COMÉDIA (teoria dos gêneros, drama greco-romano) → DanteBalzac

Castigat ridendo mores

Assim como a Tragédia, a Comédia tem suas origens relacionadas ao culto do deus Dionísio (Baco). Sua etimologia, porém, é duvidosa: a opinião mais aceita é que a palavra Komoidía derive de kómos (procissão festiva) e oidé (canto). Tratar-se-ia de um canto religioso pelo qual os camponeses gregos festejavam a chegada da primavera e, com ela, o retorno do vigor sexual. Baco, representado por um enorme fálus, era carregado em procissão, enquanto o povo entoava cânticos de agradecimento, bebendo e dançando. A relação do kómos com a vida sexual é evidenciada pelo fato de que cantos semelhantes eram retomados nos ritos matrimoniais: durante as festas de casamento (gamos), os amigos do noivo, em procissão, chegavam até a casa dele, recitando poemas licenciosos e caçoando de seus defeitos, vícios ou fraquezas. Acrescente-se ainda que, com o mesmo nome de kómos, os gregos adoravam o deus da alegria que, junto com outra divindade amiga, Momo, participava do cortejo de Baco. O deus Kómos era representado como um jovem belo e ruborizado, pelo uso do vinho, coroado de flores. Em verdade, dois elementos dessas festas religiosas concorreram para o surgimento da Comédia: de um lado, o espírito satírico dos cantos dionisíacos; de outro, os movimentos histriônicos dos participantes das procissões, que propiciavam evoluções coreográficas próximas de encenações dramáticas. Nos festivais ithiphállicos, sátiros, momos, homens gordos, gigantes, enfim todos os devotos mascarados simulavam disputas e brigas, segundo uma seqüência de ações chamada Kómos. No século VI a.C., o poeta Epicarmo, enfeixando tais manifestações orgiásticas num enredo, deu origem ao drama cômico na Grécia.

A primeira forma de comédia completamente estruturada, chamada de "velha" para diferenciá-la de outro tipo cultivado por Menandro mais tarde, teve como poeta maior Aristófanes (445–386 a.C.). Esse tipo de comédia, feita de ataque pessoal, inclusive levando para o palco o nome de ilustres cidadãos de Atenas, acabou sendo proibido por lei. E, no século III a.C., com a perda da independência política da Grécia, o drama satírico se reduziu à caricatura da vida social e moral da classe média.. Chegamos, assim, à chamada "comédia nova", cujo mestre foi Menandro (342–292 a.C.). Infelizmente, das 108 peças que ele escreveu, só restam alguns fragmentos. A estrutura e a temática da comédia de Menandro foram conhecidas através das obras dos imita¬dores latinos Plauto e Terêncio.

Na Idade Média, o gênero cômico, como outras formas dramáticas, não teve vida própria, estando submetido às "moralidades", peças de fundo didático, visando apontar os caminhos da salvação da alma. Os espetáculos profanos, de certo, não desapareceram por completo, mas ficaram confinadas ao interior dos feudos, nos castelos senhoriais, feiras livres, praças públicas. De qualquer forma, o fato é que nenhuma peça, cômica ou trágica, produzida na Idade Média, chegou até nós. A comicidade ficava a cargo do menestrel que era, ao mesmo tempo, cantor, músico, dançarino, acrobata, palhaço, dramaturgo e ator, tendo a missão de divertir o patrão e o público com suas extravagâncias e tiradas hilariantes. A obra mais importante produzida na Baixa Idade Média, embora se chame "Comédia" e seja considerada como a epopéia italiana, não pertence nem ao gênero dramático, nem ao épico. La Divina Commedia, de Dante Alighieri, é um vasto poema "didático-alegórico" (→ Dante).

Na Renascença, quando as artes em geral se emanciparam dos dogmas eclesiásticos para aderirem à ideologia humanista, a comédia recuperou o antigo fulgor da época greco-romana. Na Espanha, Lope de Vega (1582–1635) e seu discípulo Calderón de la Barca (1600–1681) criaram a chamada comedia nueva, que se libertou da tradição cênica medieval e das regras aristotélicas e foi representado nos corrales, o primeiro teatro público urbano com o palco coberto e o lugar da platéia a céu aberto. O tipo de comédia mais cultivado no séc.XVI, na Espanha, foi o de capa e espada: El Acero de Madrid, de Lope de Vega. Na Itália, o modelo clássico de comédia, assim como fora cultivado por Menandro, Plauto e Terêncio, teve ilustres cultores, destacando-se Nicolau Maquiavel (1469–1527) com sua comédia A Mandragora, obra-prima do teatro renascentista italiano, ainda hoje constantemente representada ou imitada nos palcos e nas telas cinematográficas: Nícia, marido de Lucrécia, desejoso da paternidade, deixa-se enganar pelo jovem Calímaco que, oferecendo uma beberagem para sua mulher engravidar, aproxima-se dela com a ajuda do frei Timóteo e do amigo Ligúrio. O assunto licencioso acusa as influências do Decamerón de Boccaccio, mas, junto com a hilaridade cruel do realismo burguês, há cenas de rara beleza idílica.

Paralelamente a esse tipo de comédia clássica, surgiu e se desenvolveu, na mesma península italiana, um tipo de comicidade popular, chamado "Commedia dell’ Arte", por permitir aos atores os recursos da improvisação. A partir de um simples esquema de enredo (canovaccio), geralmente apresentando um casal de namorados em luta contra a proibição paterna, os intérpretes improvisavam diálogos e achados cômicos ao sabor das circunstâncias. As variações eram facilitadas por tratar-se de companhias itinerantes, que exploravam os costumes e as peculiaridades de cada cidade que visitavam. Mas tal variedade era limitada por recursos técnicos repetidos: o uso de máscaras, trajes carnavalescos, pantomima popular. Os atores acabavam fixando-se num único papel, em consonância com a máscara que usavam. E a comicidade era garantida pelas próprias "máscaras": tipos fixos cujo simples aparecimento em cena já provocava as gargalhadas da massa popular: Capitan Spaventa (oficial espanhol brutal e fanfarrão), Mattamoro (exterminador dos mouros), Dottore (advogado gago e charlatão), Pantalone (comerciante vítima das burlas da esposa e do amante dela), Arlecchino (criado esperto), Brighella (criado burro, saco de pancadas), Pulcinella (sujeito falador e mentiroso), Colombina (moça bonita e leviana). Criaram-se, assim, estereótipos inconfundíveis, como o jovem apaixonado, a moça leviana, o criado astuto, o velho libidinoso, o soldado fanfarrão.

Na Inglaterra brilhou o gênio de William Shakespeare (1564–1616), o maior expoente do teatro elizabetano. Além das tragédias e dos dramas históricos, é atribuída ao imortal dramaturgo inglês a autoria de dezesseis comédias, entre as quais destacamos: Sonho de uma noite de verão A megera domada, As alegres comadres de Windsor, Muito barulho para nada, Tudo está bem quando bem termina, A tempestade. A comédia shakespeariana é o resultado da elaboração artística de elementos provenientes do teatro latino de Plauto, da farsa medieval e do teatro popular da renascença italiana, a chamada "comédia de arte". A França do Neoclassicismo oferece à humanidade o maior escritor de comédias de todos os tempos: Jean-Baptiste Poquelin, mais conhecido pelo pseudônimo de Molière (1622–1673). Como Shakespeare, Moliêre foi um homem que dedicou sua vida exclusivamente ao teatro, tendo sido autor, ator, diretor e produtor de peças, com a diferença de que o escritor francês se sentiu atraído apenas pelo drama cômico, enquanto o inglês produziu também excelentes peças de Tragédia. Molière colocou sua arte a serviço da luta contra a hipocrisia das convenções sociais, provocando o ódio e a vingança dos moralistas e dos beatos. Entre as suas 28 comédias, destacamos: As preciosas ridículas (investida contra as damas da sociedade parisiense que, nos salões literários, cultivavam o preciosismo na linguagem, no vestuário, na etiqueta); Escola de maridos (imitação dos Adelphoe de Plauto: questionamento sobre a educação dos filhos); Escola de mulheres (ataque contra a falsa moralidade das senhoras da sociedade); Tartufo (um hipócrita que enriquece à custa da credulidade de alguns beatos); Don Juan (sátira do casamento e da fidelidade conjugal); O misantropo (denúncia da falsa moralidade apregoada pela rígida ética jansenista); O avarento (imitação da Aulularia de Plauto: exploração do tema da avareza). Com o início do Romantismo, a comédia teatral perdeu sua força de gênero distinto, anulando-se no drama burguês. Podemos afirmar que, a partir da segunda metade do século XVIII, já não existem mais comediógrafos, mas apenas dramaturgos, pois a tragédia e a comédia se fundiram no drama moderno. A comicidade passou a ser expressa por formas teatrais mais populares, como music-hall, o vaudeville, a ópera-bufa, ou transferiu-se do palco para o circo ou para a tela do cinema, a partir do início do nosso século: o cômico de pastelão do cinema americano com a famosa dupla do Gordo (Oliver Hardy) e o Magro (Stan Laurel); a figura profundamente humana de Carlitos, a imortal personagem criada por Charles Chaplin; a gargalhada, o riso de barriga, de Buster Keaton; a crítica do american way of life, feita pelo cômico Jerry Lewis; enfim, a moderna comédia do cinema norte-americano, com filmes antológicos como Deu a louca no mundo e Um convidado bem trapalhão. No Brasil, o gênero cômico encontrou seus melhores cultores no teatrólogo romântico Luís Carlos Martins Pena, com suas comédias de costumes (As casadas solteiras, O juiz de paz na roça, O noviço); no teatro de revista de Artur de Azevedo, no fim do século passado (O mambembe, A Capital Federal); na "chanchada" do nosso cinema nacional, que teve atores cômicos do gabarito de Grande Otelo, Oscarito, Zé Trindade e Ankito, entre outros; nos programas humorísticos da televisão (Juca Chaves, Chico Anísio, Jô Soares).

A essência do cômico

Aristóteles nos dá a primeira pista para individualizar o gênero: a poesia cômica pertence à "mimese inferior", isto é, as personagens da comédia imitam ações iguais ou inferiores às ações praticadas pelos homens comuns, ao passo que as personagens da tragédia e da poesia épica são seres superiores (heróis guerreiros, varões de ilustre prosápia, deuses e semideuses) e perseguem um fim nobre. Foi nesse sentido que se entendeu o termo "comédia" na Idade Média e no período clássico da cultura moderna: Dante Alighieri intitulou seu imortal poema didático-alegórico de Comédia (o adjetivo "Divina" foi acrescentado posteriormente pelo contista Boccaccio, seu admirador), querendo dizer que tratava apenas da vida cotidiana e dos problemas existenciais dos cidadãos florentinos de sua época. A mesma intenção teve Honoré de Balzac ao descrever a sociedade burguesa da Paris oitocentesca, denominando sua coletânea de romances de Comédia humana. Quer dizer, de um certo ponto de vista, que vigorou por um longo tempo na tradição cultural do Ocidente, a comédia, mais do que ligada ao ridículo, era a representação dos vícios e das virtudes do homem "ignóbil" (sem nobreza). Segundo a teoria clássica, portanto, a comédia representa a "tragicidade" das pessoas comuns. É por isso que, estruturalmente, a comédia se diferencia da tragédia por dar maior importância à personagem "Prólogo" e anular quase completamente a função do coro: como o assunto e as personagens da peça cômica não eram conhecidos de antemão pela platéia, fazia-se necessária uma introdução explicativa; já na tragédia, sendo os mitos de conhecimento público, a figura do Prólogo era dispensável; quanto ao coro, a natureza do assunto da comédia dispensava as graves reflexões sobre os acontecimentos. Num outro lugar da Poética, Aristóteles afirma que a comédia é a passagem da infelicidade para a felicidade, contrariamente à tragédia, que é a passagem da felicidade para a infelicidade. Está declarado, assim, o principio do happy end, uma das características fundamentais do gênero cômico. Na comédia, o núcleo problemático do enredo se resolve com a punição e a conversão dos culpados, triunfando os valores ideológicos do amor, da pureza dos sentimentos, da virtude. O casamento dos protagonistas, que é o fecho de ouro da maioria das comédias, sugere que a felicidade conquistada será duradoura, pois os obstáculos foram eliminados para sempre. A luta contra os personagens agressores (o pai tirano, o velho avarento ou luxurioso etc.) e a vitória sobre eles representam, em linguagem psicanalítica, a libertação dos impulsos reprimidos, a recuperação do riso perdido da infância. Nesse sentido, a comédia, embora impregnada do espírito dionisíaco (→ Dionísio), implícito na sátira, na ironia, na gozação, ao final apresenta uma clara manifestação do espírito apolíneo (→ Apolo). Isso porque o conteúdo colocado no término da peça cômica é sempre o triunfo do sonho, da fantasia, do desejo da realização amorosa do casal de jovens. Tal conteúdo é profundamente ideológico, pois mostra a vida como desejaríamos que fosse, não como ela é na realidade. Por essa razão, o estudioso norte-americano Northrop Frye (Anatomia da crítica), no ensaio sobre a teoria dos arquétipos, relaciona a comédia com o mito da Primavera: a sociedade dos jovens rebela-se contra a sociedade do senex, do velho agressor, ridicularizando a valorização desmedida do dinheiro, a burocracia estúpida, a moral retrógrada e hipócrita, o princípio da autoridade. Enfim, a ação da comédia move-se da lei para a liberdade, da terra estéril para a vitória do amor e da vida.

Outro aspecto característico da comédia é o seu fim moralizante. Embora não pareça, a arte cômica dificilmente tem por escopo a mera diversão. No barroco italiano, a comédia recebeu um lema em língua latina que ainda hoje tem seu valor: castigat rídendo mores ("corrigem-se os costumes pelo ridículo"). Apontar as falhas estruturais e circunstanciais da sociedade, ridicularizando as inconseqüências e incongruências, as contradições e os absurdos com que o homem é obrigado a conviver, não deixa de ser uma forma de estimular a correção das deficiências individuais e sociais. Assim, por exemplo, quando Aristófanes satiriza os políticos corruptos e demagogos, o palavreado estéril dos sofistas, a mania das discussões forenses, tem em mente defender a verdadeira realidade desejada para o Estado, a Religião e a Arte. Como toda forma artística autêntica, a comédia deve apresentar o racional e o justo, em oposição vitoriosa contra todos os inconvenientes e contra tudo o que há de insensato na realidade existencial.

Mas, se a comédia, como gênero cultural, se propõe estimular o riso, deve-se reparar que nem todo riso é cômico. Hegel, em sua Estética, distingue o "ridículo" do "cômico": todo o contraste entre o essencial e a representação exterior, entre o fim e os meios, pode ser ridículo; existe um riso de escárnio, de desprezo, de desespero etc. Diferentemente, o que caracteriza o cômico é o bom humor que permite ao homem elevar-se acima da própria contradição, em vez de sofrer e sentir-se infeliz e desgraçado, irremediavelmente. O riso cômico ocorre ao se pôr em evidência a diferença entre a realidade e a idealização da vida: o velho que se obstina em namorar a mocinha, o dinheiro do avarento que adquire um valor de culto e não apenas de troca, a hipocrisia de quem condena nos outros o que ele mesmo faz ocultamente, etc. Edward Wright (Para comprender el teatro actual) aponta os meios mais comuns de que se serve a peça cômica para suscitar o riso: os estratagemas do argumento, a incongruência das personagens, o engenho verbal, os infortúnios físicos, a obscenidade. A comédia mais elevada é a das idéias ou da sátira de costumes: ela estimula um riso reflexivo. O tema, embora tratado de forma leve, verte sempre sobre um assunto sério, verossímil, geralmente focalizando os problemas contemporâneos do autor. Entretanto, as melhores comédias são aquelas que apresentam problemas universais: daí a eterna modernidade das peças cômicas de Plauto, Shakespeare, Molière. Outra característica da comédia, que contrasta com a tragédia, refere-se ao relacionamento palco-platéia. Quando o espectador pode se envolver com a personagem, de modo a quase se identificar com ela, temos uma relação de estilo grave, próprio do drama trágico; pelo contrário, quando o espectador rejeita a personagem-protagonista, situando-se num mundo do qual ele se julga distante, estamos perante um relacionamento de estilo cômico. Daí o conhecido achado de que a tragédia faz com que o espectador se identifique com o personagem, enquanto, na comédia, ele identifica o personagem com seu vizinho. O dramaturgo Ionesco quase anula a diferença entre os dois gêneros: "o cômico, sendo a intuição do absurdo, me parece mais desesperador que o trágico".