Anexo:Imprimir/No País dos Ianques

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Taine, o glorioso Taine, o querido filósofo cuja obra admirável tem sido uma espécie de bússola para os que se iniciam na complicada arte da palavra; Taine, o mestre, aconselhava sabiamente, com aquela profundeza de vista e com aquele raro e superior critério de artista e pensador:

Que chacun dise ce qu’il a vu, et seulement ce qu’il a vu; les observations, pourvu qu’elles soient personnelles et faites de bonne foi sont toujours utiles.

Devo a estas palavras a lembrança de escrever as múltiplas impressões, os sucessivos transportes de admiração, de júbilo e tristeza por que passou meu espírito durante alguns meses de viagem nos Estados Unidos.

A princípio afigurou-se-me obra de alevantado alcance e de extrema coragem traçar, ainda que ligeiramente, o plano de um livro sobre a grande nação americana, tão singular em seus costumes, em sua vida agitada e tumultuosa, em seus variadíssimos aspectos.

E de fato, esse trabalho, essa difícil tarefa demandaria, incontestavelmente, muito mais que uma soma de notas mais ou menos verdadeiras e algum estilo. Era preciso, antes de tudo, um elevado critério histórico e científico, grande cópia de conhecimentos e profundo espírito analítico.

Não se escreve a história de um país – a vida inteira de um povo – sem demorar-se em largo e paciente estudo sobre as suas origens, seus habitantes primitivos, sua evolução política e social, suas lutas intestinas e sobre os elementos que mais diretamente influíram para sua independência.

A eles, os historiadores e analistas da ciência, tão arriscada empresa.

Os poucos meses que passei nos Estados Unidos apenas me proporcionaram ensejo de admirar, através de um prisma todo pessoal, o progresso assombroso desse extraordinário país.

Compreendem-se, pois, os meus intuitos: nada mais que reproduzir, com a possível exatidão, o que vi, somente o que vi nessa interessante viagem ao país dos ianques.

Procurei ser espontâneo e simples, natural e lógico, evitando exageros de observação e o estilo rebuscado e palavroso dos que, à fina força, pretendem transformar a literatura numa simples arte mecânica de construir frases ocas e coloridas.

Escritas em 1890, as páginas que se vão ler podem não ter a importância de um estudo completo, mas de algum modo têm seu valor intrínseco.

Rio, 1.º de agosto de 1893.

Adolfo Caminha

...Tinha cessado a faina geral de suspender âncora. Os marinheiros estavam todos em seus postos, alerta à primeira voz, silenciosos, enfileirados a bombordo e a boreste, alguns convenientemente distribuídos na popa, na proa e nas cobertas do cruzador.

Noite escura e chuvosa, cheia de nevoeiro e tristeza, fria, sem estrelas, cortada de clarões longínquos. Tão escura que se não distinguia um palmo diante do nariz, tão feia que os bicos de gás da cidade, soturna e quieta, bruxuleavam palidamente com a sua luz trêmula e vacilante...

E contudo estávamos a 19 de fevereiro, em plena estação calmosa, no rigor do verão.

Chovera todo o dia. O céu conservava-se coberto de nuvens bojudas e cor de chumbo, velando uns restos de lua.

Um grande silêncio de alto-mar alastrava-se por toda a baía do Rio de Janeiro. Somente ao longe, para os lados da cidade, badalava o sino duma igreja, compassado e lúgubre.

De vez em quando passava rente com a popa do Barroso o vulto sombrio e largo de uma barca Ferry, com o seu farol de cor, deserta, indistinta, e que desaparecia logo na escuridão.

Seria meia-noite quando o navio começou a mover-se lentamente, caminho da barra, cheio da silenciosa melancolia dos que partiam, e uma hora depois a cidade, as praias, e as montanhas sumiam-se na distância, como se o mar as fosse engolindo com a voracidade de um monstro.

Restava apenas um ponto luminoso, uma visão microscópica da terra fluminense: era o farol da ilha Rasa tremeluzindo, como pálpebra sonolenta, através da noite.

E todos a bordo, todos silenciosamente, egoístas na sua dor concentrada e incomunicável, mandaram ainda um – adeus – profundamente saudoso à vida alegre e ruidosa do Rio.

Dizem que o homem do mar é insensível aqueles que nunca viram esta realidade: a lágrima da saudade brilhar na face de um marinheiro.

Lá fomos mar afora...

Pernambuco foi o primeiro porto da nossa escala.

Viagem monótona, sem acidentes notáveis, essa do Rio ao Recife. As horas sucediam-se numa uniformidade tediosa e imperturbável. Sempre o mar, sempre o céu, ora sombrios, ora azuis...

Durante o dia 21 avistamos, e isso nos consolou, uma vela que bordejava, muito branca, triste garça erradia no horizonte luminoso.

Para quem viaja no mar uma vela que se avista é sempre motivo de inocente alegria. O marinheiro com especialidade gosta de segui-la com o olhar nostálgico até perdê-la completamente. É como ao avistar-se terra depois de longa travessia: sente-se a mesma impressão boa e indefinível.

Na manhã de 26 – leste-oeste com o farol de S. Agostinho, e às onze horas recebíamos o prático.

Impossível entrar nesse dia, por falta de maré: passamos a noite fora, no Lamarão, aos solavancos, vendo, por um óculo, a cidade do Recife, iluminada e bela, ombro a ombro com a legendária Olinda dos holandeses e dos banhos de mar.

Na falta de outro assunto falou-se de história pátria.

Pela manhã de 27 o Barroso sulcava as águas do Lamarão, lento e majestoso, crivado de olhares. O povo saudava-o do cais da Lingüeta. Espalhou-se logo que o príncipe d. Augusto, neto do imperador, vinha a bordo, e toda a gente correu a recebê-lo com essa avidez instintiva das massas populares. O povo pernambucano, tradicionalmente inimigo dos imperadores, lembrava-se do tempo em que o sr. d. Pedro de Alcântara dava-se ao luxo de visitar o Norte.

Mais tarde, ao desembarcar a turma de guardas-marinha, de que fazia parte o príncipe, subiu de ponto a curiosidade pública.

– Oh! o príncipe! – Que é dele? – É um ruivo? – É aquele barbado?

O pobre moço viu-se em apuros, e mudava de cores, e fazia-se escarlate, e vociferava contra a plebe, ocultando-se entre os colegas, desapontado. Um preto velho teve a lembrança de ajoelhar-se aos pés de S. A. e suplicar-lhe uma esmola. Aconteceu, porém, que errou o alvo e foi direto a um outro rapaz, louro e rubro, como o príncipe, que se apressou em desfazer o engano.

O imperial senhor achava-se ridículo no meio de toda aquela multidão servil e anônima que o acompanhava, “como se visse nele um animal selvagem...”

É assim o povo – ingênuo, pueril.

Visitamos, em romaria, os principais edifícios públicos: a Penitenciária, a Assembléia Provincial, o Ginásio, o Teatro.

A nova Penitenciária do Recife é um belo edifício no gênero.

Impressiona tristemente esse casarão sombrio com escadarias de ferro, onde mal penetra a claridade meridiana.

Há criminosos de toda a espécie, em cujos semblantes retratam-se delitos tenebrosos. Nada, porém, nos comoveu tanto como a história do preso Gustavo Adolfo, que, há quase vinte anos, cumpria a terrível sentença a que fora condenado. Era um desses sentenciados simpáticos que inspiram compaixão a quem os observa de perto.

Um dos nossos companheiros desejou saber a história do seu crime e pediu ao infeliz que lha contasse ele próprio.

– Não queira, disse o condenado, não queira obrigar-me a fazer minha própria autópsia moral... Narrá-la, essa história, seria um suplício muito maior do que estar eu aqui, neste cárcere, há vinte anos...

Gustavo Adolfo parecia-nos um regenerado, tal o aspecto humilde de sua fisionomia e o tom comovente de sua voz. O isolamento transformara-lhe a alma. A dor tem isto de bom – purifica o espírito, é como um crisol. Esse infame, esse assassino, Gustavo Adolfo, era um mártir. Aquele semblante abatido pelas insônias, aquele rosto descarnado, aqueles olhos cansados de chorar, aqueles lábios lívidos de defunto, cansados de repetir a palavra – perdão, lembravam a figura resignada de um moribundo que nada mais espera senão a eterna liberdade – a morte...

Vimo-lo na casa dos condenados, entre as quatro paredes de um miserável cubículo, vestido de preto, barba crescida, macilento, arrependido e só.

Poucos iam incomodá-lo ali, naquela pavorosa solidão, e no entanto ele não odiava ninguém e desejava falar a todos.

Tinha dezenove anos quando a fatalidade o arremessou a Fernando de Noronha. A justiça humana o havia condenado a esta pena infamante – galés perpétuas.

Perdoar a um arrependido nas condições de Gustavo Adolfo, me parece a mais nobre ação de um rei. Todavia ele continuava, mendigo de liberdade, a pedir, a pedir...

Por diversas vezes a academia de direito, pelo órgão de seus representantes, exorara a piedade imperial, mas o imperador nunca estendeu o seu magnânimo olhar até aos cárceres senão em certos dias de gala natalícia para indultar os escolhidos da política dominante.

– Console-se, disse eu ao desventurado moço. E citei Lamartine: – Vivre c’est attendre...

Retiramo-nos comentando aquela catástrofe desastrada.

A história trágica desse preso foi-nos contada por um empregado do estabelecimento. Eu podia resumi-la em duas palavras: – cherchez la femme, se não fosse o prurido de registrar, ainda que brevemente, um caso curioso de processo-crime. Cada um tire as ilações que lhe aprouverem.

Gustavo Adolfo nasceu no Pará onde iniciou seus estudos como seminarista.

Muito cedo seu espírito mostrou-se refratário à educação eclesiástica, e desviou-se dos livros sagrados para outro gênero de leituras e estudos mais consentâneos com as suas aspirações.

Os pais do núbil seminarista desgostaram-se com o procedimento do filho revolucionário e ardente apologista de Martinho Lutero, que não ocultava-lhes suas tendências anticatólicas. Ele, porém, o apóstata, o herege, sentia-se instintivamente arrebatado pelas idéias do século e tratou de trocar a sotaina de noviço pelo fraque da última moda. Ninguém põe peias à fatalidade. Não contente com ir de encontro à vontade de seus pais e preceptores, o ex-seminarista tomou o primeiro vapor, e, súbito, viu-se na capital do Brasil, sem um amigo que o guiasse nesse labirinto de ruas suspeitas onde o vício assentou praça. A Rua do Ouvidor e os teatros sempre eram mais agradáveis que o claustro e as impertinências do reitor – muito mais...

Pobre Gustavo Adolfo! Salvara-se de um abismo para precipitar-se imprudentemente, como criança inexperta, noutro abismo talvez mais perigoso.

Sem amigos, sem proteção, longe de sua terra e de seus pais – que podia esperar o jovem desconhecido naquele turbilhão de vis interesses?

Imbert-Galloix, um italiano, também adolescente e cheio de esperanças, inteligente e trabalhador, morreu de miséria numa rua de Paris, por ter trocado sua pátria natal por um país que só conhecia de nome. Fora em busca de glórias e encontrou a miséria, o frio, a fome, e a morte por fim.

Esses sonhadores como Imbert-Galloix são sempre vítimas da própria imaginação.

A sorte de Gustavo Adolfo foi mais cruel.

Custa a crer que um insignificante par de brincos leve um homem à cadeia e depois ao exílio perpétuo!

Uma vez sem meios de subsistência, lutando com a má vontade de uns e a indiferença de outros, Gustavo Adolfo, que tinha certa dose de espírito, desse espírito fino que caracteriza o homem de talento, fez-se boêmio, isto é, indiferente à vida, nômade a quem tanto faz dormir sobre flácido colchão, como ao relento e sobre a laje das calçadas. Ora, os boêmios são umas criaturas simpáticas. Quando um boêmio tem espírito acha sempre quem lhe estenda a mão. Gustavo Adolfo preferiu a mão leve, alva e cetinosa, de uma cortesã pela qual apaixonou-se deveras.

A mulher, sempre essa criatura profundamente sedutora e misteriosa!

E, parece incrível! quando na primeira noite, após as inefáveis carícias do amor, a mísera Manon, adormecida ao lado do amante, sonhava, talvez nalgum banquete suntuoso, à sombra de álamos frondosos, talvez nalguma de suas passadas orgias, à luz de candelabros deslumbrantes, ele, o mal-aventurado moço, cujo olhar fitava na meia sombra da alcova o rosto sereno desta amante, antepensava um crime e um crime excepcional, monstruoso, inqualificável.

– Estes brincos, estes brincos... pensava ele fitando as jóias, duas grandes lágrimas de diamante pendentes das orelhas da rapariga. Seu espírito oscilava como um pêndulo na dúvida terrível, aguçado por um desejo louco.

Ei-lo que se levanta de um ímpeto, pisando devagar, sorrateiramente, tão de leve que dir-se-ia uma sombra; ei-lo que se encaminha para a porta da rua, tateando, encostando-se às paredes, pé ante pé, sem respirar, olhando sempre para trás, para o leito da amante (lembra-me a cena da Cimbelina de Shakespeare).

Meia-noite... Ei-lo ainda que volta e se aproxima do leito onde há pouco boiara em mar de volúpia. Traz na mão um objeto reluzente, uma coisa disforme... uma machadinha.

Que irá ele fazer?!...

Aproxima-se mais, rastejando quase, mansamente, sutilmente.

De repente soa uma pancada surda, e um grito estrangulado: – Soc... corro! Soa outra pancada surda, outra, outra, muitas pancadas, e sobre os brancos lençóis daquele malfadado leito palpitam as carnes sangrentas, moribundas, de um corpo de mulher que ainda há pouco sentia e pensava...

Obcecado pela idéia do roubo, o assassino arranca brutalmente as jóias do cadáver, e, à luz do combustor de cristal, reconhece que são falsas!

Foge rua fora, como um possesso, enfia num beco, sai por outra rua, e desaparece na escuridão da noite.

No dia seguinte seu nome lá estava estampado em letras garrafais no livro dos réus: “Gustavo Adolfo... preso pelo duplo crime de assassinato e roubo.”

Mais tarde, anos depois, o jovem criminoso tentou fugir de Fernando de Noronha onde fora recolhido. Prenderam-no em flagrante. E há poucos meses, no ano passado, a princesa Isabel, então regente do Brasil, abriu-lhe as portas da prisão.

Gustavo Adolfo publicou, no degredo, um livro de versos intitulado Risos e lágrimas, uma coleção de poesias sentimentais e amorosas que pouco valem pela forma e onde se acham cristalizadas as dores do infeliz poeta, cuja imaginação cantava entre lágrimas.

Penalizou-nos a sorte desse rapaz simpático e inteligente.

Havia, além de Gustavo Adolfo, outro preso não menos interessante e que nos excitou a curiosidade. Indigitado autor de não sei que roubo, fora condenado igualmente a galés perpétuas.

Interrogado, disse-nos contar oitenta (!) anos de idade e possuir família numerosa: – mulher e 30 filhos!

– Qual foi o seu crime? perguntamos.

O velhinho todo trêmulo, a cabeça muito branca, uma névoa úmida no olhar, sem forças quase para dar um passo, murmurou tristemente:

– Nenhum, meus caros senhores... Suponho que houve engano da justiça.

– E se lhe dessem liberdade agora?..

– De que me servia? Mal me tenho em pé e já não sei de minha mulher e de meus filhos. Estou muito velho, preciso morrer descansado aqui mesmo na prisão.

O edifício da Penitenciária tem, logo à entrada, a seguinte inscrição em mármore:

No dia 23 de abril de 1885 sendo presidente da província o ilmo. sr. conselheiro dr. José Bento da C. Figueiredo foram removidos os presos para este edifício organizado sob a direção do engenheiro José Maria Alves Pereira.

Contava, portanto, trinta e cinco anos.

Foi a mais interessante de todas as nossas visitas em Pernambuco.

No dia 27 deixamos o Recife em direção às Antilhas.

Como até aí, a viagem continuou a vapor – uma verdadeira viagem de recreio se não fosse a exigüidade dos cômodos a bordo do cruzador.

O comandante levava ordem para chegar a Nova Orleans em tempo de assistirmos à abertura da exposição internacional americana, onde o Almirante Barroso devia figurar como legítimo e admirável produto da indústria naval brasileira tão pouco conhecida no estrangeiro.

Adotávamos, sempre que o vento permitia, a navegação mista, e deste modo, à vela e a vapor, arrastados pelas correntes marítimas que puxam para o norte, alcançamos, a 2 de março, a linha equatorial, onde apanhamos alguns chuviscos debaixo duma atmosfera ardentíssima.

Reinava “calmaria podre”. Ferraram-se as velas à míngua da mais leve aragem, armaram-se os toldos para que pudéssemos suportar o calor na tolda, e os banhos salgados de ducha foram recebidos com especialíssimo agrado. Suava-se a valer. Imagine-se embaixo, no porão, as fornalhas acesas, e em cima o sol ardente, o medonho sol do equador, caindo como um cáustico sobre o navio.

À tardinha incendiavam-se os horizontes de um colorido rubro, ensanguentado, de mágica, refletindo-se no espelho do mar tranqüilo como num grande lago de cristal...

Demos graças a Deus quando nos vimos fora de tão desagradáveis regiões.

No dia 11 avistamos terra de Barbados, uma das mais prósperas colônias inglesas das Antilhas. Era o primeiro porto estrangeiro do itinerário.

O capitão do Porto foi o primeiro personagem que pisou a bordo: um inglês de aspecto duro como em geral o de todo inglês, olhando através de uns grandes óculos azuis e ostentando fleumaticamente um par de suíças ruivas. Trajava dólmã branco, muito justo ao corpo, calças de pano preto e chapéu de cortiça branco, de grandes abas, tombado para a nuca.

Fez a visita sacramental e pôs-se ao fresco em menos de dois minutos, depois de um fortíssimo shake-hand.

A ilha de Barbados vista de bordo é de uma nudez quase completa: nenhuma vegetação cobre as vastas planícies que primeiro ferem a retina do observador. Ao aproximar-se-lhe, porém, novas paisagens de efeitos cambiantes vão-se desenrolando à maneira de cosmorama. Moinhos rodam ao sopro do vento que ordinariamente é fresco aí, casas de campo confortáveis, árvores, chaminés fumegantes, tudo isso vai aparecendo à medida que nos aproximamos, até que, com verdadeira surpresa, surge-nos toda a cidade de Bridgetown e então basta um golpe de vista largo para abrangê-la.

À distância Bridgetown semelha uma pobre cidade desabitada, sem indício de civilização. A surpresa que experimenta o viajante é completa depois. Alguém que aí esteve anos antes admirou-se da enorme quantidade de embarcações inglesas surtas no porto. Entre estas contavam-se quatro encouraçados, bonitos vasos que honram a Inglaterra afirmando o grande poder marítimo desse país, cuja esquadra ainda hoje não tem rival no mundo.

Um dia e meio – eis todo o tempo de nossa demora em Barbados, tempo suficiente para conhecermos a ilha à vol d’oiseau.

A população, na maior parte negra, é composta de gente de baixa classe e geralmente intratável.

Abundam os ciceroni, espécie curiosíssima de especuladores, que perseguem os viajantes de uma maneira bárbara. Querem, à fina força, ensinar-lhes as ruas, os hotéis, e não os largam enquanto não satisfazem a sua ambição, cobrando, no fim de contas, certo número de shillings.

Falam um patois detestável: ninguém os entende com facilidade. Imagine-se um pobre-diabo acompanhado duma multidão que grita e fala idioma desconhecido a repetir-lhe alto aos ouvidos: – Came hear! came hear! discutindo, altercando-se de cacete em punho. O mísero julga-se por um momento transportado, como por encanto, às costas da África, fecha ouvidos à grita dos importunos ciceroni, brada mil vezes no, no, no..., e não tem remédio senão deitar a correr como um possesso, perseguido sempre pela turbamulta de vadios, até que, depois de uma luta incrível, esguedelhado, ofegante, pálido, embarafusta pela porta dum hotel escorrendo suor, esfalfado, morto de cansaço!

E ainda por cima vocifera a legião faminta dos negros!

Não exagero. Parece realmente um país semibárbaro aquele, e ai! de nós se não fossem os policemen, ativos e enérgicos guardas da vigilância pública, que a um simples franzir de sobrolhos fazem desaparecer a medonha horda de capadócios, ou que melhor nome tenham esses turbulentos demônios.

É espantosa a ambição do povo por dinheiro.

Ao tilintar do money surgem de repente vinte, trinta cabeças negras, cada qual mais negra, disputando a posse do precioso metal.

Basta dizer que ainda não tínhamos fundeado e já grande número de pequenas embarcações à vela e a remos – fly boats – aproximavam-se do navio, cortando-lhe a proa com risco de serem espedaçadas. Ouvia-se, então, de todos os lados vozes que gritavam:

I am pilot! I am pilot!

Embalde procurávamos persuadir àqueles esfaimados de dinheiro que não precisávamos de prático, pois a baía de Bridgetown é bastante espaçosa e oferece entrada franca.

Dávamos com o lenço, mandando-os embora – que não! mas os gritos repetiam-se: – I am pilot! I am pilot!

Todos queriam, a troco de dinheiro, conduzir o navio estrangeiro ao ancoradouro e para isso exigiam um preço fabuloso.

Formidáveis importunos os tais negros de Barbados!

A edificação de Bridgetown, puramente inglesa, é curiosa, pitoresca mesmo, se bem que uniforme.

As casas, baixas quase todas, geometricamente dispostas, alpendradas na frente, simples e elegantes na sua arquitetura, são confortáveis e convidam ao far-niente.

As ruas, porém, estreitas e mal calçadas, são, por assim dizer, intransitáveis, em conseqüência do poeiral que sobe, como fumaça, ao rosto dos transeuntes.

No que respeita a estabelecimentos importantes, vimos a St. Leonard’s School e uma igreja-cemitério.

A estátua de Nelson, o herói de Trafalgar, ergue-se, em bronze maciço, numa das melhores praças do lugar – Nelson’s Square, se me não engano.

Os poucos hotéis que existem na ilha são vastos e oferecem o necessário conforto ao viajante: boa mesa, bons petiscos, magnífico vinho, deliciosos sorvetes – ice-cream – e, finalmente, boas camas e muito asseio.

O brasileiro que viaja, com raras exceções, tem necessidade imprescindível de duas coisas que ele julga essenciais ao seu bem-estar: café e cigarros.

Spleen e charutos – são coisas inseparáveis de um inglês da Inglaterra; café e cigarros – eis o que um brasileiro não dispensa.

Infelizmente para nós, o café, tal qual se prepara em Barbados, é um licor detestável composto de muito pó e pouca água, que os naturais misturam à guisa de chocolate, mas de um sabor desagradável, repugnante.

Duas linhas de bondes percorrem a capital dum extremo a outro.

A ilha é circundada por uma via férrea.

De resto, é admirável senão assombroso o progresso dessa colônia, relativamente pequena e tão longe da metrópole.

E, note-se, de vez em quando atravessam aquelas regiões terríveis ciclones produzindo estragos incalculáveis em toda a extensão da ilha. Inúmeras embarcações, algumas de grande porte, têm sido arrojadas à costa por esses formidáveis meteoros. O último caiu em 1851 e figura nos anais da navegação como um dos grandes desastres marítimos do Atlântico.

Na manhã do dia 13 suspendemos âncora em direção à ilha da Jamaica, fundeando no mesmo dia na baía de Port-Royal.

Denso nevoeiro envolvia, como uma gaze alvíssima, as altas montanhas que orlam majestosamente a antiga colônia espanhola.

Ao aproximarmo-nos da pequena e elegante cidade de Port-Royal, pedimos prático o qual nos levou a Kingston.

O brasileiro que, depois de longa ausência do Brasil, chega à Jamaica sente logo um prazer especial, um frêmito de patriotismo, ao contemplar as soberbas montanhas da ilha, tanto elas lembram a natureza do nosso país. A baía, salpicada de interessantes ilhotas de verduras, verdadeiras ilhas flutuantes, em cujas águas imóveis bandos de aves ribeirinhas ostentam sua plumagem garrida e multicolor, voando duma margem à outra numa contradança animada, oferece aspectos lindíssimos. Jamaica parece um pedaço do Brasil transplantado para as Antilhas, tal a opulência da sua natureza.

É a maior e a mais florescente das colônias inglesas da América depois de Barbados. Mede aproximadamente quarenta léguas de comprimento.

Kingston não é uma cidade como Bridgetown, onde a cada passo depara-se com uma prova de adiantamento material. É, por assim dizer, uma capital morta, quase sem comércio, mas, em compensação, muito mais pitoresca que a capital de Barbados. Os habitantes são morigerados, e uma paz religiosa parece reinar no seio de cada família.

Há mais pobreza, é certo, mas incomparavelmente o povo é mais educado, mais pronunciado o instinto de civilização.

Muitas estátuas. Vimos as de Lewis Quier Bower Bonk, nascido em 1815, Edward Jordon, um dos principais fundadores da – Jamaica Mutual Life Assurance Society, Sir Charles Theophilus Metcal, governador em 1845 – todas ao redor de um parque. Isso prova quanto respeito infunde ao inglês o nome de um compatriota célebre.

Um brasileiro estabelecido em Kinsgton disse-nos ser o Almirante Barroso o primeiro navio brasileiro que aí aportava desde 1871.

Nossa demora em Jamaica foi rápida como em Barbados. Telegramas oficiais do Rio apressavam-nos cada vez mais. Já se havia inaugurado a Exposição de Nova Orleans; era-nos forçoso assistir ao menos o encerramento. Estávamos convictos de que o cruzador brasileiro ia figurar com brilho no importante certame americano. Tanto em Bridgetown como em Kingston não lhe faltaram elogios de pessoas competentes.

Todos ansiávamos pela chegada ao país maravilhoso dos ianques, ao berço da eletricidade, todos queríamos conhecer de visu o celebrado país das descobertas engenhosas.

Desde logo entramos, de combinação, em “sérios” estudos do idioma inglês praticando uns com os outros, compulsando manuais de conversação, decorando significados, preparando-nos, enfim, da melhor forma, para retribuir gentilezas, captar amizades, responder a todas as perguntas que nos fossem feitas à queima-roupa. Sim, porque tudo quanto havíamos aprendido teórica e praticamente na Escola, não era bastante. Faltava-nos a facilidade, o traquejo da palavra estrangeira, que havíamos de adquirir à força de vontade e aplicação assídua.

Alguns oficiais, entre os quais o comandante, riam-se do nosso apuro, e, de vez em quando, atiravam-nos de surpresa uma pergunta em inglês. Quanto disparate, quanta tolice a princípio! O certo é que depois, com o tempo, já nos entendíamos sofrivelmente. Noblesse oblige...

A hospitaleira sociedade de Jamaica havia nos conquistado a simpatia. Todos sentimos deixar tão cedo aquela encantadora ilha, cujos habitantes nos tinham prodigalizado tão generoso acolhimento. Lenços acenavam para bordo ao deixarmos o ancoradouro às 5 horas da tarde de 21, despedindo-nos talvez para sempre dessa boa gente.

Durante os dias 22 e 23, mar e vento rebelaram-se contra o navio. Navegávamos à bolina, sempre à vela e a vapor, amurados por bombordo.

Grandes rajadas frias sopravam do norte, cantando nos cabos da mastreação, sacudindo-os com violência.

O termômetro baixara sensivelmente, a coluna barométrica punha-nos calafrios...

O mar quebrava-se de encontro às bochechas do cruzador desafiando-lhe a resistência colossal.

Sabíamos que a latitude em que navegávamos, nas Antilhas, era muito freqüentada pelos ciclones, esses terríveis inimigos dos navegantes, que arrastam em sua cauda milhares de vidas. Receávamos esses fenômenos tanto mais porque os seus efeitos fazem-se sentir a grandes distâncias.

Os sintomas visíveis, se não eram evidentes, aproximavam-se das descrições de navegantes experimentados. O céu estendia-se limpo, como um largo pálio azul esbranquiçado; apenas no horizonte flutuavam pequenos estratos em forma de rabo de galo e algumas estrias avermelhadas, escarlates, despertavam-nos a atenção.

Ao meio-dia o sol tinha uma cor baça, com um disco azulado ao redor.

E crescia o mar em vagalhões medonhos e esfuziava o vento no cordame.

O navio caturrava e arfava morosamente; ouvia-se o barulho do hélice trabalhando fora dágua.

Pela madrugada de 24 lobrigamos por boreste o farol da ilha de Cuba, de luz muito branca, e no dia seguinte sulcávamos o golfo do México.

Poucos dias restavam para alcançarmos Nova Orleans.

E nada do suposto ciclone!

Por via de dúvidas, como o tempo continuasse borrascoso, ferramos a maior parte do pano, conservando apenas as gáveas rizadas nos terceiros e a mezena de capa.

Capeamos três dias consecutivos, sem que aparecesse o medonho visitante.

No quinto dia o vento amainou rondando para nordeste e o mar, por força das circunstâncias, também acalmou-se. Ferramos o resto do pano, navegando só a vapor.

A idéia da chegada preocupava todos os espíritos. Os Estados Unidos eram o assunto de todas as conversações.

Cedo tratou-se da limpeza do navio.

Cada qual tratou de si, de sua roupa, de seus objetos que o mar sacudira de um lado a outro dos camarotes. Os alojamentos apresentavam o curioso aspecto de um campo de batalha; malas confundiam-se umas sobre outras formando empilhamentos, a roupa branca usada andava de mistura com os fatos novos de pano; livros, papéis – tudo quanto era de uso quotidiano estava espalhado no convés, como se andasse por ali alguma criança traquinas.

Guerra ao mofo! Roupas ao sol! Ninguém se fez esperar. Começaram as arrumações, uma faina açodada, durante a qual soaram boas gargalhadas filhas de inalterável bom humor.

Os guardas-marinha alojavam-se à popa num acanhadíssimo compartimento que mal os comportava. Aí tinham suas camas, suas malas, seus livros.

Quantos prejuízos! Quantas decepções!

E todos acocorados, arrumando e desarrumando, numa confusão burlesca, maldiziam o mar e apostrofavam o vento. Netuno e Éolo nunca receberam tantas manifestações desairosas. Pois não! Ninguém tem suas coisas para vê-las de um dia para outro arruinadas, inutilizadas pelos caprichos incoercíveis do mar e do vento.

Finalmente, como nada há melhor que um dia depois de outro, veio o dia 29 de março em que dos vaus do joanete de proa o gajeiro anunciou – terra!

Continuava, entretanto, incessantemente, a azáfama. A guarnição da bateria ocupava-se da limpeza das peças, colocando-as em posição, abrindo e fechando culatras, lixando-as, lubrificando-as enquanto o fiel ia distribuindo o cartuxame.

Havia uma alegria geral a bordo e sentia-se um vago odor de tintas, como ao entrar-se numa casa nova, pintada de fresco.

Já era tempo de repousarmos das fadigas da viagem.

Ninguém pode imaginar o que é a chegada de um navio de guerra a porto estrangeiro depois de uma tempestade ou mesmo depois duma ameaça de temporal. A faina torna-se geral e o ruído inevitável. É de ver-se a prontidão, a rapidez com que se executam as ordens. Como que há mais vontade para o trabalho, desenvolve-se logo um contagioso bem-estar, ninguém foge ao serviço.

Tesar cabos de laborar, baldear o convés a ficar alvo e polido como uma sala de visitas, limpar, arear os metais amarelos até ficarem reluzentes como ouro de lei, ferrar o pano a capricho, cuidadosamente, de modo a confundi-lo com as vergas e os mastros, preparar os escaleres – tudo isso é coisa dum abrir e fechar de olhos.

A guarnição do Almirante Barroso, disciplinada e obediente como todas as que serviam sob as ordens do comandante Saldanha, primava pelo asseio, pela ordem, pela destreza e pela atividade. Não se lhe pode fazer maior elogio. Cada marinheiro era como uma máquina pronta sempre ao menor impulso.

A chibata era nesse tempo, como ainda hoje, o terror das guarnições da armada.

Sempre manifestei-me contra esse bárbaro castigo que avilta e corrompe em vez de corrigir. Um castigo de chibata é a coisa mais revoltante que já tenho visto, mormente quando é mandado aplicar por autoridade desumana, sem noções do legítimo direito que a cada homem assiste, quem quer que ele seja, soldado ou pariá.

O meu primeiro passo ao deixar a Escola e envergar a farda de guarda-marinha foi publicar um protesto contra essa pena infamante, e fi-lo desassombradamente, convicto mesmo de que sobre mim ia cair a odiosidade de meus superiores em geral apologistas da chibata.

A primeira vez que minha posição oficial obrigou-me a assistir um desses castigos, tive ímpetos de bradar com toda a força dos pulmões contra semelhante atentado à natureza humana.

Quem já assistiu a uma dessas pavorosas cenas do eito, magistralmente descritas por Júlio Ribeiro na sua obra A Carne, pode fazer idéia do que seja o castigo da chibata.

Despir-se a meio corpo um pobre homem, um servidor da pátria, pés e mãos algemados, muita vez depois de três dias de solitária a pão e água, e descarregar-se-lhe sobre a espinha, sobre as espáduas, sobre o peito, sobre o ventre, na cara mesmo, em todo o corpo cinqüenta, cem, duzentas chibatadas, em presença de todos os seus companheiros, me parece indigno duma geração que se preza, de uma sociedade de homens civilizados, de cidadãos, de cavalheiros que ostentam triunfalmente galões dourados na farda – na farda, que significa a nobreza, a coragem, o patriotismo e a honra duma nação.

Revoltei-me contra semelhante barbaridade inquisitorial, como quem tem consciência de que está praticando uma ação justa e honrosa. Doía-me por um lado pertencer a uma classe nobre por tantos títulos, é certo, mas em cujo seio era permitido a chibata e, o que é mais, o seu abuso.

A esse tempo a Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro publicava semanalmente um boletim literário no louvável intuito de estimular os incipientes das letras. Oferecia-se-me oportunidade para um conto marítimo, cujo assunto fosse a chibata.

Escusado é dizer que o meu artigo provocou o despeito dos culpados indiretamente feridos no seu amor-próprio. Embora! Fiquei satisfeito, como se tivesse sacudido para longe um fardo pesadíssimo; e, é preciso dizer, não hesitei em declarar-me autor do conto que vinha firmado por meu nome, então desconhecido na armada.

Alguns de meus companheiros taxaram-me de imprudente e “indiscreto” Outros levaram seus conselhos até à minha inexperiência de adolescente indisciplinado.

Todo o mundo julgou-se com direito a censurar meu procedimento: “que roupa suja deixa-se ficar em casa; que a chibata era um castigo imprescindível”, e outros arrazoados sofrivelmente banais.

Meu consolo é que dentre aqueles que preconizavam os efeitos prodigiosos da chibata noutros tempos, muitos concorreram em demasia para a sua extinção.

Dei parabéns à pátria e à humanidade.

Como militar e disciplinador o comandante Saldanha da Gama distinguia-se por sua inflexibilidade porventura exagerada, especialmente para com as guarnições sob seu zeloso comando. Temperamento atrabiliário, sanguíneo, nervoso, sujeito a transições bruscas, inesperadas, impetuosas e violentas, o ilustre marinheiro, espírito eminentemente ilustrado, não sabia, entretanto, guardar a necessária calma quando devia aplicar as penas do código. Essas penas, como se sabe, acham-se perfeitamente explícitas, precisamente formuladas de modo a não deixar dúvida nos espíritos retos e amigos da lei. Entre os artigos que constituem o código penal militar existe um que limita o número de chibatadas, o qual não deve, em caso algum, exceder de vinte e cinco por dia.

Pois bem, o comandante Saldanha pouquíssimas vezes castigava conforme a lei. Colocava acima dela seus caprichos inexplicáveis, sua natureza rancorosa, sua vontade suprema. Não trepidava, e isto é sabido, em mandar açoitar com duzentas chibatadas uma praça qualquer, tal fosse o delito cometido. A um simples olhar seu as guarnições tremiam como caniços. A qualidade característica desse ilustre oficial era ser arbitrário e prepotente. Por isso a guarnição do Almirante Barroso corria a seus postos, em ocasião de manobra, com a velocidade duma seta.

Estávamos quase à entrada do Mississipi, a grande artéria fluvial da América do Norte, que nós imaginávamos um colosso talvez superior em volume d’água ao Amazonas – o Mississipi, decantado pelo autor dos Natchez, e em cujas margens fica a cidade de Nova Orleans, nosso ponto de chegada.

Ninguém pensava mais no Rio de Janeiro para só se lembrar de Nova Orleans, a Cidade Crescente, como a denominam os americanos.

Três horas da tarde, mais ou menos. Embarcações à vela e vapores bordejavam fora da barra à espera de prático, sem o qual era impossível a entrada. Mar calmo, com uma cor esbranquiçada, lembrando na sua quietação dormente um vasto lago estagnado. Em frente, muito longe ainda, mal distinguíamos com o binóculo o farol, microscópica torre branca, invisível quase.

Envolvidos em grossas capas de lã, abotoados até o pescoço ao abrigo do frio que se tornava insuportável para nós da zona tórrida, de pé no tombadilho, máquina a um quarto de força, bandeira nacional desfraldada na carangueja do mastro de ré, esperávamos também o piloto que nos devia conduzir a Nova Orleans, 110 milhas da foz do Mississipi.

O Mississipi! Dentro em pouco sulcávamos a grande corrente.

Não tardou muito o prático, por cujo intermédio tivemos notícia da estrondosa manifestação com que os habitantes da cidade americana aguardavam a chegada do cruzador brasileiro.

Bela surpresa essa! Cresceu o entusiasmo entre os novéis oficiais.

Entramos. Durante o nosso trajeto pelo Mississipi a ansiedade a bordo tocou o seu auge. Queríamos, todos a um tempo, avistar as embarcações que, dizia-se, vinham nos receber.

O autor destas simples notas de viagem, que admira os Estados Unidos como uma segunda pátria, porque ali moram juntas todas as liberdades e florescem prodigiosamente todas as nobres idéias civilizadas, de braços cruzados estendia o olhar cheio de admiração, cheio de deslumbramento por cima das extensas planícies das margens do grande rio.

O pôr-do-sol entre a neblina que cobria os horizontes fazia lembrar as páginas de Chateaubriand na sua Voyage en Amérique, páginas esculturais e cheias da comovida nostalgia dos que se vão da pátria...

Quanta verdade nas suntuosas descrições do poeta! Quanta poesia naquelas paragens desertas da foz do Mississipi – Saara de neve estendendo-se a perder de vista nos horizontes sem fim! Que de maravilhas ocultavam-se por trás daquelas planícies, lá onde o olhar não atingia!

Eram ave-marias. Lembrei-me do Brasil, dos sertões de minha terra natal, da torrezinha branca do Senhor do Bonfim badalando o terço das almas, justamente aquela hora, quando as boiadas recolhiam mugindo, pesadas e melancólicas...

Ave-marias!... Mesmo quando não se é crente, àquela hora da tarde o coração fica cheio de não sei que terna e piedosa unção mística...

Fundeamos no ponto em que o rio se divide em dois braços ou pequenos confluentes, e aí passamos a noite inteira, essa longa e tristíssima noite de inverno.

Frio de rachar. As águas do rio, pardas e barrentas, estavam quase geladas.

As margens do Mississipi, em vários pontos, são, no inverno, verdadeiras planícies, onde apenas medra a erva rasteira. À distancia, pobre alma perdida no descampado, ergue-se às vezes uma árvore muito esguia, como um fantasma de braços abertos para o céu. De quando em quando atravessa a solidão uma ave desconhecida batendo as asas, como um agouro.

Noutros lugares, porém, vêem-se rebanhos pastando silenciosamente, plantações verdejantes, casas de campo, postes de correio, em cujas portas destacam-se em caracteres maiúsculos as palavras – Post office.

O povo parece viver satisfeito no meio de suas plantações e de seu gado, entregue à cultura e à criação.

Nuvens de mosquitos atordoaram-nos toda a noite. – “Caramba! exclamava o barbeiro de bordo, um estimável espanhol que trazíamos do Rio de Janeiro. Caramba! Mosquitos por mosquitos me gusta más los del Brasil!” E tinha razão o nosso companheiro. Os mosquitos do Mississipi são muito capazes de dar cabo dum pobre homem. E que medonha orquestração nos ouvidos da gente!

Felizmente na manhã do dia seguinte levantamos ferro.

O navio estava completamente pronto a fazer sua entrada em Nova Orleans. Durante quase toda a noite a guarnição ocupara-se em colher cabos, esfregar a amurada e baldear o costado.

Como passatempo líamos os jornais que o prático trouxera, os quais noticiavam a recepção popular e oficial que se nos preparava.

Dois iates a vapor – o Cora e o Pansy – propriedade de Mr. Morris, largariam de Nova Orleans a nosso encontro, embandeirados, com bandas de música, comissões de senhoras, representantes do comércio e de outras classes sociais.

Ou fosse a natural afinidade que existe entre as duas nações americanas, ou fosse o fato de ir a bordo do cruzador brasileiro um representante da família imperial do Brasil, o certo é que durante nossa travessia da foz do Mississipi à cidade fomos constantemente saudados de ambas as margens do rio a tiros de espingarda e a lenços que nos acenavam de longe.

E o Almirante seguia devagar, alvo de mil olhares curiosos.

Ao meio-dia ouvimos as notas de uma música alegre que se aproximava, e em breve surgiram numa curva do rio os dois magníficos iates – o Cora e o Pansy – apinhados de gente, enfeitados de galhardetes de cores variadas, em cujos mastros tremulavam as duas bandeiras amigas.

De ambos os lados, no cruzador e nos iates, hurras confundiam-se no ar.

Em viva efusão de inexprimível júbilo patriótico estreitavam-se as duas grandes potências da América; a mesma brisa balouçava simultaneamente os dois gloriosos pavilhões.

A gente do Barroso subiu às vergas acelerada, e acenando com os lenços e os bonés, saudava com vivas estrepitosas e delirantes aclamações aos Estados Unidos, ao mesmo tempo que das duas embarcações partiam ruidosas manifestações ao Brasil.

Fardada em segundo uniforme, espada e dragonas, a oficialidade do cruzador brasileiro, em pé no tombadilho, vivamente comovida, descobria-se a todo instante risonha e feliz.

Sentíamos a falta de uma banda de música bem organizada, que naquele momento, verdadeiramente solene, entoasse o hino da república a bordo.

Passado o primeiro momento de delírio, aproximaram-se os dois iates que nos acompanhavam e o cruzador diminuiu a marcha. Ficamos borda a borda. Num instante toda aquela gente, que vinha nos vaporezinhos, passou para o Barroso.

Houve um silêncio respeitoso de parte a parte e começaram os abraços.

O cônsul-geral brasileiro, sr. dr. Salvador de Mendonça, tão conhecido entre nós por seu talento e por sua ilustração, como homem de letras e diplomata, juntamente com Mr. Eustis, cônsul em Nova Orleans, foram recebidos no portaló pelo comandante e oficiais com todas as honras que lhes eram devidas. Seguiram-se os representantes da imprensa, do comércio, etc.

Conduzidos à câmara, desde logo estabeleceu-se entre brasileiros e americanos uma camaradagem franca, uma corrente comunicativa de afabilidades, como se já fôssemos conhecidos velhos. As taças de champanha chocavam-se, vivas sucediam-se, levantavam-se toasts às duas nações, trocavam-se os mais espontâneos cumprimentos.

A viagem continuou ao som da música do Cora e do Pansy.

Às 4 horas da tarde largamos ferro defronte da antiga capital da Luisiana.

Nova Orleans é, talvez, a cidade mais importante do sul dos Estados Unidos.

Nosso primeiro cuidado, como era natural, foi desembarcar, “ir à terra”, cear bem e dormir tranqüilamente um sono bom e reparador. Não nos faltariam esplêndidos hotéis e magníficos rooms, onde pudéssemos, à vontade, descansar dos trabalhos da viagem.

Nossa demora devia prolongar-se aí mais do que em qualquer outro ponto, por causa da Exposição e as instâncias dos habitantes da cidade, que nos preparavam deliciosas surpresas.

Tínhamos tempo bastante para ver Nova Orleans, para observar os costumes americanos e fazer um juízo mais ou menos aproxi­mado daquele belo povo.

O porto estava atulhado de barcas de comércio – vastas embarcações de dois e três pavimentos, duas e três chaminés negras a deitar fumaça numa atividade constante, rodas na popa, muito mais amplas que as nossas barcas Ferry do Rio de Janeiro. Atopetadas de sacas de algodão e outros gêneros do país, esperavam o momento preciso e regulamentar de se fazerem ao largo.

Enquanto esperávamos, vivamente ansiosos, o escaler que nos devia conduzir ao cais, assestávamos o óculo para a cidade quase silenciosa àquela hora, e cujas ruas não tardaríamos a conhecer. Acendiam-se os primeiros bicos de gás. Ao longe, nalguma igreja remota, badalava um sino triste. Já não se ouvia quase o bruaá quotidiano. Numerosas embarcações cruzavam-se no rio. Ouvíamos guinchos de locomotivas e o surdo ruído de carros que ainda labutavam.

Alguns oficiais deixaram-se ficar aguardando o dia imediato para mais comodamente satisfazerem sua curiosidade de viajantes em terra estrangeira.

Era fim de inverno. Ameaçava chover. O frio continuava bastante forte ainda e os camarotes do Barroso ofereciam, nessas condições, agasalho confortável aos mais friorentos.

Na manhã seguinte, grupos de oficiais brasileiros, uns fardados, outros à paisana, percorriam Nova Orleans.

O St. Charles Hotel, um dos melhores estabelecimentos da cidade, e o Royal Hotel – primeiro em luxo e ornamentação – eram procurados avidamente.

Os jornais davam notícias circunstanciadas de nossa chegada e anunciavam festas em homenagem ao Brasil.

Uma vez instalados nos hotéis, cada um de nós em seu vasto aposento, onde nada faltava, tão diferente dos estreitos camarotes de bordo, dividimo-nos em grupos.

Quanto a mim, o meu primeiro cuidado foi munir-me de um guia da cidade, espécie de pocket-book muito cômodo, registrando indicações úteis de estabelecimentos e lugares principais.

Meu quarto ficava no segundo andar do St. Charles Hotel com frente para a rua do mesmo nome – uma saleta mobiliada com a máxima sobriedade, sem luxuosas decorações, contendo apenas os móveis indispensáveis a um rapaz solteiro, e o fogão a um canto.

Depois de magnífico banho morno em bacia de mármore (perdoem-se-me estas inocentes confidências, aliás de bom gosto) seguido de um valente almoço de ostras cruas, as melhores que eu tenho provado, regadas a Sauterne, mastigando (é o termo, porque não sou lá muito admirador de charutos) mastigando um charuto, que não sei bem se era de Havana, saí a fazer meu primeiro passeio, minha promenade matinal, começando pela Canal Street, a rua mais importante de Nova Orleans, que a divide em dois grandes bairros – o francês e o espanhol.

No cruzamento das ruas de St. Charles e Canal erguia-se a estátua de Clay. É esse o ponto principal da cidade e o de maior movimento nos dias úteis.

Parei defronte do monumento e consultei meu alcorão, quero dizer meu guia manual.

Estátua de Clay – Inaugurada solenemente no dia 12 de abril de 1860. Joel T. Harl, de Kentucky, o artista que deu forma e proporções à estátua, assistiu ao ato. O orador oficial foi Wen H. Hent.”

Maldito laconismo! Pouco adiantei com as explicações do livrinho.

A estátua é de bronze, sobre pedestal de mármore, e mede, aproximadamente, quinze pés ingleses de altura.

– Continuam as estátuas! – exclamei recordando as que vira em Barbados e Jamaica. Felizmente até agora não vira a de nenhum monarca. Veio-me então à memória aquela colossal massa de bronze que se ergue no Largo do Rocio, no Rio de Janeiro, em forma de um monarca escanchado num belo cavalo.

Tive pena de não ser aquele bronze aproveitado para outra coisa mais digna e útil.

– Que diabo! Aquilo é uma página de história pátria, refleti. – E continuei o meu tour.

A Canal Street é o centro comercial de Nova Orleans, é a Rua do Ouvidor daquela cidade, sem os grandes inconvenientes do nosso querido beco.

Larga, bastante espaçosa e comprida, oferece trânsitos especiais para a população, para trens, bondes e carruagens.

As ruas, na maior parte, são mal calçadas, principalmente para o interior da cidade.

É, sem dúvida, admirável semelhante incúria em se tratando de americanos do norte, entretanto, é uma verdade que não deve ser esquecida, para consolo de nossas municipalidades.

Na Canal se acham os melhores e mais sólidos edifícios, as mais fortes casas comerciais, os mais importantes armazéns da cidade, cafés, restaurantes, clubes, etc.

Convenci-me desde logo que os principais produtos industriais de exportação eram – açúcar e algodão, como bem presumira ao desembarcar, no cais, onde era enorme a acumulação de fardos desses dois gêneros.

De vitrina em vitrina, observando sempre, escrupulosamente, curiosamente, à cata de novidades estrangeiras, posso afirmar que nada vi, surpreendente... Ah! sim, vi umas graciosas caixeiras acudirem pressurosas e desenvoltas, com o desembaraço próprio de sua raça, aos compradores, coisa aliás muito simples, muitíssimo natural, mas não no Brasil, onde as senhoras estão eternamente proibidas de competir com o outro sexo na vida pública.

Parece-me que só neste país ainda não se observa nem se permite esse costume tão natural, tão próprio, tão eficaz mesmo, das senhoras pobres empregarem-se no comércio a retalho. Na Inglaterra, em França, na Alemanha, na Itália e nos Estados Unidos é hábito velho, ao que me consta, as senhoras servirem nos balcões, e é de notar que cumprem seus deveres com assombrosa perícia. Às nove horas da manhã, que digo eu! às seis horas, depois de ligeira refeição, encaminham-se para o trabalho quotidiano, felizes, satisfeitas, envolvidas em grossas capas de lã no inverno, a bolsa de um lado, sem sequer fazerem-se acompanhar. Vão direitinhas de casa para a loja ou escritório, sem que ninguém lhes dirija uma pilhéria, sem que ninguém as desrespeite, e, à noite, recolhem-se da mesma forma, sempre alegres, transpirando saúde, a face rubra.

Muitas vezes saem das lojas, mudam a toilette, fazem seu penteado, perfeitamente dispostas, e daí a pouco estão nos bailes, nos concertos, nos teatros.

Rara a casa de modas, o armarinho, a livraria onde se não encontra uma senhora exercendo as funções de simples caixeira, ou como guarda-livros, silenciosa na sua carteira, escriturando cuidadosamente o Caixa.

Em alguns estabelecimentos públicos, no Correio, por exemplo, grande parte do serviço é feito por senhoras. Esse edifício, digamo-lo de passagem, na Rua Canal, é de aparência extraordinariamente simples e desgraciosa. O serviço, porém, como em toda estação americana, é correto e sem demora.

Indivíduos de muitas nacionalidades acotovelam-se na grande rua.

Em Nova Orleans, como em quase toda a Luisiana, fala-se mais o francês que outro idioma qualquer, não sendo raro ouvirem-se negociantes. mesmo senhoras de elevada hierarquia falar, embora mediocremente, o espanhol.

Havia chegado o momento fatal, inevitável, de nos exibirmos também em língua alheia.

Pouco a pouco, nos íamos familiarizando com a população e com o idioma desse adorável canto da terra que o Mississipi banha.

O dia seguinte ao de nossa chegada a Nova Orleans (31 de março) estava designado para o encerramento da Exposição das Três Américas. Avisados desta solenidade, devíamos comparecer a ela em grande uniforme, incorporados.

Foi um dia essencialmente brasileiro esse. Nos convites para a festividade lia-se esta impagável gentileza: Brazilian day.

Todas as atenções convergiam para o Almirante Barroso (brazilian man-of-war).

O palácio da Exposição estava situado a alguns quilômetros fora da cidade, num de seus pontos mais pitorescos, o Upper City Park, à margem do Mississipi – largo edifício vistosamente adornado e do alto do qual se avistava toda a cidade e imediações.

Na manhã desse dia, por sinal chuvoso e coberto de nevoeiro, embarcamos em trem especial, que nos fora destinado pelo presidente da Exposição, Mr. Ed. Richardson, um ianque muito amável, todo cortesia, sempre com um belo e espontâneo sorriso a cativar a gente, correto sempre, irrepreensivelmente correto.

Embarcamos na Canal Street, defronte do Pickwick Club, em companhia de muitos oficiais da Guarda Nacional, de Mr. Richardson e de oficiais da corveta francesa l’Étoile, que se achava no porto de Nova Orleans, dos cônsules e outras sumidades do país.

O trem abalou como um raio, todo enfeitado de bandeirolas americanas, brasileiras e doutras nações, ao som de músicas e aclamações delirantes, rasgando, na sua marcha vertiginosa, o nevoeiro que caía sem cessar penetrando os vagões escancarados ao ar frio da manhã, soltando guinchos medonhos...

Durante o trajeto não me cansei de observar os sítios que o trem atravessava.

De um lado e doutro da linha estendiam-se vastas plantações de algodoeiros desfolhados pelo rigor do inverno, amontoados de neve, imóveis, fantasmas brancos no silêncio infinito dos descampados; casas de campo deliciosas para se passar o verão, trancadas à neve, muito brancas e desoladas, riam, como saudando a nossa passagem, e desapareciam rapidamente no horizonte esfumado.

É de ver a simplicidade reunida à graça que apresentam essas habitações: ver uma é ver cem, tal a uniformidade de sua arquitetura. Em geral são de madeira, pintadas de branco e cinzento, com seu terraço para as cálidas noites de verão, jardim e horta arranjados com admirável cuidado e bom gosto.

Absorvido completamente pelo aspecto variado da paisagem, sem prestar atenção ao círculo ruidoso dos colegas, eu (lembro-me bem) formava planos de vida sossegada, nalgum eremitério entre a eterna frescura das plantas e o amor eterno duma criatura querida.

Invejava os simples, os sertanejos, os homens do campo – esses para quem a vida corre sempre calma, porque seu coração não conhece outro amor senão o da esposa e o dos filhos, esses de quem Boileau dizia:

Heureux est le mortel qui du mond ignoré Vit content de soi même en un coin retiré...

E eu me transportava outra vez ao Brasil, outra vez eu tinha a nostalgia da pátria, a saudade vaga e inexplicável de minha terra natal.

Parecerá uma fantasia de poeta adolescente isto que acabo de dizer, mas é a verdade, a expressão sincera do que eu sentia ao atravessar a região que ia ter lá, ao palácio da Exposição.

A tristeza da neve comunicava-se ao meu espírito imprimindo nele não sei que despretensiosas ambições de silêncio e recolhimento. Alguém já procurou explicar a influência que exerce o estado higrométrico da atmosfera no estado psicológico do indivíduo.

Eu de mim só sei que o patriotismo, longe da pátria, duplica.

E fechemos esta espécie de parêntesis.

Uma comissão de cavalheiros, competentemente encasacados, veio receber-nos ao desembarque.

Entramos. Nossa entrada foi verdadeiramente triunfal.

Dentro e fora do edifício era grande a agitação. Ondas de povo entravam e saíam percorrendo o pitoresco Upper City Park.

Felizmente “levantou o tempo”, como se costuma dizer.

Ao assomar à porta do grande salão de honra o primeiro oficial brasileiro, o comandante do Barroso, ao lado do cônsul e do presidente da Exposição, a orquestra de professores, brilhantemente organizada, rompeu lá dentro o hino nacional americano (não conheciam o nosso hino aliás tão vulgarizado), os espectadores que enchiam o vasto recinto ergueram-se, e uma salva estrepitosa de palmas acolheu o resto da oficialidade.

Houve um momento de verdadeiro delírio, em que todos batiam palmas sem interrupção, levantando vivas ao Brasil.

Serenado o entusiasmo, um entusiasmo indescritível, apoplético, tomou a palavra Mr. Richardson, que proferiu o discurso de encerramento, saudando a armada brasileira.

Seguiu-se na tribuna o orador oficial, que, num improviso eloqüentíssimo, patenteou a necessidade de uma união entre todas as nações americanas, desenvolvendo largamente as vantagens que daí proveriam a todas elas.

Falou também o governador da Luisiana, e, finalmente, os srs. Salvador de Mendonça e Saldanha da Gama, cujas palavras foram cobertas dos mais significativos aplausos.

Terminada a cerimônia oratória, foi-nos franqueado o edifício da Exposição, que percorremos examinando com interesse os diferentes pavilhões industriais.

O Brasil – é triste dizê-lo – fizera-se representar de modo bem insignificante.

Brilharíamos pela ausência, se o Governo não tivesse a lembrança de mandar o Almirante Barroso.

Amostras de madeiras, café em grão, fumo, artigos de borracha, constituíam os principais produtos brasileiros expostos à curiosidade dos visitantes de quase todas as partes do mundo civilizado. O pavilhão do Brasil deixava-se ficar em plano inferior aos das outras nações, como se fôssemos um pobre país, cujos produtos não valessem a pena de ser expostos num certame internacional!

Daí, talvez, o assombro dos americanos ao verem o Almirante Barroso, esse esplêndido vaso de guerra de envergadura possante, capaz de resistir aos mais fortes temporais e que eles, os estrangeiros, duvidavam fosse obra nossa.

– Como? Pois no Brasil também se fabricam navios de guerra? Está muito adiantado o Brasil!

E repetiam com um ar de dúvida e de ironia medindo de alto a baixo e de popa à proa o majestoso cruzador, que balouçava de leve sobre o Mississipi:

– Está muito adiantado o Brasil!

Entretanto o México, a América Central e as repúblicas sul-americanas, sem os recursos invejáveis da grande nação, sobressaíam admiravelmente. O pavilhão do México, sobretudo, desafiava a maior parte dos outros não só em abundância de artigos, mas, principalmente, em beleza e bom gosto, em elegância e riqueza.

Escusado, parece, falar do importante lugar que coube aos Estados Unidos. Que profusão de máquinas e instrumentos industriais de invenção puramente americana! Ali mesmo, à vista do observador, fabricavam-se os mais curiosos objetos de fantasia e de uso doméstico; o linho, o algodão, a seda – eram tecidos rapidamente aos olhos de todos.

Imagine-se agora o ruído, a algazarra, a movimentação que devia reinar ali dentro daquele imenso edifício, certamente muito longo de ser comparado aos palácios de exposições universais, mas ainda assim um dos maiores que se tem levantado nesse gênero.

Para dar uma idéia de suas dimensões – não o chamaremos vaticano da indústria para não exagerar – basta dizer que o salão de música – music-hall – acomodava 11.000 pessoas, inclusive uma vasta área para 600 figuras.

Impossível descrever as amabilidades, as gentilezas que nos foram prodigalizadas largamente pelas adoráveis americanas de Nova Orleans nessa festa democrática de confraternização internacional; recordar as frases deliciosas, os galanteios irresistíveis...

O que posso afirmar é que o brazilian day há de perdurar por muito tempo no coração daqueles que tiveram a felicidade de assistir essa belíssima festa.

Dias depois voltei ao palácio da Exposição, sozinho, como simples curioso que não tivera tempo bastante para examinar tudo no pequeno espaço de doze horas.

Nada mais restava senão o esqueleto nu do edifício em via de demolição. Todos os objetos tinham sido retirados com assombrosa rapidez. Operários em mangas de camisa martelavam grandes caixões, assobiando monotonamente, enquanto outros carregavam pesados volumes contendo os últimos espécimens da indústria americana.

Voltei imediatamente com um ar compungido de quem acaba de acompanhar um enterro, lamentando o tempo perdido e exclamando de mim para comigo:

– Ah! americanos duma figa, sois um povo excepcional!

Agora uma pergunta ingênua: Por que é que o Brasil, com os numerosos recursos que tem à mão, timbra em ocupar lugar secundário em quase todas as Exposições a que concorre?

Indiferença, talvez, simples indiferença de nossos governos.

Na célebre Exposição de Filadélfia não sabíamos à última hora como e onde acomodar os produtos deste país, em conseqüência de não ter o governo mandado construir um pavilhão especial.

Contentamo-nos em enviar objetos bastante conhecidos, não fazemos seleção na escolha deles, não nos importa o modo como devam ser acondicionados.

Na Exposição de Viena ainda o Brasil teve de ocupar lugar pouco lisonjeiro, e se alguns de seus produtos principais tiveram a felicidade de ser premiados foi isso devido, não ao governo, mas tão-somente a esforços de muitos negociantes do Rio de Janeiro e do Pará.

Anuncia-se para o ano vindouro uma Universal Great Exhibition, nos Estados Unidos, cujo sucesso irá rivalizar, talvez, com o da Exposição Universal realizada há meses em Paris e notável pela colossal e tão célebre Torre Eiffel. Nenhuma razão assiste para que a grande nação da América do Sul, o Brasil, não se faça representar com todo o brilho de sua incontestável riqueza.

Agora que somos república, torna-se duplamente preciso que patenteemos ao mundo inteiro a infinita variedade de nossas produções agrícolas, a opulência invejável da flora brasileira e da indústria já bastante adiantada deste belíssimo país, cuja natureza extasiou Humboldt, Agassiz e tantos outros sábios da Europa.

Se cada Estado souber cumprir seu dever não poupando esforços para esse nobilíssimo fim, certo desta vez não teremos que corar perante as outras nações como nos tempos do anacrônico império do sr. d. Pedro II.

A Grande Exposição Industrial de Nova Orleans prolongou-se até ao Almirante Barroso. O belo cruzador brasileiro começou desde logo a ser o alvo dos curiosos de todas as nações ali representadas.

Compreende-se o vivo interesse do povo em assuntos desta ordem.

Não havia na cidade quem não soubesse que estava no porto um navio de guerra do Brasil, e este fato por si só era bastante para que toda a gente ardesse em desejo de vê-lo de perto, de o percorrer dum extremo a outro.

– Quantos canhões traz? perguntava-se. A máquina quantas milhas vence por hora? Quantas rotações por minuto?

E quando afirmávamos que a máquina do Barroso era de ferro Ipanema e doutros metais brasileiros, que todo o navio, da popa à proa, era construção inteiramente nacional, subia de ponto a surpresa dos. nossos vizinhos.

O quê! No Brasil já se constroem navios de guerra? – It is impossible!... E toda a população, tomada de um quase espanto, duvidando, talvez, da nossa habilidade, afluía ao cais.

Todo o cruzador, desde a câmara do comandante até ao alojamento dos marinheiros, desde o tombadilho até ao porão, foi exposto à curiosidade pública.

O sexo gentil, com especialidade, repetia suas visitas.

Desde as oito horas da manhã, ao içar-se a bandeira, começavam a atracar lanchas a vapor e escaleres cheios de visitantes de ambos os sexos.

Grandes lanchas iam e vinham do cais para o cruzador e do cruzador para o cais, continuamente, incessantemente, apinhadas de passageiros, que pagavam 5 cêntimos de ida e volta. Cada uma trazia à proa, em letras esparramadas e vivas, a senha: – Brazilian man-of-war.

À tarde, depois duma faina acabrunhadora de receber famílias e percorrer duas, três e mais vezes o navio, dando explicações, descrevendo aparelhos e maquinismos com uma paciência de pedagogos, íamos à terra, distrair nos cafés, nos teatros, nos bailes, tanto mais quanto multiplicavam-se os convites para todas as diversões públicas e familiares.

As famílias com que íamos entretendo relações de amizade exigiam que fôssemos quotidianamente a suas casas, como se nos sobrasse tempo para isso; e, força é confessar, dispensavam-nos um tratamento quase paternal.

A melhor de todas as recepções que tivemos, não obstante o caráter oficial que a revestia, foi a do governador da Luisiana, esplêndido baile no Royal Hotel, no dia 8 de abril, ao qual compareceram todas as autoridades civis e militares da cidade em uniforme de gala.

A casaca, o clak, a gravata de seda branca, o vestido decotado até aonde permite a decência, confundiam-se nos salões do hotel ricamente adornados, cheios de luz, escancarados de par em par como um palácio em festa.

A jovem oficialidade brasileira, exímia em cotillons, expandiu-se a valer nessa magnífica soirée de inverno, fria e clara, constelada de botões de ouro e brilhante, longe da pátria, longe de suas famílias, mas no seio dum povo que nos amava deveras.

Sarau principesco esse de que ainda sinto o saibo esquisito ao traçar as reminiscências da minha primeira ausência do Brasil.

Mesa abundantíssima e franca, desde a deliciosa sopa de ostras com molho inglês ao mais fino champanha Clicot, com escala pela maionese de lagosta, fresca e picante, pelo suculento poisson à l’italienne, rubro e apetitoso... e tantos, meu Deus, e tantíssimos outros pratos maravilhosos inventados pela gula epicurista de todas as gerações desde Lúculo até à nossa.

Volvemos para bordo seria madrugadinha, trôpegos, cansados e sonolentos, pálpebras caídas, suplicando a frescura dum travesseiro, dentro de nossas invioláveis capas da Bretanha.

Uma noite brasileira com todos os excessos da nossa educação e do nosso caráter; saudosa noite, a primeira de minha vida em que me enfronhei numa casaca irrepreensivelmente bem-feita...

O Barroso, diluído na escuridão da noite, aproado à correnteza que descia rio abaixo cantando uma melopéia de lenda, o Barroso – pedaço da pátria longínqua – acenava-nos com a sua luzinha amarela palpitando às rajadas do vento frio.

...E os bailes repetiam-se e nós vivíamos cercados da alegria comunicativa desse povo americano eternamente jovial!

Falemos ainda das mulheres de Nova Orleans.

Belas quase todas, amáveis e insinuantes, cheias duma inexcedível graça que arrebata e seduz voluptuosamente.

As créoles, ah! as créoles... ninguém as vê que não as fique desejando.

Caracteres principais: tez morena, com uns tons de rosa na face, olhos muito negros, criminosos até ao homicídio flagrante, pequenas, delicadas, flexíveis, aéreas quase, conjunto meigo e melancólico, muito sensíveis... A vaga expressão de seu olhar aveludado derrama não sei que misterioso fluido, cujos efeitos traduzem-se em voluptuosas sensações, secretos desejos de posse absoluta...

Como diferem as chamadas créoles das verdadeiras americanas!

Estas – muito rubras, cabelo cor de ouro, olhos azuis – são frias, quase indiferentes ao amor, egoístas de sua beleza de estátua, vivendo para o trabalho e para a família; aquelas – adoráveis com as suas linhas ideais, com a vaga e comunicativa melancolia de seu olhar voluptuoso – fazem lembrar um povo místico e cheio de bondade dalgum país nebuloso e desconhecido...

É curiosa a origem da população créole de Nova Orleans. Ela descende na maior parte de aventureiros canadenses e courreurs des bois – gente ousada e valente, que emigrou do norte para o sul da América setentrional, por terra, através de inóspitos desertos povoados de selvagens perigosíssimos. Esses aventureiros chegaram à Luisiana sem famílias, depois de uma viagem cheia de trabalhos e fadigas, descansando, por fim, às margens do Mississipi. A Luisiana era então colônia francesa, e o rei, apiedando-se da sorte dos infelizes imigrantes, que viviam solteiros, longe de sua pátria natal, sujeitos a uma castidade quase absoluta, quis aproveitá-los para a colonização. Nesse intuito mandou vir de Paris um carregamento de mulheres, prisioneiras da Salpetrière, que chegaram a Orleans em ferros, e onde foram postas em liberdade e entregues à concupiscência da população masculina.

Isso, porém, não trazia vantagens à colônia, que precisava de gente. Os canadenses satisfaziam seus apetites carnais sem que aumentasse o número de habitantes – fato este que não passou despercebido ao diretório da Companhia da Luisiana, cujo principal interesse era a multiplicação das almas.

Nestas condições foram dadas outras providências, e, em 1728, chegou a Nova Orleans um grupo de raparigas, conhecidas na Luisiana histórica pelas filles de la cassette ou casket girls, mandadas pelo rei para o convento das Ursulinas a fim de se casarem licitamente. A experiência foi coroada de sucessos. Em breve tempo começou a crescer a colônia e os descendentes da cassette tinham orgulho em o serem.

Tal foi a origem humilde dos primeiros filhos nativos da Luisiana.

Seu sangue é uma mistura de sangue canadense e sangue francês.

A mulher americana do Norte é geralmente bem-educada. Muitas vimos em Nova Orleans, que conheciam e falavam dois, três idiomas, além do vernáculo.

Preocupam-se pouco com bailes e modas, trajam com simplicidade e elegância, sem afetação, sem a natural coquetterie da mulher parisiense. Seu divertimento predileto é a música.

O proverbial desembaraço das americanas manifesta-se a todo instante. Prontas sempre a repelir com dignidade um ataque à sua honestidade, elas se dirigem aos homens em qualquer parte, na rua ou nos salões, com a mesma simplicidade com que o fazem às amigas. O respeito entre os dois sexos, nas classes superiores, é um dos principais caracteres do povo americano. Habituados, homens e mulheres, a uma educação livre, vivendo uns e outros em comum desde criança, as americanas não se confundem nunca diante dos homens.

Nos Estados Unidos o belo sexo é respeitado como em parte alguma.

Os pais depositam confiança ilimitada nas filhas. Deixam, sem escrúpulo, que elas saiam a passeio, de carro ou a pé, só ou em companhia de um amigo da casa, na certeza de que elas saberão zelar a sua castidade.

Os raptos e os defloramentos são raros, não sei se devido ao temperamento da raça ou se à inflexibilidade da Lei. O que sei é que, se um rapaz gosta de uma rapariga de família reconhecidamente honesta, não tem mais do que namorá-la escandalosamente às barbas de quem quer que seja, à vista do mundo inteiro, beijá-la sem-cerimônia, como se fossem irmãos, e, daí a pouco, ei-los casadinhos de fresco, bras dessus, bras dessous.

E ai! daquele que violar os preceitos decretados pelo governo! Imediatamente vê-se dentro deste triângulo medonho: o casamento, o dote, ou a cadeia. A Lei é inexorável e a polícia exerce uma vigilância sem igual.

Informados de tais particularidades do caráter americano, nós, brasileiros, pusemos um dique ao nosso temperamento de meridionais, evitando o mais possível os compromissos amorosos, as manifestações de simpatia por essas adoráveis ladies, que, a falar verdade, infligiam-nos os maiores suplícios com o maravilhoso poder de suas qualidades físicas.

Tântalos do coração, éramos obrigados a conter os ímpetos ferozes da carne que nos aguilhoava implacavelmente no delicioso convívio das louras misses e das ternas créoles.

Estão verdes, não prestam – era a nossa divisa e destarte escapávamos sempre aos ataques de tão perigoso inimigo...

O dia 14 de abril (deixem passar a precisão cronológica) estava destinado pelo comandante do Barroso para uma excursão fluvial, científica, à foz do Mississipi, onde iríamos observar de visu os importantes trabalhos hidráulicos, que aí se procediam sob a inteligente direção do notável engenheiro americano Mr. Jas. B. Eads, um velho respeitável, encanecido no serviço da engenharia, e cujo nome está ligado a muitas obras notáveis de seu país.

Às onze horas da noite a barca de passeio Keokuk largou de Nova Orleans, rio abaixo, conduzindo a turma de guardas-marinha, alguns oficiais e o comandante, com destino às Jetties.

Uma excelente embarcação a Keokuk, espécie de pequena cidade flutuante, muito larga e espaçosa, avantajando-se em dimensões aos vapores da Companhia Brasileira. Três pavimentos: o superior, coberto por um grande toldo, onde os passageiros podiam fumar à vontade; o do meio formando um salão-refeitório, ao lado do qual ficavam os camarotes e o porão, para mercadorias; rodas à popa, sistema de locomoção que não conhecíamos; duas chaminés, e máquina possante. Em semelhantes condições éramos capazes de fazer a volta do mundo em oitenta dias...

Passamos a noite sobre o rio, navegando à meia força, ao sabor da correnteza.

Lá íamos outra vez para a região dos mosquitos! Preparamo-nos para dar quixotesca batalha, apesar da falta impreenchível do nosso querido companheiro, o barbeiro de Sevilha, quero dizer o barbeiro de bordo, o impagável espanhol que tanto nos divertira na caça aos mosquitos.

Pela manhã, cedinho, estávamos em Port-Eads, defronte do escritório central do respeitável engenheiro.

Café, biscoitos..., e desembarcamos.

O bom velho já nos esperava com o seu belo ar de urso doméstico, barba muito branca, de barrete e óculos, entre os seus mapas coloridos e os seus prospectos representando steamers e as jetties.

– Folgo bastante em lhes poder mostrar o plano da empresa há tantos anos iniciada sob minha direção, disse ele com um amável sorriso de bonomia patriarcal.

E começou a desenrolar diante de nossos olhos uma série infindável de cartas hidrográficas, mapas, desenhos...

Vale a pena se admirar essa obra monumental.

Tratava-se de cavar o leito do rio, num dos braços de sua foz, por modo a efetuar-se a navegação livremente, na linha da correnteza, e terem entrada embarcações de grande calado, desenvolvendo-se assim o já notável comércio de Nova Orleans. Com esses trabalhos o porto irá melhorando consideravelmente, sendo para notar o grande movimento de navios que entram e saem durante o dia.

O rio tem pelo menos 16.000 milhas navegáveis que os americanos dia a dia tratam de aproveitar dando saída a inúmeros produtos do fertilíssimo vale do Mississipi, o qual abrange cerca de 768.000.000 jeiras das mais ricas terras do mundo, como eles lá dizem. Sua embocadura é, portanto, a passagem natural de todos aqueles produtos.

Desde 1726 têm sido empregados esforços inauditos a fim de se aprofundar essa parte do famoso rio; mas, foi em 1875 que o governo dos Estados Unidos contratou definitivamente esse serviço com Mr. Eads, e é bem provável que em futuro não muito remoto esteja o porto franqueado a todos os navios do mundo, graças à perseverança e aos esforços de hábeis engenheiros.

A visita foi curta, mas proveitosa.

Tomamos novamente a barca, e às cinco horas da tarde atra­cávamos no forte Jackson, velha fortaleza abandonada, à margem direita do rio. Lá estava ainda, imóvel e muda, a descomunal artilharia que Farragut, o velho almirante, comandara na guerra sanguinolenta dos separatistas, que terminou com a tomada de Nova Orleans.

Os velhos canhões dormiam seu sono de bronze, lá dentro, nos corredores escuros como os de uma Bastilha, e a nós, estudantes de história naval, inspiravam não sei que respeito sagrado. Perante eles falávamos baixo, como para não os acordar...

A fortaleza é grande, mas só tem a importância arqueológica que a história lhe empresta; não resistiria, talvez, às modernas baterias. Opulenta vegetação rasteira cresce-lhe em derredor. O seu aspecto é sombrio como o de um cemitério: as grossas paredes denegridas e o silêncio que a cerca dão-lhe um cunho misterioso de cripta subterrânea e produzem no visitante uma incômoda sensação de abandono e tristeza. Em cada canto parece surgir a sombra de um confederado clamando vingança.

Retiramo-nos em marcha fúnebre, calados e supersticiosos...

Dormimos ainda essa noite sobre o rio para amanhecermos em Nova Orleans. Já estávamos com saudade do Barroso.

Continuaram as manifestações de amizade ao Brasil.

O neto do imperador, jovem e irrequieto, embalde procurava fugir às insistências da aristocracia local e por diversas vezes desejou ter nascido simples burguesinho, como qualquer de seus colegas.

E digamos aqui, muito à discrição, Sua Alteza podia ser um belo moço, um digno cavalheiro, um excelente amigo e camarada, mas... Sua Alteza era um péssimo príncipe. A sua grande aspiração era a vida livre, sem peias, essa vida alegre e boêmia que se esgota depressa nos cafés-concertos e nos restaurantes.

Não gostava de continências e desprezava o juízo imbecil dos que lhe apodavam de estróina. O certo é que esse juízo em nada o comprometia perante o high-life americano que o estimava suficientemente. Ele era o representante imediato da família imperial, era o alvo predileto de todas as manifestações ao Brasil na grande festa internacional.

Seria ocioso, senão monótono e fatigante, descrever, uma por uma, em todos os seus detalhes, com todas as suas cores mirabolantes, essas manifestações, profundamente fraternais e democráticas, com que nos recebeu a distinta sociedade de Nova Orleans. Bailes, regatas, passeios improvisados, concertos, brindes – e não raro a tolda do nosso belo cruzador converteu-se em esplêndido salão de baile, acordando a sons de orquestra e gritos de alegria o silêncio agreste das margens do Mississipi.

É este o único consolo daqueles que andam no mar em serviço da pátria – o repousar em terra amiga. Vão-se as saudades para dar lugar à franca expansão dos corações: a alma do marinheiro transforma-se, como por encanto, num hostiário de alegrias de uma ingenuidade incomparável, e ele ri com os outros, canta e sente-se tão bem como se estivesse em seu próprio país, no meio de seus amigos e de seus parentes. Encantadora ilusão, que só dura enquanto ele não abre as velas mar em fora nessa interminável derrota de argonautas que vão atrás do bezerro de ouro da felicidade...

Não direi, não, o que nos divertimos, as múltiplas sensações por que passou o nosso espírito nessa Luisiana que o Mississipi embala com o ritmo nostálgico de suas águas cor de barro. Seria desdobrar a natureza humana tão complexa e misteriosa.

Vamos adiante, consultemos o caderno de notas.

25 de abril... – Estávamos na Páscoa, a festa risonha e popular da ressurreição do Cristo. Até então nenhum desgosto, nenhuma tristeza, nenhuma mágoa toldara o céu puríssimo de nossas alegrias. Vagávamos em mar de rosa, egoístas de felicidade, sereno o espírito, aberto o coração a todos os influxos bons. Boa vida, por um lado, essa de quem viaja sem grandes preocupações, no bojo de um navio patrício.

Eis que, de repente, uma nota dissonante e sombria chamou-nos à realidade pungente da vida humana: morrera um nosso companheiro de bordo, o Leocádio..., que digo eu? um desses heróis anônimos que usam gola ao pescoço, um pobre marinheiro que a fatalidade arrebatou de sua terra natal para morrer tísico em país estranho.

Ninguém imagina a dolorosa impressão que produz a morte de um companheiro de viagem longe da pátria, num hospital desconhecido.

Fez-se o enterro com todas as honras devidas ao obscuro soldado e velho marinheiro, nascido, por assim dizer, sobre o mar e educado na escola das tempestades. Tinha sessenta anos. Era o “cozinheiro da proa”. Sobre o seu corpo foi estendida a bandeira nacional brasileira como símbolo da pátria reconhecida.

Nesse dia, conforme já estava assentado, toda a guarnição do Barroso desembarcou a fim de assistir à missa solene da Páscoa na catedral de S. Luís, o mais importante dos templos católicos da cidade, situado na Rua Chartres.

Bem que antiga, essa igreja parece resistir ainda por muito tempo. Foi o primeiro edifício católico erigido em Nova Orleans pelos capuchinhos, em 1718, ao tempo da fundação da cidade. Tomou o nome de S. Luís em homenagem ao rei da França.

Mais tarde, em setembro de 1723, desabou sobre a nascente cidade, cuja população elevava-se a 200 almas, formidável ciclone, que arrasou todos os edifícios, causando uma mortandade incalculável. Narram os cronistas que foram arrojados à costa três navios que se achavam fundeados no porto. Em breve, porém, a cidade foi reedificada, sendo em 1724 reconstruída a igreja, essa mesma que ainda hoje ergue seus torreões vetustos na Rua Chartres.

Naquele ano o território de Nova Orleans foi dividido em três grandes distritos sob a administração dos capuchinhos, dos carmelitas e dos jesuítas. De então em diante multiplicaram-se os edifícios religiosos, igrejas, palácios episcopais, conventos, etc.

O convento das Ursulinas data igualmente da fundação da cidade e é um estabelecimento católico à maneira do de Ruão conhecido por esse mesmo nome.

É um dos últimos conventos que ainda existem nos Estados Unidos. Consta de três andares e ergue-se à margem do rio, para onde abre suas janelinhas através das quais se vê passar a sombra fantástica das religiosas.

Um belo povo, o de Nova Orleans – jovial, comunicativo, hospitaleiro e sincero. A ele devemos os melhores dias dessa longa viagem ao país sugestivo e excepcional dos ianques, universalmente querido e respeitado por sua grandeza industrial e por suas belas tradições de energia e patriotismo.

E entanto aproximava-se o dia da partida: íamos embora rumo de norte, levando conosco a imorredoura lembrança do Meschasebé, “le roi des fleuves”, e das legendárias terras que Chateaubriand poetizara nas suas inimitáveis Viagens. Restava-nos, porém, o consolo de que ainda iríamos à sonhada Nova Iorque dos trens aéreos e das empresas colossais.

Corações à larga, rapazes! Um homem é um homem!...

A saudade, porém, não é uma simples figura de retórica, pelo amor de Deus! É um estado d’alma como a nostalgia, como o amor, como a tristeza, como a dor...

A saudade existe, é um fenômeno perfeitamente real e determinado na ordem dos fatos psicológicos. Não nos venham dizer outra coisa os senhores neologistas fin de siècle. Por ter sido cantada em prosa e verso, nem por isso a saudade deixa de ser o que é na verdade – uma comoção nervosa interessando o mais delicado e sensível do coração humano, uma dolência vaga, flutuante n’alma, intraduzível como um sonho nebuloso, tocada de doçura e ungida de tristeza...

Por que uma pessoa tem barba no rosto e já passou dos vinte anos, segue-se que não deve ter mais saudade, que deve ser um insensível, uma massa inabalável?

Absolutamente não. A lágrima, expliquem-na como quiserem os doutores da ciência, há de existir enquanto palpitar em nós esse músculo que se chama coração, enquanto a humanidade sofrer e houver um motivo sentimental para comover os seres dotados de inteligência. É talvez uma questão de mais ou menos intensidade nervosa. Por que tudo é egoísmo neste século essencialmente palavroso e mercantil, deve-se concluir que, em futuro não muito longe, a raça humana se transforme numa como esfinge, sem afetividade possível, ou que o sistema nervoso passe a exercer funções negativas na fisiologia do porvir? Não o acreditamos...

A lágrima há de existir per omnia secula, e a saudade terá sempre a sua lágrima, como sentimento superior às nossas forças.

Chorar sobre o túmulo de um amigo é tão natural, tão humano como chorar porque nos separamos de um ente querido. Não desejo agora, por uma veleidade de rabiscador sentimentalista, fazer a psicologia da lágrima. O que eu quero é confessar, embora disso me advenha o qualificativo de piegas, que não podíamos – eu e a maior parte dos meus colegas – pensar em deixar Nova Orleans sem um demorado frêmito de pálpebras e uma névoa úmida no olhar triste...

E, dizendo isto, está dito o que nos merecia a hospitaleira população daquela cidade.

Entretanto, ainda não estavam satisfeitos os luisianenses. Como última prova de verdadeira estima o Luisiana Jockey Club deu-nos um magnífico baile na véspera da partida.

Tenho ainda na memória essa derradeira impressão que me ficou de Nova Orleans. Fazia um luar soberbo, um luar tropical, um luar de legenda, tão límpido e tão claro que se não viam as estrelas... O Jockey Club, embaixo, fazia um efeito surpreendente com a sua iluminação de mil cores rodeando a grande raia das corridas, com o seu aspecto fantástico de quermesse noturna, salpicado de pontos luminosos e galhardetes em miniatura, imóveis na calmaria da noite.

Em derredor a mudez solene da floresta acordada de instante a instante pelo eco da música cortando o ar calmo.

Perto do clube tinha-se armado um grande estrado para a dança ao ar livre, sem teto, sem toldo, sob o luar.

Cruzavam-se os pares, num turbilhão impetuoso, ao som das valsas americanas e dos galopes à brasileira.

Nessa noite, e pela primeira vez, conversei longamente com uma créole, Mlle... já me não lembra o nome, um tipo ideal de Valquíria de olhos negros com um extraordinário brilho nas pupilas – microscópica, delgada, flexível, cintura extremamente fina, certo jeito adorável de pender a cabeça para os lados, num abandono irresistível... Toda de preto.

Dançamos uma quadrilha e ela convidou-me a passear no Prado.

Lá fomos, braço dado, eu muito circunspecto, teso dentro da minha farda de guarda-marinha, levado quase que maquinalmente por essa formosa dama de olhos negros e sedutores, arranjando a custo umas frases de efeito, que eu não teria coragem de reproduzir; ela, desenvolta e pequenina, muito leve na sua toilette escura, conduzindo-me naquela esplêndida promenade au clair de la lune, para onde... não sei eu...

Perguntou-me se as brasileiras eram bonitas e ricas, se no Brasil dançava-se muito, e que tal nós tínhamos achado as americanas. Explicou-me então a diferença entre créoles e americanas propriamente ditas.

Respondi-lhe como pude, exaltando as nossas patrícias, “belas e ricas, como não há iguais no mundo...”

Paramos. Tínhamos andado seguramente dois quilômetros e não víamos agora senão a parte superior do clube, por trás do arvoredo, toda iluminada ao longe, como uma cousa fantástica.

À proporção que nos afastávamos dos nossos companheiros a conversa tornava-se menos animada, e, por fim, já seguíamos calados, como dois sonâmbulos, no silêncio da noite enluarada...

Depois é que vimos a distância que nos separava do centro da festa.

Na volta encontramos outros pares em doce confabulação, como nós, longe do ruído.

Despedi-me para tomar o trem, e ela, a dama dos olhos negros, disse-me um good-bye tão sentido e tão sugestivo que eu não tive jeito senão perder o trem.

Good-bye! Nada mais doce e expressivo que estas simples palavras em boca de americana. Uma inglesa talvez que as não pronuncie com tanta suavidade, com tão sonora flexão, com tanto sentimento. Good-bye... Há qualquer coisa de aveludado no timbre cantante com que elas, as misses da Nova Inglaterra, dizem a sua frase sacramental de despedida. O nosso adeus, aliás tão lacônico e singelo, não exprime tanto, não caracteriza tão bem esse estado d’alma que se denomina – saudade.

E, a propósito de – Good-bye, vem-me à memória um episódio de uma simplicidade primitiva e comovente que a minha indiscrição de observador tagarela não deixa calar.

Esqueçamos a rapariga de olhos negros e narremo-la em toda a sua verdade.

Entre os nossos companheiros de viagem havia um, cuja vida estava cheia das mais interessantes aventuras amorosas. Chamava-se Manuel..., o apelido de família não nos interessa. O jovem oficial de marinha, moço de bela aparência e excelente coração, apaixonara-se por uma Eva Smith muito conhecida nos cafés-concertos de Nova Orleans. Até aqui nada mais natural. Ela vira-o uma vez diante de um bock, seus olhos se encontraram, e, desde logo, Manuel ficou sendo a menina dos olhos de Eva. Amaram-se por muitos dias, gozaram todas as delícias imagináveis, ele proibiu-a de andar nos cafés, ela proibiu-o de olhar para outras raparigas, e assim corresponderam-se de comum acordo, sem que nunca houvesse entre eles a menor desavença.

– Leva-me para o Brasil, Manuel... (ela só o tratava por Manuel.)

– Sim, filha, depois havemos de ver isso...

1 love you very much...

Oh! yes... 1 think so...

Viviam felizes como um casal de noivos, longe da cidade, num quarto de hotel, onde havia do melhor vinho e da melhor sopa.

Um belo dia:

Ele – Olha, sabes? O Barroso suspende ferro amanhã.

Ela (surpreendida) – What do you say!?

Ele (trincando um rabanete) – É o que lhe estou dizendo. Amanhã, por estas horas, o Manuel vai sulcando o golfo do México.

Ela (cruzando um talher) – Impossível! Por que já não me disseste?

– Para te poupar o desgosto...

– Oh! não, meu querido Manuel, é história, tu não vais amanhã...

– Assim é preciso. São coisas da vida...

– Não, não, meu amor (my love) tu não vais, porque eu não quero, do contrário faço escândalo, estás ouvindo?

E ao dizer estas palavras, a pobre Eva deixou cair uma lágrima...

Silêncio. Manuel continuou a jantar sem interrupção, muito calmo, com uma fleuma verdadeiramente britânica. Eva, coitada, abriu a soluçar baixinho, fungando a mais não poder, sem se aperceber de que estava fazendo de um guardanapo um lenço.

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Último ato, e aqui é que está o apropósito.

Cenário: O Mississipi pardo e murmurejante sob a luz moribunda do crepúsculo.

O Almirante Barroso, imóvel sobre o rio, com a sua mastreação muito alta, fumega. Ouve-se barulho de cabrestante e de amarras caindo no convés. Tremula a bandeira brasileira na carangueja da mezena... Últimos preparos.

No cais agita-se uma multidão compacta.

De repente surge à tona d’água o cepo da âncora enlameada, pingando um lodo cinzento, e o navio começa a andar vagarosamente.

A guarnição sobe às vergas, alastrando-se de um bordo e doutro, e acena para terra ao som de vivas!

Agitam-se lenços na praia, correspondendo às saudações de bordo. Um frêmito percorre os que estão no cruzador...

É o momento decisivo.

Um grande rebocador, The Warrior, vistoso e arquejante, acompanha as manobras do Barroso, à distância de uma amarra, solitário e sombrio, envolto numa nuvem de fumaça, e em cuja tolda assoma a figura desgrenhada de uma mulher.

O cruzador segue à adiante, majestoso e lento, descrevendo uma bela curva no espelho da água, e torna a passar defronte da cidade, apressando a marcha.

As religiosas das Ursulinas lá em cima, nas janelinhas do convento, acenam também com os seus lenços brancos.

E, no silêncio da tarde que a névoa melancoliza, repercutem estas palavras tocadas de saudade:

Good-bye!

Good-bye! repete a mesma voz aveludada como um carinho...

Olhamos uns para os outros comovidos.

Quem seria que se lembrara de levar tão perto sua despedida aos brasileiros?

A voz era de mulher, não restava dúvida...

Com efeito, reconhecemos na figura desgrenhada que víamos a bordo do rebocador, Eva Smith, a amante de Manuel..., a apaixonada rapariga muito conhecida nos cafés-cantantes de Nova Orleans, cujo entusiasmo pelo nosso companheiro tinha chegado a seu auge.

E quando o Barroso desapareceu na primeira curva do rio, ainda ouvíamos, tomados de uma tristeza infinita, a mesma voz cheia de desespero, agora abafada pela distância, soluçada e plangente:

Good-bye, Manuel! Good-bye!...

E dizer que a Dama das Camélias é uma exceção na vida sentimental das filhas de Eva!..

O nosso Armando, que aliás nunca pretendeu regenerar ninguém, deixou-se cair numa saudade profunda, num longo adormecimento da alma, de que só acordou no alto-mar, quando já não se avistava um ponto sequer da costa americana.

Abençoada ilha de Cuba, direi muito pouco de teus aspectos, de teus costumes, de tua gente, de tua civilização, mesmo porque a nossa demora em tua bizarra capital, foi curta como um sonho bom. Um epicurista diria que apenas tivemos tempo de mastigar um havana, desses que fabricas aos milheiros e que fazem a delícia dos consumidores do bom tabaco.

Belas cubanas de olhos rasgados e sensuais, acreditamos piamente nas coloridas descrições em que viajantes de todas as nacionalidades gabam as vossas preciosas qualidades físicas, os vossos olhos ardentes, os vossos cabelos negros, a vossa graça incomparável e sedutora... Nos oito curtos dias que passamos em vossa pátria não tivemos a felicidade rara, a gostosa satisfação de vos contemplar senão de relance, por um acaso verdadeiramente providencial.

Dizem outros que sois belas e irresistíveis, que dançais divinamente o salero, que possuís todos os encantos possíveis, e isto é quanto basta para que dispenseis o desmaiado elogio dos que não tiveram a fortuna de confabular convosco.

E o leitor, por sua vez, contente-se em saber que Havana, com suas calles irregulares, estreitas e pacatas, é uma pequena capital sem capitais, sobriíssima de diversões populares, quase monótona, mas relativamente adiantada.

Não se lhe pode negar certo progresso material e mesmo uma ponta de civilização européia.

Encontram-se nela importantes estabelecimentos comerciais, grandes tabacarias que fornecem fumo e seus preparados a quase todos os mercados do globo; excelentes botequins, poucos hotéis.

O célebre professor Agassiz, no roteiro de uma de suas excursões à América, disse que toda a arquitetura brasileira é pesada e sombria; eu acrescentarei que no mesmo gênero são as edificações de Havana, o que não é para surpreender numa cidade antiga, onde se observa ainda o cunho tradicional da velha metrópole espanhola.

Entre os monumentos arqueológicos notamos a secular catedral onde (refere a crônica) estão sepultados os ossos de Cristóvão Colombo.

Vimos uma estátua – a de Isabel, a Católica, num grande largo que tem o nome da santa rainha.

Particularidade interessante: a população dá a vida por gelados, em conseqüência do calor excessivo e constante a que vive sujeita.

Visitamos também (ia-me esquecendo) os aquedutos que fornecem água à população da cidade. Todos eles vão despejar num imenso reservatório de pedra inteiriça (como os nossos diques da ilha das Cobras), cavado no solo, formando uma espécie de tanque de grande capacidade para comportar muitos e muitos metros cúbicos d’água cristalina. O sítio, onde se acha essa importante obra de engenharia, lembra, de relance, a Tijuca com as suas cascatas despejadas do alto de rochedos inacessíveis, com a extrema frescura de suas montanhas verde-escuras, debaixo de um céu límpido e azul. É um dos melhores passeios de Havana. A viagem até aí se faz em diligências puxadas a mulas, arriscando-se o turista a chegar sem bofes ao fim da jornada longa e sem o atrativo das belas paisagens claras do Brasil.

O sol é ardentíssimo em Cuba, e, entretanto, as diligências partem da cidade pela manhã e chegam às onze horas ao reservatório, onde não se encontram hotéis nem botequins. Sua-se por todos os poros e, no fim de contas, volta-se fatigado, com a curiosidade satisfeita, mas o corpo moído.

O Passeio Público... Oh! não falemos de coisas tristes. Quem já viu o Passeio Público da Bahia pode imaginar o de Havana: o mesmíssimo cemitério deserto e sombrio, o mesmíssimo abandono criminoso; árvores colossais, meia dúzia de castanheiros decrépitos, e um silêncio, um silêncio absoluto de arrepiar cabelos. Aos domingos costuma ir chorar para ali uma banda militar. Só então é que a gente se lembra que existe um Passeio Público em Havana.

La Havana, de resto, é o que se pode chamar uma cidade pacífica, sossegada e sem atrativos. A impressão que ela deixa no espírito de quem a viu exteriormente é de uma velha capital decadente, muito cheia de sol e poeira.

Mas, para que não fosse de todo ociosa e inútil a nossa visita a Cuba, aproveitamos o ensejo de ver uma de suas mais pitorescas e curiosas cidades – Matanzas, onde chegamos depois de algumas horas de viagem costeira. Aí nos esperava o vice-cônsul do Brasil, excelente cavalheiro, cujo primeiro cuidado foi pôr à nossa disposição vinte e tantos carros de praça a fim de que não perdêssemos oportunidade de contemplar o majestoso panorama do vale de Yumiri, um dos mais belos do mundo, cerca de uma légua distante da cidade.

– Os senhores vão ver um belíssimo trecho da natureza americana, como talvez não haja igual no Brasil, preveniu-nos o cônsul. É uma maravilha!

E lá fomos, subindo e descendo morros, completamente alheios à topografia do país, cheia de altibaixos, lá fomos caminho de Monserrate, numa disparada única por montes e vales, aos solavancos.

Era quase noite quando parou o último carro, e corremos logo à tal “maravilha” que o diplomata recomendara.

Aqui têm os aquarelistas motivo sensacional para uma tela rembrantesca.

Crepúsculo... Céu pardo com uns tons de azinhavre muito vagos, aqui, ali, bordando nuvens... Embaixo a longa extensão côncava do vale afundando-se como o leito de um grande mar, que tivesse desaparecido, verde-escuro, indistinto quase a essa hora do dia.

Defronte, no segundo plano, a sombra opaca de uma cordilheira – larga faixa de veludo cinzento – limita o cenário, confundindo-se com as tintas indecisas da planura sideral. E, sobre tudo isso, uma tristeza religiosa, um vago silêncio de abismo...

Vê-se muito ao longe, de um lado da paisagem, rasgando o fundo nebuloso do quadro, uma nódoa escarlate, ao comprido, muito desenhada, muito escandalosa mesmo em meio de toda essa harmonia de cores esmaecidas...

Há muito que o sol tombou na sua eterna circunvolução diurna. A sombra que se alastra, a plêiade fosforescente dos pirilampos, o silêncio absoluto que nos cerca – tudo inspira respeito: e a gente esquece preconceitos e doutrinas para, instintivamente, levantar uma prece à misteriosa Força que rege o Universo...

Existe no alto da montanha a modesta capela de N. Srª de Monserrate, sempre aberta aos crentes, muito branca na sua despretensão de nicho de aldeia, com a sua torrezinha triangular onde vão fazer ninho, no inverno, as andorinhas do vale.

Caiu de todo a noite, e, no silêncio da estrada que descia em broncas sinuosidades, regressamos para o hotel, cujo salão principal tinha agora o aspecto suntuoso (dados os devidos descontos...) dum refeitório de convento em dia de festa pascoal: mesa lauta, vinte variedades de vinho excelentes e tudo mais que se faz mister num banquete finamente organizado à moderna.

O resto é fácil de imaginar: brindes, hurras, charutos finíssimos... e um sono reparador obrigado a pesadelos...

Na manhã seguinte acordamos para outro passeio não menos agradável. Era preciso aproveitar o tempo do melhor modo possível. Cometeríamos indesculpável falta se não fôssemos ver as Cuevas de Bella-mar, essas caprichosas grutas subterrâneas, verdadeiros palácios de cristal puríssimo, que se abrem terra dentro em toda a opulência de suas maravilhosas estalagmites e estalactites. Era mais uma deliciosa surpresa que nos estava reservada. Ir a Matanzas e não ver as Cuevas equivale a ir a Roma e não ver o Papa. Cumprimos o nosso dever de viajantes, que não se contentam com a vaidade infantil de pisar solo estrangeiro.

Cuevas de Bella-mar... Entre os numerosos fenômenos que a geologia registra muitos há que ainda estão por ser lucidamente explicados, por sua própria natureza complexa e profundamente científica.

No terreno da geologia subterrânea, com especialidade, inúmeros são os problemas a destrinçar, e um dos mais curiosos e interessantes é, sem dúvida, a formação das cavernas, as escavações produzidas por agentes externos, pela infiltração natural da água no solo calcáreo, formando essas caprichosas pirâmides de cristal, que a ciência denomina estalagmites e estalactites.

As Cuevas de Bella-mar formam um dos mais belos panoramas que se podem imaginar.

Figure-se um grande túnel aberto no subsolo e de cuja abóbada pendem cristais multiformes, cada qual o mais surpreendente, alguns de tamanho admirável, enquanto do chão constantemente úmido sobem outros de igual estrutura, pontiagudos quase sempre, formando, às vezes, colunatas brilhantes, esplêndidos capitéis, tão caprichosamente dispostos que dir-se-iam arquitetados por mãos humanas. A caverna prolonga-se a perder de vista, deslumbrante como um palácio encantado, à luz dos archotes, porque é impossível percorrê-la sem luz, e a cada passo uma nova exclamação de surpresa irrompe da boca do observador, espontânea e entusiástica. É com efeito, encantador o aspecto das Cuevas.

A atmosfera é quase insuportável, apesar da umidade que se reflete das paredes da gruta: um calor medonho de fornalha acesa.

É, expressamente proibido tocar nos cristais. Um guarda, empunhando um archote, acompanha o visitante, recomendando-lhe, de espaço a espaço, todo cuidado, toda cautela para que não dê alguma cabeçada...

Desta vez tínhamos sabido preencher o tempo utilmente, compensando as horas perdidas em Havana.

Nesse mesmo dia o Barroso fez-se de marcha para o país dos ianques, para Nova Iorque, a bela e maravilhosa cidade que o consenso universal alcunhou de Londres americana.

E... foi um dia a ilha de Cuba...

...Manhã de inverno, fria e nebulosa, sem uma réstea de luz confortável. Estava interdita a nossa curiosidade, pois que amanhecemos defronte da baía de Hampton Road, a essa hora coberta de cerração, cheia de nevoeiro, impenetrável. Não podíamos, que pena! ver Nova Iorque de fora, do mar, abrangê-la toda com um golpe de vista, estereotipá-la na imaginação para todo o resto da nossa vida. A grande cidade cosmopolita dos trens elevados e das pontes colossais dormia o sono beatífico da madrugada, envolvida num largo capuz de neve através do qual apenas se podia ouvir a sineta de invisíveis embarcações que bordejavam demandando o porto. Adivinhávamos que muitos vapores transatlânticos aguardavam, como nós, o momento azado para fazerem sua entrada.

Felizmente não durou muito esse estado quase aflitivo. Por trás do nevoeiro compacto e lúgubre os primeiros clarões da manhã surgiram como uma aparição bendita, rompendo a monotonia branca da atmosfera, e pouco a pouco, à proporção que a neve ia se rarefazendo, o Barroso tomava chegada muito lento, e Nova Iorque destoucava-se num fundo luminoso, batida pelas primeiras irradiações do sol, ruidosa e alvissareira, toda cheia de brilhos, como um quadro de malacacheta.

Onze horas. Céu limpo e mar chão – como se diz nos diários náuticos. Nem mais um floco de neve, tudo luz agora, e já podemos ver cheios da mais íntima satisfação, com uma surpresa ingênua no olhar, o aspecto risonho da baía cortada de embarcações À vela e a vapor, com os seus longes de verdura matizando perfis de montanhas indistintas, muito descoberta, sem o sombrio majestoso das paisagens americanas do sul, bela na sua simplicidade natural, e, sobretudo, muito clara àquela hora.

À direita destacava, à boca do Hudson, a grande, a enorme, a colossal ponte que liga Brooklin a Nova Iorque lembrando-nos que realmente tínhamos chegado outra vez à terra feliz dos ianques, e doutro lado erguia-se, iluminando o mundo, a Estátua da Liberdade, belo símbolo de bronze, cujo pedestal ocupa toda a ilha de Bedloe.

Era um dia de domingo, um desses dias de expansão popular, em que, no mar como em terra, há quase sempre uma alegria nova entre os que passaram a semana a trabalhar, a lutar pela vida incansavelmente com a consciência tranqÜila de quem vive honestamente à custa do próprio esforço. A baía de Nova Iorque tinha o festivo aspecto de um dia de regatas. Esquadrilhas de iates, com suas velas quadrangulares, muito elegantes e asseados, cruzavam na barra, aproveitando a fresca do mar. Passavam barcas de recreio, embandeiradas, conduzindo bandas de música, que tocavam alegremente o Yankee doodle. À cerração matinal sucedera um sol frio de inverno, que dava vontade a gente improvisar piqueniques à beira-mar, fora da cidade, longe dos botequins e das brasseries, nalgum verde recanto onde houvesse bastante quietação e muita água, num lugarejo calmo de subúrbio donde se pudesse ver ao longe, mas muito ao longe, a miniatura da cidade soturna e cansada...

O Barroso tinha fundeado em frente à Battery Square e com pouco recebia a visita oficial do cônsul brasileiro e doutras autoridades do país, sendo para notar que uma das primeiras pessoas que pisaram a bordo foi o repórter do New York Herald, a importante folha americana tradicionalmente conhecida no mundo jornalístico. Um cavalheiro irreprochable, de cartola e sobrecasaca de pano, bem-apessoado, bigode louro e olhos azuis, verdadeiro tipo de ianque, amável e expansivo. É escusado dizer, num parêntesis, que no dia seguinte a quilométrica folha descrevia, com uma precisão fotográfica, o cruzador brasileiro, sem esquecer mesmo um carneiro de estima que trazíamos e que o espirituoso noticiarista incluía na lotação do navio, emprestando-lhe qualidades invejáveis. Creio até que o pobre lanígero figurou na folha ianque entre os heróis de Humaitá!

Satisfeitas as formalidades oficiais da chegada, trocadas as salvas do estilo, nada mais nos restava senão ver de perto a bela cidade.

Nova Iorque estava quieta, muitíssimo quieta, com as suas praças desertas, com os seus parques silenciosos, fechado o comércio a ponto de não se encontrar aberta uma só tabacaria, sequer um botequim. Isso, porém, não nos causou estranheza. Sabíamos que o domingo nos Estados Unidos é um dia completamente inútil, um dia triste para os centros populosos. Toda a gente deserta para os arrabaldes em seus trajes domingueiros. As ruas, muito largas e compridas, permanecem ermas e cheias de silêncio, entregues à vigilância dos policimen. Todas as casas comerciais, todos os armazéns, todas as fábricas, todos os estabelecimentos públicos conservam-se fechados e taciturnos, como numa cidade abandonada.

Nova Iorque, a opulenta e alegre cidade cosmopolita, tinha esguichado para Nova Jersey, para Brooklin e para Conney Island. Toda aquela multidão laboriosa e ourissedenta, que nos dias de trabalho se atropela na Broadway, bebia e cantava nos arrabaldes, expandia-se largamente nos hotéis ambulantes e nas cervejarias suburbanas, folgava e ria com desespero, sem pensar na segunda-feira, sem se inquietar com o futuro.

Por isso é que não se deparava ninguém nas ruas, por isso não se ouvia o barulho infernal das carroças e das carruagens.

O domingo no país dos ianques é para se divertir, para se descansar, para se jogar o cricket, para se passear a cavalo, para se apostar regatas, de modo que o protestantismo americano nada tem de comum com o protestantismo britânico.

Enquanto nos domingos (a dar crédito na crônica) o inglês reza a Bíblia no interior de seu home, em companhia de sua mulher e de seus filhos, o americano, ou melhor, o ianque, exercita os músculos e bebe cerveja fora da cidade.

Não admira semelhante discordância, quando é sabido que a religião protestante subdivide-se em milhares de seitas. A este respeito leiam-se os belos capítulos em que Mr. Laboulaye (Ed. Lefèvre), estuda, com uma graça especial e encantadora, cheia de humorismo e de senso crítico, as instituições religiosas na América do Norte. Paris en Amérique é um dos livros mais curiosos e originais que eu tenho lido sobre os Estados Unidos.

Em tais condições, estrangeiros no meio de uma cidade deserta, imagine-se o nosso embaraço, a triste situação em que nos colocava a curiosidade.

Os raríssimos transeuntes que porventura encontrávamos, marinheiros ou vagabundos que desciam para o cais da Battery, olhavam-nos com um ar de surpresa, embasbacados, medindo-nos de alto a baixo, com se fôssemos uns verdadeiros botocudos de tanga e cocar.

Entretanto, não perdemos a precisa calma, e, sem mais tirte nem guarte, saltamos dentro do primeiro veículo que passava, uma velha carruagem de aluguel, cujo boleeiro custou deveras a compre­ender que desejávamos fazer um passeio ao redor da cidade.

Oh! yes! Yes!...

E disparou a trote largo por aquelas ruas fora.

De modo que nesse dia vimos Nova Iorque à vol d’oiseau e por um prisma de tristeza e monotonia.

Em compensação a nossa demora naquela cidade ia ser mais longa que em qualquer dos outros portos do itinerário.

No dia imediato, uma segunda-feira, recomeçamos, sem perda de tempo, a nossa tarefa de estrangeiros em país desconhecido.

Eu, por mim, confesso que Nova Iorque produzia-me vertigens. O desejo imoderado de tudo ver, de tudo observar, de tudo saber, trazia-me numa inquietação contínua, tirava-me o sono, arrebatava-me a todas as comodidades, torturava-me o espírito de análise. Uma coisa, porém, devo dizer: raro é o oficial de marinha, mormente da marinha brasileira, que sabe aproveitar o tempo nessas viagens ao estrangeiro. Aproveitar o tempo, entendamo-nos, as horas de folga. Preferíamos a convivência dos cafés-cantantes aos passeios úteis e ao mesmo tempo agradáveis. Um estrangeiro já teve a coragem de dizer que os oficiais de marinha brasileiros levavam o tempo, na Europa, a freqüentar os conventilhos e os cafés-cantantes. Até certo ponto isso é verdade.

Em geral eles pouco conhecem dos países que têm visitado, a não ser em assuntos de sua profissão, e as suas narrativas entre amigos limitam-se quase sempre a recordações de aventuras amorosas.

Também são tão curtas e tão raras essas viagens...

Quando se tem a felicidade relativa de viajar sob o comando de um oficial ilustrado e curioso como o sr. Saldanha da Gama, cujos conhecimentos não se restringem à navegação e à artilharia, o aproveitamento é certo. Ele não é somente um superior hierárquico – faz-se mestre e sabe proporcionar aos seus subalternos a maior soma possível de excursões úteis e proveitosas.

Uma das nossas primeiras visitas foi à Estátua da Liberdade, na ilha de Bedloe.

O importante monumento ainda não estava completamente pronto, mas já se podia fazer uma idéia do que seria ele depois de concluído. O pedestal, de granito, ocupa quase toda a ilhota e mede, aproximadamente, 15 a 20 metros de altura, 154 pés, desde o nível do mar, formando uma espécie de casamata cuja utilidade não souberam nos dizer. Sobre o pedestal ergue-se a estátua, em bronze, armada por meio de vigamentos de ferro, pois que não é inteiriça.

Conta-se que dentro dela realizara-se, em Paris, um magnífico banquete de 12 talheres, presidido por V. Hugo.

Como se sabe, a estátua foi oferecida aos Estados Unidos pela França em agradecimento dos serviços prestados por esta nação à sua amiga na guerra franco-prussiana.

O pedestal foi mandado construir à custa de subscrições populares, que em pouco tempo atingiam a uma soma elevadíssima.

Não há por aí quem não tenha ouvido falar na famosa ponte de Brooklin (Brooklyn Bridge), uma das maravilhas da engenharia moderna, que liga a ilha de Brooklin a Nova Iorque.

Esta cidade, incontestavelmente o primeiro empório comercial da América e uma das mais populosas do mundo, fica situada numa grande ilha formada por dois braços do rio Hudson. De um lado, à direita de quem olha para o mar, um dos deltas, o North River, separa-a de Nova Jersey, e à esquerda o East River separa-a de Brooklin. A travessia para qualquer desses pontos faz-se rapidamente, em barcas que a todo instante largam de Nova Iorque, e por preço assaz diminuto.

A princípio, quando se projetou levantar a grande ponte, surgi­ram mil dificuldades.

Parecia impossível que se pudesse levar a efeito obra tão arriscada e dispendiosa. Como assentar as bases do colosso numa profundidade de mil e seiscentos pés, que é esta a altura do rio na sua parte mais estreita?

Demais era preciso não prejudicar a navegação, construindo a ponte muito acima do nível do mar de modo a dar passagem livre às embarcações de comércio.

Com tudo isso os americanos meteram mãos à obra e dentro de alguns anos de trabalho assíduo os Estados Unidos contavam mais uma glória.

O comprimento total dessa magnífica ponte é de uma milha pouco mais ou menos. As torres onde ela está suspensa erguem-se a 268 pés acima da preamar, de forma que as maiores embarcações de comércio têm passagem fácil por baixo.

O Barroso, cuja guinda era uma das mais altas que se tem visto em navio de guerra, apenas foi obrigado a “acachapar” os mastaréus de joanetes.

Atravessa-se a ponte em vagões movidos à eletricidade, em carros de praça ou mesmo a pé. Paga-se um cêntimo para atravessá-la a pé!

O movimento é espantoso. Cruzam-se diariamente as duas populações de Nova Iorque e de Brooklin, em carros, em vagões e a pé, sem risco de se atropelar, por que a cada espécie de veículos corresponde uma passagem independente e adequada. Os que transitam a pé têm também o seu caminho livre e, por conseqüência, não correm o perigo de ser pisados pelos carros.

À noite o aspecto da ponte é feérico. Logo às seis horas da tarde começa a iluminação em toda ela, de um lado e doutro, destacando-se em alguns pontos, focos de luz elétrica, enormes botões de brilhante que encandeiam a vista.

Vista do mar, então, o efeito é deslumbrante! Lembra as lendárias pontes de Veneza cortando canais, projetando n’água seus reflexos luminosos.

Um dos meus divertimentos prediletos era contemplar Nova Iorque do alto. Muitas vezes punha-me lá de cima da ponte de Brooklin, braços cruzados, num êxtase de fetiche, a olhar para um e outro lado, acompanhando com a vista a vela das embarcações que singravam no rio, pequeninas, microscópicas.

E punha-me, nessa embriaguez do grandioso, a pensar no progresso dos Estados Unidos, desse país modelo, onde tudo move-se por meio de eletricidade e vapor, onde tudo é feito às carreiras, num abrir e fechar de olhos, sem a menor perda de tempo; vinham-me à imaginação escandecida as descobertas de Franklin, de Fulton e de Edison, as maravilhosas experiências sobre o telégrafo, sobre o telefone e sobre o fonógrafo, e eu repetia com os meus botões, mergulhando o olhar na distância, abarcando a cidade inteira: – Grande país! Grande povo, gente feliz, que sabe compreender a vida e amar a pátria!

Como era pequeno o meu país, com toda a grandeza de suas montanhas e de seus rios, diante do colosso americano do norte!

Caía-me na alma uma tristeza de desterrado, uma profunda è incompreensível melancolia, feita ao mesmo tempo de saudade e descrença...

Incansáveis os americanos! Nenhum povo os excede em temeridade e perseverança. Sequiosos de glórias para o seu país, ávidos de empreendimentos que causem assombro ao mundo, eles têm uma grande qualidade – o amor à sua terra, o nativismo instintivo, o chauvinismo (deixem passar o termo) incondicional, absoluto, e é força confessar que, sem essa qualidade, sem esse egoísmo patriótico, as nações vivem, mas não progridem.

Ainda ultimamente a câmara do Estado de Nova Iorque aprovou, por unanimidade, o bill que propôs a construção de uma nova ponte de ferro sobre o East River, passando sobre a ilha de Blackorel, que ligue Nova Iorque a Long Island, e que terá seis mil metros de comprimento e 46 de altura, com uma resistência de 65 quilômetros de velocidade para os trens que a devem atravessar.

É o caso de dizer, parodiando o outro: se eu não fosse brasileiro, desejaria ser americano do norte...

Nunca fui a Londres, apesar do grande e impaciente desejo que tenho de visitar a sombria capital britânica, mas estou bem certo de que Nova Iorque em muitos respeitos pode ser denominada a Londres americana.

Toda nova, toda alegre e pitoresca, sem os bairros imundos que o Tâmisa lambe com as suas águas pútridas, onde bóiam cadáveres em decomposição, iluminada por um sol que dá vida e conforta, a nova Londres tem um cunho especial de cidade latina. Como em Londres, tudo nela é grandioso e opulento, desde a edificação igual, sólida e elegante, até às festividades públicas e às instituições nacionais.

As ruas, longas e direitas, cruzam-se geometricamente e distinguem-se pela numeração (Fourteen street, Fifteen street etc.).

A Broadway é o centro comercial, a rua de maior movimento quotidiano – equivale à City de Londres.

Aí é que os carros se atropelam, que os transeuntes se abalroam numa confusão burlesca e indescritível de que a nossa Rua do Ouvidor não dá sequer a menor idéia. Negociantes, capitalistas, banqueiros, corretores, operários e vagabundos acotovelam-se, empurram-se, pisam-se os calos e vão seguindo adiante, sem olhar pra trás, carregados de embrulhos, suando no verão, que costuma ser muito forte em Nova Lorque. A gente vê-se abarbada para romper aquela multidão cerrada, compacta e egoísta.

Um cosmopolitismo sem igual em parte alguma.

Americanos, ingleses, espanhóis, franceses, italianos, alemães, gente de todas as nacionalidades, até turcos com os seus costumes esquisitos, confundem-se nas ruas de Nova Iorque, enchendo-as em ondas sucessivas e tumultuosas, como em dias de carnaval no Rio. Parece mesmo, à primeira vista, que o elemento estrangeiro absorve o nacional, tão numeroso é aquele. Custa, porém, a encontrar-se um português ou um brasileiro. Em compensação a raça latina é abundantemente representada por espanhóis da Europa e da América. Os mexicanos, apesar da natural e oculta ojeriza que têm aos americanos dos Estados Unidos, encontram-se a cada passo e distinguem-se logo pelo seu tipo original: estatura média, rosto anguloso abolachado, moreno, cabelo duro, olhos pequenos; amáveis. Não perdem ocasião de dizer mal dos americanos, que, entretanto, dedicam-lhes uma afeição especial.

Uma das coisas mais curiosas de Nova Iorque são os trens elevados (elevated railroad), a complicada rede de linhas férreas que rodeia a cidade passando em muitos pontos por cima da casaria, atravessando ruas inteiras sobre grandes colunas resistentes de ferro. Partem todas da Battrey Square, ponto mais meridional da ilha de Manhattan (onde fica a cidade) e vão terminar na sua extremidade setentrional, em Harlem River. Segundo o relatório apresentado pela New York Elevated, o número de viajantes transportados em 1878 por essa linha foi de 107.079.625. (Sempre a estatística como base fundamental do progresso entre os americanos!) A linha inteira, que tem seguramente trinta milhas, estava concluída até Harlem. Os moradores das margens dessas estradas de ferro aéreas queixavam-se continuamente da vizinhança.

Pudera! Ruído, fumo e fagulhas a toda hora sobre a cabeça, não são coisas que agradem a ninguém. A pobre gente fica em risco de perder o juízo, pois não!

Felizmente, o que aliás é muito admirável, os desastres reproduzem-se raríssimas vezes. É que o serviço faz-se com inexcedível perfeição e as posturas municipais verificam-se inexoravelmente.

As estações são numeradas, como as ruas: Primeira Estação, Segunda Estação, etc.

Os passageiros desembarcam em plataformas de ferro gradeadas, que comunicam com as estações.

O espírito inventivo dos americanos revela-se a cada passo nas grandes cidades dos Estados Unidos. Em todos os estabelecimentos, em todos os ramos da atividade pública se encontra uma aplicação nova de mecânica industrial, um artifício de utilidade prática, econômico e curioso, uma invenção engenhosa...

Aproveitar o tempo e economizar os dólares – tal é o princípio fundamental da sabedoria ianque.

Um domingo em Coney Island: nada mais pitoresco e hilariante, nada mais sugestivo...

Coney Island aos domingos é para os americanos o que o Bois é para os franceses e Hyde Park é para os ingleses – um interessantíssimo microcosmo de incrível bizarria, cheio do vago rumor de uma multidão que passeia, que canta, que ri e que bebe ao ar livre, num pêle-mêle vertiginoso, com as suas toilettes claras, com o seu belo ar despretensioso, com os seus gestos largos de quem respira uma atmosfera leve e pura.

Essa pequena ilha constitui a principal diversão domingueira dos habitantes de Nova Iorque.

Famílias inteiras, burgueses de todas as castas, cocotes, afluem para ali nesses dias. Pela manhã, cedo, largam da Falton Station grandes barcas embandeiradas conduzindo músicas, cheias de passageiros. Muita gente prefere ir por terra, em trens que partem de Brooklin.

Não há lugar para todos nos hotéis. Improvisam-se piqueniques defronte do mar, na beira da praia, formam-se pagodeiras, e muitas pessoas há que não se lembram de comer – preferem a cerveja, o bock, a qualquer espécie de alimento sólido.

Vimos dois grandes hotéis – o Great Hotel e o Gigantic Elephant.

Aquele é um magnífico estabelecimento, todo construído de madeira de lei sobre enorme plataforma que se move em trilhos próprios. Novo gênero de hotéis até então desconhecido para nós. Num dado momento podem ser conduzidos, como qualquer tramway, dum lugar para outro.

O Gigantic Elephant (the monarch of the architectural world, como lá dizem...) mede 175 pés ingleses de altura, é dividido em 31 compartimentos, ventilados por 63 janelas, e iluminado, à noite, por 25 focos de luz elétrica. Figura um elefante colossal, de madeira, em pé, no meio de um jardim. Em cima, no dorso do monstro, existe um terraço donde se descortina uma esplêndida paisagem rasa e calma.

Quer num, quer noutro, o promeneur encontra abundante variedade de petiscos e bebidas.

As crianças, com especialidade, fazem de Coney Island um céu aberto. Elas, sim, não perdem os cavalinhos que andam à roda ao som de um clássico realejo seboso, os passeios aéreos, na ponte-russa, nas barquinhas, nos trens elevados...

Por toda a parte música, realejos, pregoeiros de coisas maravilhosas, gritos, gargalhadas...

Tiram-se retratos instantâneos, apostam-se corridas, sobem-se elevadores de duzentos metros acima do solo, pesca-se, alugam-se cavalos de passeio... Enfim, Coney Island é uma miniatura da vida tumultuosa das grandes cidades.

O pobre-diabo que não for esperto e econômico arrisca-se a voltar com as algibeiras cheias de vento...

À noite enchem-se novamente os trens e as barcas. Em uns e outros a algazarra torna-se insuportável. Canta-se a Marselhesa em vozes detestáveis, grita-se, bate-se com a ponteira da bengala no chão, assovia-se, imitam-se animais de toda a espécie... Uma loucura!

Entretanto, abençoado país! em todas essas pagoderias não se distingue sequer um boné policial. Não há conflitos, nem desastres.

Tudo corre na maior harmonia, sem intervenção da guarda cívica. Os policemen podem cochilar à vontade: a população americana é naturalmente pacata e respeitadora da ordem.

Coney Island é o complemento necessário e indispensável de Nova Iorque.

Pelo verão reúnem-se ali cerca de 5.000 pessoas, segundo o cálculo aproximado do cônsul brasileiro.

Dias depois da nossa chegada, o Barroso entrou para o dique de Brooklin, a fim de sofrer alguns reparos no casco.

Enquanto isto se dava, enquanto a guarnição ocupava-se da limpeza externa do cruzador, com o cuidado, com o desvelo e com o carinho mesmo de amigos dedicados, íamos visitando outras cidades americanas, ligeiramente, de relance.

Não nos foi dado, porém, diga-se em parêntesis, ver o mais grandioso espetáculo dos Estados Unidos – a célebre cascata do Niágara, que Chateaubriand pinta com as maravilhosas cores de sua palheta de artista inimitável.

Não tivemos mesmo a felicidade de ver Washington, a bonita capital americana, e tampouco o presidente Cleveland.

Esse privilégio coube quase que exclusivamente. ao ex-príncipe d. Augusto, que aliás não revelou grande admiração pela Niágara, nem pelo presidente Cleveland.

Sua Alteza não era para que digamos muito amigo da natureza e menos ainda de personagens ilustres.

Quanto a mim continuei a ver a famosa cascata por um óculo, nos livros do poeta, e o sr. Cleveland, vi-o casualmente no Daily News, no ato do seu casamento realizado a esse tempo. Pareceu-me um belo tipo de ianque: cheio de corpo, cabelo penteado pra trás, olhar firme, bigode grosso..

Assim, contentamo-nos com visitar algumas cidades de importância e tão depressa que era impossível apanhar com precisão todos os caracteres por meio dos quais se pode apreciar a vida de uma população.

Vejamos:

BALTIMORE – Cidade aristocrática, pequena, mas extremamente bela na simplicidade, no gosto sóbrio de sua edificação, muito asseada, clara, semelhando toda ela, no seu conjunto gracioso, uma confortável habitação de outono, fresca e risonha, boa para se gozar o sossego de uma vilegiatura sem preocupações mercantis e utilitárias.

A gente de Baltimore parece viver uma vida tranqüila e descuidada no calmo interior de seu home, longe da mentira social, longe de todo o ruído, beatificamente, numa paz invejável, respirando uma atmosfera livre do micróbio daninho das civilizações tumultuosas.

Baltimore é uma cidade por excelência aristocrática e higiênica, onde os temperamentos requintadamente pacíficos encontrariam o desejado repouso trespassado da incomparável doçura de um clima raro.

Na melhor de suas praças e no mais elevado de seus pontos ergue-se a estátua em mármore do grande Washington, geralmente considerada “um dos mais interessantes monumentos da América” e inaugurada em 1809. Mede 60 pés quadrados na base e 15 de altura. Sobre o pedestal foi levantada uma elegante coluna dórica de 20 pés de diâmetro na base e 15 no cimo, onde branqueja a estátua do primeiro presidente dos Estados Unidos, representando-o no momento de renunciar à sua comissão de general-em-chefe dos exércitos de seu país.

Para subir até essa galeria fui obrigado a vencer duzentos degraus (contados) de uma estreita escadaria de pedra, em espiral. De cima vê-se, a olho nu, todo o panorama, realmente belo, da cidade, que lembra uma dessas paisagens holandesas, muito claras e sugestivas, tais como descreve Ramalho Ortigão, e onde destacam, num fundo de aquarela, linhas de arvoredo e revérberos d’água parada...

Ouvi dizer algures que as mulheres mais bonitas dos Estados Unidos são as de Baltimore. Durante as poucas horas que aí nos demoramos vimos alguns rostos femininos na verdade encantadores. É possível que víssemos com olhos protetores de hóspedes em terra estranha...

Era nosso cônsul naquela cidade Fontoura Xavier, o conhecido autor das Opalas, bom poeta e péssimo republicano, que se apressou em nos proporcionar todas as comodidades possíveis, franqueando-nos os quartos e os salões do melhor hotel do lugar. Fez mais: ofereceu gentilmente à oficialidade brasileira um delicadíssimo almoço ao qual compareceram diversos estudantes nossos patrícios.

Guardamos belas recordações de Baltimore.


FILADÉLFIA – Grande centro de indústria e comércio. Altas chaminés características. Céu encoberto de fumaça, pesado e lúgubre a certas horas do dia. Aquedutos, casas colossais, ruas largas e atulhadas de barricas e caixotes. Contínuo movimento de carros e tramways. Imensa e grandiosa, a cidade vista de qualquer ponto elevado. A lembrança que fica é a de um grande edifício em construção, cheio de rumor de máquinas e de operários em atividade permanente. – Jardim Zoológico. – Universidade importantíssima, onde vão estudar moços de todas as nacionalidades. – City Hall, edifício monumental, vasto e muito alto, onde funcionam as repartições públicas: dizem ser o maior dos Estados Unidos.

Não há tempo a perder. Temos apenas três horas a nossa disposição, pois que o trem deve partir para Anápolis às cinco da tarde e já são duas...

Leio na tabuleta de um bonde: Zoological Garden... Oh! sim, vamos ao Jardim Zoológico, a mais completa coleção de animais, que já se conseguiu formar. O meu companheiro, que conhece o Jardim Zoológico de Londres e o de Filadélfia, opta por este. Vejo, de passagem ruas belíssimas, esplêndidas filas de casas luxuosas, magníficos jardins particulares, templos em estilo gótico; descampados...

Mas, a viagem é longa, o tempo escorre sem a gente perceber, e é preciso contar com a volta, a fim de apanhar o trem.

Trabalho perdido! Voltamos no mesmo bonde, sem ter visto o apetecido Jardim Zoológico.

Mal tivemos tempo de chegar, embarafustar por entre os passageiros que se acumulavam na gare, e saltar para dentro do vagão.

E eu fiz o resto da viagem pensando no assombroso progresso daquela cidade enorme, que ainda em 1791 não era mais que uma simples colônia a respeito da qual Chateaubriand exprimia-se deste modo: – L’aspect de Philadelphie est froid et monotone...

Não foi preciso mais de um século para que os americanos fizessem dela uma das principais cidades industriais do mundo.

Em Filadélfia tive ocasião de ver, pela primeira vez, bondes elétricos funcionando com a máxima regularidade.

O que será a grande cidade americana daqui a cem anos?

Abramos capítulo especial para Anápolis, não que esta cidade, a mais antiga dos Estados Unidos, mereça-nos mais que qualquer das outras, absolutamente não, mas por uma deferência bem entendida, por um recolhido sentimento de gratidão para com a jovem oficialidade da marinha norte-americana, que ali recebeu as primeiras lições de disciplina militar e dever cívico, e que soube nos acolher em seu seio como verdadeiros irmãos de armas que éramos.

A nossa visita coincidia com a festa de formatura dos guardas-marinha, uma das belas solenidades anuais dos Estados Unidos à qual concorrem centenas de pessoas da mais elevada sociedade – a fina flor da aristocracia daquele país – movidas pelo nobre entusiasmo de apertar a mão à mocidade que se despede da escola para entregar-se às duras lidas do mar.

Antes, porém, de dizer o que foi essa festa, descrevamos, rapidamente, a cidade.

Anápolis é como uma nota dissonante na civilização americana. Imagine-se um quilombo africano, uma grande aldeia cortada de ruas desiguais, estreitas e desalinhadas, com um aspecto sombrio e detestável de velho burgo colonial, onde se move uma população na maior parte negra e atrasadíssima – e ter-se-á essa antítese da cidade moderna. Bridgetown, a capital de Barbados, avantaja-se-lhe mil vezes com toda sua poeira, com toda a imprudência e miséria de sua baixa população.

Vê-se que os americanos têm-lhe certo respeito e conservam-na esquecida e retrógrada por uma espécie de devoção arqueológica, sacrificando por esse modo o seu bom gosto característico e o seu tradicional amor ao progresso.

Insípida, monótona e triste como um cemitério de pagãos – Anápolis é um protesto., um anátema contra a evolução natural das coisas, uma nódoa antipática em pleno mapa da Confederação americana. Nada há ali que interesse e desperte a curiosidade senão a Escola Naval (Naval Academy) situada numa das extremidades da cidade, à beira-mar.

De ano em ano enche-se de povo; seu único hotel, um pardieiro, extravasa, e então sente-se um frêmito de vida nova percorrer aquelas ruas habitualmente sossegadas e tristes. Passeiam bandas de música, flutuam bandeiras na frontaria das casas, por toda a parte ouve-se uma vozeria estranha de gente que bebe e canta nos cafés (arremedo de cafés) e todas as janelas abrem-se como para receber o desinfetante da alegria, importado das grandes cidades circunvizinhas.

Anápolis acorda, então, de seu pesado sono tumbal para saudar os estudantes que saem da academia para a vida pública.

O grande ato, a que assistimos, da distribuição de títulos, realizou-se num dos vastos salões da Escola, presente numerosíssimo auditório: família em grandes trajes de luxo, altos funcionários, estudantes...

Ao receberem seus diplomas os novéis oficiais de marinha foram vivamente aplaudidos pelos seus companheiros, caindo sobre eles uma chuva imprevista de flores, no meio de palmas e gritos de entusiasmo. E começaram os abraços, as felicitações, os conselhos e as lágrimas de comoção...

Abrem-se de par em par as portas do estabelecimento e a multidão de espectadores precipita-se por todos os lados, feliz, alegre, desafogada como se acabasse de assistir a uma festa de amor e justiça.

Ainda não estava concluído o programa.

Em seguida à solenidade oficial – a festa íntima, a festa de despedida que os naval cadets (aspirantes) ofereciam aos seus companheiros.

Noite clara e constelada. O largo edifício da Escola de Marinha regurgita de convidados que se cruzam em todos os sentidos no salão de baile, nos corredores, nos bouffets, nas ante-salas...

Nota-se em todas as caras certo ar de intimidade, certo bem-estar flagrante, um quer que é comunicativo e bom.

Uma ou outra casaca solitária, destoando da linha geral das toilettes largas e frescas. Observo curiosamente o apuro de um oficial japonês que franze as sobrancelhas num gesto de enfado. – Por que será?... Julgo de mim para comigo que o pobre camarada não se sente à vontade dentro de suas calças de pano com largos galões dourados. A casaca o incomoda visivelmente. O chapéu armado, ele já não sabe como o tenha – se na mão, se debaixo do braço ou mesmo se na cabeça...

Desabotoam-se risos gentis em bocas purpurinas. Derramam-se essências preciosas no ambiente luminoso. Conversa-se alto. Belas misses de face escarlate abanam-se com os leques de ricas plumas de edredom. Os leques e as jóias são as únicas riquezas que conduzem num contraste frisante com os vestidos leves e claros.

Em um dos lados do enorme quadrilátero, onde reluziam panóplias arranjadas a capricho, estava levantado um pavilhão de aspecto risonho, em cujo frontispício destacavam em letras de luz

1887 to 1886
Farwell

Era o lugar do diretor da escola.

Começou a dança...

... E à meia-noite a música fazia sinal para a última valsa.

Ficamos sabendo que todas as festas noturnas terminam invariavelmente à meia-noite, nos Estados Unidos. É uma velha praxe que os americanos poucas vezes transgridem.

Anápolis, black city – como te chamam teus próprios patrícios, tu não poderás saber nunca a saudade que levamos de ti nessa esplêndida noite clara e constelada!...

O Barroso continuava no dique, em Brooklin.

Logo ao regressarmos de nossa viagem a Anápolis tivemos aviso para uma outra excursão não menos interessante e agradável.

West Point era agora o principal objeto de nossa curiosidade – West Point, a bela povoação à margem do Hudson, onde funciona a Escola Militar. Estávamos convidados para assistir a outra festividade acadêmica – um combate simulado entre os alunos do estabelecimento – manejos de armas, exercícios de esgrima, assaltos.

Compreende-se a grande utilidade que necessariamente nos adviria dessas visitas aos estabelecimentos militares no estrangeiro. Sem nos aperceber, íamos conhecendo, de visu, os diversos processos de ensino prático, os métodos mais modernos de educação física, e, quando mais não fosse, lucrávamos com a vista de objetos novos e de novas paisagens.

O viajar é uma necessidade quase imprescindível para o espírito e para o organismo. A alma como que se dilata em presença de estranhas combinações de cor e de luz. A monotonia da vida urbana cansa o espírito, fatiga-o, consome-o lentamente; é preciso o grande ar, o ar livre e temperado dos campos, a natureza em toda sua beleza original, para que não se morra de tédio e desânimo. O tempo é limitadíssimo e inapreciável para quem viaja com desejo de ver e saber.

Muitos há que preferem morar eternamente em Paris ou em Londres, no centro da cidade, asfixiado pela poeira dos boulevards, a gastar economicamente o seu rico dinheirinho vendo a natureza de perto, gozando as inefáveis delícias do campo e das praias, saboreando o clima das montanhas, deliciando a vista com o espetáculo das fontes murmurejantes, dos frescos arvoredos trespassados de luz...

Eu preferirei sempre a paz absoluta e invejável dos subúrbios.

E é por isso que, a cada nova excursão fora da cidade, eu sentia-me bem comigo e bem com o resto da humanidade. Voltava sempre mais consolado e mais leve, como se saísse de um quarto muito escuro e abafado para a claridade larga e bela do dia...

Foi assim que recebi a notícia do passeio a West Point.

Como devia ser magnífico o Hudson lá para as bandas de sua nascente, a qualquer hora do dia, iluminado pelo sol, calmo e radiante, ou coberto de névoa, pela manhãzinha, ou no silêncio da noite, vago e sombrio como um pântano dormente!...

Era o que íamos ver.

Seis horas da manhã...

Caía uma neve friíssima, transparente, e agressiva como alfinetadas.

O Express, pequeno e elegante cruzador americano, espécie de transporte de guerra, esperava-nos de “fogos acesos”, deitando fumo pela chaminé.

Remos n’água e toca pra diante! Pontualidade no caso.

Estamos a bordo.

O Express oferece o belo aspecto de uma galeota imperial que vai suspender ferro...

Fazia gosto ver a ordem e o asseio que apresentavam o convés e a câmara.

Tinha-se acabado de fazer a baldeação matinal. Marinheiros, perfeitamente uniformizados, ocupavam-se em limpar as chapas de metal; outros colhiam cabos à proa; outros lá cima, nas vergas, atavam ou desatavam andarivelos, muito rubros, com os seus bonés de pano azul-marinho onde se lia o nome do navio, em letras cor de ouro: – Express.

A câmara – uma sala espaçosa e clara, elegantemente adornada – ocupava um terço do pontal, a ré, na primeira coberta. Embaixo, na segunda coberta, ficavam os camarotes e a praça de armas.

Servido o fine cognac, que os americanos de bom tratamento não dispensam nos dias invernosos, o captain subiu ao passadiço e deu a voz de suspender. A máquina tocou adiante e o Express começou a singrar o Hudson.

Variadíssimo o aspecto da paisagem. Ora o rio se estreita em curvas caprichosas, ora vai-se alargando, sempre manso, banhando cidades e aldeias, límpido às vezes, outras vezes toldado e sombrio.

West Point fica a duzentas milhas de Brooklin.

Passamos o dia inteiro e a noite em viagem para amanhecermos em nosso destino.

Novas manifestações de simpatia. Oficiais e alunos da Escola Militar esperavam-nos com aquele sorriso afável de gente hospitaleira, que logo se traduz em franca e sincera camaradagem.

A Escola estava acampada perto do estabelecimento, em exercícios práticos.

Inúmeras barraquinhas de lona, alinhadas em simetria, alvejavam, como um acampamento de beduínos, guardadas por sentinelas que rondavam de arma ao ombro, perfilando-se de vez em quando em continência a um oficial que passava.

Cada barraca abrigava cinco a seis alunos que se rendiam pontualmente na sentinela.

Enquanto um rondava, grave e silencioso, de mochila às costas e espingarda ao ombro, os outros divertiam-se a trocar socos, a jogar o dominó, a apostar corridas, até que o tambor ou a cometa os chamasse à forma. Então, com uma rapidez extraordinária, lestos, vivos e fortes, corriam todos a seus postos, e, em menos de um minuto, estava formada a companhia.

Cada aluno era um verdadeiro soldado.

Alegres, o sangue a pular-lhes no rosto, cheios de saúde, tesos, empinados, quadris largos, espáduas amplas, todos se pareciam em robustez física.

Uns rapagões sadios!

Notei mesmo certa propensão dos americanos para o militarismo. Parece que a educação militar, adaptação de princípios rigorosos na disciplina do corpo, é o único meio de obterem-se homens robustos e cumpridores do dever. A Escola de West Point é, sem exagero, um exemplo raro de estabelecimentos desse gênero. E não era sem uma ponta de tristeza que nós, brasileiros – raça degenerada e linfática – víamos criar-se assim uma raça forte e alegre com todos os caracteres de virilidade e independência.

Tive ocasião de assistir a uma luta corporal entre dois alunos, competentemente armados de luvas de camurça, rosto a descoberto. Pegaram-se a socos, um defronte do outro, calmos e convictos, como se estivessem cometendo uma nobre ação.

No fim de alguns minutos, o agressor estava com o rosto inchado, escorrendo sangue, os olhos vermelhos, injetados, e a luta acabava com um abraço entre os dois contendores. O mais forte foi aclamado pelos companheiros, teve o prêmio de sua robustez.

É talvez um duro sistema de educação esse, mas incontestavel­mente o mais acertado e eficaz.

Simples questão de raça...

Estava terminada a nossa estação de quase dois meses em Nova Iorque.

No dia 30 de julho o Barroso deixou aquele porto em direção a Newport, outra cidade dos Estados Unidos, refúgio da população aristocrática nos quentes dias de verão. Uma perfeita cidade balneária, muito fresca e saudável, à beira-mar, olhando para o largo oceano e recebendo-lhe as emanações salinas, com um Cassino e um Passeio Público.

Os banqueiros e a gente rica de Nova Iorque costumam fazer aí o seu ninho de verão, e, de vez em vez, para amenizar a vida monótona que se leva nesse pequeno mundo de simplicidade e conforto, promovem regatas na esplêndida enseada que orla a cidade e que nesses dias de festa marítima toma uma feição ridente e característica de aquarela inglesa, com os seus cutters à vela, com os seus iates de recreio bordejando ao largo como um bando de gaivotas pousadas n’água...

Apostam-se milhões de libras. De França e de Inglaterra príncipes e lordes vêm assistir e tomar parte no jogo.

A regata é um dos divertimentos prediletos dos americanos. Todas as cidades marítimas e fluviais dos Estados Unidos têm pelo menos um clube de regatas.

Nota curiosa: em Newport não se bebe álcool. É proibida a im­portação de bebidas que contenham espírito, ou qualquer outra substância nociva. Não se encontra um só botequim na cidade. Para tomarmos um refrigerante, uma simples limonada, fomos bater a uma farmácia! Garantiram-nos que esse preceito contra o álcool é escrupulosamente observado naquela cidade. Custávamos a acreditar, mas, enfim, não havia jeito senão ser delicados...

De resto, uma cidadezinha elegante e sossegada, Newport. O comércio aí é quase nulo.

No fim de oito dias o Barroso deixava de urna vez o país dos ianques, fazendo-se de vela para os Açores.

Já agora não nos doía muito a saudade desse belo e prodigioso país. O regresso à pátria, depois de uma ausência de quase um ano, enchia-nos o coração de alegria.

Não fora a perda de um companheiro em Nova Orleans e voltaríamos todos, sem faltar ninguém, sadios e fortes, cheios de impressões novas e cheios de esperança.

Voltávamos, sim, mas tínhamos deixado atrás, em terra estrangeira, num cemitério de Nova Orleans, um dos nossos camaradas.

Trazíamos uma convicção, e é que nenhum povo sabe compreender tão bem o problema da vida humana como os americanos dos Estados Unidos. A idéia da morte não os preocupa: um ianque triste é coisa rara e toma proporções de fenômeno.

Eles, os americanos, são geralmente alegres, bem-dispostos, amigos do trabalho, compenetrados de seus deveres, e, acima de tudo, amam a sua pátria mais do que qualquer outro povo.

A pátria e a família são os seus principais objetivos. Menos egoístas que os ingleses, enérgicos e resolutos, sobra-lhes tempo e dinheiro para se divertirem.

Esse povo verdadeiramente democrático não pede lições a país nenhum: engrandeceu à custa de seus próprios esforços e dia a dia prospera, assombrando o mundo com as suas empresas colossais.

Se a Alemanha representa no século XIX a pátria das ciências morais, aos Estados Unidos compete o primeiro lugar na ordem dos países que têm concorrido grandemente para o aperfeiçoamento e bem-estar humanos.

Enquanto as nações da Europa digladiam-se numa luta contínua, perdendo na guerra o que dificilmente acumularam em poucos anos de paz, a grande nação americana deixa-se estar quieta e desarmada, sem exército e sem marinha, confiada no seu próprio valor, no patriotismo de seus filhos, certa de que, num dado momento, cada cidadão, cada americano saberá cumprir com heroísmo o seu dever e honrar as suas tradições de povo independente e forte.

Go ahead! never mind! help yourself! – eis a máxima de todo ianque. Eles não a esquecem nunca e marcham desassombradamente na vida, como quem tem absoluta confiança no próprio valor.

Ceará, 1890.