamente uma após outra. O maço inteiro de papel foi atirado ao lume. Oh! como ele ardia! Tornara-se numa grande chama, que se erguia tão alto, tão alto como o linho nunca erguera as suas flores azuis; a peça de pano nunca tinha tido um brilho semelhante.

Todas as letras, durante um segundo, se tornaram vermelhas: todas as palavras, todas as ideias desapareceram em línguas de fogo.

— «Vou subir até ao sol;» dizia uma voz no meio da labareda, que pareciam mil vozes reunidas numa só. A chama saiu pela chaminé, e no meio dela volteavam pequeninos seres invisíveis para os olhos do homem. Eram tantos quantos tinham sido as flores que o linho tinha dado. Mais leves que a chama, de quem eram filhos, quando ela se extinguiu, quando não restava do papel senão a cinza negra, ainda eles dançavam sobre essa cinza, e formavam, tocando-a, pequeninas centelhas encarnadas.

As crianças cantavam à roda da cinza inanimada:

Cric, crac! cric, crac! crac!
Acabou-se! acabou-se! acabou-se!

Mas cada um dos pequeninos seres dizia: «Não, não se acabou; agora é que é o melhor da festa. Sei-o, e julgo-me feliz.»

As crianças não puderam ouvir, nem compreender estas palavras; mas também não era necessário, porque as crianças não devem saber tudo.