Anexo:Imprimir/A Retirada da Laguna

  • Ao imprimir esta página, selecione a opção de Versão para impressão do menu lateral esquerdo. Notarás que desaparecerão este quadro, os cabeçalhos e elementos de navegação entre páginas que não seriam úteis em uma versão impressa.
  • Clicando primeiro em atualizar esta página estará se assegurando de obter as últimas atualizações feitas no livro antes de o imprimir.
  • Se preferir, podes exportar o texto em um dos formatos a seguir:


Índice editar

A

SUA MAJESTADE O SENHOR

DOM PEDRO II

IMPERADOR DO BRASIL

Senhor,

Ao se render Uruguaiana, inaugurou Vossa Majestade, na América do rio, a guerra humanitária, a que aos prisioneiros poupa e salva, trata feridos inimigos com os desvelos dispensados aos compatriotas, a que, considerando a efusão de sangue humano deplorável contingência, aos povos apenas impõe os sacrifícios indispensáveis ao sólido estabelecimento da paz.

E é principalmente sob este ponto de vista que ouso achar-me autorizado a colocar sob o augusto patrocínio imperial a desataviada narrativa da Retirada da Laguna, obra da constância e da disciplina, em que os oficiais de Vossa Majestade, devendo defender, por entre obstáculos os mais diversos, as bandeiras e os canhões a eles confiados, jamais cessaram, quanto lhes foi possível, de conter o legitimo desforço de bizarros soldados, exasperados pelo furor do inimigo, e obstar à crueldade tradicional de auxiliares índios, vingativos como soem ser.

É este reflexo de um grande ato de iniciativa soberana, a mais bela recordação que jamais poderemos entre camaradas invocar; cabe-me a honra de a Vossa Majestade dedicá-la.

De Vossa Majestade Imperial

súdito e servidor, muito humilde e obediente,

Alfredo d'Escragnolle Taunay

É o assunto deste volume a série de provações por que passou a expedição brasileira, em operações ao sul de Mato Grosso, no recuo efetuado desde a Laguna, a três e meia léguas do rio Apa, fronteira do Paraguai, ate o rio Aquidauana, em território brasileiro, trinta e nove léguas, ao todo, percorridas em trinta e cinco dias de dolorosa recordação.

Devo esta narrativa a todos os meus irmãos de sofrimento, aos mortos ainda mais do que aos vivos.

Em todas as épocas largo interesse se ligou às retiradas, não só por constituírem operações de guerra difíceis e perigosas, como nenhuma outra, mas ainda porque os que as executam, já sem entusiasmo nem esperanças, freqüentemente entregues ao desânimo, ao arrependimento de erros ou das conseqüências de erros, precisam arrancar ao espirito, assim preocupado, os meios de enfrentar a fortuna adversa, que a cada passo os ameaça, com todos os seus rigores. Em tais contingências requer-se o verdadeiro cabo de guerra: ali há de se lhe revelar o característico essencial: a inabalável constância.

Vive a Retirada dos Dez Mil em todas as memórias. Colocou Xenofonte na plana dos primeiros capitães. Nos tempos modernos várias ocorreram não menos notáveis: a de Altenheim, pelo marechal de Lorge, após a morte de Turenne, seu tio, e que ao grande condé fez declarar que lha invejava; a de Praga, enaltecedora da nomeada do Conde de Belle Isle; a de Plaffenhofen, por Moreau, tida como um dos mais belos feitos d´armas, efetuados por Turenne; já em nossos dias; a de Talavera, que levou lorde Wellington, triunfante, a Lisboa; a que honrou o funesto regresso de Moscou e em que o príncipe Eugênio e o marechal Ney rivalizaram, em heroísmo; a de Constantina pelo marechal Clausel e outras menos célebres; mas que, no entanto, pela variedade dos perigos e das misérias, chamam a atenção da história.

Resta-nos solicitar a maior indulgência para esta narrativa cujo único mérito pretende ser o dos fatos expostos. Tiramo-los de um diário escrito em campanha.

Assim, nela hão de abundar as incorreções, demasias e repetições; cremos dever deixá-las; são indícios da presença da verdade.

ALFREDO D'ESCRAGNOLLE TAUNAY

Rio de Janeiro, outubro de 1868.


Formação de um corpo de Exército destinado a atuar, pelo norte, sobre o Alto Paraguai. Distâncias e dificuldades de organização.

Para dar uma idéia, algum tanto exata, dos lugares onde, em 1867, ocorreram os acontecimentos cuja narrativa se vai ler, convém lembrar que, ao finalizar de 1864, havendo o Paraguai atacado e invadido, simultaneamente, o Império do Brasil e a República Argentina, achava-se, decorridos dois anos, após tal investida, reduzido a defender o próprio território, invadido do lado do sul, pelas forças conjuntas das duas potências aliadas, a quem coadjuvava pequeno contingente de tropas da República do Uruguai. Ao rio oferecia o caudaloso Paraguai mais vantagens à expugnação da fortaleza de Humaitá, que, pela posição especial, se convertera na chave estratégica do país, assumindo, nesta porfia encarniçada, a importância de Sebastopol, na Campanha da Criméia.

Ao norte, do lado de Mato Grosso, eram as operações infinitamente mais difíceis, não só porque ocorriam a milhares de quilômetros do litoral atlântico, onde se concentram todos os recursos do Brasil, como ainda por causa das inundações do rio Paraguai, que, cortando na parte superior do curso terras baixas e planas, transborda anualmente, a submergir então regiões extensíssimas. Consistia o plano de ataque mais natural em subir as águas do Paraguai, do lado da Argentina, até o coração da república inimiga e, do Brasil, descê-las a partir de Cuiabá, a capital mato-grossense que os paraguaios não haviam ocupado.

Teria impedido à guerra arrastar-se durante cinco anos consecutivos esta conjugação de esforços simultâneos. Mas era-lhe a realização extraordinariamente difícil, devido às enormes distâncias a transpor. Basta lançar os olhos sobre um mapa da América do rio e examinar o interior do Brasil, em grande parte desabitado, para que qualquer observador de tal se convença logo.

No momento em que se enceta esta narrativa, estava, pois, a atenção geral das potências aliadas quase exclusivamente voltada para o sul, para as operações de guerra, travadas em torno de Curupaiti e Humaitá. Quanto ao plano primitivo fora ele mais ou menos abandonado; quando muito ia servir de pretexto a que se infligissem as mais terríveis provações a uma pequena coluna expedicionária, quase perdida nos imensos e desertos sertões brasileiros.

Em 1865 - ao arrebentar a guerra que Francisco solano Lopes, o presidente do Paraguai, na América do rio suscitara sem maior motivo do que os ditames da ambição pessoal; quando muito a invocar o vão pretexto da manutenção do equilíbrio internacional - o Brasil, obrigado a defender honra e direitos, dispôs-se, denodadamente, para a luta. A fim de reagir contra o inimigo, em todos os pontos onde podia enfrentá-lo, o plano da invasão do Paraguai setentrional acudiu naturalmente a todos os espíritos; preparou-se uma expedição para este fim.

Não foi infelizmente este projeto de diversão realizado nas proporções que sua importância exigia; e, mais infelizmente ainda, os contingentes acessórios sobre os quais contávamos, para avolumar o corpo de Exército expedicionário, durante a longa jornada através de São Paulo e Minas Gerais, falharam em grande parte ou desapareceram devido à cruel epidemia de varíola e às deserções que esta provocou. Marchou-se lentamente: provinha a demora de muitas causas, sobretudo da dificuldade do abastecimento de víveres.

Foi somente em julho (partira do rio de Janeiro em abril) que a coluna pôde organizar-se em Uberaba, chegando-lhe os quadros a atingir cerca de três mil homens. Reforçavam-na vários batalhões que, de Ouro Preto, trouxera o coronel José Antônio da Fonseca Galvão.

Não sendo esta força ainda suficiente para uma ofensiva, seu comandante, Manuel Pedro Drago, encaminhou-a para a capital de Mato Grosso, a fim de avolumá-la. Assim se adiantou em direção ao noroeste, até as margens do Paranaíba, quando ali recebeu peremptórias ordens do governo, levando-lhe instruções formais de marchar para o distrito de Miranda, então ocupado pelo inimigo.

Tal injunção, no ponto a que chegáramos, impunha como forçado corolário obrigar-nos a descer em direção ao rio coxim e a contornar em seguida a serra de Maracaju, por sua base ocidental, anualmente invadida pelas águas do Paraguai. Assim, pois, estava a expedição condenada a atravessar extensíssíma região empestada pelas febres palustres.

A 20 de dezembro atingiu o Coxim, ainda sob o comando do coronel Galvão, recentemente investido da chefia e, pouco depois, graduado em brigadeiro.

Embora sem valor algum estratégico, tinha pelo menos o acampamento do Coxim uma altitude que lhe garantia a salubridade. Não tardou, porém, que a enchente havendo-o ilhado e isolado, ali passasse a força pelas mais cruéis privações, sofrendo até fome.

Após longas hesitações, forçoso se tornou romper ao acaso, através do pestilento pantanal, onde a coluna foi desde o princípio provada pelas febres. Uma das primeiras vítimas veio a ser o próprio e infeliz chefe, falecido à margem do rio Negro. Afinal, arrastando-se penosamente, conseguiu atingir a povoação de Miranda a 396 quilômetros para o Sul. Aí uma epidemia climática de novo gênero, a paralisia reflexa, ou beribéri, acabrunhou-a, dizimando-a ainda mais. Dois anos quase haviam decorrido, desde a nossa partida do rio de Janeiro. Lentamente descrevêramos imenso circuito de dois mil cento e doze quilômetros. E já um terço de nossa gente perecera.


Miranda. Partida da coluna. Marcha de Miranda a Nioac.

Foi a 1º de janeiro de 1867 que o coronel Carlos de Morais Camisão, nomeado pela presidência de Mato Grosso, assumiu o comando dos desventurados soldados que, só mesmo profundo sentimento de disciplina, pudera até então manter em forma. É Miranda quase inabitável, rodeada como se acha, e numa extensão considerável, de depressões que a menor chuva, num instante, inunda, até mesmo na melhor estação, e que os raios solares, com a mesma rapidez, enxugam. Privada de boa água, pois a do Miranda é sempre agitada e lodosa, a disposição do terreno não oferecia ali, aliás, nenhuma das condições militares às quais, em rigor, poderiam ter sido sacrificadas as considerações higiênicas. E com efeito, ao longo de um caudal, acessível a grandes embarcações, estendem-se margens uniformemente baixas a que tiram toda a segurança estradas abertas.

Freqüente e energicamente pronunciara-se a comissão de engenheiros contra maior demora neste foco de infecção; e já, por duas vezes, em relatório, o assinalara o chefe da junta médica como a causa da ruína da expedição; pois de contínuo diminuía o seu pessoal, quer pela morte, quer pela dispensa forçada dos doentes. Continuava o beribéri a fazer em nossas fileiras numerosas vítimas naquele lugar ainda sujeito à influência dos grandes pantanais que a tropa acabara de atravessar, entre o Coxim e o Miranda.

Estava Miranda em ruínas quando nossas forças ali entraram. Ao partirem haviam-na os paraguaios incendiado. Ardera parte das construções, mas eram evidentes os sinais de decadência, anterior ao incêndio que sucedera à primeira fase de desenvolvimento e prosperidade. Ainda se mantinham de pé prédios cômodos e, sobre o local de velha fortificação, outrora bem construído quartel, então muito deteriorado pelo fogo, fechava uma praça de onde saíam duas ruas que iam acabar em frente à igreja paroquial, ambas ladeadas de casas erguidas à pequena distância umas das outras.

Da matriz apenas subsistiam as paredes laterais, o arcabouço da torre, o galo de folha-de-flandes e uma cruz esculpida no alto do frontão. Fora edificada graças aos esforços de virtuoso missionário italiano, frei Mariano de Bagnaia, que não somente nela empregara o produto das esmolas, por ele próprio recolhidas em toda a vizinhança, com incomparável trabalho e ardor, como ainda ali aplicara a modesta côngrua.

Os tristes destroços desta igreja, saqueada pelos paraguaios, que até os sinos lhe tomaram, havia algum tempo antes presenciado uma cena que nos parece merecer menção.

A 22 de fevereiro de 1865, deixando frei Mariano as margens do Salobro, onde se refugiara, ao aproximar-se a invasão, viera, de moto próprio, entregar-se aos paraguaios, no intuito de lhes pedir compaixão para com a desventurada paróquia. Ao chegar à vila, fora-lhe o primeiro cuidado correr à matriz, objeto da sua mais viva solicitude. Desolador espetáculo o esperava: altares derribados, as imagens santas despojadas dos adornos, enfim todas as mostras da profanação. Ao presenciá-lo, dele se apoderou tal sentimento de indignação e desespero, que não pôde dominar-se. Imediatamente, e em tom retumbante, à frente do chefe paraguaio e seus comandados, pronunciou solene anátema contra os autores de tais atentados. Ouviram-no todos cabisbaixos, como se esta voz severa fora a de algum daqueles padres que outrora lhes haviam catequizado os antepassados, esforçando-se o comandante em convencer o missionário que os únicos culpados eram os mbaias (índios).

Lavado em lágrimas, corria o santo homem de altar em altar, como para verificar os ultrajes praticados contra cada um dos objetos de sua veneração. Só após minuciosa constatação de todas as indignidades cometidas se resignou a celebrar o santo sacrifício da missa; e isto depois de tudo haver disposto para que a cerimônia se pudesse realizar.

De cento e treze dias, foi a permanência da coluna em Miranda - de 17 de setembro de 1866 a 11 de janeiro seguinte. A 28 de dezembro retirou-se um dos comandantes enviados da capital de Mato Grosso, ele próprio atacado pela epidemia. A 31 do mesmo mês apresentava-se em Miranda o coronel Carlos de Morais Camisão; e no dia imediato, 1º de janeiro de 1867, assumia o comando, como já o dissemos.

Enviou imediatamente a Nioac dois membros da comissão de engenheiros, Catão Roxo e Escragnolle Taunay, a fim de examinarem as estradas e o local e preparar ali acampamentos, tomando ao mesmo tempo algumas disposições relativas à recepção de enfermos e ao armazenamento das munições de guerra e da boca.

A 10 tornou pública a ordem de marcha.

Nova organização dera ao corpo de Exército. Anteriormente dividia-se em duas brigadas, cada qual composta de três corpos. Mas tanto uma como outra estavam tão reduzidas, que as manobras, baseadas sobre um número certo de homens, se haviam tornado quase impraticáveis. Pela fusão de todas em uma brigada de mil e seiscentas praças, ficou o estado-maior aligeirado, e não sem vantagens para o erário público, de pessoal supérfluo. Tal medida, desde muito reputada útil, teve geral aprovação.

Moveu-se a força a 11; e, pela primeira vez, as peças de artilharia montada, puxadas por bois, acompanharam a marcha da infantaria.

Saíram os diferentes corpos da vila de Miranda completamente fardados, armados e providos de munições, libertos, pressentiam-no, das provações a que se submeteram, desvanecidos daquele sentimento de disciplina que tudo os fizera suportar, embora exercitando-se, cada vez mais, no manejo das armas. O que estes homens pediam era um clima salubre que os revigorasse e os pusesse em condições de agir. E este iam encontrá-lo em Nioac, a 210 quilômetros a sudesde de Miranda.

Era a estrada larga e corria ao longo de magníficos bosques, onde predominavam os umbus balsâmicos, espalhando ao longe o perfume das flores abertas, os piquis, carregados de frutos, e as inesgotáveis mangabeiras.

São mui belos os acidentes do terreno; os ribeirões e riachos, a correrem volumosos por toda a parte, ofereciam excelente água. Já não mais pousávamos os olhos sobre as tristonhas perspectivas dos pântanos. Pelo contrário, nos comprazíamos agora em contemplar verdejantes campinas, trechos que apresentavam os mais poéticos aspectos, à sombra de poderosos contrastes luminosos. Até Lauiad ruma a estrada, diretamente, para leste. A partir deste ponto toma a direção sul-sudeste. O panorama que então subitamente se desdobra é realmente grandioso. Aos pés do espectador, vasta campina a que embelezam magníficos acidentes; além, as grandes orlas da mata que acompanham as sinuosidades das belas águas do Aquidauana; ao longe a extensa serra de Maracaju, com os píncaros escalvados, refletindo os esplendores do sol, e coroando toda esta massa prodigiosa, azulada pela distância. Foi este ponto, com razão, chamado pelos Guaicurus Campo Belo (Lauiad).

Parece apanágio dos povos civilizados o sentimento admirativo; pelo menos bem raro é nos homens primitivos a sua manifestação exterior. No entanto, as grandes linhas de um quadro majestoso da natureza conseguem, às vezes, vencer a feição material do selvagem, unindo ao autor da obra o rude espectador maravilhado. O primeiro Guaicuru que sobre esta região encantada deitou os olhos, não pôde conter a exclamação de surpresa; com a voz gutural e cavernosa pronunciou a palavra Lauiad, que para sempre a assinalou.

A quatro léguas de Lauiad está a Forquilha, onde o Nioac conflui com o Miranda.

São todos estes panoramas de incomparável beleza. Uma eminência, entre outras, de onde se dominam as margens cheias de mata do Uacogo, do Nioac e do Miranda, enlaçando a planície em suas curvas convergentes, oferece aspecto que sobrepuja ainda, se possível, o panorama da Lauiad. Tão brilhante, tão suave a luz que a toda aquela paisagem cobre que, involuntariamente, vem a imaginação emprestar a sua magia a este irresistível conjunto dos encantos da terra e do céu. Apertadas entre altas ribanceiras, cobertas de taquaruçus, correm as águas frescas do Nioac sobre um leito quase contínuo, de grés vermelho, disposto em grandes lajes; e, em vários lugares, é a ação da correnteza sobre a pedra tão notável, que se recomenda à atenção e ao estudo do geólogo. Mas quem, sábio ou artista, não acharia farta messe nestes campos admiráveis? Na extensão das dez léguas que separam a Forquilha de Nioac têm os terrenos nível inferior aos que precedem Lauiad, muito embora jamais possam, em tempo algum, ser invadidos pela inundação. São, pelo contrário, secos e cobertos de pedregulho, como de macadame natural. Nos cerrados surgem os piquis, freqüentes.; há também uma grande árvore que se cobre de bagas açucaradas e agradáveis, a que chamam fruta-de-veado. Não se mostram os jacarandás, também, aí raros.

Realizou-se a marcha para Nioac com muita ordem e regularidade. Eram alguns doentes transportados em redes, outros em cangalhas semelhantes aos cacolets usados pelo Exército francês na Argélia e da invenção de Larrey, no Egito. Grandes serviços nos prestou este excelente modo de transporte. Suavizou, até, os últimos momentos do capitão Lomba, do 21º batalhão, que morreu ao chegar, supremo sacrifício, oferecido ao mau fado da nossa longa permanência em Miranda.

A benigna influência do planalto que atingíramos fez desaparecer completamente a epidemia. Restabeleceram-se de pronto os doentes: não tornamos a ver aquelas terríveis dormências, sinais precursores do mal que tantas vítimas causara.


Nioac. O coronel Carlos de Morais Camisão. O guia José Francisco Lopes.

Fora a vila de Nioac abandonada pelo inimigo a 2 de agosto de 1866. Por toda a parte ali se viam vestígios do incêndio. Poupadas, apenas, duas casas e uma pequena igreja de pitoresca aparência. À primeira vista agrada o aspecto geral do lugar. De um lado, o povoado e um ribeirão chamado Orumbeva; do outro, o rio Nioac, cujas águas confluem cerca de 900 metros, para trás da igreja, deixando livre, em torno desta, à direita e à esquerda, um espaço duas vezes maior. Pequena colina fica-lhe em frente, a pouca distância.

Ali chegamos às 11 horas de 24 de janeiro de 1867 acampando, em ordem de batalha, com a direita encostada à margem direita de Nioac; e a esquerda à mata do Orumbeva. Instalaram-se o quartel-general e o trem à retaguarda, no local da vila, ocupando o hospital as pequenas casas salvas do fogo e um grande galpão que às pressas se construiu.

Serviu a nave da igreja - de onde se retirara tudo quanto ainda havia de símbolos do culto - de depósito ao cartuchame e a todas as munições.

Ergueram-se, de todos os lados, ranchos de palha, gurbis como lhes chamam na Argélia, e, dentro em pouco, oficiais e soldados ali se acharam tão bem instalados quanto as circunstâncias o permitiam. Um bem-estar, desde vários meses ausente, o renovamento da existência um sentimento de plenitude de vida a todos nós exaltava, e em todos se transmutava na ânsia de sobressair, graças a algum brilhante feito d'armas que chamasse a atenção do país para uma expedição desde muito inativa. Reinavam no acampamento a esperança e a alegria.

Perigo havia, contudo, neste entusiasmo; e os que conheciam o chefe, de si para si, indagavam, com secreto desassossego, qual lhe seria a demonstração da iniciativa.

Ia-lhe no peito amarga lembrança que não conseguia remover da mente. Ao abandonar o coronel Oliveira, comandante das armas da província, a praça de Corumbá[1], embora estranho às primeiras deliberações motivadoras desta precipitada retirada, figurara neste triste episódio o coronel Camisão na qualidade de comandante do segundo batalhão de artilharia; e, por tal motivo, vira-se acoimado de solidariedade com este ato de fraqueza. Contra ele servira-se a malevolência destas vozes cruéis, circulando, em tal época, um soneto impresso, acerbo estigmatizador dos defensores de Mato Grosso. Dentre os nomes nele apontados, lera o próprio...

Subsistia a dor da afronta, profundamente magoado como se lhe achava o pundonor militar. Com verdadeira paixão aceitara o comando da expedição. Seria, a seu ver, o modo de se reabilitar perante a opinião pública e, desde tal momento, concebera o projeto não de se manter na defensiva, como o critério o indicava, dada a exigüidade dos recursos de que podia dispor, e sim de levar a guerra ao território inimigo, fossem quais fossem as conseqüências.

Dia a dia. cada vez mais, tal idéia o empolgara. Sob, a influência de legítimo ressentimento, tomou a feição da fixidez, apesar da inata indecisão do caráter. Sinistro fadário o impelia ao infortúnio.

Encontrava-se no arquivo da coluna um ofício do ministro da Guerra recomendando a marcha sobre o Apa logo que as conjunturas a tanto se prestassem.

Ali enxergou, não o que exatamente havia, uma indicação facultativa, mas a ordem de avançar, formal, peremptória. Por mais que se lhe fizessem observações: cego, graças à doentia suscetibilidade, levava a mal o que de menos contestável se lhe objetasse.

Uma frase depreciativa a seu respeito pronunciada, imprudentemente repetida, ainda lhe acirrou a inflexi­bilidade, tornando-o surdo a quanto parecesse desviá-lo do projeto de invasão. Não era que lhe não sopesasse as dificuldades; via, porém, os soldados cheios de entusias­mo e já aguerridos; embalava-se na esperança de, à sua testa, praticar grandes feitos; adestrava-os às manobras, por meio de freqüentes exercícios, levava-os a empenhar combates simulados, em que a artilharia representava ruidoso papel; e desta agitação geral resultava uma animação de que ele próprio compartia.

Entretanto, algumas vezes também, percebia nitida­mente que apenas dispunha de uma vanguarda de exér­cito em campanha; e era obrigado a reconhecê-lo. As hesitações lhe voltavam então, e, chegado o dia por ele pró­prio fixado para a arrancada das forças, achava sempre motivo para o adiamento, embora precisasse invocar as razões na véspera repelidas. Ora oficiava ao ministro que nada podia empreender sem cavalaria, e ora pre­tendia poder dispensá-la; dolorosos embates entre a au­toridade da razão clara e as inspirações do orgulho ma­goado.

Era-lhe a atitude, aliás, sempre digna e firme; em todas as questões administrativas trazia, sobretudo, o cunho de nobre integridade. Não admitia uma diminui­ção ao prestígio de chefe e sabia mantê-lo tanto mais quanto lhe assistia real singeleza e amenidade.

Homem de quarenta e sete anos de idade, baixo e apa­rentemente robusto, feições regulares, tez moreno-escura, olhos negros e vivos, tinha larga testa e belo crânio, completamente calvo, que dos paraguaios lhe valeu in­juriosa alcunha. Sempre sério e preocupado, era visto solitário, ou a conferenciar com o velho sertanista que nos servia de guia, José Francisco Lopes.

Merece este ser apresentado ao leitor antes que o veja agir. Dentre nós, os que tinham presentes os romances de Fenimore Cooper, não podiam, à vista do sertanejo brasileiro, o homem das solidões, deixar de evocar a grande e singela figura de Olho de Falcão no Último dos Moicanos.

Tivera, desde a infância, o pendor pelas entradas nos sertões brutos. Contava-se também que um ato violento, da primeira mocidade, lhe impusera, durante algum tempo, este modo de vida. Viera depois a idade desen­volver-lhe todas as aptidões. Prodigiosamente sóbrio, via­java dias inteiros sem beber, trazendo à garupa da caval­gadura pequeno saco de farinha de mandioca, amarrado ao pelego macio, que lhe forrava o selim. Jamais deixa­va o machado destinado a cortar palmitos. Nascido na Vila de Piumi, em Minas Gerais, dali, ao léu das aven­turas, havia atingido todos os pontos da área que se es­tende das margens do Paraná às do Paraguai. A fundo conhecia as planícies que entestam com o Apa, divisa do Brasil e do Paraguai. Numerosas localidades até en­tão virgens do pé humano, até mesmo selvagem, per­correra e a várias batizara (Pedra de Cal, entre outras). Tomara, em nome do Brasil, posse, ele só, de imensa flo­resta, no meio da qual chantara uma cruz, grosseira­mente falquejada, onde esculpira a inscrição P II (Pedro Segundo), imponente madeiro, perdido no recesso dos desertos. Criava a iniciativa do sertanista domínios ao soberano.

Numa viagem para estudar a navegação do rio Dou­rado, afluente do Paraná, gravemente ferira a planta do pé, acidente de que jamais pudera curar-se. Um dia. como lhe víssemos a chaga, semicicatrizada, sempre a sangrar, disse-nos: "Prometeu-me o governo dar-me, a título de recompensa, trezentos mil-réis, mas nunca os pagou. Perdoei-lhe a divida; o que se me devia era uma condecoração; já a tenho e nada mais quero."

Durante sete anos, com a família, residira no Para­guai; mas no momento da invasão já estava de volta ao solo brasileiro, habitando, à margem do rio Miranda, uma propriedade sua, que batizara Jardim, fertilizada por seu trabalho e o dos filhos já crescidos. Ele e a mu­lher, dª. Senhorinha, generosamente hospedavam quantos ali fossem ter.

Quando, em 1865, irromperam os paraguaios em ter­ritório brasileiro, conseguira escapar-lhes, mas único da família, que caíra toda em poder do inimigo e fora trans­portada para a aldeia paraguaia de Horcheta, a sete lé­guas da cidade de Concepción. Com ela ali vivia o coração do velho guia.

Por todas estas razões, nele encontrou o coronel Camisão apaixonado adepto. Desde que, dando-lhe a co­nhecer os seus projetos, acenou a José Francisco Lopes com o ensejo de, como guia da expedição, ir ter com a família e vingar-lhe os agravos, empolgou o espirito do sertanista brasileiro, que, apesar de todo o ardor, jamais perdeu, contudo, a perfeita intuição das conveniências. Assim, nunca esquecendo a modéstia da posição, freqüen­temente dizia: "Nada sei, sou sertanejo; os senhores que estudaram nos livros é que sabem."

Era-lhe o orgulho num único ponto irredutível, no que tocava ao conhecimento do terreno, legitima am­bição, além do mais, pois dela nos proveio a salvação. "Desafio, exclamava, todos os engenheiros com as suas agulhas (bússolas) e plantas. Nos campos da Pedra de Cal e Margarida sou rei. Só eu e os índios Cadiuéus co­nhecemos tudo isto."

Resolveu-se a partida de Nioac, embora já com gran­des dificuldades tivéssemos que lutar, sobretudo quanto ao abastecimento de gado.

Comunicou-se a ordem às tropas sem que se soubesse bem para onde se ia marchar. Pensava a maioria que se tra­tava somente de alguma incursão a fazer em território inimigo. Levava a coluna apenas o material indispensá­vel para um mês de ausência. Ficavam no acampamento as mulheres dos soldados, exceto duas ou três.

Notas editar

  1. Fora em fins de dezembro de 1864 Corumbá tomada e devastada pelos paraguaios. Era a principal praça comerciante de Mato Grosso: e o inimigo ali realizou mui considerável presa. Haviam-se os habitantes refugiado nas matas vizinhas, mas Barrios os perseguiu. Saqueadas as casas, vários objetos roubados, e dos mais valiosos, remeteram-se a Lopes que não hesitou em os guardar, sobressaindo-se Barrios entre todos os que assim procederam. A um brasileiro rico, e sua filha, levaram a bordo do seu navio: e quando o pai recusou deixar a menina a sós com o chefe paraguaio, arrastaram-no à força, ficando a infeliz criança no navio. Pôs Barrios em tratos todos os que lhe caíram às mãos, quando queriam ou não podiam dar-lhe as informações pedidas, ordenando que os espancassem: foram vários lanceados como espiões. The War in Paraguay por G. Thompson, vol. in 12, 1869. Jovem engenheiro ao serviço de Lopez, entrara o sr. Thompson em campanha, crente que ia defender o fraco contra a opressão. À experiência dos fatos testemunhados dissipou-se, porém, a generosa ilusão.


Marcha sobre a fronteira paraguaia. Conselho de guerra.

Arrancou a coluna a 25 de fevereiro de 1867, indo acampar a uma légua da vila, à margem do rio Nioac. Logo que pudemos, visitamos o comandante. Tinha a barraca sobre um montículo pedregoso, a meio abrigado por palmeiras que tornavam aprazível aquele local. Estava agitado: já para o rancho da tarde faltava gado. A 26 estávamos no Canindé; a 27 no Desbarrancado.

Dois dias demorou a coluna neste lugar, 28 de fevereiro e 1.° de março. A 2 marchava até o Feio, rio da vizinhança, onde, devido ao mau tempo, passou o dia 3. Nesse mesmo dia voltou José Francisco Lopes de sua estância do Jardim trazendo-nos, mais ou menos, duzenta e cinqüenta cabeças de gado, circunstância que naturalmente veio aumentar a grande confiança que nele e em sua palavra já depositávamos. A 4, à uma hora da tarde, ocupamos o lugar onde fora a colônia de Miranda, distante 80 quilômetros S.S.O. de Nioac[1]. Apenas ali restavam alguns vestígios de construções incendiadas.

Principiou o coronel Camisão por fazer explorar os diversos pontos que se ligavam à nossa posição e ordenou que, em todas as direções, se abrissem picadas através das matas, mandando ocupar as estradas do Apa e da colônia por piquetes. Ao mesmo tempo eram os aproches da frente e da retaguarda resguardados por destacamentos consideráveis.

O que teria convindo seria investir com as fortifica­ções paraguaias e tomá-las. Na primeira confusão desta surpresa, poderíamos devastar o l da República an­tes que o governo de Assunção soubesse de nossa mar­cha. Deu-se inteiramente o contrário: teve o inimigo tempo de perceber a diretriz e o alcance da empresa.

Continuava sempre iminente a fome. Segundo reba­nho de duzentas cabeças, que Lopes ainda trouxera de suas terras, estava a acabar. Nenhuma remessa nova se anunciava e a Intendência em ofício, datado de Nioac, declarava achar-se incapaz de prover, daí em diante, ao abastecimento de gado. Nesta contingência acentuaram­-se as hesitações do coronel com maior freqüência. Dei­xou mesmo pressentir a necessidade que talvez o com­pelissem a retrogradar até Nioac e abandonar proviso­riamente os projetos de ofensiva. Como fazia praça em observar, tal idéia, aliás, jamais fora favoravelmente acolhida.

Quis em todo o caso pôr a salvo a responsabilidade, por meio de documento oficial com que, oportunamente, pudesse justificar-se, quer perante o governo, quer pe­rante o público. Assim, pois, a 23 de março, oficiou ao presidente da comissão de engenheiros, determinando­-lhe que convocasse os colegas para deliberarem sobre a possibilidade de um movimento ofensivo e os meios de o executarmos. À tarde desse mesmo dia. graças a um contraste, cuja recordação nos ficará inapagável à men­te, reuniu-se este conselho pejado de tantas desgraças, quando a luz crepuscular enchia os espaços de paz e ale­gria. A princípio solene, acabou por violências nascidas da exaltação conscienciosa.

Por diversas vezes esforçaram-se três dos membros da comissão em pintar a posição do corpo de Exército tal qual realmente era; a insuficiência de víveres; a inópia absoluta dos meios de transporte; a ausência da cava­laria e a escassez das munições; a impossibilidade de an­gariar reforços ou socorros para um punhado de homens internados em terra inimiga. Daí a eventualidade infa­livelmente próxima de uma retirada a executar-se, sem dados de antemão estudados, e sob condições em que as tentativas só podiam conduzir a um desastre; e isto com a deplorável conseqüência de atrair novamente para o território brasileiro, a ocupação paraguaia, acompanha­da de todos os horrores.

Razão, mais que sobeja, assistia incontestavelmente aos que assim pensavam. Dois dos colegas, porém, encarando a questão sob um ponto de vista diverso, e buscando argumentos em mais elevada esfera, pretenderam que ao corpo de Exército assistia uma missão que, a todo o transe, devia cumprir. Tornara-se-lhe a marcha para o norte do Paraguai absolutamente indispensável no plano de conjunto da guerra. Era sem dúvida a coluna mais fraca e talvez sucumbisse, mas útil e gloriosamente. Dir-se-ia, pelo menos, que se compunha de valentes brasi­leiros.

Éramos todos moços; tais pensamentos, tais modos de sentir invocados a propósito de opiniões contrárias, trouxeram troca de palavras ásperas e afinal recriminações pessoais.

Até então mantivera-se calado o tenente-coronel Juvêncio, chefe da comissão de engenheiros, sem contudo conseguir dominar a comoção que de vez em quando o agitava. De seu voto, preponderante, devia depender o desfecho do debate. Resumiu o parecer, colocando-se exclusivamente no terreno prático: "Não podia a coluna avançar sem víveres e já não dispunha de mais gado."

Exatamente em tal momento ocorreu um destes incidentes que nas combinações das coisas humanas surgem para lhes encaminhar o curso.

Um rebanho que o infatigável Lopes, a instancias do nosso comandante, juntara nos campos de sua estância do Jardim e tangera para o acampamento, ali entrava tumultuosamente, respondendo os mugidos dos animais aos clamores dos vaqueiros e peões.

Desde então tudo se decidiu, como outrora em Roma expedições militares se sobrestiveram ou precipitaram-se segundo os gemidos das vítimas ou os gritos dos frangos sagrados.

Levantou-se o presidente do Conselho e, voltando-se para o secretário encarregado de redigir a ata da sessão, o próprio autor desta narrativa, encarregou-o de comunicar ao comandante que a comissão unânime reconhecia a possibilidade da marcha para a frente, sobre a fronteira inimiga, apressando-se em oferecer toda a sua boa vontade para a execução deste plano.

Em seguida, exclamou, como alguém que ao sacrifício se vota: - "Deixo viúva e seis órfãos. Terão como única herança um nome honrado."

Assim se encerrou este Conselho sobre o qual se fixara a atenção de toda a oficialidade e cujo resultado a todos surpreendeu; a ninguém tanto, contudo, quanto ao comandante, por se ver arrastado pelo obstáculo que acreditara antepor à sua pessoa e os riscos do primitivo projeto. O sentimento do decoro pessoal, nele poderoso desde o despertar, preservou-o, contudo, de outros testemunhos da impressão, além de alguns gestos, inopinados e involuntários. Esforçou-se desde então em bem realizar o que fatalmente se tornara impossível deixar de empreender.

Notas editar

  1. Não se confunda com a Vila de Miranda, sita a 210 quilômetros N. O. de Nioac.


Reconhecimento. Rebate falso. Regresso de cativos escapos ao inimigo. O guia Lopes e o filho. Avante!

Recebeu imediatamente o 21.° batalhão ordem de es­coltar os engenheiros, numa exploração das localidades vizinhas da colônia; e, com efeito, a 25, o tenente-coronel Juvêncio, com os dois subordinados, avançou até o ponto chamado Retiro que, havia pouco, fora evacuado por um destacamento paraguaio de uma centena de homens. Feito o reconhecimento regressou na mesma tarde a nossa comissão ao acampamento. Haviam tido os infan­tes que nos acompanhavam que percorrer mais de 52 quilômetros transportando capotes e armas, além de ses­senta cartuchos na patrona. Pudemos freqüentemente constatar que as mais longas marchas não conseguem abater a energia do soldado brasileiro.

Decorreram os dias subseqüentes, na inação; e neste solene repouso do pensamento, que é apenas prudência em vésperas de arriscadas empresas.

Tanto ninguém deve perturbar-se com a apreensão de desgraças, que talvez não ocorram, como se não en­tregar à exagerada confiança no futuro, que à possível catástrofe ainda venha trazer o rigor do imprevisto.

Abril começara, o mês fadado às nossas provações. O serviço de comboio longe estava de se achar garan­tido e no entanto como que a abundância reinava no acampamento. Carretas em contínua afluência ali tra­ziam toda a espécie de fazendas e demais objetos de luxo que aqueles páramos desertos jamais haviam certamente visto. Assim, as mulheres dos soldados, atraídas por este movimento comercial desciam de Nioac em grupos cada vez mais numerosos. Também para tal afluxo de gente contribuía a reputação de salubridade da colônia de Mi­randa.

Era para aquele ponto, com efeito, que, muito antes da invasão estrangeira, de toda a vizinhança mandavam convalescentes e valetudinários. Ali são cristalinas as águas do rio que as infiltrações salobras dos pântanos da jusante ainda não contaminaram. Nada deixava a desejar o estado sanitário das tropas. Haviam, pois, re­começado os exercícios diários de todos os batalhões e nossas músicas, rompendo afinal o longo silêncio, alegravam os espíritos. A dos voluntários de Minas, sobre­tudo, cuidadosamente recrutada, executava sinfonias cuja novidade, para os ecos locais, ajuntava novo en­canto ao prazer da audição.

Recebeu logo o 17.° batalhão ordem de ir, além do ponto atingido pelo 21.°, realizar um reconhecimento, sob a direção do guia Lopes e em companhia de um grupo de índios terenas e guaicurus, que desde algum tempo se apresentara ao coronel. A 10 de abril, realizou-se a par­tida, bandeiras desfraldadas e música à testa, espetá­culo sempre imponente em vésperas de combate. Gra­ças ao comandante apresentava-se o corpo em pé de disciplina, que em qualquer ponto o tornaria notado.

Reservava-nos o dia seguinte emoções muito diversas e quase contraditórias: a esperança de encontrar o ini­migo, que se não realizaria, e o imprevisto das mais co­moventes cenas familiares.

Anunciou-nos uma mulher, vinda de Nioac, o encon­tro, à margem de um rio próximo, de um grupo de cava­leiros, falando o espanhol. Depois de lhe fazerem algu­mas perguntas, haviam-na deixado passar tranqüila­mente.

Deu-se logo o alarma em toda a frente e à retaguar­da, mas tivemos logo a agradável surpresa do regresso do nosso destacamento trazendo 10 cavaleiros. Eram brasileiros, eram irmãos! Pertenciam a famílias esti­madas e bem conhecidas de fazendeiros das vizinhanças de Nioac: Barbosas, Ferreiras, Lopes, e haviam conse­guido escapar ao inimigo inexorável. Com a rapidez do raio circula a notícia de sua aparição por todo o acam­pamento, e até em Nioac. Para os ver acodem homens e mulheres, possuídos como que de embriaguez; e a maio­ria até a chorar. Patrícios nossos! Rodeados, carrega­dos, acham-se de repente em presença do comandante que os interroga.

Contam que, levados prisioneiros para o território pa­raguaio, eles e as famílias, haviam, ao se retirar o inimigo, sido dispersos por diversas localidades, principalmente em Vila Horcheta, a sete léguas de Concepción.

Ali lhes haviam dado terras de cultura sob a condição de pagarem aos coletores o quinto da colheita. Nunca os incomodaram muito até então, mas sabendo, ultimamente, que o ditador Lopez, já falto de gente para o Exército, projetara recrutar todos os estrangeiros, e até mesmo os prisioneiros, e que, ao mesmo tempo, se aproximava uma coluna brasileira, tudo tinham arriscado para reunir-se aos patrícios, escapando ao perigo de ter de os combater. As próprias famílias os haviam acoro­çoado a assim proceder.

A 25 de março, exatamente no dia dos nossos pri­meiros reconhecimentos diante da colônia, conseguiram apossar-se de bons cavalos paraguaios, e, como se não iludissem acerca do destino que os aguardava caso fos­sem novamente capturados, tinham se arriscado a cami­nhar à noite, e de mata em mata, fazendo contínuos ro­deios, em direção à fronteira. Atingindo-a felizmente, atravessaram o Apa e depois, deixando à direita a estrada da colônia, subiram ao norte, em direção à estância do Jardim, de onde desceram ao nosso encontro.

A um deles, o filho do guia Lopes, chamou o coronel à sua barraca e a sós. Era moço simpático, cuja inteligência e discrição pareciam provir da herança pa­terna. Versou a conversa, naturalmente, sobre as infor­mações que ele e o cunhado, Barbosa, podiam dar rela­tivamente à situação do Paraguai, à sua força apreciá­vel, meios de resistência, e sobretudo quanto à fronteira vizinha.

Responderam os refugiados que as fortificações do Apa não passavam de simples estacadas de madeira co­mum, guarnecidas, em Bela Vista, por uma centena de homens, sob o comando do major Martim Urbieta. Es­tavam os outros fortes em piores condições defensivas; mas o governo paraguaio, à vista dos avisos recebidos, comprometera-se a providenciar dentro em pouco e a enviar reforços, determinando que até a chegada destes, se fizesse uma retirada ante a investida brasileira, des­truindo-se tudo o que não fosse possível carregar. Acrescentaram que, no interior do Paraguai, era geral o desânimo; dia a dia menos se acreditava num feliz desfecho da guerra. Entretanto a resolução da defesa, a todo o transe, não parecia esmorecida. Quanto ao respeito pelo presidente, El supremo, cujo nome todos pronunciavam descobrindo-se, era sempre o mesmo.

Apenas pelo acampamento se espalharam tais notí­cias, só houve um grito: Ao Apa! Ao Apa! Atingiu o entusiasmo ao auge, deixando-se os mais prudentes arras­tar pela excitação apaixonada dos grupos que de todos os lados se formavam.

Anunciou-se neste momento a volta do 17.° batalhão que acompanhara o velho Lopes. Era geral o desejo de assistir ao primeiro encontro do pai e do primogênito que lhe voltava aos braços.

Passando pelos postos avançados soubera o nosso guia da grande notícia.

Vinha pálido, lacrimejante, em direção ao filho que, respeitosamente, o esperava, descoberto. Não descaval­gou; estendeu a destra trêmula ao filho, que a beijou; depois o velho guia deu-lhe a bênção e passou sem pro­ferir palavra.

Foi uma cena patriarcal, e como seja o coração hu­mano sempre sensível aos grandes lances, atônitos, olhá­vamos uns para os outros, como a indagar se não seria fraqueza entre soldados nem sempre poder conter as lá­grimas.

Que emoção devia sentir o velho vendo o filho escapo ao inimigo! E quanta dor, ao pensar que os outros mem­bros da família, ainda cativos, haviam perdido o mais valente defensor! Quando em tal lhe falamos tomou longa pitada e disse: "Deus tudo faz. Deus assim o quis. Fui outrora feliz, tive casa e família. Hoje durmo ao relento; estou só, e como do que a caridade me dá."

— Vamos encontrar casa em Bela Vista, lhe respon­demos. Tem o senhor a seu lado filho e genro. Come em companhia de amigos e até ainda é quem lhes dá a co­mer de seu gado.

Com melancólico sorriso meneou a cabeça, dizendo: "Nunca mais será minha a estância do Jardim!..."

Entrementes, depois de haver combinado com Barbosa os meios de ainda obter gado do sogro, ordenou o coronel que se avançasse.


Em marcha. Formatura da coluna. A vista da fronteira.

Fortalecido em sua primeira resolução, não pôde entretanto, o coronel Camisão executá-la sem deixar perceber algumas das antigas hesitações. Fora ele pró­prio que para 13 de abril marcara a partida; adiou-se para o dia imediato, embora, desde o romper d'alva, tudo estivesse pronto e o corpo de Exército em ordem de mar­cha. Só em hora avançada tornou conhecida a nova determinação, a tal respeito estendendo-se em explica­ções que a todos espantavam, provocando malignas inter­pretações, principalmente a propósito dos pousos, que fixara. Dispusera-os com efeito de modo que a coluna chegasse a Bela Vista, ou em suas imediações, isto é na fronteira, no sábado de Aleluia ou domingo de Páscoa, para que ali se celebrasse esta solenidade. - "Assim diziam os críticos, os tiros de peça, iniciais de nossa entrada em fogo, serão os mesmos que geralmente acom­panham a cerimônia religiosa: a iniciativa da campanha será coberta pela festa."

Treze de abril foi, pois, ainda um dia perdido: gasta­ram-se as horas da manhã em preliminares de viagem, inteiramente supérfluos, e cujo único objetivo parecia procurar entreter os soldados. Estes, aliás, a tudo se prestavam com a melhor disposição. Fizera-se ouvir o hino nacional e uma explosão de entusiasmo o acolhera. Vários ajudantes-de-ordens se despacharam então, cada qual do seu lado, a ler uma ordem do dia. apelando para o patriotismo da coluna e a lhe relembrar a confiança nos chefes. Enérgicas aclamações estrugiram ainda, após esta proclamação, repetindo-se várias vezes: chegara ao auge a animação. No entanto caíra a noite, que se passou sem que nos houvéssemos movido. Viram todos o comandante, meditativo como sempre, passear na sombra, em frente à sua barraca, por mais tempo e mais tarde do que geralmente fazia.

No dia seguinte, desfilou o corpo diante dele; com isto pouco a pouco se animou. Já a vanguarda, contudo devia dar-lhe motivos de reflexão, composta como era de homens de nossa cavalaria desmontada. E com efeito já relatamos que não tínhamos mais cavalos, todos vitimados na região de Miranda por uma epizootia do gênero da paralisia reflexa que a nós mesmos, tão cruelmente, viera provar. Quando muito pudera o serviço de faxina conservar alguns muares. Faltava-nos o elemento primordial da guerra nestes terrenos, a cavalaria; e não havia quem com isto se não impressionasse.

Malgrado a diferença de feição, a que se tinham de resignar, nada perderam os nossos caçadores do aspecto marcial. Após eles marchava o 21.° batalhão de linha, precedendo uma bateria de duas peças raiadas, depois o 20.° batalhão, outra bateria igual à primeira acompanhada pelo 17.° de Voluntários da Pátria; e afinal as bagagens, o comércio, com a sua gente e material, as mulheres dos soldados, bastante numerosas.

Ocupava o gado o flanco esquerdo, com as carretas de munições de guerra e de boca, massa confusa protegida por forte retaguarda.

Tínhamos o Miranda à frente; os soldados o atravessaram; uns levantando acima d'água armas, cinturões, patronas; outros sobre uma ponte volante que os engenheiros acabaram de construir, auxiliando-os neste trabalho urgente um 2.° tenente de artilharia, Nobre de Gusmão, jovem oficial, cheio de inteligência, que nessa ocasião demonstrou o zelo que mais tarde sempre pôs em destaque[1].

Mais de duas horas tomou esta travessia; neste ínterim havia o coronel Camisão e seu estado-maior lido as notícias que o correio de Mato Grosso acabara de trazer. Nenhum comunicado, oficial ou privado, relativo à invasão do Paraguai pelo sul viera ao nosso comandante, nem coisa alguma que a tal fato se ligasse. Seriam, no entanto, informes do mais alto interesse, até mesmo indispensáveis no momento em que nos aventurávamos à perigosa operação, sem que colimássemos prefixado fim. Às duas horas da tarde recomeçou a marcha, cuja lentidão era extrema: regulávamos o passo pelo dos bois que puxavam a artilharia e ainda, de tempos a tempos, todos estacavam, porque o próprio coronel, indo e vindo com o seu estado-maior, da frente à retaguarda, punha-se com o óculo de alcance, a examinar as cercanias, ora distraída ora muito atentamente. Surpreendia-nos isto porque se jamais houve campos sem mistérios eram os que atravessávamos. Estavam, então, inteiramente des­pidos; recentemente incendiados neles perecera até a erva rasteira, de modo que os atiradores distribuídos, no momento da partida, ao longo da nossa coluna, para guardá-la, a ela se haviam incorporado, dispensados dum serviço sem razão de ser.

Ao cair da noite atingimos elevado cômoro. A 16 recomeçou a marcha na mesma ordem, somente deviam os diferentes corpos alternar, de um dia para outro, à testa, ao centro e à retaguarda.

Seguíamos uma estrada formada de dois trilhos para­lelos, espaçados por três ou quatro palmos de capim e estendendo-se a perder de vista pelas planícies desnudadas. Uma outra moita, ou arbusto, quando muito, surgiam de vez em quando. Só no horizonte se divisavam uns capões. Estavam os dois trilhos bem batidos, tor­nando-se visível que havia pouco por eles tinham passa­do e tornado a passar cavaleiros e em contingentes avultados.

Desta estrada partiam, de distância em distância, outros rastos de cavalos encaminhados para os acidentes do solo, que permitiam a visão ao longe. Não se podia mais duvidar que o inimigo nos observava a marcha.

Fomos acampar perto do morro do Retiro, onde ocupamos a vertente em cuja base nasce o volumoso ribeiro do mesmo nome. É nesse lugar admirável a natureza; corre a água emoldurada de palmares, entre margens ligeiramente sinuosas, revestidas de relva curta e fina, da mais bela cor esmeraldina.

Não longe dali residira outrora esta mesma dª. Senho­rinha, cuja hospitalidade já gabamos. Achava-se, então, casada, em primeiras núpcias, com um Lopes (João Gabriel), irmão do nosso valente guia José Francisco, e falecido em 1849. Residindo só, com os filhos, então crianças, numa zona fronteiriça, onde não há a mínima segurança para os fracos, já fora outrora a viúva presa e levada por um magote de paraguaios. Reclamada, ao cabo de algum tempo, pela legação brasileira em Assun­ção e liberta, em 1850, contraíra, segundo o costume generalizado naquela terra, segundo casamento com o cunhado, o nosso guia, que a estabelecera em sua estância do Jardim. Ali, ao começar a invasão, de 1865, fora de novo presa e internada no Paraguai.

A 17 de abril, pela manhã, deixamos o Retiro e, duas léguas à frente, encontramos uma construção em forma de galpão ou cabana que evidentemente acabava de ser abandonada por uma ronda inimiga. Erguia-se-lhe ao lado um destes mastros de vigia a que os paraguaios chamam mangrulhos, grosso esteio ou travejamento de toscos madeiros, pelos quais trepam para descortinar, ao longe, os terrenos circunvizinhos. Haviam os nossos índios guaicurus avançado até ali, anteriormente, num reconhecimento do tenente-coronel Enéias Galvão. Desta vez fizeram os selvagens, nossos aliados, alegre fogueira do tal mastro e da choupana.

Avisaram neste momento ao coronel que o nosso comboio se atolara à saída do Retiro. Decidiu imediatamente que, sem interromper a marcha, iríamos esperá-lo a alguma distância, à vanguarda. Foi o que fizemos assentando acampamento exatamente no local onde existira a fazenda de João Gabriel. Grosso contingente da vanguarda colocou-se em observação sobre uma culminância que dominava a campina.

Quem comandava este destacamento era um capitão da guarda nacional do rio Grande do rio, Delfino Rodrigues de Almeida, mais conhecido pelo apelido paterno de Pisaflores, homem enérgico, a cuja bravura todos prestávamos homenagem. Vimo-lo olhar fixamente para oeste; de repente, partido de diferentes pontos, reboou um grito: A fronteira! Da elevação onde se achava o destacamento avistava-se com efeito a mata sombria do Apa, limite das duas nações.

Momento solene este, em que entre oficiais e soldados não houve quem pudesse conter a comoção! O aspecto da fronteira que demandávamos a todos surpreendeu. É que realmente era novo. Podiam alguns já tê-la visto mas com olhos do caçador ou do campeiro, indiferentes. A maior parte dos nossos dela só havia ouvido vagamente falar; e agora ali estava à nossa frente como ponto de encontro de duas nações armadas, e como campo de batalha.

Notas editar

</references>


Passagem do Apa. Primeiro embate. Ocupação da Machorra.

Haviam as nossas carretas retardatárias chegado ao acampamento a 17. No dia 18, pelas nove da manhã, fez-se a rendição das guardas avançadas. Reinava em nossas linhas a maior tranqüilidade quando, de repente, pelas onze, ouviu-se o grito de alarma: "Cavalaria inimiga!." Armam-se os batalhões; expede o comandante os engenheiros aos postos avançados; o ajudante-general à retaguarda; o assistente do quartel-general aos diversos corpos para lhes examinar as condições e remediar ao que possa faltar. Para a vanguarda marcha ele próprio, acompanhado pelo batalhão de voluntários, com as bocas de fogo do major Cantuária e do tenente Marques da Cruz, o mesmo que havia de morrer combatendo nas linhas de Humaitá. Por nós passou, com a espada nua, não querendo, dizia, tornar a embainhá-la senão depois que houvesse travado conhecimento com os paraguaios.

Estavam os inimigos, então, à pequena distância de nós, perto da mata que beirava um ribeirão. Avançavam sensivelmente estendendo-se em linha de atiradores, correndo de um lado para outro, sob as ordens de um oficial, que entre eles se destacava; e súbito mandou se retirassem: perdemo-los de vista. Após tão prolongada espera ordenou o comandante que volvêssemos às nossas posições.

Pela manhã de 19 deixamos o acampamento. O coronel destacou o 21.° batalhão para a vanguarda com a recomendação de nunca perder de vista o grosso do corpo de Exército, durante a marcha, embora sempre a ganhar terreno. Seguia o resto em destacamentos, próximos uns dos outros, mas, como a animação dos soldados e a dos oficiais corressem parelhas, avançaram os corpos sem prestar grande atenção ás ordens dadas, achando-se por vezes separados por distâncias maiores do que a prudência aconselhava.

À passagem do Taquaruçu, cuja ponte acabavam os paraguaios de destruir, deu-lhes a vanguarda uma descarga, embora quase estivessem fora de alcance. Viu-se um de seus cavaleiros cair ferido. Tomou-o um dos camaradas à garupa, enquanto o terceiro lhe laçava a montaria que fugia, sentindo-se solta. Ao presenciar esta primeira cena de guerra, queriam os nossos soldados deitar-se á água para perseguir o inimigo, quando um toque de clarim do quartel-general os fez estacar. Toda a coluna achou-se logo agrupada atrás deles. Neste entrementes os engenheiros restabeleciam a ponte; bastou-lhes uma hora. Efetuou-se a passagem e a marcha recomeçou à outra margem.

Vencendo pequenos planaltos interpostos às depressões paralelas que sulcam aquela campina, avançamos até a base de uma colina que domina toda a vizinhança. Achara a nossa vanguarda esta posição ocupada por um piquete de cavaleiros; estacou então, e todas as nossas unidades, isoladas, assim fizeram também, uma após outra. Examinaram-nos, então, os paraguaios: nada entre nós e eles se interpunha; podiam contar-nos à vontade. Foi para nós grande desvantagem. Até então julgavam, dando crédito aos nossos refugiados, que a coluna brasileira contava nada menos de seis mil homens, e nosso comandante, como regra de guerra, esforçara-se por lhes alimentar a abusão. Desfizera-se-lhes a ilusão, desvanecida ao primeiro lançado sobre nós.

Mais uma razão para que logo e logo os atacássemos, mas o comandante manteve-nos imóveis.

Só mais tarde soubemos por quê: provinha de intimo motivo: estávamos em sexta-feira Santa e a iniciativa de uma ação de guerra, no próprio dia da morte do Salvador, repugnava a um coração religioso como o do nosso chefe, escravo de todos os nobres sentimentos, a ponto de os exagerar até á contradição, inquieto e como perturbado pelo pressentimento do fim próximo.

Durou-lhe a hesitação bastante para que o destacamento paraguaio não mais receando ser atacado e, cheio de desprezo, talvez, pela nossa pequena força atirada, sem cavalaria alguma, em vastas planícies encharcadas, onde todo o homem a pé é assunto de escárnio, se lembrasse, pela atitude, de nos dar insolentes mostras de desdém que lhe inspirava a inferioridade de nossos recursos militares e, por meio de demonstrações ruidosas, nos fazer ver quanto considerava inúteis quaisquer precauções contra nós. Descavalgaram todos os homens, assentando-se uns á sombra das macaúbas, ao passo que outros faziam tranqüilamente pastar os cavalos. Fazia-nos ferver o sangue aquele afetado descuido. Felizmente, afinal, até ao nosso chefe atingiu esta indignação. Decidiu-se a agir. Só havia um meio de rápido emprego e deste lançamos mão. Fez marques da Cruz avançar a sua peça e uma granada silvou ao meio das aclamações dos nossos soldados. Atingiu a base de alta palmeira, que abrigava bom número de cavaleiros e depois de ricochetear explodiu no ar.

Foi, pelo menos, para nós, um prazer vermos o efeito produzido, a surpresa, o alarma, a confusão. Correram uns após os animais que a detonação dispersara; calvagaram outros, precipitadamente; e sem mais detença dispararam pelo campo, a todo o galope. Passados poucos minutos desaparecera o destacamento inteiro. Lançou-se-lhe segundo projetil, e logo em seguida terceiro, que alcançou mais de meia légua e deu a conhecer ao inimigo a força de nossa artilharia. Toda esta tropa fugidia só haveria de reaparecer diante da fazenda da Machorra, na fronteira.

Chegados, esta tarde, à margem de um ribeirão, que os espanhóis chamam Sombrero, fomos acampar no triângulo que ele ali forma, confluindo com o Apa. Admiramos este belo rio, fronteira dos dois países e cujo aspecto, com sua mata cerrada, tanto nos impressionara quando de longe o avistáramos. Grande futuro lhe está reservado após a guerra.

Desce o Apa por três galhos, logo confluentes, da serra dos Dourados, um pouco abaixo da colônia militar deste nome, a doze léguas, leste-sudeste da de Miranda. Corre a princípio para Oeste, 10° N. até o forte de Bela Vista, que se acha no paralelo 22, e daí, descambando para Oeste 10° S., vai com um curso levemente sinuoso banhar Santa Margarida, Rinconada e outros pontos fortificados até o Paraguai, em cujo leito se despeja.

Ao chegar pediu o coronel que lhe dessem água do Apa, e, ou porque lhe viessem á mente vagas reminiscências históricas, a propósito de caudais célebres, ou porque, após tanto abalo de espírito, experimentasse como que uma agitação febril, disse sorrindo: "Notemos a que hora provamos a água deste rio." Puxou o relógio, bebeu e acrescentou a gracejar: "Desejo que este incidente seja consignado na história desta expedição, se algum dia a escreverem." Pareceu empenhado que se lhe fizesse uma promessa em tal sentido. Foi o autor desta narrativa quem, em nome de todos, a tanto se comprometeu, e hoje o cumpre com religiosa exação porque a morte, de que estava o nosso chefe tão próximo, sabe, pela própria natureza enigmática, tudo enobrecer, tudo absolver e consagrar.

É neste ponto o Apa correntoso; mas as grandes lajes que lhe calçam o leito como que convidam a entrar em suas belas águas. Foi o que fizeram muitos soldados; passaram vários para a outra margem a dizer que iam conquistar o Paraguai.

À noite chegaram dois oficiais[2] que à hora do perigo vinham procurar-nos para conosco dele compartirem. A marchas forçadas acudiam de Camapuã. Adiantando-se à escolta haviam atravessado, não sem correr o risco de algum acidente, as nossas linhas de vanguarda. Só no dia seguinte apareceram os seus soldados ao acampamento, com um viajante por nome Joaquim Augusto, homem corajoso, mas que ao nosso contato só incitava o interesse pessoal.

No dia imediato, às nove da manhã, pôs-se a coluna em movimento e, atravessando o Sombrero, avançou sobre a margem direita do Apa, tendo à vanguarda o batalhão de voluntários. Muito tempo nos custou vencer uma légua, apenas. Sucedia a cada momento algum acidente às carretas das munições. Delas não nos podíamos afastar, próximos como nos achávamos do inimigo. Atingíramos quase, segundo a opinião dos refugiados, a primeira guarda paraguaia, a saber, o forte e a fazenda da Machorra, situada em território brasileiro, a uma légua e quarto para cá do forte de Bela Vista, que está construído na margem paraguaia.

Esperávamos, a cada passo, encontrar resistência. No entanto marchava sempre o nosso batalhão da vanguarda sem perceber ou sem medir a distância que as paradas continuas dos demais corpos punham entre ele e as outras unidades. Em vão soavam os clarins; já se afastara demais para que os pudesse ouvir. Deixá-lo assim isolado não era prudente; tornava-se indispensável mandar um próprio chamá-lo. Ofereceu-se o tenente-coronel Juvêncio e partiu logo com seus dois ajudantes-de-campo e Gabriel Francisco, o genro do guia, que conosco quis ir. Felizmente, tínhamos bons cavalos, dos que haviam resistido à epizootia; safaram-se de perigoso atoleiro, que pela ânsia de chegar não quiséramos contornar. Perdemos logo de vista o corpo de Exército, mas não percebíamos, ainda, nossa tropa já empenhada em combate, ao que supúnhamos, pelas descargas e disparos isolados dos atiradores. Víamos perfeitamente, por vezes, tremular a bandeira nacional, a que depois encobriam elevadas moitas. Parecia-nos, aliás, que não avançava. Em poucos instantes a rapidez da carreira dela nos aproximou e, como eletrizados pela sua vizinhança, atiramos os cavalos ás águas do volumoso ribeirão, que nos barrava o passo, o José Carlos, e afinal nos achamos reunidos aos nossos que, em lugar fechado, combatiam á entrada da Machorra.

Uma linha de paraguaios, assaz extensa, fazia frente ao ataque, ao passo que grande número dos seus se encarniçava, com uma espécie de furor, em destruir a fazenda, incendiando quanto parecia poder arder. Ocupava-se o nosso comandante da vanguarda[3] em examinar uma ponte que cumpria atravessássemos para envolver o inimigo. Foi então que o tenente-coronel Juvêncio lhe comunicou a ordem de estacar. Não permitiam as circunstâncias, porém, que a ela atendêssemos. Concordaram os oficiais na imprescindível necessidade de se ocupar a posição, custasse o que custasse.

Imediatamente a nossa linha de atiradores atirou-se a correr para a frente oposta, e pela própria ponte, porfiando todos em ardor.

Recuaram os paraguaios, mas em boa ordem. Tinham ordens, certamente, para não empenhar combate, mas somente reunir e tanger á retaguarda cavalos e bois que não queriam deixar-nos; e deviam ser numerosos, tanto quanto nos permitia avaliar a poeira que sua marcha ocasionava.

Foi o recinto ocupado: o tenente-coronel Enéias, ali, deu imediatamente nova formatura ao seu batalhão e o manteve numa série de posições que lhe valeu, posteriormente, não só a aprovação do coronel como gerais parabéns. Foram os nossos os primeiros recebidos. Aplaudiram todos o espírito de disciplina dos seus subordinados e o afã com que, logo à primeira voz, começaram a desentulhar o terreiro de objetos que o atravancavam, sem coisa alguma subtrair, assim como de quanto estava no interior das casas.

Neste ínterim apareceu o próprio comandante. Não vendo voltar nenhum daqueles que à vanguarda mandara, às pressas partira para constatar o que havia. O entusiástico acolhimento que neste momento lhe fizeram, e as aclamações dos soldados lhe causaram uma satisfação cuja expressão, malgrado a reserva habitual, a todos se patenteou.

Os auxiliares índios, guaicurus e terenas, não foram os últimos a se apresentar para o saque. Tão pequena disposição para o combate haviam mostrado que, na nossa carreira, ao lhe tomarmos a frente, lhes bradáramos: Vamos! Avante! Valentes camaradas! Agora se lhes transmutara a indolência num ardor sem limites para o saque. Já se haviam disseminado pelas roças de mandioca e de cana, de lá trazendo, imediatamente, cargas sob as quais vergavam, sem, contudo, encurtar o passo.

Vislumbrava-se um resto de crepúsculo, ainda quando o grosso da coluna chegou. Foi este o momento do atropelo e da balbúrdia: tantos objetos se avistavam sem dono, misturados e fadados à destruição. Cada qual tomou o seu quinhão, sendo exatamente os menos beneficiados aqueles que à presa tinham mais direito, pois o haviam conquistado sob o fogo inimigo e guardado, como propriedade pública, até o momento da depredação geral. Era este saque, aliás, legitimo, e não se teria podido, sem manifesta injustiça, recusar tal prazer aos soldados, que o haviam comprado e adiantado por uma série de meses de privações e fome.

Das oito ou dez casas da Machorra, duas estavam reduzidas a cinzas pelo fogo que os próprios paraguaios lhes haviam posto. Foram as outras preservadas pelos nossos soldados. Alguns pedaços do madeiramento, alguns mourões abrasados serviam para cozinhar as batatas, a mandioca e as aves do inimigo. A Machorra, denominada fazenda do marechal Lopez, não passava realmente de terra usurpada, cultivada por ordem sua, além da fronteira.

O trabalho dos invasores, frutuoso como fora, vinha acrescer ao banquete a satisfação de um sentimento de reivindicação nacional. Autorizou-o o coronel com um ar prazenteiro que jamais até então lhe percebêramos.

Notas editar

  1. Por ocasião da travessia dos pantanais e da Retirada da Laguna prestou este oficial, Cesário de Almeida Nobre de Gusmão, prodigiosos serviços. Vd. Dias de guerra e de sertão pelo A.
  2. Os tenentes Augusto Pinto de Sousa e João Luís do Prado Mineiro.
  3. O tenente-coronel Enéias Galvão.


Ocupação de Bela Vista. Devastações dos paraguaios em torno da coluna. Tentativa de negociações. Seu malogro. Tornam-se os víveres escassos. Marcha sobre a Laguna.

No dia seguinte, 21 de abril, às 8 da manhã, deram os clarins do quartel-general o toque de marcha: nada menos significava do que transpormos a fronteira, entrar em território paraguaio e atacar o forte de Bela Vista, que, deste lado, é a chave de toda aquela região. Não havia quem não compreendesse o alcance da operação, redobrando por este motivo a animação geral. Cada qual envergara o mais luzido uniforme; e como às nossas antigas bandeiras não prestigiasse ainda feito notável algum, foram substituídas por outras, cujas cores vivas se destacavam no céu formoso das campinas paraguaias.

Deixando a Machorra, adotara-se a ordem compacta. Dos dois lados da coluna, e para lhe facilitar o movimento, os atiradores, que a flanqueavam, cortavam a macega; pois mudara a natureza do terreno. Não mais tínhamos a grama curta e fresca dos prados que acabávamos de atravessar. Estava o solo coberto desta perigosa gramínea que atinge a altura de um homem, e a que chamam macega, e cujas hastes duras e arestas cortantes tornam, em muitos lugares do Paraguai, a marcha tão penosa. Transpusemos o Apa em frente à Bela Vista; o 20.° de infantaria de Goiás formava a vanguarda, sob o comando do capitão Ferreira de Paiva. Avançando à frente dos batedores, a quem comandava, jovem e valente oficial, de nome Miró, fadado à morte próxima, víamos o velho Lopes, apressurado, montando belo cavalo baio, um daqueles animais que o filho e os companheiros deste haviam tomado aos paraguaios.

Estava no auge da alegria, o olhar como o de um rapineiro, a fitar Bela Vista, que começávamos a avistar. De repente, no momento em que acabávamos de chegar ao seu lado, percebemos que a fisionomia se lhe anuviara: "A perdiz, disse-nos, voa do ninho e nada nos quer deixar, nem os ovos." Mostrava ao mesmo tempo tênue fumo que subia aos ares. "São as casas de Bela Vista que incendiaram."

Foi a notícia levada ao coronel que, avisado também por um sinal do alferes Porfirio, do batalhão da frente, fez acelerar a marcha. Começamos a correr, precipitando-se a linha dos atiradores do 20.° para o rio; mas à sua frente já se antecipara pequeno grupo de que fazia parte o nosso guia. Com grande espanto nosso não pareciam os inimigos pretender disputar-nos o passo; retiravam-se do Apa como já se haviam afastado da Machorra, indo estacar a uma distância bastante grande, imóveis sobre os cavalos.

Cabia-nos, pois, o feliz ensejo de sermos os primeiros a atravessar a fronteira, pisarmos à esquerda do Apa e sentirmos sob os pés o solo paraguaio.

Transposto o rio, galgamos num ápice uma eminência que nos ficava fronteira, e nos proporcionou a vista próxima da fortaleza e da aldeia: ambas ardiam. Pelo interior e vizinhança vagavam ainda paraguaios a pé, retardados pelo pesar da presa que nos abandonavam e a ira que os levava a tudo devastar. Outros, em maior número, e a cavalo, retiravam-se desordenadamente.

Pôs-se o nosso guia a provocá-los com assobios e apóstrofes de desprezo, ante as quais difícil nos foi conter o riso. Teriam podido volver sobre nós estes robustos cavaleiros, e com as possantes montarias e pesados sabres facilmente destroçar o nosso pequeno grupo, a meio montado e mal armado, como nos achávamos.

Mas tal idéia não nos ocorria e a Lopes ainda menos. Este intrépido velho quase sempre nos precedera na carreira, a galope; e por mais esforços que fizéssemos, a todo o instante redobrava de velocidade, pensando na mulher, duas vezes agarrada e arrastada prisioneira para o Paraguai, em todos os seus, nos amigos e companheiros de existência, com ela prisioneiros. Mil recordações de atrocidades antigas e recentes lhe incutiam violenta sede de vingança.

Uma vez efetuada a passagem pelo corpo de Exército, o forte, que apenas consistia em sólida estacada de madeira, foi ocupado, assim como a vila, por grande destacamento. A linha de atiradores do 20.° batalhão, formada à esquerda, pôs-se em movimento para ir atacar os paraguaios imóveis. Vimos, então, que haviam arvorado alguma coisa branca. Não tardamos, porém, a perceber que se afastavam devagar, tendo em mente, atrair-nos para algum mato, onde caro pagaríamos excesso de confiança em sua lealdade. Soubemos tarde que tal lhes fora, com efeito, o plano. Acreditavam precisar de algumas vítimas para coonestar uma retirada por demais precipitada e que não podia deixar de atrair a cólera dos chefes fossem quais fossem, aliás, as ordens deles recebidas.

Assim se passou 21 de abril; os dias imediatos consagramo-los ao repouso e exame da situação. Todo o corpo de Exército transpusera a fronteira e acampara ao sul da fortaleza, ali apoiando a ala direita, ao passo que a esquerda se prolongava pela mata do rio. Reinava, então, no acampamento abundância de víveres frescos. Deles tínhamos a maior necessidade; e a nossa gente pôde gozar dos últimos bons momentos que a sorte nos reservara. Parecia nosso chefe mais sereno do que habitualmente, mostrando-se até confiante. Começou a qualificar a coluna expedicionária: Forças em operações no norte do Paraguai e todos os seus ofícios, como aliás, imitá-lo, todas as nossas cartas, destinadas a Mato Grosso, Goiás e ao rio de Janeiro (confiadas a Loureiro, que então de nós se despediu) traziam no sobrescrito: Império do Brasil.

No entanto, do alto do morro da Bela Vista, viam-se de dia numerosos cavaleiros inimigos, de sentinela ao pé de grandes buritis. À noite ousavam alguns acercar-se do acampamento ainda mais.

Esta contínua vigilância tanto mais nos incomodava, quanto também tinha em vista subtrair do nosso alcance o gado da campina, sempre que as nossas guardas avançadas pareciam querer capturá-lo. E a nossa inquietação a tal respeito crescia sempre. Haviam os refugiados exagerado a facilidade do abastecimento nestas pastagens; nada víamos do que nos fora anunciado; e até mesmo dois dias depois de nossa chegada a Bela Vista, ordenando o coronel um rodeio, protegido pelo 21.° batalhão, e levado a mais de uma légua, dai se não auferiu resultado algum. Ficamos todos convencidos de que nada havia a esperar, pelo menos agora, de tentativas neste gênero. Se é exato que os paraguaios haviam desaparecido ao avistarem os nossos, desde o dia imediato estavam de novo no posto, ao pé da palmeira.

Quase insultuosa chegava a ser tal permanência. Poderíamos livrar-nos dela atirando algumas granadas, mas pensamento diverso veio contrariar esta idéia, inclinando-se o espírito do comandante a outra ordem de sugestões.

Neste pressuposto fez partir, escoltado pelo 17.° Batalhão, um oficial parlamentário, portador de proclamação escrita em espanhol, português e francês, que se fincou, presa a uma bandeirola branca, a légua e meia do acampamento.

Assim se redigia:

"Aos Paraguaios:

Fala-vos a expedição brasileira como a amigos. Não é seu intuito levar a devastação, a miséria e as lágrimas ao vosso território. A invasão do norte como a do sul de vossa República significa apenas uma reação contra injusta agressão nacional. Será conveniente que venha um de vossos oficiais entender-se conosco. Poderá retirar-se, desde que assim entenda; e bastará que manifeste simplesmente tal desejo. Jura o comandante da expedição pela honra, pela santa religião professada por ambos os povos, que todas as garantias se oferecem ao homem generoso que em nós confiar. Disparamos tiros de peça como inimigos, queremos agora nos entender como amigos reconciliáveis. Apresentai-vos empunhando a bandeirola branca e sereis recebidos com todas as atenções que os povos civilizados, embora em guerra, mutuamente se devem."

A resposta, no dia seguinte encontrada, fora traçada sobre um papel preso a uma varinha e era do teor seguinte:

"Ao comandante da expedição brasileira:

Estarão os oficiais das forças paraguaias sempre atentos a todas as comunicações que se lhes quiserem fazer; mas no atual estado de guerra aberta entre o Império e a República, só de espada desembainhada poderemos tratar convosco. Não nos atingem os vossos disparos de peça e quando tivermos ordens de os obrigar a calar, há no Paraguai campo de sobra para as manobras dos exércitos republicanos."

Era a letra de mão firme e corrente. Apunha-se-lhe o selo da República: barrete frígio por sobre um leão rampante.

As fórmulas empregadas em tal resposta atestavam certo grau de cultura intelectual e boa educação. Mas veio logo o insulto. Recebeu o comandante uma folha de couro na qual se estampavam os seguintes versos, mais grosseiros do que ingênuos:

"Avança, crânio pelado!

Mal-aventurado general que espontaneamente

Vem procurar o túmulo."

A isto se ajuntava:

"Crêem os brasileiros estar em Concepción para as festas; os nossos ali os esperam com baionetas e chumbo."

Bravatas sem alcance, nada tendo de sério. Mas o que o era, e no mais alto grau, viam-no todos, vinha a ser a impossibilidade de nos abastecermos. O 21.° batalhão mandado novamente, a 27, para ajuntar e trazer gado, nada conseguira; e embora a ninguém perdesse numas escaramuças de cavalaria, voltava com a triste certeza de que a região estava para conosco nas disposições as mais negativas e hostis.

Assim, pois, tomou o comandante a resolução de se manter, por algum tempo, na Bela Vista; e numa ordem expedida pelo viajante Joaquim Augusto, que voltava, determinou que a Nioac lhe enviasse munições, víveres, a bagagem dos soldados e o arquivo da coluna. Avisara aos oficiais que, a seu turno, deviam mandar vir tudo quanto haveriam de precisar para uma assaz larga estada. Mas a falta de gado tornava insustentável a própria posição de Bela Vista. Começávamos a sentir a penúria nas distribuições de viveres. Era preciso sem mais detença procurar uma solução ou avançar na esperança de bater o inimigo, que, à nossa frente, não podia ter grandes contingentes, visto como a guerra ao sul da República para ali atraíra a maior parte das suas forças (e então, após algum feito feliz, teriam as nossas patrulhas mais largo raio de ação sobre o gado errante nas campinas); a não ser assim convinha retrogradar para os distritos da fronteira, menos desprovidos de recursos.

Esta alternativa, semelhante opção, veio por completo arrancar a calma ao nosso comandante. Tornou-se-lhe a agitação do espírito visivelmente violenta. Pôs-se de novo a imaginar a calúnia a abocanhá-lo em toda a província do Mato Grosso, sobretudo na capital, e assim, pois, como a refletir, em voz alta, deixava escapar exclamações que debalde tentava sufocar: "Por toda parte me atassalham, dizia, apregoam que até agora nunca tivemos encontro sério com o inimigo e apostam que jamais o teremos."

Nesta perturbação e à falta de dados exatos para a escolha de um alvitre, os refugiados, indiretamente consultados, começaram, com maior insistência do que até então o haviam feito, a falar de uma fazenda chamada Laguna, cerca de quatro léguas de Bela Vista, pertencente aos domínios do Presidente da República e destinada à criação do gado.

Ali acharíamos, afiançavam, grandes rebanhos, posições firmes e base para operações. Depois, como esta sugestão não parecesse desgostar ao coronel, vários oficiais que o cercavam, e a quem parecia consultar, deixaram convencer-se. "Por que, exclamaram, não haveremos de ir até Concepción como nos desafiam? Viemos parar tão longe para recuar? Contanto que possamos contar com um quarto de ração, não há um único soldado que hesite em seguir os chefes, e com eles não deseje tentar a fortuna do Brasil."

À testa dos mais ardentes via-se o capitão Pereira do Lago, oficial tão ousado quanto positivo e obstinado. Dotado desta coragem que facilmente se exalta, e jamais decai do nível a que se alçou, coube-lhe, certamente, a maior responsabilidade nas nossas temeridades. Mas, também, soube sempre, mais tarde, nos transes mais difíceis de nossa retirada, fazer frente a todas as necessidades do momento, pela atividade, poderosa iniciativa e perspicácia do descortino, grandes qualidades que lhe vinham realçar a doçura, a singeleza e o bom gênio.


Ordem de marcha. Formatura do corpo expedicionário. O mascate italiano. O major José Tomás Gonçalves.

Surpresa e tomada do acampamento paraguaio da Laguna.

Acabara o coronel Camisão de determinar que marcharíamos sobre a Laguna. A 30 de abril levantamos acampamento para estacar à margem do Apa-Mi, ribeirão que dista uma légua do forte de Bela Vista.

Pareciam os soldados ressentir-se da insuficiência do rancho. Corria a marcha silenciosa e como ensombrecida pela tristeza. Para a animar ordenou-se que as cornetas de todos os corpos alternadamente tocassem; e a tropa gostou disto. Era como um desafio, uma provocação lançada aos paraguaios, que de longe viam seguir a coluna.

Avançavam os nossos diferentes corpos em quatro divisões distintas, formadas na previsão dos ataques de cavalaria que, com efeito, deveríamos esperar. Em conselho de guerra, anterior á nossa ocupação de Bela Vista, fizera o coronel adotar uma ordem de marcha apropriada à feição da zona atravessada e da campanha. Propusera, ao mesmo tempo, duas disposições de defensiva para duas hipóteses: de planície descampada, ou coberta de capões de mato, combinações de grande simplicidade que, na prática, nos prestaram grandes serviços, obstando qualquer confusão ao se travarem os combates. Se, realmente, foram em geral as cargas da cavalaria inimiga frouxas e impersistentes, é de se supor, contudo, que o seu único fito não vinha a ser simplesmente avaliar-nos a resistência. Poderia um primeiro momento de hesitação, ser sempre decisivo e trazer-nos o completo destroço.

No caso, pois, em que estivéssemos pelas proximidades de alguma moita, ou cerrado, ou ainda de algum ribeiro, devíamos convergir para este amparo natural, nele apoiar as carretas de munições e de feridos, com as bagagens, e cobrir-lhes a testa com uma curva formada pelas quatro divisões da coluna, levando cada uma a sua boca de fogo. Em campo raso e desabrigado formariam estes corpos, sempre alternados com as peças, quadrado em volta do nosso material. Em todo o caso deviam os comandantes ser avisados pelos ajudantes-de-campo ou por próprios, da formatura escolhida, de acordo com as circunstâncias.

Primeiro de maio. Após uma noite tranqüila recomeçamos a marcha, e sem incidente, até a fazenda da Laguna, a localidade designada pelos nossos refugiados do Paraguai. Ali havia, então, apenas uma choupana de palha que o inimigo, retirando-se, desdenhara incendiar. Ao chegarmos vimos um dos nossos soldados dirigir-se ao nosso encontro trazendo um papel que achara pregado, com um espinho, ao tronco de uma macaubeira; variante da primeira ameaça em verso. Dirigida ao comandante, assim dizia: "Malfadado o general que aqui vem procurar o túmulo; o leão do Paraguai, altivo e sanguissedento, rugirá contra qualquer invasor."

Domina este planalto vasta extensão de terras, como que convidava o coronel a que ali acampasse; mas ainda desta vez fizeram os refugiados preponderar a sua opinião que era a seguinte: sem mais detença, nos dirigíssemos exatamente para o centro do estabelecimento, onde, mais facilmente, poderia o gado ser rodeado e cercado. À vista disto resolveu-se que a marcha prosseguiria, indo-se, sem que daí proviesse nenhum dos resultados acenados, acampar a meia légua dali, num terreno triangular de marga nitrosa, entre dois regatos que confluem antes de se lançar no Apa-Mi; e onde os rebanhos, atraídos pelas propriedades salinas do solo, costumam geralmente concentrar-se na estação das grandes cheias: lugar denominado Invernada da Laguna.

Mostrou-nos o primeiro relance de olhos que, tanto ali como em qualquer parte, o inimigo nos cerceava sobretudo os viveres. Ao colocarmos guardas avançadas pudemos, a certa distância, divisar um acampamento paraguaio dispondo de grande boiada e cavalhada tangida para o sul, enquanto a sua vanguarda nos vigiava os movimentos. Que podíamos fazer sem cavalaria?

No entanto os dias 2 e 3 se empregaram em diversas tentativas para a obtenção de gado ou pelo menos para surpreender algumas sentinelas de quem se pudesse obter informações sobre o estado do interior da República. Malogrou-se-nos, contudo, o duplo intuito. Quanto à grande boiada que avistáramos, desaparecera. Fizemos ainda algumas avançadas em busca dos animais tresmalhados em tais pastagens. Ainda nos falhou este expediente precário. No dia da chegada, tivera o 21.° batalhão a sorte de apanhar apenas umas cinqüenta cabeças, malgrado os esforços dos cavaleiros inimigos, que nada pouparam para lhas retomar. Nenhuma outra batida pelos arredores teve resultados; muito embora para tal serviço partissem os demais corpos, uns após outros. O que deste trabalho penoso lucramos foi que levando nossos soldados sempre vantagens nas escaramuças parciais que daí provieram, completou-se-lhes a educação militar no fogo, sem demasiados sacrifícios. Não só ganharam confiança em si como nos chefes.

A 4 vimos chegar ao acampamento um mascate italiano, Miguel Arcanjo Saraco, que de Nioac viera, seguindo-nos as pegadas, com duas carretas de provisões, recurso para nós insuficiente.

Passara o Apa, atravessando as três e meia léguas que nos separavam, acompanhado de um único camarada que o ajudava a conduzir os veículos. O maior terror o perseguira durante todo o trajeto; mas a ele contrapusera o inato pendor para o cômico. Por uma fantasia armada para se incutir coragem, rodeara-se, contava-nos, de imaginários batalhões a quem, de tempo em tempo, dava ordens em voz alta, simulando manobras. Entre outras cenas deste gênero relatava que às dez horas de uma noite trevosa, ao transpor o Apa-Mi mandara, com todo o fôlego dos pulmões, cruzar baionetas, à vista de um capão de mato que lhe inspirava receios.

No meio da alegria da chegada, e das emoções de toda a natureza, não esqueceu, contudo, a notícia positiva, afirmava, da aproximação de longa fila de comboios a que se adiantara, e rodava pela estrada de Nioac ao Apa, apesar de todos os perigos de uma linha de perto de trinta léguas a percorrer em completo descampado. Seja-nos relevada esta diversão cômica no momento de encetarmos a narração de cenas sempre dolorosas. Traria esta mesma noite sério motivo de inquietação. Verificara-se a ausência de um soldado do batalhão de voluntários. Este miserável, de índole viciosa e semi-imbecil, havendo roubado a um dos camaradas, furtara-se ao castigo desertando. E sobejas razões tínhamos de recear que o comandante paraguaio por ele viesse a ter informações, as mais completas, sobre a nossa falta de víveres e a necessidade em que já nos achávamos de bater em retirada.

E efetivamente tivera o coronel de dar neste sentido ordens impostas pela necessidade. Não sabemos se ainda tentava engodar a si próprio como procurava fazê-lo em relação a nós outros, ao qualificar o movimento retrógrado de contramarcha sobre a fronteira do Apa, para ali ocuparmos forte base antes de prosseguir na invasão do Paraguai. Não houve, porém, quem se iludisse. Principiava a retirada.

Pretendeu pelo menos disfarçá-la com algum brilhante feito d'armas, pois punha empenho em demonstrar aos inimigos, aos do Brasil e aos pessoais, que se retrocedíamos não era porque a tanto estivéssemos forçados pela superioridade do adversário. Conhecendo a excelente disposição de nossa gente, resolveu apossar-se do acampamento paraguaio; e para a execução deste assalto designou o 21.° de linha e o corpo desmontado de caçadores. Fixara-se a manhã de 5 para esta ação; no entanto só se realizou um pouco mais tarde.

A causa de tal demora foi que, exatamente nesta mesma noite, às nove horas, tremendo furacão se desencadeou sobre o acampamento. Torrentes de chuva transformaram logo o solo em lamacento pantanal. Não são raros no Paraguai estes terríveis fenômenos; jamais viramos, porém, coisa igual. Os relâmpagos que continuamente se cruzavam, os raios que por todos os lados caíam; o vendaval a arrebatar tendas e barracas, formaram um caos a cujo horror se uniam, de tempos a tempos, os disparos de nossas sentinelas contra os diabólicos inimigos que, apesar de tudo, não cessavam de aferretoar-nos: interminável noite em que para nós tudo representava a imagem da destruição. A mercê de todas as cóleras da natureza, sem abrigo nem refúgio, quase nus, escorrendo água, mergulhados até a cinta em correntezas capazes de nos arrebatar, ainda precisavam os nossos soldados preocupar-se em subtrair da umidade os cartuchos. Veio a manhã encontrar-nos em tal situação. Dois dias mais tarde, contudo, antes dos primeiros albores, e apesar de se haver renovado a tormenta daquela noite, puseram-se em movimento os dois corpos designados.

Era o comandante do 21.° um major em comissão, por nome José Tomás Gonçalves, homem resoluto e audaz, além de tudo popular, tanto pelo mérito como pela estima que facilmente conquista uma fisionomia aberta e simpática. Haveremos de vê-lo à testa da nossa expedição, após a morte do coronel Camisão, guiando-a ao termo desejado.

Gozava o comandante do corpo de caçadores, capitão Pedro José Rufino, de grande reputação de bravura e atividade. Se alguma coisa devêssemos recear, era o excesso de ardor por parte de ambos, a comprometer a empresa; e assim deitar a perder toda a coluna. Foi, pelo contrário, a reunião de tais qualidades que facilitou o êxito de uma combinação a que o comandante, com razão, ligara o maior apreço.

Ignorávamos com que forças iam eles medir-se. Fornece o Paraguai menos espiões ainda do que guias; e por falta de cavalos não pudéramos efetuar reconhecimentos.

Nada víramos ou ouvíramos, ruído, poeira ou fumaça, que nos permitisse presumir da chegada de reforços inimigos. Nós lhes reconhecíamos, contudo, a habilidade em encobrir os movimentos consideráveis de tropas. Assim, pois, deu o coronel ordens para que os oficiais, comandando a coluna de ataque, só entrassem em fogo quando o corpo de voluntários estivesse em condições de os sustentar. À hora aprazada, destacou este corpo com uma das peças de nosso parque em direção ao acampamento inimigo.

Neste entrementes, após grande rodeio, e a travessia de uma légua de banhado, chegara a tropa do major Gonçalves às posições dos paraguaios. Era noite ainda, uma hora antes do nascer do sol; e tudo se fizera no maior silêncio. Verificou-se, então, que a bateria inimiga fora ali assestada para defender a passagem do fosso. Na posição que lhe fora marcada, teria José Tomás Gonçalves, desde o romper da alva, de sofrer o fogo do inimigo. Assim, pois, compreendendo que não havia um momento a perder, mandou calar baionetas sobre os canhões; investida favorecida pela negligência do inimigo. E, realmente, de toda a cavalaria acumulada por trás do entrincheiramento não havia uma só patrulha para a guarda das peças.

A toque-toque chegou nossa infantaria sobre os canhões, sem deixar tempo aos seus animais de tiro de no-los subtrair. Forçou-se num ápice a entrada do acampamento, mal defendido contra a impetuosidade desta surpresa, havendo o capitão José Rufino e os seus caçadores também entrado em ação. Penetraram todos de roldão no recinto, levando e derribando quanto pela frente encontravam, no acanhado recinto em que oficiais e soldados, homens e cavalos, mutuamente se embaraçavam, tratando muito menos de resistir do que de escapar para o campo. Tudo o que não foi morto ou ferido, salvou-se pela fuga.

Estas boas notícias, trazidas por um próprio, encontraram-nos no alto de um cômodo que domina a planície e para onde se encaminhara o comandante, com o seu estado-maior, a fim de poder fazer entrar em fogo toda a sua gente, se assim se tornasse necessário.

Iluminados por uma aurora magnífica percebíamos, aos nossos pés, os nossos soldados correndo pelo campo, para o local do combate; mais longe, os índios terenas e guaicurus, que depois de se haverem comportado nesta refrega como bravos auxiliares, carregavam agora aos ombros os despojos dos cavalos tomados aos paraguaios. Haviam os comandantes deixado sua gente tomar um pouco de fôlego e como não recebessem, aliás, a ordem de ocupar as posições e vissem, ainda, que o coronel, sabedor do triunfo, não deixava a eminência para vir ao encontro, pensaram que teriam de evacuar o posto recém-conquistado. Começavam a mover-se em nossa direção, quando os paraguaios, rápidos como cossacos, trouxeram a todo o galope a sua artilharia, então sustentada por numerosa cavalaria. Abriram o fogo até que de nosso lado, entrando em linha todo o nosso parque, com as boas pontarias feitas pelos nossos oficiais, tivessem de calar-se, após alguns disparos.

O pequeno número de baixas que tivemos, as perdas consideráveis dos paraguaios, sua inferioridade no combate em relação a nós, demonstrada pelos fatos, restabeleceram a calma, incutindo ao espírito do coronel uma apreciação mais exata das circunstâncias e das coisas. "Estes selvagens, exclamou, que a tanta gente assassinaram e tanto assolaram esta região, quando indefesa, não mais dirão que os tememos. Sabem que dentro do próprio território, podemos obrigá-los a pagar o mal que nos fizeram. Vamos à fronteira aguardar algumas probabilidades de nos abastecer e gozar de pequeno repouso que me não poderá ser exprobrado."


Retrocesso sobre o Apa-Mi. Escaramuças e combates com a cavalaria inimiga que envolve completamente a coluna.

Íamos, apesar de tudo, encetar a retirada. Sabia o inimigo que os movimentos de nossa coluna, fosse qual fosse o sentido tomado, tinham motivos a que era alheia a sua superioridade militar sobre nós. O combate que nos entregara o seu acampamento abatera-lhe a presunção, elevando ao mesmo tempo a confiança de nossa gente, em si própria, à altura das provações que o futuro nos reservava, assim como das que já experimentáramos.

Era indispensável a vantagem obtida sobre os paraguaios para que a realidade de nossa situação se fizesse, sem murmuração, aceita dos nossos soldados, distraindo-os da imprevidência causadora de tão premente momento. Fácil sem dúvida achar pretextos para a falta de víveres, tendo as informações dos refugiados podido iludir-nos acerca dos recursos da região, mas a insuficiência de munições, logo em começo de campanha, não podia deixar de constituir motivo de injustificável censura pelo fato de que tudo de antemão devera estar calculado pelos nossos chefes, muito embora os exaltassem o entusiasmo, a paixão da glória e o amor da Pátria.

Quando, no dia seguinte, 8, o sol se levantou (era um dia dos mais serenos) já estávamos em ordem de marcha com as mulas carregadas, os bois de carro nas cangas, e tudo quanto restava de gado encostado ao flanco dos batalhões, de modo a seguir todos os movimentos da coluna.

Às sete da manhã, o corpo de caçadores desmontados, a quem competia o turno da vanguarda, abriu a marcha, tendo a seguir bagagens e carretas, circunstância que nos impediu de transpor facilmente um riacho avolumado pelas chuvas dos dias antecedentes. Caindo um de nossos canhões à água só o tiramos com grande dispêndio de tempo e esforços. Nesta ocasião os ímpetos de sofreguidão do coronel Camisão ameaçaram reproduzir-se. Conseguiu, contudo, refreá-los; e desde aí jamais lhe notamos vestígios sequer da antiga agitação; e sim, unicamente, uma solicitude sempre devotada à salvação comum.

Avançávamos em boa ordem quando subitamente viva fuzilaria se fez ouvir: era a nossa vanguarda que renteando um capão de mato fora atacada por uma partida de infantaria, ali emboscada. Tinham algumas balas vindo cair por cima das fileiras num grupo de mulheres que marchavam tranqüilamente ao lado dos soldados; tal algazarra provocaram que não sabíamos o que poderia ter sucedido. Pouco durou este terrível tumulto; investindo resolutamente com o inimigo, nossa gente o desalojou impelindo-o até o primeiro declive do planalto, onde estava a fazenda da Laguna. Mas ali formaram-se os paraguaios novamente, resistindo algum tempo, achegando-se logo depois, passo a passo, dos cavalos; afinal, enquanto alguns, já montados, disparavam, a todo dar de rédeas, outros fingiam resistir para proteger os camaradas que fugiam a bom fugir, inteiramente derrotados.

Continuando a simular esta desordem aparente, pela qual procuravam separar-nos uns dos outros, o mais que pudessem, vimo-los, pouco a pouco, estacar com mais freqüência, sempre mais numerosos, à medida que os reforços lhes chegavam. Ao mesmo tempo o nosso corpo de caçadores, contra eles lançado, cada vez mais se isolava do resto da coluna. Redobrou, então, de intensidade a fuzilaria.

O capitão Pedro José Rufino, que à testa dos caçadores atravessara o ribeirão, depois da bagagem, e se encontrava mais perto da vanguarda, embora ainda bastante longe, percebeu logo o estado de coisas. Depois de expedir um oficial para pedir socorros, deu voz de avançar; e ele próprio atirou-se, sem atentar a quem o acompanhava, ao ponto do mais renhido entrevero. Chegou no momento em que os paraguaios, após todas as suas evoluções de cavalaria, simulando a fuga para depois ganharem terreno, subitamente voltaram, carregando furiosamente. A princípio surpresos, e algum tanto perturbados, mas logo confiantes à voz de Rufino, formaram os nossos quadrados em torno dos oficiais, segundo a ordem recebida; e destes grupos, fora dos quais só havia morrer miseravelmente, sob o sabre e a lança, despejaram-se descargas acompanhadas de aclamações estrepitosas.

Enfim, cerrando fileiras, retomaram os caçadores o movimento para a frente no meio deste turbilhão de homens e cavalos, para se encostar aos capões de mato que, aqui e acolá, se viam pelo campo. Encarniçada peleja onde, de ambos os lados, muitos mortos e feridos houve.

O imediato do corpo de caçadores, Antônio da Cunha deveu a vida à dedicação de um dos seus soldados. Deu-se em outro ponto um episódio freqüentemente relatado mais tarde. Parecia o capitão Costa Pereira o alvo dileto dos assaltos de possante cavalariano; quis acabar com isto e, abrindo espaço, lançou-se fora do quadrado, movido de tal ímpeto que o adversário, intimidado, deu de rédeas a fugir, com grande aplauso dos nossos.

Neste ínterim chegara, a toque-toque, o reforço pedido por José Rufino; e isto precisamente quando lhe iam os cartuchos acabar. Trazia um canhão a primeira companhia que entrou em linha; e uma de suas granadas foi arrebentar no ponto em que mais se adensavam os assaltantes. Esta arma, introduzida inesperadamente na ação, produziu o costumeiro efeito. Espalhou imediatamente a desordem na tropa já abalada pela aparição do socorro; e toda a cavalaria paraguaia desapareceu, deixando um segundo acampamento em nosso poder. Custou-nos isto quatorze mortos e muitos feridos.

Entre estes últimos não podemos esquecer um jovem soldado, Laurindo José Ferreira, que, cercado por quatro inimigos e apenas tendo o fuzil para se defender, todo golpeado de abraços, com a mão esquerda atingida, braço direito profundamente retalhado em diversos lugares e o ombro quase arrancado por um lançado, assim mesmo se não rendeu. Só muito mais tarde veio a restabelecer-se de tantas feridas; a firmeza na ambulância em nada lhe desmentira a bravura ante o inimigo.

Fora o pessoal do nosso serviço médico muito perseguido pelas febres palustres de Miranda. Haviam-nos deixado vários de seus membros; além de tudo as nossas caixas de cirurgia e de farmácia tinham-se todas perdido ou deteriorado, devido aos acidentes da viagem.

Puderam, contudo, os nossos feridos receber ainda todos os socorros de que precisavam, graças aos esforços da engenhosa humanidade de que foram alvos. Superintendera o comandante, sempre, este serviço, e tivéramos a felicidade de conservar dois hábeis clínicos, os doutores Quintana e Gesteira. Pertencia este último ao corpo empenhado no embate de 6, e, sob as balas, dera provas de dedicação e sangue-frio, como verdadeiro discípulo do grande Larrey.

Os cadáveres paraguaios não arrastados pelo laço dos compatriotas foram, todos, achados mutilados e de modo hediondo. A propósito de tais profanações fez o coronel violentas exprobrações aos índios, acenando-lhes até com a pena capital, se acaso, daí em diante, desrespeitassem os mortos. Tais a sua indignação e o pavor aos selvagens incutido, que até o fim da campanha, ficamos livres de semelhante espetáculo, e isto quando já o nosso chefe deixara de existir.

Juntando o exemplo às palavras fez o coronel Camisão inumar, sem exceção, todos os corpos achados no campo de batalha, com o zelo da escrupulosa piedade que tanto era da sua índole. Duas horas se consagraram à triste contingência de entregar os nossos infelizes patrícios à terra inimiga. Que tristeza vê-los assim desaparecer; e que choque não deveria ter sentido um de nossos oficiais ao fazer questão de sepultar, ele próprio, o irmão mais moço, Bueno, voluntário paulista!

Cumprido este dever, recomeçamos a marcha, desta vez seguindo a ordem recentemente adotada.

Dera-se uma peça ao corpo de caçadores, que ainda formava a vanguarda; o 17.° batalhão, dos voluntários de Minas, que também tinha um canhão, compunha a retaguarda. No centro, o 20.° batalhão e o 21.º, cada qual com a sua boca de fogo, escoltavam, à direita e à esquerda, a bagagem flanqueada de duas filas de carretas puxadas por bois. O conjunto desta massa movediça parecia um grande quadrado que, em cada face, tinha um menor diante de si; judiciosa formatura para nos proteger das cargas de cavalaria; porquanto podiam as quatro frentes ser varridas pelo fogo cruzado de nossa infantaria. Enfim, para maior segurança, linhas de atiradores circulavam em torno do corpo de Exército. Desde este primeiro dia verificou-se quão vantajosa era tal disposição porquanto estava a cavalaria inimiga, por toda a parte, em torno de nós: à frente, sobre os flancos; atrás, ora longe, ora quase a nos tocar. Nossos soldados, marchando sempre, afastavam-na por meio de descargas, freqüentes, e tanto mais profícuas quanto ao resultado quanto mais se aproximavam os paraguaios. Algumas de suas balas também atravessavam as nossas fileiras, mas sem grande dano pela incerteza do tiro disparado a galope. Entretanto, acabaram as balas de artilharia por visitar-nos.

Atravessávamos, então, o terreno lamacento, fundo, de planície cortada de estreitas esplanadas, paralelos umas às outras, e uma peça paraguaia de 3, sucessivamente assestada nestes pontos, abriu fogo contra nós; mas, ou porque a sorte neste particular ao menos nos favorecesse, ou graças à inexperiência dos artilheiros inimigos, iam-lhe os projetis enterrar-se na lama que nos rodeava; ou, então, os menos inofensivos caíam no meio do nosso gado com mais estrépito do que prejuízo.

Os nossos soldados, cuja primeira impressão fora bastante viva, não tardaram a rir do que viam e até as próprias mulheres acharam nisto assunto de mofa comparando estas balas, que faziam repuxar a água, aos limões-de-cheiro do velho carnaval brasileiro. Demais tínhamos boa réplica à "palavra do bronze"; da linguagem imaginosa do velho Lopes.

Ainda neste dia não desmentiu a nossa artilharia sua superioridade. As nossas peças raiadas de calibre 4, La Hitte, bem assentes, perfeitamente sólidas, eram manobradas, com a maior regularidade, por suas guarnições que, desde o Taboco, com elas se exercitavam. Havia entre elas bons artilheiros. É preciso acrescentar que os nossos oficiais da arma de artilharia, tão hábeis quanto bravos, todos dignos êmulos uns dos outros, cada qual se esforçava por melhor manobrá-las: João Tomás da Cantuária, Marques da Cruz, Napoleão freire e Nobre de Gusmão. Tal porfia sobremodo interessava aos nossos soldados, incutindo-lhes ardor novo cada tiro que atribuíam ao seu artilheiro predileto. Assim caminhamos dia todo num caos de fumaça e poeira, com grande estrépito, e no meio das aclamações dos nossos, de gritos agudos e ferozes do inimigo, mugidos do gado, explosões da pólvora, desordem dos homens e das coisas.

Declinava o sol quando percebemos distintamente o Morro da Margarida, o mesmo que já de outro ponto observáramos do forte de Bela Vista, marco de reconhecimento que desta vez nos brilhou aos olhos com um raio de esperança. Fizéramos duas e meia léguas sob o fogo contínuo e cansativo, muito embora pouco mortífero.

A mata da margem do Apa-Mi nós a escolhêramos para o pouso daquela noite. Íamos atingi-la quando verificamos que a bateria montada dos paraguaios desde muito se adiantara pela esquerda, achando-se agora postada em frente à nossa vanguarda. Varriam suas balas a margem onde íamos ficar encurralados, pois havia pouco fora destruída a ponte ali existente. Era tempo que os nossos canhões, penosamente arrastados até o alto da eminência aposta à que o inimigo ocupava, começassem a fazer-se ouvir. Não tardaram a obrigar que os paraguaios, cuja peça de 3 foi até desmontada, calassem o fogo.

Este combate, que pôs termo ás refregas do dia, não durou menos de uma hora. Não foram consideráveis as nossas perdas, um morto apenas e alguns feridos. Podíamos, pois, considerar como vantagem as provas que de sua firmeza, a proteger a bateria, nos dera o 20.° batalhão. Pareceu-nos o fogo paraguaio melhor dirigido do que até então, mas nossa gente não arredou pé. Eram, entretanto, simples recrutas valetudinários, saidos de Goiás, verdade é que comandados por valente oficial, o capitão Ferreira de Paiva. Ficamos sabendo o que podíamos esperar da coragem e da abnegação de todos para o resto da retirada. Neste ínterim, os membros da comissão de engenheiros estabeleciam a ponte. Trabalharam rapidamente, sob as vistas do comandante. Cumprimentou-os pelo serviço e foi o primeiro a passar. Todo o resto da coluna o acompanhou sem maior detença e veio acampar à margem direita do Apa-Mi. Mas já patrulhas de cavalaria paraguaia, que haviam atravessado o rio, a jusante de nós, estavam a observar-nos.

Caíra a noite, profundamente escura. Estávamos estrompados de cansaço, a vista escura e o espírito abalado por tantas e tão variadas impressões cujas imagens acabavam por se confundir. Não houve quem armasse tenda ou barraca. Dormimos em grupos, formados quase ao acaso, de três, quatro ou mais, conchegados uns aos outros, cobertos em comum por capotes, ponchos, mantas, com quanto encontráramos; cada qual com o fuzil, o revólver ou a espada ao alcance da mão e o chapéu desabado sobre os olhos, para se resguardar do orvalho, tão copioso que tudo encharcava.


Rebate falso. Últimas ilusões. O tenente Vitor Batista. Passagem do Apa. Volta ao território brasileiro.

Algumas horas mais tarde, cerca de meia-noite, ouvimos horrível fragor a que dominava um grito único: Cavalaria paraguaia! Abriram fogo as sentinelas avançadas.

Tornara-se o acampamento teatro de geral balbúrdia: tiros rasgavam a treva, deixando entrever formas fantásticas, ora de homens a empunhar o revólver ou o sabre, ora de animais, estes ainda mais perigosos, procurando por toda a parte como escapar, e numa excitação furiosa, ao passo que os seus guardas, não sabendo como os conter, pejavam os ares de imprecações.

Alucinante terror se apoderara do gado no sítio em que estava preso. Averiguada a causa de tal pânico pusemo-nos todos a rir, tornando-se universal esta hilaridade. Está a vida da guerra cheia dos mais inesperados contrastes.

O extremo frescor das noites de inverno, na América do sul, mesmo entre os trópicos, obrigou-nos logo a voltar aos nossos improvisados abrigos onde as exigências do sono reconquistaram todos os direitos durante as horas decorridas até o amanhecer.

Aos primeiros albores pusemo-nos novamente a marchar, expostos ao fogo da artilharia inimiga, mas sem que nos detivéssemos em lhe responder. Levavam os nossos atiradores de vencida tudo o que diante deles achavam e não perdiam tiro. Haviam alguns cavaleiros inimigos caído, desde o começo da fuzilaria e seus cadáveres ficaram estirados, abandonados na estrada, não tendo seus camaradas tido tempo de os levantar e arrastar na carreira. Reconhecendo os nossos que um destes corpos era o de certo trânsfuga brasileiro, evadido de Nioac, muito antes da guerra, não foi possível, apesar de todos os esforços dos oficiais, subtrair os despojos deste miserável ao furor dos soldados. À medida que passavam o golpeavam com a espada ou a baioneta.

Encaminhávamo-nos para as ruínas da Bela Vista. Abria-se diante de nós largo vale, quase plano, tendo à direita um renque de colinas de suave declive. Teria o inimigo podido aproveitar-se, contra nós, desta disposição do terreno; mas chegamos a tempo de a utilizar, ocupando a primeira destas eminências. Dali o nosso fogo manteve os paraguaios a distância, enquanto marchávamos, e nossas peças iam sucessivamente ocupar os pontos que melhor podiam cobrir-nos. Esta manobra, pela precisão com que foi diversas vezes repetida, levou-nos sãos e salvos até um último cabeço que domina o Apa e Bela Vista. Ali nos estabelecemos, naquela manhã de 9.

Lá ainda ocupávamos a fronteira do Paraguai, embora batidos pelo pungente pesar de a deixar. Tão recentemente a havíamos atravessado, certos de realizar importante diversão, talvez até indispensável à causa da pátria!

Nós nos sentíamos como corridos de vergonha, vendo nossas esperanças de glória tão cedo desvanecidas. Escapara-nos a presa e não queríamos ainda aceitar a absoluta necessidade de a abandonar.

Assim, pois, iria confinar-se à região dos sonhos a visão daquele território magnífico, aberto diante de nós, sob tão belo firmamento? Dali nos era, pois, indispensável sair, exatamente quando prováramos superioridade em armas? Faltavam-nos, não havia dúvida, as munições; mas de um momento para outro não poderíamos recebê-las? Já não tinham, desde muito, sido pedidas a Nioac? - Acaso cheguem, explicava um oficial aos seus camaradas, o coronel, que ainda se não conformou com o pronunciar a palavra retirada, ordenará logo nova ofensiva. E assim devaneávamos sem ligar maior importância a todos estes pensamentos.

Um homem, no entanto, avidamente acompanhara tais conversas: era o nosso infeliz guia. Absorto, sombrio, sem uma só palavra para quem quer que fosse, desde que retrogradávamos reconcentrava-se na contemplação dos sofrimentos da família, reduzida ao cativeiro, exposta aos tormentos, já os havendo sofrido talvez: mulher, filhos, parentes, amigos. Assumira, a seu ver, a marcha para a frente, o aspecto de um compromisso que, uma vez tomado sob a invocação do patriotismo e da humanidade, era definitivo, embora a todos nós custasse a vida! Agora, que se falava de penetrar novamente no Paraguai, tornara-se outra vez entusiástico e expansivo. Do comandante, abroquelado no mutismo, corria aos oficiais e destes aos soldados, garantindo se encarregava de abastecer o corpo de Exército.

Se nos entregássemos à sua experiência, haveria conduzir-nos por caminhos que só ele conhecia, a lugar seguro onde o esperaríamos. Enganavam-se os que acreditavam na exaustão de recursos de sua fazenda. Ainda possuía reservas e tudo sacrificaria, como já tudo sacrificara.

Nós lhe admirávamos a alma generosa: mas eram-lhe evidentes as ilusões e exagerações. Destruindo-se por si mesmas contribuíam para nos abrir os olhos à verdade. Se ainda algumas dúvidas nos restavam, veríamos demonstrada a nossa absoluta impotência pelas notícias trazidas por um dos nossos oficiais, o tenente Vitor Batista, que, da colônia de Miranda, escoltado por doze soldados, viera ao nosso encontro. Não se avistara com os paraguaios; mas quanto ao objeto de nossa principal preocupação, ou por assim dizer, o único, contou-nos que nenhuma remessa de munições partira de Nioac. Um bom número de carretas do comércio, carregadas de mercadorias, havia realmente atingido a Machorra. Ainda estavam algumas paradas à nossa espera; mas as outras, a maioria, ao saber de nossas refregas com o inimigo, tinham tornado atrás, certas de que não nos encontrariam mais.

A Machorra, como já dissemos, está situada a dez quilômetros de Bela Vista, em território brasileiro; e podíamos supor que os inimigos, preocupados conosco, e com o que poderíamos fazer, ainda se não haviam dirigido para ali. Interromper a nossa marcha, para atrasar a deles, ficar além do Apa e fazer, entretanto, com que os mercadores tomassem o mais depressa possível a estrada de Nioac, tais foram, pelo que pudemos julgar, as idéias do coronel. Por elas se apaixonou. Considerava desonra ver apreender tão rica presa pelo inimigo, que indo sempre à nossa frente, haveria de atingi-la antes de nós e não deixaria de arvorá-la em troféu. Assim, pois, ordenou aos diferentes corpos que só a 11, dois dias mais tarde, levantassem acampamento.

Debalde apressaram-se vários oficiais em lhe fazer ver que, para a execução de uma retirada, já comprometida pela escassez de víveres que nos ameaçava, havia a maior urgência em atravessar o Apa, antes que os inimigos tivessem conseguido torná-lo para nós intransponível; a não ser mediante sacrifícios de todo o gênero, e sobretudo o de uma delonga que infalivelmente nos perderia.

Mostrou-se irredutível, abroquelando-se numa única alegação: exigia a dignidade do corpo de Exército a demonstração de que a retirada se efetuava tanto sem precipitação como sem temor.

Restava-lhe mandar levar à Machorra a ordem para que os nossos mascates regressassem a Nioac; e foi então que se lhe transmutou a funesta obstinação em verdadeira idéia fixa. Chamando o tenente Vitor Batista, o portador das notícias recentes, dele indagou qual seria o melhor meio de entrar em comunicação com o comboio e quem poderia executar a comissão. Depois, como este valente oficial não hesitasse em oferecer-se, aceitou-lhe a proposta, sem nada querer ouvir das observações que me foram feitas acerca dos inconvenientes de se arriscar assim a perder um oficial, de patente já distinta, tão dedicado, e cuja perda podia trazer o desânimo à coluna. Continuou inabalável, a tudo respondendo com o dizer que o filho de Lopes lhe serviria de guia, tomando atalhos que conhecia e impraticáveis à cavalaria.

Tal ordem se executou. Dois dos nossos refugiados do Paraguai, os irmãos Hipólito e Manuel Ferreira, arrastados pela confiança no filho de Lopes juntaram-se ao tenente Vitor. Partiram os quatro, deixando-nos cheios de apreensões as mais intensas.

Mal decorrera meia hora, ouvimos distintamente, ao longe, tiros de fuzil. Estremecemos, fitavam os nossos olhos o ponto onde os ausentes haviam desaparecido. Vimos, afinal, o filho de Lopes sair só, da mata do sul, correndo para nós, seminu e todo ensangüentado.

Apenas cobrou alento, contou o que se passara. Os paraguaios os haviam cercado, matando o tenente e os irmãos Ferreira. Ele próprio conseguira escapar graças a um espinhal denso onde se lançara e donde, por milagre, pudera atingir o rio.

A todos consternou este fatal acontecimento. Quanto não deve ter sofrido o infeliz coronel Camisão com o seu gênio tão acessível às angústias do arrependimento e do remorso! Dominou, contudo, a comoção: não disse palavra, e não tardou em ordenar aos engenheiros que, sobre o Apa, construíssem uma ponte para a passagem das tropas.

Tudo o que se pôde fazer, por falta de material e ferramenta, foi uma pinguela e ainda assim vacilante e pouco segura. Felizmente, porém, baixara sensivelmente o nível das águas e o rio mostrava-se vadeável. Começou a passagem da coluna às seis da manhã seguinte. Foi morosa e difícil. Os soldados atravessavam a água, levantando acima das cabeças armas e bagagens, a lutar com a rapidez da corrente.

Os doentes, os oficiais, os músicos e as mulheres utilizaram-se da pinguela. Houvesse o destino determinado que os inimigos cuidassem em assestar a artilharia numa esplanada que nos ficava a cavaleiro, ou simplesmente espalhassem atiradores em torno de nós, caro nos teriam feito pagar a invasão do seu território, no momento em que o deixávamos. Felizmente adotaram outro plano; separados em dois grupos, um esperou-nos à frente, ao passo que o outro se dispunha a cair-nos á retaguarda, desde que entre ela e o resto da coluna visse o rio. Não surtiu efeito a combinação, mantidos que foram a distância respeitosa pelo fogo rápido, e habilmente dirigido, de uma das nossas peças, a que, do alto da chapada, onde se estabelecera o nosso acampamento, podia varrer todos os arredores.

Depois dos batalhões do centro e seus canhões passou o gado costeado por dez ou doze homens, a quem comandava o capitão da guarda nacional Silva Albuquerque. Nossa vanguarda com as peças que tinham protegido a passagem, transpôs o rio a seu turno, coberta pelo fogo de uma bateria que acabava de tomar posições defronte da margem paraguaia.

Às nove e meia, quando nos achávamos todos em território brasileiro, foi a nossa ponte improvisada cortada por alguns soldados que para este serviço reservara o tenente Catão Roxo. Recomeçou o corpo de Exército a marchar, acompanhando a margem que o fogo do forte de Bela Vista, agora arruinado, podia outrora dominar.

Tomou a dianteira o batalhão de voluntários do tenente-coronel Enéias Galvão, indo o 21.° de infantaria, comandado pelo major José Tomás Gonçalves, formar a retaguarda. Entre eles ficaram os corpos do centro: à direita o 20.°, comandado pelo capitão Ferreira de Paiva; e, à esquerda, o corpo de caçadores sob as ordens do capitão Pedro José Rufino. Cobria toda esta força duas linhas de carretas, no meio das quais iam as mulas carregando o resto de nossos víveres, munições e alguma bagagem de oficiais. Vinha depois o grupo das mulheres, dos enfermos e convalescentes. Nossas últimas juntas de bois arrastavam as peças; a de Marques da Cruz, no ângulo da direita; a de Nobre de Gusmão, no da esquerda; a de Cantuária à extrema-direita da retaguarda; e a de Napoleão freire à extrema-direita.

À retaguarda do 20.° batalhão, e fora das linhas, tudo superintendendo iam o comandante e parte do seu estado-maior. A cada momento enviava, para todas as direções, os seus oficiais e ajudantes-de-campo, a fim de se regularizar o movimento. Por duas vezes ao chefe dos voluntários, à vanguarda, avisou que os seus atiradores, por demasiado ardor, se isolavam da coluna, com grande risco para todos, como não tardaram os fatos a demonstrá-lo.

Avançávamos; e nossos olhos se despediam de Bela Vista, dizendo-lhe adeus e para sempre. Muitos daqueles que conosco estavam, então, não mais existem. O que podem desejar os seus sobreviventes é nunca mais regressarem àquele teatro de tanta miséria. Já se não percebia um pedaço de muralha branca, único destroço ainda de pé do que fora a fortaleza daquela fronteira; nada mais se via além das franças da mataria do Apa.

Aberta de todos os lados, estendia-se a campina acessível aos olhos, exceto num ponto a alguma distância, à nossa frente, e ponto que os nossos atiradores não haviam reconhecido. Uma espécie de escarpa ali mascarava o que verificamos ser profunda depressão do solo, embaixo de suave declive que tornava a subir para a Machorra, cujo caminho seguíamos. Ascendia o sol, eram doze horas.


Ataque vigoroso do inimigo. Nós o repelimos, mas, com o fragor do combate, nosso gado se dispersa. Cenas do campo de batalha. A preta Ana. O ferido paraguaio. Vão os víveres faltar.

De repente, do fundo da escarpa que a estrada contornava, irrompeu um corpo de infantaria paraguaia que se lançou sobre a nossa linha de atiradores, atravessou-a, dirigindo-se para o 17.° batalhão dela distante uns cem passos. Enquanto este se preparava para receber o ataque, os nossos atiradores, tornando a si da surpresa que ao inimigo permitira penetrar em nossas linhas, haviam-se voltado e o carregavam pela retaguarda Foi quando numerosos grupos de cavaleiros apareceram, a galope, derribando e acutilando a quantos encontravam.

Travou-se, por toda parte, terrível entrevero: e tal que o nosso batalhão de voluntários de Minas hesitou a princípio em fazer fogo, receoso de atingir amigos e inimigos. Acabou, afinal, por fazê-lo, juncando o solo de mortos e feridos. Isto pelo menos obrigou os paraguaios a recuarem e a fugir, mas somente para se reformarem' a alguma distância.

Não podíamos deixar de esperar um ataque geral. Formaram os corpos quadrados e os canhões assestados nos ângulos despejaram nutrido e vivo fogo, cujos projetis atingiram a grota onde se alojara o grosso do inimigo.

Novo pânico de nosso gado, agora de efeitos mais graves do que da primeira vez, veio, então, comprometer-nos a situação, não só no momento como para todo o resto da retirada. Espavorida pelos estampidos do canhoneio, o mais forte que até então ouvira, apossou-se de nossa boiada vertiginoso terror. Abrindo passagem através de guardas e soldados, precipitaram-se os animais sobre as nossas fileiras, sobretudo à retaguarda, mais próxima de seu retiro. Produziu a princípio esta irrupção uma desordem que o comandante inimigo notou, trazendo-lhe provavelmente a sugestão da idéia da manobra que imediatamente executou. Distribuída em duas colunas profundas, toda a sua cavalaria arrancou, vindo rentear as faces laterais de nossos quadrados, como a convergir sobre a nossa retaguarda, para a esmagar. Poderia esta manobra ter ocasionado a nossa perda; mas malogrou-se, sobretudo, graças à nossa infantaria que, colocada como estava, teve durante minutos o inimigo sob os seus fogos cruzados e lhe causou avultadas baixas. Amorteceram estes claros o ímpeto das massas, a quem os feridos e mortos, aliás, atrapalhavam. A arma branca não as poupava menos que as balas e a metralha. Vimos cavaleiros traspassarem-se sobre as nossas baionetas e assim pereceram acutilados. Sobressaiu o 21.° batalhão nesta encarniçada pugna, que à nossa retaguarda deu tempo de se consolidar contra o choque que a ameaçava. Não foi, contudo, a violência tão grande quanto a esperávamos, porque os inimigos, imaginando que nos achariam meio abalados, mas sentindo pelo contrário a nossa coesão, graças ao vigor da resistência, não persistiram no ataque, acabando por circunscrever o seu esforço em apanhar o nosso gado que, espavorido, disparava pelo campo. Cercá-lo, dominá-lo, tangê-lo para a frente, foi para estes vaqueiros, os primeiros do mundo, obra de instantes. Depois, tudo desapareceu: estava o campo limpo e cessara a peleja. Foram os primeiros movimentos consagrados ao contentamento da vitória; e as aclamações que espontaneamente estrugiram em toda a nossa linha abafaram o estridor dos clarins e fanfarras.

A esta cena de entusiasmo e alegria, outra seguiu-se de desolação. Estava o terreno coalhado de moribundos e feridos inimigos. Vários dos nossos soldados, ébrios da pólvora e do fogo, queriam acabá-los. Horrorizados, debalde esforçavam-se os nossos oficiais em lhes arrancar as vítimas às mãos, exprobrando-lhes a indignidade de semelhante chacina[1].

Felizmente, dominados pela impressão das ameaças do coronel, a propósito das mutilações infligidas aos cadáveres, abstiveram-se os nossos índios de tocar em qualquer forma humana animada ou inanimada. Por isto mesmo redobraram de crueldade para com os cavalos, dos quais não pouparam sequer um só, estivesse ele estendido no chão, a dar sinais de vida, ou, então, ligeiramente ferido, a pastar, todo ajaezado ainda.

Via-se, aliás, como inevitável conseqüência destas cenas deploráveis, o saque desenfreado a que se entregavam os mascates e os acompanhadores do Exército também, reclamando as mulheres o seu quinhão. Eram os corpos despidos e revistados; despojos sanguinolentos passavam, de mão em mão, como mercadorias, muita vez com violência disputadas.

Os cadáveres paraguaios, objeto dos primeiros esbulhos, ficaram assim nus, estendidos ao sol. Notamos um, o de um rapaz de formas atléticas, cuja cabeça, de uma têmpora à outra, perfurara uma bala. Tinha os olhos tumefatos nas órbitas e, apesar de todo o sangue que em abundância correra ainda, de sob a fronte, lhe gotejavam grossas bagas, que pareciam lágrimas. Pungente emblema da passagem exterminadora da guerra sobre a sua valorosa nação, aniquilada pelo chefe implacável que a regia.

Quanta idéia lúgubre evoca um campo de batalha! Sobretudo nestas solidões imensas, onde o próprio gênio do mal parecia ter penosamente convocado e reunido milhares de homens para que mutuamente se exterminassem, como se terra lhes faltara para viverem em paz do fruto do seu labor.

Deixaram os inimigos no chão mais de uma centena de mortos, entre os quais divisamos um capitão e outro oficial, cujo posto, por falta de divisas, não pôde ser identificado. Raro que se veja tão grande número de cadáveres paraguaios num campo de batalha. Carregam os sobreviventes quantos podem e mesmo tomam alguns dentre eles a precaução de se atar pela cintura a uma das pontas do laço que sempre trazem consigo, prendendo solidamente a outra ponta ao arção da sela, a fim de que caso caiam mortos ou gravemente feridos, possa o cavalo, acompanhando os demais na volta, levá-los ainda que em pedaços - feroz precaução que não deixa de ter tal ou qual grandiosidade.

Contamos do nosso lado muitos mortos, todos do batalhão da vanguarda ou dos atiradores que o precediam. O tenente Palestino, que a estes comandava, tivera o peito atravessado por um lançaço de que dias depois veio a morrer.

O tenente Raimundo Monteiro foi durante a ação apanhado a esvair-se em sangue. Levaram-no numa padiola; ao passar diante da companhia que comandava bradou-lhe que lhe vingasse a morte. Recebera oito lançaços, dos quais o primeiro o derribara; e, mais ainda tivera que sofrer do pisar dos cavalos. Restabeleceu-se, entretanto, e tivemos o prazer de ver rapidamente curado este valente filho da província de Minas.

Grande número de feridos brasileiros se transportaram de vários pontos; foram todos levados à ambulância provisória, onde os nossos médicos os puseram nos carros de bois, apertados, não há dúvida, e uns sobre os outros, mas recebendo todos os socorros que as circunstâncias comportavam. Uma mulher de soldado, a preta Ana, antecipara nesta obra caridosa os cuidados da administração militar. Colocada, durante a ação, no meio do quadrado do 17.°, desvelara-se por todos os feridos que lhe traziam, tomando ou rasgando das próprias roupas o que lhe faltava para os pensar e ligar, proceder tanto mais digno de nota e admiração quanto fora o da maioria das companheiras miserável. Escondidas quase todas sob as carretas, ali disputavam lugar com horrível tumulto.

O único ferido inimigo, encontrado vivo, tinha uma perna fraturada. Quis o coronel vê-lo, e a fim de o interrogar chamou o filho de Lopes, que falava o espanhol paraguaio. Parecia sentir horríveis dores e pediu água que avidamente bebeu. A sombra com que o cobrimos, rodeando-o, pareceu dar-lhe maior alívio ainda. Respondendo a algumas perguntas contou-nos que o comandante das forças com quem combatêramos se chamava Martim Urbieta, o mesmo de quem já falamos; que o corpo de cavalaria, com quem acabávamos de pelejar, era de 800 praças, estando ainda outro a chegar brevemente. Quanto às informações que lhe pedimos sobre a artilharia, respondeu nada ter a contar: nada sabia. Entretanto, espontaneamente, deu-nos notícias da guerra do Sul. Havendo o filho do guia indagado se Curupaiti fora tomada, respondeu pelo monossílabo: "Não!" - E Humaitá? - ­"Nunca!" Então a guerra não está para acabar? - Após uma pausa, em que se lhe repetiu a pergunta, replicou o moço, como saindo de um sonho, e no tom de ênfase próprio da língua de sua gente: "A terrível guerra está dormindo!" Delirava. Levaram-no, então, para uma das carretas da ambulância.

O que a este incidente se seguiu (triste ocorrência que não quisemos, aliás, averiguar) foi, segundo o boato espalhado, que o desventurado, posto num carro atravancado e onde foi aumentar o incômodo de outros feridos e moribundos, desvairados pelo ódio e sede de vingança, acabou estrangulado. Certo é que poucas horas mais tarde, durante a marcha, foi lançado morto à estrada. Enterramos todos os nossos cadáveres em covas que mandamos abrir pelos índios. Quanto aos paraguaios, deixamos tal encargo aos seus compatriotas. Bem sabíamos haveriam de voltar logo àquele local, após a nossa partida. Com os seus sentimentos de homem profundamente religioso, teve o coronel real desgosto deste abandono. Era, porém, o número dos cadáveres muito avultado, ia o dia alto e o calor tornava-se acabrunhador. Assim recomeçamos a marcha.

Tal foi o combate de 11 de maio, o mais importante da Retirada.[2] Já o de 6 mostrara aos paraguaios o que valia a nossa gente; veio este confirmar o efeito em seu animo; e tal impressão se traduziu pela hesitação e a moleza que, daí em diante, mais do que nunca, lhes caracterizou os cometimentos. Ficou-nos, além de tudo, patente que, além da prática da guerra, faltava-lhes a inspiração tática, a que sabe apreciar os fatos, no momento em que se produzem e adivinhar os obstáculos para os vencer. O seu ataque de infantaria tivera como fim levar a confusão à nossa vanguarda, de modo a entregá-la, no primeiro movimento de surpresa, à mercê da cavalaria. Baldado este plano, deveriam ter compreendido que a única probabilidade de triunfo restante residia nas cargas de cavalaria, cada vez mais impetuosas, e sustentadas por sucessivos reforços. Um pouco mais de hábito da guerra lhes teria dado a conhecer, aliás, quanto era a nossa disposição geral excelente e que, para a derrocar se tornava preciso combinar o emprego da artilharia, de que dispunham, com a ação da cavalaria. Sob este reforço simultâneo ter-nos-ia sido impossível, a princípio, defender as nossas bagagens e as munições que as acompanhavam; e depois os nossos quadrados, que às balas ofereciam dilatado alvo. E, então, as nossas fileiras, clareadas e combalidas pelo próprio fato de seu desenvolvimento, não teriam resistido à sua cavalaria, poderosa como era, com os pesados sabres de que dispunha.

Seja como for, vencêramos e ainda com este resultado excelente: crescera o coronel Camisão no conceito dos soldados pelo sangue-frio de que dera mostras.

Mas, infelizmente, não bastava isto: perdêramos o gado. Que seria de nós sem víveres? Mandou o comandante chamar vários oficiais, uns após outros e, depois, longamente conferenciou com o velho Lopes, que, intrépido e até terrível, pode-se dizê-lo, em combate apenas travado, mostrava-se nas deliberações, mais do que ninguém, o homem dos bons conselhos e inspirados expedientes. E só deste lado havia agora salvação a esperar.

Notas editar

  1. Perderam os paraguaios cento e oitenta e quatro homens, número inscrito numa grande cruz que, por ordem do major Urbieta, ali se fincou.
  2. Houve mais de 230 mortos. Travara-se a luta entre duas colunas cujo total, quando muito, atingia 3.000 homens. A esta refrega deram os paraguaios o nome do combate de Nhandipá.


Deliberação sobre o caminho a seguirmos Primeiro incêndio no campo.

Dirigia-se para leste a estrada que diante de nós se abria. Passadas seis léguas, neste rumo, voltava-se para o norte, até a colônia de Miranda, de que nos separavam ainda quatorze léguas, às quais cumpria ainda ajuntar mais dez para atingirmos Nioac. Só ali, a vinte e quatro léguas da fronteira, poderíamos nos reabastecer de gado. De quinze dias, no mínimo, precisaríamos para transpor esta distância, na marcha em que caminháramos, para o Apa.

Conhecia o inimigo bem esta estrada e já se pusera à nossa frente. Seria sua entrada em Nioac muito antes da nossa, ocasionando-nos, quiçá, a perdição, ao cabo de tantos esforços.

Logicamente era, pois, tal caminho impraticável. Lembraram-se alguns, então, do que propusera Lopes, quando se tratava de invadir o território paraguaio e escolher a melhor via para o realizar. Na opinião do guia, preferível a qualquer outra, era a passagem pela sua fazenda do Jardim, situada a três dias de marcha a sudoeste de Nioac. Afirmava haver facilmente vencido esta distância em dois dias e meio. Dali à fronteira do Apa, quando muito, teríamos seis dias pelo campo. Quanto a este último trajeto que, segundo as suas asseverações, por ocasião de nosso primeiro conselho de guerra sobre tal assunto, nos devia colocar em frente ao forte de Bela Vista, insistira na necessidade de um reconhecimento que rapidamente deveríamos, dois ou três, em sua companhia realizar, montados em bons cavalos. Fora, então, impossível, porém, conseguir-se um estudo sério do alvitre. Acoimaram-no de abusão existente apenas na imaginação do guia. Se houvesse passagem, diziam, os paraguaios, grandes mateiros sempre a divagar, conhecê-la-iam certamente. Ao que sempre respondera Lopes: - Só se meu filho lhas ensinasse, pois só Deus, eu e ele podemos ir de minha fazenda ao Apa, pelo campo. Riram-se os que lhe faziam as objeções e não se falara mais no caso. Nas circunstâncias em que nos achávamos, informado o coronel da passagem dos paraguaios para a margem setentrional do rio, e até da existência de um acampamento, ali estabelecido, apressou-se em falar ao velho guia sobre o caminho pela sua estância. Respondeu este bastante friamente que, com efeito, em tempo, indicara tal estrada. Aconselhara então, porém, que de antemão se exploras - sem aqueles lugares, no que não fora atendido. Agora era tarde demais.

Entretanto, havendo dado largas ao ressentimento, e passados alguns minutos de silêncio, acrescentou que tudo bem meditado não via impraticabilidade para uma tentativa deste gênero. Certamente muito nos maltrataria a macega alta; supunha, contudo, que em menos de uma semana poderíamos atingir a sua estância onde repousaríamos; e, com suas laranjas, nos haveríamos de restabelecer. A seu ver era esta fruta de inestimável valor para a saúde; cada vez que ao Jardim fora, para nos abastecer de gado, grandes sacos dela nos trouxera. Achavam-se as suas árvores carregadas e ainda o deviam estar.

Pessoalmente pertencêramos à maioria que outrora opinara pelo itinerário por Lopes proposto, pelo fato de nos facultar meios, graças aos quais mais facilmente atingiríamos o território paraguaio. O que, então, mais proveitoso fora, para a ofensiva, continuava a sê-lo para a retirada. Não havia hesitar.

Pronunciou-se a maioria dos oficiais pela escolha desta estrada sob a direção do guia. De novo afirmou este, dando a palavra, que em cinco ou seis dias estaríamos no Jardim. Mais dois ou três nos bastariam depois para alcançar Nioac, onde nos poderíamos ainda antecipar ao inimigo. Foi o plano aceito pelo comandante. Último dia de triunfo para José Francisco Lopes!

Inteiramente a seu favor tinha a opinião dos soldados, a dos oficiais e a do chefe. Investia-o a confiança geral, até como que solenemente, de quase ilimitada autoridade; a pública necessidade e a lei suprema da salvação tornavam-no como um ditador.

Toda a vantagem havia em tomarmos a estrada do Jardim. Em primeiro lugar podiam os nossos comboios escapar ao inimigo que parecia perseguir-nos noutra direção. E não era só dos mercadores estacados na Machorra, à nossa espera, que se tratava, mas também de todos os mais que, na suposição do secionamento ou da perda de nossa coluna, penosamente retrogradavam para Nioac. Tínhamos ainda a probabilidade de algum abastecimento nos distritos desertos, onde, mesmo longe das estâncias, há animais erradios. Em terceiro lugar não eram de pequena monta as vantagens que nos apresentava a disposição de um terreno acidentado, em parte coberto de matas e capões capazes de neutralizar as armas mais danosas em uma retirada, a cavalaria, graças aos acidentes do terreno e a mataria; a artilharia, porque a nossa, com a dianteira que tomávamos, teria sempre á faculdade de, antes do inimigo, ocupar qualquer posição de algum valor estratégico.

Íamos desde logo evitar uma planície de meia légua onde a água das últimas chuvas ainda encharcava o solo, apenas deixando estreita passagem ao longo da qual, durante muitas horas, teríamos que suportar o fogo do inimigo.

Enfim, por esse caminho da estância de Lopes, só havia um grande rio a atravessar, o Miranda, enquanto pela estrada ordinária, precisaríamos, além deste, transpor numerosas correntes, três pelo menos volumosas: o Desbarrancado, o Santo Antônio e o Feio, que as menores chuvas sobremodo acaudalam.

Podia-se dizer, é exato, que um efeito desagradável do nosso desvio da estrada batida seria persuadir aos paraguaios que procurávamos escapar-lhes pela fuga, assim se amesquinhando a boa impressão que os últimos combates lhes deviam ter dado de nós. Mas esta aparente desvantagem vinha pelo contrário, naquele momento, reforçar o desejo em que nos empenhávamos de salvar os comboios da perseguição do inimigo, atraindo-a sobre nós. É que ela não nos inspirava temor. O que certamente nos levava a refletir sobre o caso vinha a ser a idéia de nos embrenhar em lugares ainda não explorados, cheios talvez de inesperados obstáculos, no meio desta macega alta que a alguns passos impede a visão; que é preciso cortar sem descanso e quando seca (como então estava) exige perigoso e pesado serviço. Qualquer consideração acerca de perigos e dificuldades secundárias desaparecia, contudo, em frente à urgência da situação. Não houve quem não o compreendesse; uma única porta de salvação nos restava aberta.

Pusemo-nos a marchar a uma hora da tarde; iam os oficiais no centro de seus batalhões. Achava-se o comandante com parte do seu estado-maior no quadrado do 20. Ao entrar nele, jovialmente dissera ao capitão Paiva: "Venho colocar-me aqui entre os senhores; ninguém se defenderá melhor que nós."

Caminháramos um quarto de légua, quando muito, e já o fogo dos paraguaios começara do alto de uma eminência que dominava o teatro do combate da manhã.

Apanhava-nos os quadrados a descoberto, obrigando-nos a uma evolução em colunas.

Surtiu esta manobra bom efeito. Deveria ela, no entanto, fazer compreender ao inimigo as vantagens de contra nós empregar, em constante alternância, a artilharia para bater os quadrados e a cavalaria para nos acutilar, desde que nos formássemos em coluna. Felizmente não havia o que lhe abrisse os olhos e safamo-nos deste mau passo sem maior dano. Nosso guia, sempre à vanguarda, por simples intuição militar, e sem que nenhum recado tivesse recebido, aproveitou o conhecimento que tinha do terreno, fazendo-nos deixar bruscamente a estrada da Machorra e inflectir para a esquerda. Por meio de súbita contramarcha levou-nos ao pé de uma eminência onde nos era fácil assestar uma bateria, caso fosse necessário; era a segurança. Apenas percebeu Lopes, aliás, a ausência de inconvenientes, tornou a meter-nos no rumo norte por subida bastante suave.

Pareceu-nos o inimigo hesitante sobre o que lhe convinha fazer. Era-lhe visível a perplexidade; avultado número de cavaleiros corria no campo de um lado para outro. Encaminhavam-se grupos sobre a bateria inimiga onde era evidente a presença do comandante. Pareciam as peças seguir-nos o movimento à medida que progredíamos no declive por onde nos fazia Lopes marchar Foi esta, aliás, a última vez em que se mostraram: nunca mais as tornamos a ver, ou porque receassem os paraguaios arriscá-las em paragens para eles desconhecidas e prestando-se a emboscadas ou tivessem esgotado as munições. Provavelmente as despacharam sob a escolta de um corpo de cavalaria, que tomou a direção da Machorra. Desde aí fomos menos incomodados, mesmo pela cavalaria.

Prosseguia a nossa jornada sem maior empecilho, além da macega alta, que nos cercava e precisávamos irremediavelmente cortar, e sobre a qual se tornava a marcha das mais penosas; cortando as arestas das gramíneas os pés dos soldados. Reservava-nos ela, entretanto, provações bem mais cruéis que não tardariam a ocorrer.

Notamos, a alguma distância, tênues rolos de fumo. Foi Lopes quem primeiro deu pelo incêndio. Já o esperava. Nada nele traiu a mínima surpresa. Imóvel por algum tempo, perscrutou o horizonte, rompendo depois o silêncio com uma dessas apóstrofes próprias dos homens da natureza, quando enxergam uma luta iminente. Desafiou as chamas que já ameaçavam alçar o colo: "Está bem! Haveremos de lutar! Será, contudo, um pouco mais tarde, acrescentou, voltando-se para nós. Vou começar logrando os paraguaios. Caminho direito para Miranda; descambarei depois para a minha fazenda."

Fomos esta tarde acampar perto de uma das cabeceiras do José Carlos. Contávamos poder, à vontade, nos dessedentar após um dia dos mais penosos, numa atmosfera escaldante. Mas ali só encontramos água turva e detestável e como, por cima de tudo, tarde chegáramos a este triste pouso, com o sol posto, nada tivemos para dar, nem água nem pasto, aos nossos bois estafados e cujo olhar invocava a nossa compaixão. Para descansar só tínhamos um solo poeirento, a cuja grama ressequida torrava o sol. Tivemos, nós mesmos, de nos contentar com um quinto da ração costumeira, ou, para melhor dizer, faltou a comida. Em vez de vinte e dois bois que, até então diariamente se abatiam, quatro apenas foram mortos, escolhidos entre os mais miseráveis de nossas juntas Era um princípio de fome; veio apressá-la uma medida, então, tomada pelo comandante. Tornara-se-lhe uma das principais preocupações conservar o máximo de meios possível para o transporte dos feridos. Acudiu-lhe à mente desatravancar algumas carretas para lhas reservar; assim, pois, distribuíram-se pelos soldados o que nelas vinha. Foram repartidos a farinha, o arroz, os legumes secos. Devia cada qual carregar os próprios víveres, por alguns dias, mas como, em muitos, o cansaço e a fome venciam a previdência, quase tudo o que naquele momento se distribuiu foi ineditamente consumido.

Iam começar as nossas grandes provações; datam dai os sofrimentos que, agravados uns pelos outros, não tardaram em nos fazer crer na iminência de terrível catástrofe ameaçando colher-nos fatalmente.


Continua a marcha. Temos o inimigo à frente Novo sacrifício de bagagens. Faltam os víveres. Incêndios e temporais. Escaramuças incessantes.

A 12 de maio, ao romper d'alva, levantamos acampamento e, como de véspera, recomeçou a marcha por entre a macega alta. Longas voltas tivemos de dar para transpor o José Carlos, evitando alguns dos brejos profundos de onde lhe nascem as águas. Avançamos para o norte. Prometia-nos Lopes que, naquela mesma tarde, poderíamos acampar numa garganta funda, onde nada teríamos a temer dos paraguaios. Ao longe os víamos também a procurar passagem, mas como quem não mostrava conhecer, tanto quanto nós, o terreno por onde nos seguiam. Alentou-nos o dia todo a esperança de bom acampamento; demonstrava o nosso guia plena segurança, apontando-nos os fogos que os paraguaios haviam acendido em vários pontos e procurando demonstrar-nos que ainda desta vez não conseguiriam barrar-nos o caminho. Graças a ele conservávamos a dianteira embora estivéssemos a ponto de perdê-la

No momento em que o sol, já declinando, tornara-nos a marcha menos penosa, mandou o comandante da artilharia prevenir ao coronel que os animais atrelados aos canhões estavam exaustos, havendo-se mesmo deitado alguns. Nem eles nem o pequeno resto de rebanho, que ainda conservávamos, nada tinham podido comer ou beber desde a noite de 12. Tornou-se, pois, forçoso estacarmos.

Paramos; nada mais havia a fazer. Estabeleceu-se a coluna sobre pequeno cômoro, em parte coberto de mato à extremidade do qual havia uma fonte. Apenas ali nos instaláramos, começaram as lufadas de vento sul, que soprava rijo, a trazer-nos de longe o calor do fago que ao nosso encalço progredia no campo. Já Lopes, porém, pusera em movimento todo o pessoal, de que podia dispor, ordenando que a toda a pressa se cortasse a macega, em torno de nós, e apenas cortada fosse carregada o mais longe possível. Ele próprio, a tudo atendendo, providenciou para que os soldados vigorosamente a cobrissem de terra e a calcassem bem, o que se não pôde executar sem muito sofrimento e grandes esforços dos trabalhadores. Era para nós questão de vida e morte e as ordens do guia não representavam senão a expressão da mais rigorosa necessidade. Lopes, a grande personalidade para nós outros, nesta cena do incêndio da macega, dando ordens por toda a parte, multiplicando-se, projetando-se sobre a cortina de chamas, ou desaparecendo, em suas soluções de continuidade , não era uma figura de mera teatralidade. Sem ele nos perdêramos!

A não serem tantas precauções, a fumaça nos asfixiaria; depois, quando o fogo nos chegou, quando folhas e galhos, amontoados em torno de nosso refúgio, acabaram, apesar de todas as precauções, por inflamar-se, a seu turno, dali saíram imensas línguas de fogo que como nos lambiam, ora alçando-se ao céu, ora deprimidas pelas correntes de ar variáveis e rápidas, que as impeliam, silvando furiosamente por cima de nossas cabeças. Vários homens sofreram queimaduras profundas e um até caiu morto, asfixiado.

Afinal este inimigo, esgotado pela própria violência e não achando mais alimento perto de nós, começou a afastar-se, continuando o caminho para o norte.

Quando a nossa gente, extenuada e morrendo de sede, após esta luta acrescida à fadiga da marcha, correu à fonte vizinha do acampamento, ali já achou os paraguaios emboscados. Nada menos de duas companhias foram precisas para os desalojar.

Aos últimos clarões do dia vimos este destacamento que se formara a certa distância, juntar-se ao grosso dos esquadrões inimigos, que em boa ordem desfilavam, bandeiras desfraldadas, ao toque dos clarins, evidentemente para nos provocar e, apressando-se, ao que nos pareceu, em ocupar o local exatamente onde a princípio quisera Lopes acampar. Algumas balas que lhes despejamos vieram distender a animosidade dos nossos, exasperados pela sua cruel e covarde tentativa de queimar-nos vivos. Foi com verdadeira satisfação que verificamos quanto os nossos projetis aceleravam a marcha destes adversários odiosos.

Todavia a provação por que acabáramos de passar, naquele campo convertido em fornalha, era das que sobre o homem exercem irresistível ação física. A enorme elevação de temperatura, subitamente ocorrida, bastava para explicar o acabrunhamento em que caímos e o desfalecimento moral que se lhe seguiu. Não sabíamos, aliás, como seria possível avançar. Estavam os animais de tiro de nossos canhões esfalfados, sobretudo os bois mais ainda que as mulas; e incapazes de dar um passo. No entretanto era mais que urgente não perdermos um instante em recomeçar a marcha. Entre uma infinidade de razões não devíamos deixar tempo ao inimigo, que agora nos precedia para fortificar algum ponto à nossa frente, impedindo-nos a passagem. Sabe-se quanto os paraguaios são aptos em movimentos de terra, cavar fossos e levantar redutos. Vem-lhes a tradição dos seus mestres, os padres da Companhia de Jesus, que cultivavam todas as artes, sobretudo a arquitetura e a engenharia militar.

Este imenso perigo de nossa situação inspirou ao comandante a idéia imediata de ainda diminuir a bagagem para reforçar as juntas e parelhas das peças e carros manchegos.

Entendeu-se com os oficiais, a quem competia tal providência, e estes nada lhe objetaram.

Ficando reduzidos ao que sobre o corpo traziam, queimaram algumas últimas e míseras superfluidades, uma outra mala e barraca. Desde o combate de 8 nada mais tinham os soldados que carregar ou que perder; haviam atirado fora até os capotes que os embaraçavam, quando perseguiam os inimigos. As bestas, libertas da carga foram destinadas ao transporte do cartuchame

Para maior desgraça nossa tivemos, essa noite, uma chuva torrencial, verdadeiro dilúvio, que nos pôs atônitos, embora já houvéssemos experimentado outra, e terrível, e, desde pela manhã, lhe víssemos os prenúncios, o acúmulo de imensas nuvens bronzeadas, constantemente sulcadas pelos relâmpagos, por entre contínuo trovejar. Durante toda a noite mantiveram-se de pé os nossos soldados encostados às espingardas que haviam fincado no solo pela baioneta. Esta vigília assinala-se em nossas reminiscências não menos penosamente do que a de 5, entre tantos outros pousos desastrosos. É preciso haver alguém assistido, com a alma tomada de tristeza, a estas tremendas crises da natureza, para poder avaliar exatamente a extensão de sua influência sobre o organismo humano. Recursos não os tínhamos. Não havia em todo o acampamento uma só gota de álcool capaz de entreter o calor interno que nos fugia. O fogo, última esperança, não podíamos acendê-lo sob tamanho temporal.

Foi neste estado de universal desfalecimento que ainda nos veio acabrunhar a confirmação de quanto declarara o ferido paraguaio. Curupaiti e Humaitá resistiam sempre e a guerra estava longe do seu término.

Soubemo-lo por um número de Semanario, hebdomadário de Assunção, que acabava de ser encontrado sobre um inimigo morto numa escaramuça. Espalhou-se o boato, com a rapidez de propagação das más notícias, extinguindo as últimas centelhas da confiança e da coragem: foi-nos impossível marchar a 13.

No dia seguinte caía a chuva, ainda ao alvorecer, mas já um tanto mitigada, quando deixamos este inóspito acampamento para entrar em cerrada mata que o nosso guia, com grande sagacidade, julgara propício escolher. Ali caminhamos durante mais de duas horas e não sem muitas dificuldades. Assim evitávamos, porém, o desfiladeiro que os paraguaios ocupavam e onde, sem dúvida, supunham aniquilar-nos.

Com razão mostrou-se Lopes desvanecido do êxito desta manobra. Havendo alguém indagado que rumo seguira, gostosamente pôs-se a rir: "O de minha cabeça." Se via consultar a bússola, declarava que a agulha grande só servia para se fazerem bonitos desenhos destinados a divertir passeantes. Convenceram-no, contudo, que deixara o rumo norte e assim se atrasara: "Sim, momentaneamente, respondeu, nos desviamos para os campos da Pedra de Cal, que descobri e em 1864 o meu amigo, o general Leverger, viria visitar comigo, se não arrebentasse a guerra."

Ao meio-dia estávamos em frente a um cerrado de taquaris, através do qual precisamos abrir caminho, a foice e a machadinha, o que muito tempo nos tomou, dada a dureza e a elasticidade desta espécie de bambu e também a má anualidade do aço de nossa ferramenta.

As duas horas ainda estávamos às voltas com este serviço. Nosso guia, sobretudo, mal podia sopitar a impaciência. De tempos a tempos ele próprio tentava varar o matagal, deitado sobre o pescoço da montaria, procurando entrever alguma aberta para o campo. Como não conseguisse, porém, víamo-lo voltar descontente, agitado, e com as roupas rasgadas.

Afinal dali saímos às três horas; às cinco, transposta a resistente barreira, continuou toda a coluna a caminhada, já ao descambar do dia, para um cômoro situado a um bom quarto de légua, e à base do qual belo arvoredo indicava a vizinhança de uma fonte.

Já lá se achava instalada avultada partida paraguaia, disposta a acampar. Tinham os cavaleiros descavalgado, embora ainda em forma. Bastaram duas granadas de nossas peças da vanguarda para que se apressassem em nos ceder o lugar. Ali nos estabelecemos tranqüilamente. Os nossos animais encontraram pasto regular e toda a água de que careciam.

Carneamos nesta tarde os bois mais cansados das carretas. Dada a insuficiência e a má qualidade dos víveres, foi uma distribuição quase irrisória.

A 15, ao romper da alva, estávamos numa planície coberta de macega, onde um incêndio, em outro mo­mento do dia seria de se recear. Objetou Lopes que a erva, embebida do orvalho noturno, só poderia arder depois de exposta, por algum tempo, aos raios solares. A partir deste dia adotamos a norma de, desde muito cedo, pôr a tropa em movimento, ativando, quanto possível, a primeira marcha.

Em vasta extensão oferecia o terreno a atravessar­mos uma série de montículos intervalados, com certa regularidade, por extensos pântanos de onde saem vá­rios afluentes do Apa. A passagem destes pauis torna­va-se difícil, com a chuva torrencial de 13, e ora a artilharia, ora algumas carretas, se atolavam. Estávamos a vencer um destes difíceis passos, no momento de trans­por uma destas sangas estreitas, quando patrulhas ini­migas, em número considerável, vieram dar-nos, não uma carga, mas realizar como que um reconhecimento bastante prolongado, a fim de nos fazer crer, talvez, que desejavam algum embate sério.

Logo, entretanto, formaram-se em colunas e retira­ram-se, o que tanto mais nos surpreendeu, quanto, por trás deles, divisáramos um enxame de atiradores que, dispostos em pequenos grupos, pareciam colimar a rare­fação de nossas fileiras para facilitar a tarefa da cava­laria, de que diversos destacamentos apareciam, prestes a entrar em fogo. Nestas circunstâncias não podíamos atacar a infantaria e tivemos de lhe suportar o fogo. Fe­lizmente era-lhe a pontaria má, afoita, incerta, como sempre notáramos entre os paraguaios.

Empregavam cartuchos por demais volumosos, produzindo grande recuo. Dir-se-ia que desejavam, sobre­tudo, fazer ruído com as armas e não obter um efeito útil. Certo é que lhes faltava suficiente aprendizagem e exercício.

Ainda desta vez pouco mal nos fizeram. Passaram suas balas por cima de nossas cabeças e só tivemos dois homens fora de combate. Apontávamos muito melhor; e várias vezes lhes perturbamos a formatura. Vimo-los, então, usar de manobra nova: deitavam-se ao abrigo dos acidentes do terreno, ao seu alcance; e destes esconderijos nos faziam fogo. Surgiam uma ou duas cabeças nas cristas dos pequenos cômoros e, imediatamente, se es­condiam, após alguns tiros disparados a esmo. Quase não respondemos a este fogo. Um pouco mais longe ha­via, no entanto, sobre um planalto bastante extenso, um grupo de cavaleiros, que faziam empinar os cavalos, sol­tando vivas ao Paraguai e ao marechal Lopez. Como se adiantasse ao alcance de nossa artilharia, atirou esta, retrocedendo o grupo lentamente. Um deles, porém, dei­xado de observação, imóvel sobre o cavalo, parecia afron­tar-nos. Atirou-lhe o major Cantuária tão certeira granada que, caindo às patas do cavalo, cobriu-o e ao ca­valeiro, de terra e depois, ricocheteando, até um bosque próximo, onde havia gente, explodiu com bastante efeito para que pudéssemos notar rebuliço. A custo conteve a sentinela a cavalgadura, mas não arredou do lugar e as­sim perdemos o gosto de sobre ela atirar.

Julgando o coronel que esta demonstração só podia atrasar-nos, ordenou que o 20.° batalhão atravessasse o brejo, e depois o resto da coluna, mas desde que reco­meçamos a marchar surgiram de todos os pontos da campina chamas que, conglobando-se, tomaram aterra­doras proporções.

Lopes que, durante toda a longa escaramuça, não conseguira disfarçar uma inquietação, que jamais lhe notáramos, reconquistou, então, toda a energia da de­cisão. Mandou imediatamente encostar a coluna a dois capões que, momentaneamente, nos preservaram das la­baredas laterais e depois fez com que se cortasse a ma­cega, numa área ainda maior do que na primeira vez, e onde tivemos que sofrer menos a aproximação do fogo, mas onde foi a fumaça muito mais terrível, devido à imensa extensão do campo.

Tem este gênero de incêndio feição toda especial e de que nem uma cidade inteiramente devorada pelo fogo poderia dar idéia. Cresça a distância de onde vêm as chamas tangidas pelo vento, que as domina, e mais for­marão elas, em todos os obstáculos encontrados, contra correntes espalhadas em todas as direções, animadas como de inextinguível furor. Do combate, que no ar tra­vam, saltam clarões ofuscantes, ardentias e deslumbra­mentos que cegam e abrasam a pele do rosto.

Um dos capões a que nos encostáramos compunha-se em grande parte desta espécie de bambus chamada ta­boca, cuja haste nos internódios é oca. Nelas produzia o fogo detonações semelhantes às do canhão: começamos a crer que a artilharia paraguaia tornara a entrar em linha. Pôs-se o velho Lopes a zombar: "Bem se vê que os senhores são novatos nesta terra."

Pouco depois, como o vento amainasse e a atmosfera refrescasse um pouco, quisemos prosseguir a marcha; mas o sol, reverberado pelo terreno escaldante e calci­nado, tornou-a, durante o breve tempo em que a supor­tamos, uma provação que aos mais robustos arrancava involuntários gemidos. Não podiam os olhos conservar­-se abertos no abrasado ambiente que atravessávamos.


Incerteza do rumo. Novo incêndio e novo ataque dos paraguaios. Penúria da coluna. Acertamos novamente com o caminho. Passagem do rio das Cruzes. Recomeça a marcha. Nova travessia do rio. As mulheres da coluna.

Triste e pensativo, como antes do incêndio o víra­mos, marchava o nosso guia à frente da coluna. Por vezes avançava demais, sem prestar atenção ao perigo que podia correr, pois as volutas de vapor e cinzas que, no campo, se levantavam, caprichosamente e não raro nos envolviam, nos impediam de ver cavaleiros para­guaios fazendo menção de se aproximar. Também im­pressionado com a atitude inquieta de Lopes, perguntou­-lhe de chofre o coronel se acaso seguíamos o caminho direito, e se corriam as coisas como ele desejava. Só obteve evasiva resposta, muito no caso de nos capacitar que ele, o guia, perdera a firmeza, embora hesitasse em confessá-lo. Os que por largo tempo comparticiparam da vida sertaneja têm um amor-próprio muito maior que os demais homens. Provém-lhes este sentimento do con­vívio com os selvagens, entre os quais, como se sabe, se revela veemente pela inabalável firmeza com que supor­tam os mais cruéis tormentos, infligidos pelo inimigo ven­cedor. Cerca de duas léguas ainda, andamos assim, em­bora estrompados. Viera, confidencialmente, dizer-nos o filho de Lopes que, a seu ver, tínhamos de reconhecer volumoso caudal, chamado o rio das Cruzes. Observa­ram-lhe que tais palavras davam como a entender que ao acaso caminhávamos. Respondeu imediatamente que de fato não sabia para onde íamos; sobrava-lhe a consciência do erro cometido; não ousava, contudo, abrir-se com o pai. Fora significar-lhe que não mais sabia orien­tar-se em campo raso; e o respeito ao pai votado, ao chefe da família, àquele que tantas vezes o guiara nas jornadas através das solidões, obrigava-o ao silêncio. Este traço da vida primitiva não poderíamos deixá-lo es­quecido; fez-nos correr grande perigo.

Quando o velho percebeu que duvidávamos de seus conhecimentos do terreno, sobreveio-lhe grande desgos­to, que não pôde ocultar. "Não fora a perturbação deste atraso, murmurava, a própria estrada por si nos guiaria; quando alguém, pelo campo, procura caminho nunca deve parar."

Não consentiu que seguíssemos as indicações do filho; fora a seu ver, uma infração às leis naturais e ao direito patriarcal. Impediu-nos a noite, felizmente a cair, pros­seguirmos em rumo evidentemente incerto.

Apenas acampados, aliás, vimos que para nós o dia não acabara; grande provação ainda nos esperava. Os compridos alagadiços que, como dissemos, cortam esta campina haviam deixado a macega parcialmente a arder. Consideráveis áreas ainda havia intatas, principal­mente em torno do ponto que atingíramos. O fogo que acabava de lhe ser ateado já nos cegava e vinha-nos ao encontro, desta vez, porém, precedido dos próprios para­guaios. Julgavam que um ataque cerrado obstaria à manobra pela qual até então nos tínhamos defendido do incêndio. Desfilou sua infantaria ao longo de um brejo, em que se apoiava o nosso 21.° batalhão. Tendo pelas costas a fumaça, que nos açoitava em cheio o rosto, gra­ças ao vento que reinava, lançaram-se sobre o flanco de nossa vanguarda. Se esta no primeiro embate houvesse fraqueado e cedido, teríamos, provavelmente, sido todos devorados pelas chamas. Mas longe de recuar, graças a desesperado esforço, atirou com o inimigo, parte nos pântanos e parte sobre o seu terrível auxiliar, o fogo, que rapidamente se aproximava. Devem suas perdas ter sido grandes; pelo menos pôde o capitão Pisaflores per­ceber pelas abertas do vento, nesse casos de vapores e cha­mas, cavaleiros a correr arrastando cadáveres e feridos. Quanto à nossa vanguarda fez ela um movimento de recuo, depois de nos ter dado, graças a sua dedicação, tempo de cortar a macega e transportá-la para longe. E então, já no meio de nós outros, estes homens estafados, a quem poderíamos chamar nossos salvadores, caindo de cansaço e sofrimentos, com os rostos queimados, as goe­las secas, ardentes, deixaram-se ficar largo tempo esti­rados no chão sem voz nem movimentos. Três dentre eles nem se ergueram mais; e muitos outros para sem­pre ficaram enfermos e valetudinários.

Tendo-se formado de novo, após o incêndio, acampa­ram os paraguaios numa colina, de onde nos dominavam; o repouso de que tanto carecíamos não nos seria possível antes que deles nos desvencilhássemos. Obri­gou-os a nossa artilharia a ir procurar abrigo na ver­tente oposta

Caíra a noite. Havia um luar estupendo, cuja calma contrastava com os clarões sinistros de alguns finais de incêndio, que ainda vagavam pelo campo. Quando os nossos clarins deram afinal o toque de descansar, ao longe responderam os dos paraguaios como um eco de escárnio. Tudo parecia insultar-nos as misérias: reinava entre nós a fome, com todas as suas torturas e o seu triste prelúdio, esse desfalecimento que aniquila a coragem e a vontade. De tudo carecíamos, oficiais e solda­dos. Vivíamos andrajosos, mas a privação do calçado era em geral muito menos sensível a estes do que àqueles, cujos pés estavam intumescidos e ensangüentados. Nesta noite enregelou-nos o vento norte, e ao mesmo tempo nos achamos expostos a um desses orvalhos, que já nos haviam feito sofrer tanto e isto quando ainda nos podíamos precaver com algumas roupas de agasalho.

Como de costume, estávamos todos de pé, pela alvo­rada; mas como nosso guia continuasse a mostrar-se irre­soluto, a cada passo chamava o filho a confabularem. Parecia até querer abandonar o rumo de leste, insinuan­do que só o seguira até agora para contornar um alaga­diço. Afinal, de repente, tomou a direção do nordeste. Pelo que pudemos conjeturar, ficaram os paraguaios des­norteados com esta súbita inflexão. A galope subiram alguns a colina onde devia estar o seu comandante.

Não durou muito, aliás, que percebêssemos haver tornado ao caminho verdadeiro. Daí a um quarto de légua atingimos a margem esquerda de volumoso caudal que não era outro senão o rio das Cruzes. Já na véspera o teríamos alcançado não fora a excessiva deferência do filho e o orgulho do pai. Tivemos que parar, pois em­bora desse vau, eram-lhe as barrancas demais escarpa­das para que as carretas pudessem passar sem prévio trabalho que nos devia tomar tempo. Os corpos da vanguarda e do centro saíram, pois, de forma; e deixando a retaguarda em linha, começaram a rampar as riban­ceiras. Com muito vigor desempenhou o batalhão de voluntários tão importante trabalho (urgidos como es­távamos pelo inimigo); e um dos seus oficiais, José Ma­ria Borges, muito estimado dos soldados pelo gênio ale­gre, nos mais críticos momentos, bem mereceu de toda a coluna nesta ocasião. Muito grato nos é testemunhá-lo.

Foi, graças a ele e à sua gente, que pelas duas da tarde, tornou-se a passagem praticável. Ali estiveram em sério perigo, sob as vistas dos paraguaios, que, durante esta parada forçada, teriam com real vantagem podido atacar-nos.

Felizmente, e contra qualquer expectativa mantive­ram-se imóveis em ordem de marcha, prontos a nos seguir, enquanto procuravam alguns dentre eles um vau a montante e outro a jusante para, quando nos apro­ximássemos, incendiarem o campo. São habilíssimos, tanto como o sabíamos, neste gênero de manobras que entre eles chega a constituir uma arte, com regras baseadas nos conhecimentos dos ventos e lugares, arte, aliás, dia­bólica, quando empregada como arma de guerra.

Nós os provocávamos contudo, e, de tempos a tem­pos, iam os nossos obuses cair no meio deles. É difícil compreender por que se haviam desfeito da artilharia com a qual poderiam responder à nossa; coisa que ape­nas faziam por meio de gritos e assuadas.

Galgáramos, neste ínterim, a margem oposta do rio, e ali, apenas chegados, precisamos tomar providências contra o incêndio que nos precedera e vinha ao nosso encontro. Apoiava-se a nossa esquerda ao mato que orlava o rio e onde, felizmente, as árvores eram de na­tureza menos combustível que a macega. Na ala direi­ta, que também estacara, foi o capim cortado e acamado com terra, com mais vagar e cuidado desta vez, com mais ordem do que até então o fizéramos. Acercou-se o in­cêndio, envolvendo-nos como sempre, de horríveis rolos de fumo; mas as labaredas já não nos ofenderam tanto como das outras vezes. Podíamos, além de tudo, valer­-nos do rio onde, lavados em suor, cobertos de pó e cin­zas, íamos beber e refrigerar-nos. Passado o fogo, lim­param as nossas peças a planície de paraguaios, que ainda por ali se mostravam; e, conservando sempre a mata à esquerda, conseguimos avançar um pouco para ocupar melhor posição.

No dia seguinte, 17, esteve o tempo nebuloso e frio. Soprou o vento com violentas rajadas. Tornou-se a marcha muito penosa, tivemos freqüentemente de rentear a macega incendiada, o que a espaço nos forçava a paradas para limpar o chão. Procurávamos também al­cançar uns bosques que, com trabalho, atravessamos, porque ali encontrávamos tocos e madeiras ainda de pé, que a custo podiam os machados entalhar. Víamo-nos ao mesmo tempo apertados pela cavalaria paraguaia à frente, nos flancos e pela retaguarda.

Sentia o comandante a paciência esgotada. Acusava o guia, atirando-lhe a responsabilidade de todos os atra­sos; mas como tais exprobrações fossem ouvidas em res­peitoso silêncio, acabava por acalmar-se. Vencia a bon­dade natural e com o tom conciliador de quem sofre e compartilha dos infortúnios alheios. "Não nos irritemos, dizia, estamos a pagar os nossos erros."

Todo este dia andamos sempre à matroca. Com o conhecimento do terreno perdera Lopes todo o espirito de iniciativa. Deixava-lhe o filho transparecer crescente inquietação, sem proferir, contudo, um único comen­tário. Tornou-se tamanha a fadiga dos bois carreiros de nossa artilharia, que se negaram a ir além, deitando-se no chão. Fizemos alto pois, forçadamente, no meio de pequeno capão, onde apenas encontramos água insuficiente e má.

Não deixou o inimigo de vir à noite acampar à pequena distância de nós; e o 21.° batalhão, que ainda constituía a nossa vanguarda, teve, desde então, de abrir tiroteio. Durante a noite toda ladrou a canzoada dos paraguaios, que sempre andavam acompanhados de ma­tilhas. Mal lhes responderam os nossos cães, míseros restos de uma malta a custo disputada à fome dos soldados.

A 18, desde a madrugada, começou copiosa chuva que não tardou em ensopar o nosso pobre fato e nos predispôs mais tristemente para uma marcha ainda mais lenta que a dos dias precedentes. Nem sempre caía chu­va com a mesma força, mas havia de vez em quando aguaceiros que não tardavam em encharcar o solo, de modo tal que a cada passo ficavam as carretas presas e retidas nos caldeirões que abriam. Que espetáculo con­frangedor o do grupo de nossos míseros enfermos, a quem, sob desabaladas batégas no meio dos regatos que elas formavam, tínhamos de deixar no chão!

Precisamos logo atravessar um alagadiço muito ex­tenso; e, durante esta longa travessia, não cessaram os paraguaios, que já haviam ocupado todas as alturas dominantes, de atirar, embora sem nos causar grande dano. As suas descargas de pelotão não tinham maior êxito que os estrepitosos hurras com que as acompanhavam. Por vezes chegaram-nos os dichotes com que nos insul­tavam a miséria. "Venham tomar-nos o gado e fartem­-se!" Algumas balas bem apontadas por homens ávidos de vingança castigaram tais ironias.

Quase diariamente sucedia que o sol, fraco de ma­nhã, após as noites glaciais, tornava-se depois escaldan­te. Variação perene que acabava arruinando-nos a saú­de. Neste mesmo dia. acastelando-se a oeste espessas nuvens, daí proveio cedo novo dilúvio, que transformou em furiosa torrente um ribeirão já por si volumoso, que Lopes não nos assinalara; e nos forçara a uma terceira parada, tão cruel quanto as precedentes. Morríamos de frio; estávamos a jejuar, e só com muito trabalho, à meia-noite pudemos ter fogo, à custa de empilhar muita lenha verde que ardia quase sem labaredas.

Nauseante espetáculo revelou-nos, nesse lugar, quan­to entre os nossos soldados era a fome tremenda. Ia matar-se um boi estafado, quase agonizante. Formara­-se um círculo em torno do animal, cada qual mais an­sioso esperando o jacto do sangue, uns para o receberem num vaso e o levarem, outros para o beberem ali mesmo. Chegado o momento, atiraram-se todos a ele, os mais afastados e os mais próximos. E assim era diariamente. Mal tinha o magarefe tempo de cortar a rês; era quase necessário arrancar às mãos dos soldados os nacos a fim de os levar ao local da distribuição. Os resíduos, as vísceras, até o couro, tudo se despedaçava ali mesmo e era logo devorado mal assado ou cozido; re­pulsivo pasto de que não podia deixar de originar-se alguma epidemia.

Na manhã de 19 lançou o major Borges, sobre o ri­beirão, convertido em rio estreito, mas profundo, impro­visada ponte que, experimentada, não apresentou soli­dez bastante, obra que fora de operários mais debilitados pela fome do que com efeito desprovidos de ferra­menta. Julgamos necessário reforçá-la com um tronco enorme de aroeira, encontrado pelas vizinhanças. Foi só então que a artilharia pôde sem acidente atravessar. Uma carreta única a seguia: queimáramos as demais para entreter as fogueiras que nos preservaram de completo tolhimento; e esta mesmo só fora poupada porque podia prestar-se para o transporte dos feridos de uma para outra margem.

Estava inundada a ribanceira que atingíramos e ainda várias vezes se ensoparam os desventurados inválidos levantados a braço antes de acomodados em padiolas ou cangalhas. Eram as mulheres que nos acompanhavam setenta e uma, contadas à entrada da ponte. Iam todas a pé, exceto duas, montadas em bestas; carrega­vam quase todas crianças de peito ou pouco mais ve­lhas. Por heroína passava uma e todas a apontavam. Havendo-se encarniçado um paraguaio em lhe arrancar o filho, tomara ela de um salto uma espada largada no chão, e num ápice matara o assaltante. Mais infeliz vira outra o filhinho recém-nascido espostejado por um inimigo, que pelas pernas lho arrancara do colo. Traziam todas no rosto, aliás, os estigmas do sofrimento e da ex­trema miséria. Ainda vinham algumas carregadas de objetos provenientes do saque; mantas, ponchos, pesadas eapadas paraguaias, baionetas e revólveres.

Caíra a noite; quando muito conseguíramos estabe­lecer-nos em frente ao nosso acampamento da véspera; mas já era imenso termos atravessado o rio.


Lampejo de esperança que se desvanece logo. A cólera. Reaparece o inimigo. O incêndio sempre. Recrudesce a cólera. Um recurso: os palmitos. Terrível passagem de um pântano. O tenente Santos Sousa. Acampamento. Conseguimos acender fogo.

Lopes que, desde algum tempo, víramos perturbado a ponto de duvidar de si, acabara, enfim, descobrindo onde estava, e orientando-se. À vista de uma eminência, a distância, dissipara-se-lhe subitamente o mistério; apontando-a, deu-nos a certeza de que dois dias mais tarde chegaríamos à sua fazenda. "De lá se avista, afir­mou, aquele pico que os senhores vêem." Aos mais fracos e desanimados, reanimou esta notícia. Chegados a 21 à estância do Jardim, poderíamos, pelo dia 25, entrar em Nioac antes dos paraguaios e preservar a vila de novo saque, graças a esta marcha executada em onze dias, e não em quinze.

Assim tínhamos muito próximo de nós o termo de tantas misérias, quando outra novidade, mais terrível que tudo, veio agravar a situação, além de qualquer previsão por mais sinistra que fosse: circulou de repente pelo acampamento a notícia que nele havia cólera.

Já desde algum tempo tinham os doutores Quintana e Gesteira levado o fato ao conhecimento do coronel. Pouco depois morrera, com um dia de moléstia apenas, um índio terena recebido na enfermaria de Bela Vista.

Supusera-se, a princípio, que seria mero caso espo­rádico; e sobre o fato se guardara segredo, nada se po­dendo fazer, tudo nos faltando para dominar o morbo. Em todas as paradas, enormes fogueiras se acenderam supondo os soldados que se empregava um processo sa­neador da atmosfera do pantanal. No silêncio consistia, realmente, o melhor preservativo contra a propagaçã da peste. Mas a 18 rasgou-se o véu do mistério: caíram três homens atacados pela epidemia e com os mais gra­ves sintomas, e, desde então, os nossos dois médicos que haviam assistido à primeira irrupção da cólera no rio de Janeiro, julgaram imperioso dever não mais dissimu­lar a verdade. Fora-nos necessário, contudo, prosseguir na marcha, subitamente salteados de mal-estar e des­maios caíram alguns soldados; o que provocou a per­turbação e a confusão gerais em nossas fileiras. Não se caminhava mais. Os três homens já atingidos pelo fla­gelo sucumbiram. Dentro em pouco estavam a carreta que nos restava e um carroção de munições, que se lhe adicionara, repletos de enfermos, cujos gemidos por toda a parte apressavam o surto da epidemia.

Teve este dia cruel uma tarde e uma noite como era de prever. A 20, pela manhã, o tempo, a princípio chu­voso, melhorou; e logo tornou-se o sol ardente. Ainda caminharam menos os animais e os homens mal se arrastavam, tendo a morte sob os olhos e no coração.

Haviam os paraguaios reconstruído a ponte e passa­do. Já à nossa frente estavam, apenas dissipara o calor do dia o orvalho e secara a macega.

Puseram-lhe fogo, e com tal êxito que não fora um mato de pindaíbas, felizmente provido d'água, teria a coluna sido colhida pelo incêndio, Mal teve Lopes o tem­po de nos alojar neste abrigo; deu-nos o coronel ordem de acampar. Atacados, até aí, defendemo-nos como quem defende o refúgio derradeiro. Afinal obrigou o tiro de nossos canhões o inimigo a retirar-se.

Tudo em volta de nós era fumo, trevas e vapores ar­dentes. Caiu um de nossos soldados asfixiado. Outro, cego, no meio de um redemoinho, metera-se entre os paraguaios, conseguindo, contudo, graças à escuridão, safar-se e voltar sem ser reconhecido.

Neste dia fez a cólera nove vítimas. Assinalaram-se vinte casos novos: o chefe dos Terenas, Francisco das Chagas, chegou moribundo numa rede que sua gente carregava. Estavam estes desgraçados índios no auge do terror, mas não podiam mais abandonar a coluna, ocupado como se achava todo o campo por um inimigo que, quando os apanhava, jamais deixava de os fazer perecer nos mais horríveis suplícios.

A que causa devíamos atribuir esta irrupção da có­lera ou, melhor, a que causa não a atribuirmos? Seria talvez a carne estragada que éramos obrigados a comer, ou a fome curtida quando as náuseas venciam o ape­tite, ou ainda o insuportável ardor dos incêndios que nos escaldavam o sangue, quiçá a infecção oriunda de todas as substâncias vegetais que devorávamos, brotos, frutos verdes e podres, ou também, enfim, a insalubridade do ar viciado pela água estagnada dos charcos e lodaçais que naquela região tanto abundam.

Supunham alguns fosse o próprio inimigo o veiculador do morbo. É muito possível que aos paraguaios hou­vesse acontecido - embora jamais suportassem as mes­mas privações que nós - porque, de seu exército do Sul, dizimado pelo flagelo, tinham recebido reforços. Uma circunstância ocorria fazendo-nos crer que também rei­nasse o mal em suas fileiras: a frouxidão, para o fim, dos ataques, embora sempre freqüentes.

No entanto, o número do Semanario de Assunção, anexo a esta narrativa, nenhuma menção faz da epide­mia na coluna paraguaia.

Para a noite caiu abundante chuva, agravadora de todos os nossos padecimentos. Amontoados perto da pequena barraca dos médicos, sem abrigo e ao ar livre, receberam os coléricos, nos corpos gélidos, as bátegas que desabavam, de espaço em espaço. Era horrível ver estes míseros, presos de agitação extrema, dilacerando os an­drajos com que procurávamos cobri-los, rolando uns so­bre os outros, a se torcerem com câimbras, vociferando soltando brados, que se fundiam numa só voz articulada: Água!

Tinham os médicos esgotado os recursos; a princípio zelosos e ativos, desanimavam os enfermeiros ante o nú­mero crescente dos enfermos e apesar da ordem que proi­bira o uso da água, como fatal, davam-na alguma para satisfazer, um instante ao menos, aos moribundos. A isto se limitavam os seus cuidados.

Apesar de tudo, recomeçamos a caminhar no dia 21. A carreta e o carroção, com o dobro da lotação, de todos os lados deixavam pender braços, pernas, cabeças onde já se imprimiam os sinais da morte. Aos manchegos, aos armões das peças igualmente atulhavam desventu­rados recentemente atacados e já agonizantes.

Mas logo que a macega perdeu a umidade empre­gou-se novamente contra nós o odioso expediente de guerra dos paraguaios. Cerca de um quarto de légua de nossa última parada pareceu o incêndio, tangido por esperta aragem, na iminência de nos envolver, exata­mente no mesmo lugar onde nos detivéramos e onde, de todo, se baldaria o zelo de Lopes, se acaso uma mudança do vento não houvesse desviado aquele furação de chamas. Recomeçamos o lúgubre desfilar; mas ainda não vencêramos meia légua, quando os bois da artilharia afrouxaram, por não terem bebido, desde o acampamen­to do dia 19.

Estávamos felizmente num terreno cuja macega es­capara ao fogo da manhã, graças, provavelmente, à cor­rente de ar que nos salvara.

Era uma chapada extensa que, inesperadamente, se levantava de uma depressão onde corre um riacho. Ou­tra chapada, um pouco mais alta, e voltada para o sul, ligava-se a um campo imenso, o mesmo que Lopes, numa primeira incursão, batizara Campo das Cruzes; e no fun­do do qual se erguia a nossa baliza - o morro da Mar­garida. Tem o perfil deste pico algo de notável em sua regularidade elegante. Já da Bela Vista o avistáramos; agora o saudamos como a velho amigo.

Se tal foi a nossa impressão, teve Lopes outra muito mais viva, ainda. Via-se, após tantas dúvidas cruéis, jus­tificado no seu foro íntimo. Restituíra-lhe a alegria toda a vivacidade da primeira mocidade. Arrebentara naquele momento novo incêndio no campo; vimo-lo correr, de archote em punho, para o combater, com armas iguais, dizia. E conseguiu-o, varando por entre os cavaleiros paraguaios, espalhados pelo campo e que quase o apanharam.

Estava, novamente, na plena posse de si, liberto da responsabilidade que o acabrunhava e quando lhe obser­vávamos quanto precisava poupar-se, respondia que nin­guém podia ir de encontro à vontade de Deus, devendo cada qual entregar-se às mãos do Senhor. Dizia-lhe Ele que estávamos chegando ao termo de nossas provações. "Saibamos morrer, acrescentava; dirão o sobreviventes o que fizemos."

A 22 apenas andamos três quartos de légua, pois de­pendíamos inteiramente das juntas que puxavam os ca­nhões e ainda na véspera quase não tivera o gado o que beber. Mal dera o minguado filete, junto ao qual acam­páramos, água bastante para os homens.

Tivemos de parar, forçadamente, junto a um brejo, cuja vestimenta era bastante capaz de dar algum alento aos nossos animais. Aí ficamos encostados a um mato que, felizmente, ia até um riacho chamado Prata, o primeiro afluente meridional do Miranda, como Lopes no-lo disse. Já, portanto, nos abeirávamos desse caudal, objeto de tantos anseios.

Uma vez neste lugar, entendeu o coronel que nada obstava informar a gente de Nioac de nossa proximidade e da do inimigo. Estava o caminho livre, pela mata do Prata, que se perde na do Miranda; não correndo risco algum quem a atravessasse. Para esta comissão escolheu dois homens corajosos, afeitos à vida do mato, caça­dores sabidos daquelas terras.

Fora o bilhete, que se lhes deu, endereçado ao coronel honorário que comandava o depósito redigido em fran­cês para, pelo menos, escapar às probabilidades mais fortes de divulgação. Noticiava em suma que a coluna batera em retirada; e, provavelmente, atingiria Nioac antes do inimigo, convindo, no entanto, transportar para lugar seguro e o mais depressa possível, as munições, os víveres, o arquivo, e alguma bagagem dos oficiais. Era, sobretudo, necessário que toda a tropa disponível marchasse às ordens do capitão Martinho a emboscar-se para deter os paraguaios, caso aparecessem.

A 24 chegavam os mensageiros à colônia de Miranda ali encontraram os negociantes que com a lentidão habitual haviam retrocedido, tendo achado, ainda, avolu­mados pelas chuvas, os grandes rios, que evitáramos graças à estrada pela fazenda do Jardim. Deixando este comboio à retaguarda, a 27 atingiram Nioac os nossos correios, com a missiva do comandante, divulgando o que em nosso acampamento haviam presenciado, assim como todos os boatos sinistros de que se fizeram ecos mercadores em caminho.

A 25 progredimos cerca de légua e meia, considerável esforço, pois os nossos soldados válidos quase todos se empregavam em carregar as padiolas dos enfermos e destes padioleiros, vários, subitamente atacados, em vez de ajudarem aumentavam a carga.

As contínuas convulsões dos agonizantes ainda e de tal modo agravavam esta faina horrivelmente penosa que os soldados, estafados, punham-se de repente, como à porfia com os coléricos, a soltar selvagens gritos impa­cientes, ameaçando arriar e abandonar o fardo.

Só algumas redes, ocupadas por oficiais, conservavam certo decoro lúgubre: jamais esqueceremos o belo rosto resignado do tenente Guerra, moço exemplar, filho úni­co de uma viúva que nunca o tornaria a ver... Neste dia, ao incêndio precedeu um ataque de atiradores . Repeliram-no alguns dos nossos e o fogo também passou; mas o outro inimigo, a cólera, o adversário oculto, redo­brou os golpes com que nos feria, a ninguém perdoando. Desapareceu no mesmo dia uma família inteira; pai, mãe e filho em horas fulminados juntos. De inanição pereceu uma criança de peito que, dos braços da mãe moribun­da, passara aos do pai e deste aos de camaradas, que também não tinham alimento algum.

Soubemos que dois soldados haviam enlouquecido. Assim se explicavam os gritos, cujas notas estridentes se haviam associado aos ruídos que habitualmente nos afli­giam; lamentos, furores e desespero. Outro mal come­çou: a deserção; desapareceram vinte e quatro soldados da linha de defesa do acampamento.

E no entanto impossível lhes era escapar à morte pela fome ou às mãos do inimigo. A datar deste dia não hou­ve, no mato, moita onde se não escondesse algum fugi­tivo. Abandonaram-nos os nossos índios guaicurus, não conseguindo mais detê-los o receio do fado que os aguar­dava, se os paraguaios os apanhassem.

Tais os incidentes que entre nós ocorriam. Embora dizimados, serenamente mantinham os oficiais o espí­rito geral da corporação; uns procuravam os outros reuniam-se, trocavam palavras amigas e de bom con­selho. Esta serenidade d'alma só era natural entre ho­mens de têmpera especial como José Tomás Gonçalves, Pisaflores e Marques da Cruz; ou excepcionalmente for­tes como Lago, Catão e José Rufino. A mesma atitude impassível tornava-se em outros igualmente notada, em­bora menos energicamente constituídos. Tomava, no tenente-coronel Juvêncio, laivos de melancolia ao lembrar­-se da família. Quanto ao comandante este se reconcentrava em sua dignidade e no sentimento do dever. Aproximava-se a hora em que, a tal respeito, nos daria as mais extraordinárias provas.

Na manhã de 24 uma chuva torrencial, e contínua, não tardou em transformar em atoleiro o solo argiloso sobre o qual acampáramos. O vento áspero e impetuoso lançava-nos verdadeiras enxurradas. Assim mesmo par­tiu Pisaflores, o bravo rio-grandense, à testa de cem ho­mens, a um quarto de légua, à margem do Prata, abrir uma picada num lugar indicado por Lopes. Este serviço, rapidamente executado, deu aos trabalhadores o ensejo de descobrir na mata palmitos em profusão, inesperado recurso que levou o comandante a mandar que estacássemos, porque também ali estava o solo mais seco. Não pôde, entretanto, a marcha recomeçar antes das cinco da tarde, e o que foi este deslocamento de posição só uma palavra traduz: desolação. Observando-nos de mui­to perto assaltaram-nos os paraguaios, com vaias e tiros, a que tratávamos de responder do melhor modo. Mas o que mais penoso foi, ao atravessarmos grande charco, o banho gelado em que até a cinta afundamos. Rompeu­-se a formatura; nem sequer nos víamos mais. À espessa escuridão que sobreviera seguiu-se a noite, sem intervalo, uma destas noites propícias aos desastres e aos crimes: a mais de um doente afogaram os seus carregadores.

Às oito horas passara o grosso da coluna acampando então, às dez veio a retaguarda ocupar o seu posto. Até tarde, pela noite adentro, chegaram retardatários, con­dutores de carretas extraviadas e até coléricos que ha­viam podido pôr-se de pé, depois de atirados das padio­las ao chão.

Deu-se, entretanto, uma cena que à memória con­sola evocar. Entre as padiolas, onde prostrados se acha­vam soldados, uma houvera que a queda de um dos pa­dioleiros ia submergir no pântano, prestando-se os de­mais três, talvez, a este caso que os libertava do fardo, quando um quarto apoio, o ombro de um oficial, se apre­sentou para salvar o infeliz que ia perecer. O tenente Clímaco dos Santos Sousa, autor deste ato de altruísmo, teve, em prêmio, os louvores de nós todos.

Fôramos ficar em terreno menos lodoso; mas muito tempo decorreu antes que pudéssemos acender a lenha encharcada.

Era felizmente resinosa. Oh! Com que alegria sau­damos as primeiras chamas! Qualquer lugar junto des­tas fogueiras era cobiçado; quase todos conseguiram, contudo, aboletar-se, sãos e enfermos misturados. Mor­reram até dois coléricos ali. Foram os cadáveres remo­vidos, eram heranças a receber, lugares de calor. Apa­receram logo os palmitos que os mais ágeis dos nossos tinham corrido pedir aos trabalhadores do capitão Pisa­flores, apenas se sentiram um pouco alentados pelo fogo. Foi o alimento prontamente cozido sobre brasas na cinza e cada qual teve o seu quinhão, uns mais, outros menos.

Nunca se desmentiram os hábitos hospitaleiros da mesa brasileira, nem ali nem em parte alguma; e até mesmo nas mais terríveis conjunturas.


Chegada às divisas das terras do guia Lopes. Passagem do Prata. O inimigo nos acompanha sempre, mas persegue-nos frouxamente. Devastações da cólera. Perplexidade do coronel Camisão. Abandonamos os enfermos. A separação. Ao tenente-coronel Juvêncio e ao coronel Camisão salteia a peste. Morte do filho de Lopes. Prossegue a marcha. Chegada à fazenda de Lopes; morre este ali, de cólera. Seu túmulo.

A picada que acabava de abrir o capitão Pisaflores dera já passagem ao nosso guia que, vendo-se, afinal, nas divisas de sua propriedade, dessa fazenda que tanto ama­va, e de que tão freqüentemente falava - não pudera resistir ao ímpeto de a palmilhar o mais depressa pos­sível. Assim se adiantara com o filho e os refugiados do Paraguai. Era a largura da picada suficiente para dar passagem aos homens, mas não ainda aos armões e bocas de fogo. Havia ainda a melhorar as rampas lodacentas do rio, o que pediria tempo, dado o estado de fra­queza em que nos deixavam a moléstia e a fome.

Foi só às dez da manhã de 25 que começamos a nos mover para galgar a margem direita do Prata, onde ocupáramos uma eminência dominadora de toda a cir­cunvizinhança. Forçadamente, ia o transporte ser extre­mamente lento; nem de outro modo seria possível. Subiu o número de padiolas, que tinham de transpor o rio, a 96, cada qual tomando oito homens que se revezavam, todos, aliás, de má vontade, mostrando os mais recalci­trantes os pés esfolados e tintos de sangue. De espada em punho exigiam os oficiais o cumprimento deste dever, tanto mais penoso quanto dele se não podia esperar nenhum resultado favorável; achando-se quase todos os enfermos, como de antemão, fadados à morte Sacrifi­cava-se assim aos moribundos o que ainda restava à coluna de força e futuro.

Já desde a irrupção da peste perdêramos muito mais de cem homens; uns vinte acabavam de ser enterrados no acampamento que deixáramos e com eles o tenente Guerra.

Às duas da tarde e à custa de muito trabalho tudo estava na margem direita, queimada, que fora a nossa última carreta e mortas as suas juntas para que as co­mêssemos. Multiplicaram-se durante toda a tarde os casos epidêmicos a ponto de se tornar impossível imagi­nar como poderíamos avançar. Novo arranjo imaginado pelo comandante, para as padiolas, levou ao desespero o descontentamento dos soldados, que nele enxergaram um aumento de carga e de fadiga. Chegamos a pressen­tir que entre eles se gerava a idéia de geral "salve-se quem puder". Metendo-nos no mato, diziam, "ao menos alguns de nós chegarão a Nioac; em todo o caso deixa­remos de ser escravos de moribundos, pela mor parte desvairados".

Entretanto tinha o inimigo vindo acampar no nosso ultimo pouso. Veio incomodar-nos uma partida de seus atiradores; também desvaneceu-se logo diante de duas companhias nossas. Então, como nos achássemos inca­pazes de pensar em persegui-los, puseram-se os para­guaios a esquadrinhar, com todo o vagar, todos os can­tos do nosso último acampamento. Como percebessem a existência de montículos recentemente revolvidos, abri­ram as covas, delas exumando os cadáveres para os des­pojar dos miseráveis andrajos, que depois, violentamen­te, entre si disputavam. Houve mesmo quem se desse pressa em os vestir. Permitiam-nos os óculos de alcance perceber claramente tão revoltante espetáculo, que nos punha estupefatos como se inacreditável miragem cons­tituísse. Aí uma de nossas granadas atiradas pela peça de Napoleão freire que firmara a pontaria quando eles estavam em grande número, no meio das sepulturas - estourou-lhes exatamente sobre a cabeça, matando al­guns. A outros atirou nas covas, dispersou os restan­tes, e libertou aquele local de sua presença. Tão justa represália velo trazer alguma animação ao acampamen­to até o pôr-do-sol desse triste dia.

À noite mandou chamar-nos o coronel Camisão. Já com os comandantes dos corpos tivera várias conferên­cias. Parecia profundamente impressionado. Falou, con­tudo, sem acrimônia da fatalidade que acompanhava os movimentos da coluna e várias vezes repetiu o que sin­ceramente lhe ia n'alma: "Para um chefe era a morte preferível ao espetáculo que desde algum tempo tinha sob os olhos." Queixou-se, em termos comedidos, sem aquele tom acerbo de outrora, da escolha do caminho que o haviam obrigado a seguir. - "E Nioac?, excla­mava. E os nossos enfermos? Ah! quanto quisera eu estar no lugar de um destes que acabaram!" Bem perce­bíamos que ainda tinha qualquer coisa a nos dizer; re­tiramo-nos, contudo, sem que conosco se abrisse.

Às dez da noite vieram novamente chamar-nos, de sua parte. Deixamos o couro que com o tenente-coronel Juvêncio compartíamos, e ambos fomos com ele ter. Já estava o comandante em conferência com o major Bor­ges e o capitão Lago excogitando os meios de transpor­tar os novos doentes. Discuta-se a possibilidade de co­locá-los em metades de couros presos pelas beiras, à fei­ção de cangalhas, que as mulas carregadoras do cartu­chame deviam levar. Era a empresa inexeqüível, quando mais não fosse, pelo acréscimo de carga que assim recai­ria sobre os soldados, já exaustos. Defendeu ele esta idéia com insistência e contra a opinião de todos nós. Ainda desta vez nos separamos sem lhe conhecer o ín­timo pensar.

Afinal, era cerca de meia-noite, e de novo convocou os comandantes e os médicos. Acabara de tomar a su­prema resolução com que, durante os últimos dias, se embatera e cuja idéia, como recurso extremo, lhe acudi­ra ao espírito como ao de todos, sem que, contudo, hou­vesse alguém ainda ousado exprimi-la.

Depois de, em concisas palavras, haver exposto o es­tado das coisas, e a urgência da avançada rápida, sem a qual estávamos todos perdidos e a impossibilidade, agora perfeitamente averiguada e geralmente reconhe­cida, de levarmos mais longe os enfermos, declarou aos comandantes que, sob a própria responsabilidade, e em obediência a rigorosos ditames que lhe impunham este dever, iam os coléricos, exceto os convalescentes, ser abandonados nesse mesmo pouso! Não houve uma só voz que contra esta decisão se levantasse. A si avocava o coronel Camisão toda a responsabilidade. Longo silên­cio acolheu a ordem, sancionando-a.

Convidou, contudo, o coronel aos médicos que lhe apresentassem objeções, acaso inspiradas pelo dever profissional.

Depois de alguma reflexão, disse o dr. Gesteira que não ousava aprová-la nem a desaprovar, só lhe compe­tia, então, o silêncio, pois se de um lado tinha de aten­der ao seu juramento profissional, por outro achava-se este, no caso atual, em contradição absoluta com a sua consciência de funcionário público adido à expedição.

Como desvairado, ordenou, então, o coronel que, à luz de fachos imediatamente na mata vizinha se abrisse uma clareira, para onde seriam os coléricos transportados e abandonados. Ordem terrível de dar, terrível de executar; mas que, no entanto (forçoso é confessá-lo), não provocou um único reparo, um único dissentimento. Puseram os soldados, logo, mãos à obra como se obedecessem a uma ordem comezinha; e - tão facilmente cede o senso moral ante a pressão da necessidade - colocaram no bosque, com a espontaneidade do egoísmo todos estes inocentes condenados, os desventurados co­léricos, muitos deles companheiros de longo tempo, al­guns até amigos provados por comuns padecimentos.

E, coisa que a muitos parecerá não menos espantoso os próprios coléricos, desde os primeiros momentos, e sem que fosse necessário recorrer a subterfúgios, resignadamente aceitaram este último golpe da fatalidade.

Contribuíam provavelmente as dores do horrível mal para a indiferença dos pacientes; ou talvez também a idéia do repouso substituído às torturas dos solavancos da marcha; mas acima de tudo, este desprendimento fá­cil da vida, próprio dos brasileiros e que deles, tão de­pressa, faz excelentes soldados. Apenas pediam todos um favor: que lhes deixássemos água. Dominados por tan­tas e tão funestas impressões nós nos reuníramos em torno da barraca do tenente-coronel Juvêncio. Chama­ram-nos a atenção os seus gemidos: acabara a moléstia de o saltear também! Já estava irreconhecível com a voz demudada e sinistra. Foi o nosso primeiro ímpeto correr à barraca dos médicos; dela voltávamos quando junto a nós, reboou uma detonação, seguida de vários ti­ros das sentinelas inimigas. Era o soldado de plantão do quartel-general que se suicidara; horríveis câimbras havendo-o atacado, delas acabava de se libertar.

Ocorreram todos estes ruídos sem que o tenente-coronel Juvêncio desejasse conhecer-lhes os motivos e até sem que parecesse percebê-los. Tomara-lhe, pouco a pou­co, a agitação o caráter de frenética alucinação.

Nós mesmos, ao seu lado, estafados pelo cansaço, es­gotados por tantos sobressaltos, mal conseguíamos com­bater um sono acabrunhador, pejado de pesadelos, de de­salento e carnificina.

Durou a noite inteira a trasladação das vítimas, até os primeiros albores do dia. Neste momento de agonia dos míseros abandonados, veio o velho guia Lopes, de regresso, desde a véspera, da excursão às suas terras anunciar a morte do filho, de cuja moléstia já nos noti­ciara. Tremia-lhe a voz, mas conservava uma atitude calma. "Meu filho morreu, disse ao coronel, e desejo sepultá-lo em terra minha. É um pequeno favor que por ele, e por mim, solicito; sua vida, como a minha, per­tencia à expedição. Deus, que tudo determina, salvou-o várias vezes da mão dos homens para tomá-lo hoje."

Tudo, a cada momento, se entenebrecia em torno de nós. Nada mais digno de inspirar a simpatia e a com­paixão do que o aspecto do coronel, depois da ordem que dera, e se cumpria enquanto começávamos a marchar.

Pesar, remorso? Perturbação de espírito, na aprecia­ção dos motivos que o haviam feito agir e parecia estar a debater intimamente, quando já as suas ordens esta­vam no domínio dos fatos consumados? Certo é que, pálido como um espectro, parava, para ouvir, como invo­luntariamente.

Por mais silenciosos e tristes houvessem sido os pre­parativos, não foi sem gritos e ruídos estranhos ao ou­vido e cuja causa assombrava o espírito, que chegou o momento do abandono. A todos nós foi intolerável. Dei­xávamos entregues ao inimigo mais de cento e trinta co­léricos, sob a proteção de um simples apelo à sua gene­rosidade, por intermédio destas palavras escritas, em le­tras grandes, sobre um cartaz pregado num tronco de ár­vore: "Compaixão para com os coléricos!"

Pouco tempo após nossa partida e já fora do alcance da vista, veio um estrépito de viva fuzilaria apertar-nos os corações. E que clamores indescritíveis, então, ouvi­mos! Ninguém de nós ousava olhar para o companheiro!

Pelo que depois nos contou um dos pobres abandona­dos, salvo milagrosamente, vários enfermos (ele não sa­bia bem se houvera ou não geral chacina) se haviam soerguido convulsamente e, reunindo todas as forças, cor­rido para nós. Nenhum, porém, conseguira atingir-nos, devido à fraqueza física ou à crueldade do inimigo. Nossa coluna tinha, contudo, demorado a marcha, instintiva­mente, como à sua espera.

Já os nossos armões estavam sobrecarregados de no­vos enfermos, de permeio com os convalescentes; e o corpo de Exército, tomado do mais sombrio desespero, vencera, apesar do cansaço, duas léguas! A necessidade do repouso deteve-o à margem de volumoso ribeirão que atravessava as dependências da estância do Jardim.

O filho de Lopes, até então transportado num reparo de peça, e escoltado pelos antigos companheiros de cati­veiro no Paraguai, foi enterrado à margem direita. O pai que, enquanto se abria a sepultura, se mantivera a alguma distância, disse, ao lhe contarem que o solo es­tava muito úmido e até encharcado: "Agora que impor­ta? Entreguem à terra o que lhe pertence!"

Voltava pouco depois colocar-se-nos ao lado, pálido e como exausto do cansaço, dominando-se contudo. Sob os nossos olhos se dilatava a sua imensa propriedade; assinalou-nos diversos pontos, por ele consagrados pelas re­cordações da vida plácida que ali fora a sua. Naquele ponto, ao longe iam suas vacas beber a água de um solo nitroso. Em outro encontrava o seu gado, do qual parte era meio alçado, pastagens das melhores que o detinham ou logo o faziam voltar. Outros lugares despertavam-lhe imagens de cenas patriarcais; dominava-o febril expan­são que não conseguia reprimir.

Quando o deixamos, justamente preocupados, e apressurados pelo encontro do tenente-coronel Juvêncio, vimos que nada mais havia a esperar do estado em que se achava e como tanto receávamos. Indo levar notícias ao comandante, qual não foi o nosso pavor quando o en­contramos, ele próprio, por sua vez, atacado.

Deitado de costas na macega, com o chapéu no rosto desde que se levantou e descobriu, para nos falar, vimo-lo irremediavelmente perdido; os estigmas da cólera sobre ele se haviam impresso. Conservava, no entanto, uma calma que a situação tornava admirável. "Vou morrer, também, pronunciou; era fatal. Salvei a expedição. O sr. que o sabe, há de o dizer."

Ao recomeçarmos a marcha, nem sequer experimen­tou montar a cavalo, carregaram-no para um armão, onde o puseram ao lado do tenente Sílvio, já agonizante; dois cadáveres, um perto do outro. Era-lhe a impassi­bilidade completa; mãos cruzadas sobre o peito com o chapéu desabado sobre os olhos, procurava subtrair-se aos raios do Sol deslumbrante que a esta triste cena ilu­minava. Queixando-se Juvêncio de tão ofuscante clari­dade, corremos em busca de um guarda-sol que vimos aberto; não conseguimos reprimir um grito de dor, en­contrando sob este abrigo um dos mais amáveis moços da coluna, o alferes Mirá, que expirava por entre indi­zíveis padecimentos. De manhã ainda o víramos válido e bravo; derreado agora, sobre o cavalo, mal se sustinha entre os braços de um patrício e amigo, o capitão Des­landes, que não tardaria em o entregar à terra.

Determinou-se o ponto do pouso: no meio da man­gueira de Lopes. Estava a findar o desempenho completo da missão do velho guia e este dever parecia ser o último liame que à vida o prendia. Dissera-nos algumas horas antes: "Reparem neste campo verde-escuro; é o meu retiro. Não chegarei até lá. Os senhores é que breve estarão em Nioac."

Enfraquecido, arcado, caminhava cabisbaixo sobre o arção da sela. Escaparam-lhe de repente os estribos e rolou ao chão, assaltado pela cólera. Colocado sobre um reparo, reanimou-se um pouco, e ainda assim dirigiu a marcha. Como o genro, Gabriel, quisesse atalhar por um capão, recomendou com voz sumida: "Contornem o mato, que é muito sujo." Ao cair da noite estávamos à vista da colina, ao pé da qual se acha o retiro, o an­tigo local do rodeio de gado da estância, que Lopes de longe nos mostrara. Declinava o Sol, do seu disco gran­des raios alaranjados se desferiam, na fímbria do hori­zonte, realçando a mais admirável perspectiva, tão bela que a memória no-la reproduz ainda agora. Estes es­plendores eternos da natureza ainda mais pungentes nos tornavam o sentimento de nossa próxima ruína. Absor­via-nos esta contemplação quando um esquadrão para­guaio chegou a galope com a intenção de cortar nalgum lugar a nossa linha indecisa e descontínua. A parada instintiva que, por toda a parte se realizou, preservou­-nos do ataque.

Acampamos naquele local, tendo vencido quatro lé­guas de estafante marcha, privados como fôramos de alimentos e de sono; tangia-nos a necessidade e en­tramos nos cercados do retiro.

Foram o coronel Camisão, o tenente-coronel Juvêncio e o guia Lopes instalados num galpão arruinado, perto do qual acendemos grandes fogueiras, para ver se os aquecíamos. Alguns limões e laranjas, que lhes fo­ram dados, acalmaram-lhes um pouco a sede. Quis ain­da o dr. Gesteira experimentar um medicamento. "Dr., disse-lhe o coronel, trate dos soldados. Não se canse inutilmente comigo, sou homem morto." A calma não o abandonou um só momento. Quando muito deixava escapar alguns gemidos surdos, ao sofrer torturas cujo exacerbamento fazia gritar e estrebuchar os companhei­ros de agonia. Passou-se a noite, para todos, numa agi­tação enorme. Aos lamentos respondiam outros lamen­tos; aos horrores da moléstia acresciam os desfalecimen­tos da fome.

Na manhã de 27 ainda de nós se aproximou o ini­migo, fazendo menção de nos disputar a passagem do ri­beirão a que dá o nome o retiro. Conteve-se, porém, ante a atitude do 17.° de voluntários, que formava a nossa re­taguarda, e assim continuou a nossa marcha, como a da véspera. Já sem voz, era o coronel Camisão carre­gado sobre um reparo de peça, Lopes sobre outro e o tenente-coronel Juvêncio, assim como vários outros ofi­ciais e inferiores, em redes. Durante a última parada três haviam morrido. À meia légua do retiro atingimos afinal a margem do Miranda, demasiado abatidos e aca­brunhados, porém, para podermos experimentar a ale­gria com que contáramos. Via-se, à margem oposta, a casa do guia, o teto hospitaleiro onde o viandante sem­pre encontrara boa acolhida e a abundância de tudo. No momento de ali chegar expirou o nobre velho, insensível à vista daquilo que tanto amara. Foi enterrado no meio do nosso acampamento, em terra que era sua.

Os amigos lhe puseram sobre a sepultura tosca cruz de madeira.

Chegada às margens do Miranda. Mantém-se o inimigo afastado para evitar o contágio da cólera. O Miranda não dá vau. Alguns homens o atravessam, entretanto, a nado, trazendo a boa notícia da existência de grande laranjal, coberto de pomos maduros. Os caçadores recebem a ordem de tentar, em corpo, a passagem e conseguem-no. Morte do tenente-coronel Juvêncio. Morte do coronel Camisão. Substitui-o, no comando, o major José Tomás Gonçalves. Instala-se um vaivém sobre o rio. Chegam abundantes as laranjas. Seu efeito benéfico sobre os esfaimados e coléricos.

Irremediável se afigurava a nossa situação. Os pa­raguaios, em torno de nós, de observação, pareciam, como bem disse El Semanario de Assunção, anexo a esta narrativa, gozar sem perigo, e tranqüilamente, do espetáculo de nosso aniquilamento pela fome e a peste. Tínhamos, com efeito, diante de nós um grande rio transbordado a nos cortar a única via de salvação.

A estação de abril a setembro não é a das água; mas como se toda a natureza se houvesse contra nós coligado, tais, desde 13 de maio, haviam sido as chuvaradas que o Miranda intumescera de modo assustador, bramindo e espumando sobre as raízes desnudadas das árvores da barranca, não dando esperanças de permitir vau antes de alguns dias. Era, no entanto, para a coluna, o único meio de o transpor. Não podíamos pensar em alçar uma ponte quando mal dispúnhamos de gente suficiente para o serviço das guardas: homens, no en­tanto, bem capazes ainda de ardor e energia num combate, mas não de contínuo trabalho manual, como este que exige uma construção de vulto. Estávamos, pois, sob os olhos dos paraguaios, segundo uma expressão destes peões, como gado encurralado e destinado ao corte.

Malgrado, entretanto, o aspecto ameaçador do rio, lançaram-se à água alguns nadadores intrépidos, impe­lidos pela fome, e, contra a expectativa geral, após mui­tos esforços, atingiram a outra margem, onde não en­contraram vestígio algum do inimigo. O que descobri­ram foi a tranqüila morada de nosso valoroso guia ro­deada de belo laranjal, cumprimento, tão agradável quanto completo, das promessas do velho e de todas as maravilhas que do seu pomar nos referira.

Não tardou que um dos primeiros exploradores dessa terra de promissão, lembrando dos companheiros de mi­séria, tivesse a audácia e o mérito de, sem detença, atra­vessar de novo o caudal. Com a descrição animada de tudo o que defrontávamos - veio inflamar a mente da­queles que ainda haviam conservado algum resquício de iniciativa. Como a ausência, já muito sensível, do chefe nos deixasse larga autonomia, muitos foram os que, em tropel, correram à beira do rio, para tentar a passagem. Muitos a experimentaram: os mais fracos ou os menos favorecidos, traídos pelo desfalecimento, desapareceram na correnteza; outros dali, contemplando os felizes ocupantes da margem fronteira, tomaram-se como de desespero que quase desfechou supremo golpe nos restos da disciplina, sobrevivente a tantos desastres. Do pró­prio couro em que jazia quase agonizante ainda dava ordens o coronel, umas, por vezes, incoerentes e inexe­qüíveis, mas outras lúcidas, e práticas. Mandou que o corpo de caçadores a pé, o único ainda não contaminado pelo espírito de desorganização, atravessasse, quanto an­tes, o rio. Guarnecendo a outra margem, devia impedir o saque do pomar até que ele, comandante, ali pudesse ir ter a fim de proceder à justa distribuição de quanto lá havia.

De acordo com esta prudente determinação, teve o capitão José Rufino de fazer passar toda a sua gente junta. Pensou, a princípio, na construção de uma jangada, mas faltavam-lhe materiais e, sobretudo, operários. Tomou-se de impaciência; podia contar com toda a sua tropa afeita a hábitos de austera disciplina e, em absoluto, obediente às suas ordens. Viu os soldados porfia­rem entre si, no afã de facilitar a passagem dos oficiais. Foi ele próprio o primeiro a entrar dentro do couro, com as quatro pontas levantadas e amarradas em forma de saco (o que se chama pelota), a que um nadador puxa por uma corda presa entre os dentes. Assim se pôs à frente daquela massa tumultuosa de homens.

Não os perdíamos de vista. Quando atingiram o meio da torrente, ainda os ouvíamos, entre o marulho dos colchões, incitarem-se uns aos outros. Houve, segundo nos pareceu, então, a todos, um momento de luta e hesitação que nos fez por eles tremer, mas não tardaram a reaparecer, descambando para a outra margem, embora com grande descaída. Vimo-los, enfim, sãos e salvos chegar à fazenda do Jardim: era um consolo e uma esperança.

Longe de amortecer, redobrara a cólera de violência. Crescia o número dos enfermos e receávamos que, quan­do o rio baixasse, a ponto de nos dar vau, não tivéssemos remédio senão abandonar segundo grupo de mori­bundos, à mercê do inimigo inexorável; e só esta idéia nos causava a angústia de um pesadelo. Acabara o cor­po de artilharia de se extinguir. Depois dos mais fracos tombados nos primeiros dias, tocara a vez aos mais ro­bustos; caíam como para se aniquilar a arma a que de­vêramos a salvação. Nada, entretanto, do que pudesse evitar ou combater o mal haviam poupado os seus che­fes. Dava o tenente Nobre de Gusmão, constantemente o exemplo da dedicação pelos enfermos, e os soldados imitando-o, entregavam-se à prática de socorros mútuos que os demais corpos ignoravam.

Tal o estado, cada vez mais deplorável, em que veio o dia 28 encontrar-nos. De tempos a tempos íamos exa­minar o nível das águas para ver se baixava; pois seria isto a nossa única via de salvação. Nada tínhamos que comer e a custo conseguíramos, a peso de ouro, arranjar algumas 1aranjas que os nadadores mais ousados tra­ziam com largos intervalos. Foi este, aliás, o único con­forto a que se não mostraram insensíveis o coronel Camisão e o tenente-coronel Juvêncio, na sede da agonia exasperada pela água.

Após a passagem do corpo de caçadores, cada vez mais considerável se tornara o ajuntamento à beira do rio Todos os movimentos daquele batalhão, na outra margem, acompanhados pelas nossas vistas alongadas, nós os comentávamos. De tempos a tempos precipitava-se alguém a nado ou arriscava passar em pelota para pro­curar reunir-se aos camaradas, apesar das ordens em contrário. A morte de vários soldados, afogados, mos­trara a urgência de se manter, mais rigorosa ainda, a proibição. Não houve, entretanto, ameaças nem objeções capazes de dissuadir um capitão do 20.° que, todo ves­tido, entrou numa pelota, conduzida por dois nadadores Cria poder com eles contar, mas, no meio do rio, como as forças lhes faltassem, entregaram-no à correnteza Vimo-lo envidar longos esforços para se manter à tona e depois submergir-se, pouco a pouco a desaparecer, com gritos de desespero a que, à míngua de socorro, res­pondiam os da multidão reunida no lugar de onde partira. Pouco depois um nadador, chegando da margem oposta, declarou ter escapado de morrer, graças à impetuosidade da correnteza, que, no centro, era quase irresistível, fazendo-nos assim perder a esperança que nos trouxera súbito abaixamento das águas. Tornamos a nos capacitar de que, tão cedo, não haveria vau praticável; e, então, não teve mais limites o desalento dos soldados.

Era o receio infundado porém; pois é coincidência comum a todos os caudais - depois de demorados nos transvasamentos pela própria expansão - adquirirem, quando voltam ao leito, maior velocidade, embora tran­sitória, que progressivamente diminui, se se não reno­vam as chuvas, até o momento em que as águas voltam ao regime normal.

Neste ínterim, e por causa da afluência dos soldados à beira do rio, foi o nosso pouso ficando deserto. Em busca de lugar fresco haviam os doentes transposto algumas braças de um pântano que nos envolvia o acampamento e corrido mais longe arrumar-se num bosque, bastante espesso, de ambos os lados de uma estrada aberta que era a de Miranda. Haviam-nos seguido parentes e ami­gos e ali todos se instalavam, como para ficar. Já vários soldados se tinham metido no mato, a procura de caça, ouvindo-se os tiros que ao longe disparavam. Supusemos a princípio fosse o inimigo, que não sabíamos onde parava. Desaparecera, ou para procurar passagem que lhe permitisse preceder-nos na outra margem, ou para se preservar do contágio da epidemia que conosco arrastávamos.

Neste mesmo dia 28 morreram algumas mulheres, mais desvalidas ainda que os demais doentes, mais desprovidas de recursos e, por motivo de sua natural fraqueza, mais ferreteadas pelos estigamas da miséria absoluta. Quase não existia mais entre nós a autoridade. Fora, desde o começo, frouxa às mãos do coronel Camisão, sempre que se tornara precisa e iniciativa de uma decisão ou proceder a uma escolha entre diversos alvitres e alternativas. Tornara-se, é certo, mais firme quando os reveses nos acabrunhavam, uns sobre outros; para o fim atingira o heroísmo quando, com uma abnegação, cujo esforço indubitavelmente lhe arrancara a vida, abandonara os enfermos para a salvação da coluna. Desde, porém, que a cólera o atacara ia tudo ao deus-dará; sentíamos todos quanto nos era indispensável novo chefe.

A 29 tornou-se evidente que o coronel morreria. Por vezes, vencera o sofrimento aquela dignidade que tanto zelara: "Dizem que a água mata, exclamava, dêem-ma; quero morrer!" Caiu num estado de torpor e sonolência e o corpo cobriu-se-lhe de manchas violáceas. Às sete e meia fez supremo esforço; levantou-se do couro em que estava deitado, apoiou-se sobre o capitão Lago, perguntou-lhe onde estava a coluna, repetindo ainda que a salvara. Depois, voltando os olhos, já vidrados, para o seu ordenança, exclamou em tom de comando: "Sal­vador! Dê-me a espada e o revólver". Procurou afivelar o talim e exatamente nesta ocasião deixou-se rolar no chão murmurando: "Façam seguir as forças, que vou descansar". E assim expirou.

A alguns passos dali, numa barraca a todos os ventos aberta, achava-se o tenente-coronel Juvêncio. Recobrara um fio de voz e livrara-se da horrível tortura das caimbras, queixando-se, todavia, de forte dor no fígado. O tenente Catão, a quem do melhor modo auxiliávamos fazia-lhe continuamente aplicações novas, que, contudo, não o aliviavam. Tinha, constantemente, os nossos no­mes nos lábios para nos recomendar à família. Ao meio­-dia acalmou-se, caiu numa letargia entrecortada de so­bressaltos, e, às três horas, expirou depois de nos entre­gar, para a mulher e os filhos, uma bolsinha de couro contendo algumas economias de campanha.

Numa cova aberta, sob grande árvore, no meio da mata, enterrou-se o coronel com o seu uniforme e in­sígnias. Em outra cova, imediata, e à direita, foi o corpo do tenente-coronel Juvêncio colocado pelos seus compa­nheiros da comissão de engenheiros e alguns oficiais do corpo de artilharia. Jamais se nos varrerá da memória esta lúgubre cerimônia a que a escuridão da noite e da mata ainda mais soturna tornavam. Eram quase sete horas quando de lá voltamos. Descansam os nossos in­felizes chefes à esquerda do Miranda, a alguma distância da entrada do bosque e em altura correspondente à estância do Jardim, à margem direita. Se lhes não profanarem os túmulos é de esperar que, um dia ou outro, alguma cruz de material duradouro, com uma inscrição, aponte à memória dos brasileiros o lugar que recebeu os despojos destas nobres vítimas do dever[1].

Providências sabiamente combinadas seguiram de perto a morte do coronel Camisão. Cumpria não surgisse alguma rivalidade que mantivesse a autoridade incerta. Fora, era certo, já prejulgada a questão dos postos em comissão, por dois ofícios do ministro da Guerra, data­dos do ano anterior. Neles declarara o governo não ter aprovado que o tenente-coronel em comissão, Enéias Galvão, simples tenente nos quadros do Exército, comandasse, como chefe interino de uma brigada, oficiais mais antigos que ele e até capitães. O posto efetivo na pri­meira linha era evidentemente, pois, uma condição de preferência e o mais antigo capitão, de todo o corpo ex­pedicionário, vinha a ser José Tomás Gonçalves, alias major em comissão. Parecia assim o único que, de acor­do com as instruções ministeriais, estava nos casos de suceder ao tenente-coronel Juvêncio, substituto legal do coronel Camisão, mas que também desaparecera.

Para evitar qualquer dissídio na eleição foram os tenentes Napoleão freire e Marques da Cruz, a pedido de todos, ter com o tenente-coronel, em comissão, Enéias, convencendo-o da conveniência que, nas nossas circunstâncias, havia, para se evitar maior demora, de alegar ele moléstia que o forçasse a passar a outro oficial, mo­mentaneamente, o comando do seu batalhão. A boa von­tade com que abriu mão de pretensões, pelo menos espe­ciosas, que nos poderiam ter criado embaraços, valeu-lhe a bem merecida gratidão de todos os camaradas. Reu­niu-se, ao meio-dia, o conselho dos comandantes. Sem o menor preâmbulo, para firmar os seus direitos, e com este tom de confiança que subjuga, este ar de superio­ridade indiscutida, a que se prestava a sua fisionomia vivaz e inteligente, anunciou o major José Tomás Gonçalves a morte do coronel Camisão e a do tenente-coronel Juvêncio, seu imediato legal. Daí lhe resultara a obrigação de assumir o comando, como o capitão mais graduado em antigüidade. Nada lhe foi objetado. Deu­-se parte da moléstia do tenente-coronel em comissão, Enéias, assim como se notificou a entrega do comando do seu corpo a seu imediato: o major em comissão José Maria Borges.

Esta transmissão de poderes, regulada pela razão e o direito, e habilmente subtraída ao jogo das paixões que podiam despertar, obteve completa sanção na apro­vação de todo o corpo do Exército.

Havia, neste ínterim, baixado o rio, já oferecendo contínuo vau, embora muito difícil ainda, devido à ra­pidez das águas. Teve o novo comandante a idéia de assegurar a comunicação de uma para outra margem por meio de cabo fortemente amarrado às árvores de ambas as barrancas.

Desde o momento em que funcionou este vaivém che­garam as laranjas, copiosamente. Teve a sua abundância este primeiro efeito de distender estômagos desde muito vazios. Eram, por vezes, devoradas com casca e tudo, no ardor da fome e da sede que nos consumia. Sua maturidade e doçura convidava-nos, aliás, ao abuso, mas os princípios medicinais que residem na essência da casca agiram mais eficazmente ainda: diminuiu a epi­demia, e quase cessou. Haveria nisto mera coincidência? Já Lopes, contudo, nos predissera esta melhoria do estado geral. Certo é que foram coléricos vistos - a mor parte dos quais se curaram - passar longas horas a devorar montes de laranjas de que mal deixavam alguns restos.

Ainda neste dia vimos chegar ao acampamento, quase nu, e semelhante a um cadáver, um dos desvalidos abandonados de 26, que, no próprio excesso do terror encontrara restos de vitalidade que o salvaram. Cami­nhara de noite arrastando-se pelos mais espessos cerrados, e seguindo-nos as pegadas. Nem sempre conseguira contudo, evitar os paraguaios, que, vendo o estado em que o pusera a moléstia, se contentavam por diverti­mento com o moerem de pancadas. Como lhes pedisse que o não matassem respondiam: "Não matamos defun­tos, queremos é o teu comandante." E atiravam o mísero ao solo com o conto das lanças. Assim pôde o pobre homem voltar ao nosso grêmio, após sofrimento a que poucos organismos teriam podido resistir[2].


Renasce a confiança. Restabelece-se a disciplina. Passagem do Miranda. Os canhões. Ainda o inimigo. Tomamos-lhe alguns bois que oferecem ótimo recurso. Marcha forçada. Vencemos sete léguas! Canindé.

Apenas assumiu o comando, publicou o major José Tomás Gonçalves uma ordem do dia em que, apelando para a coragem e os sentimentos de honra individuais para conjurar o perigo geral, assinalava, como única tábua de salvação, a marcha rápida sobre Nioac, a todo o transe. Imprimiu o tom vivaz desta proclamação um frêmito de excitação moral útil para a restauração de um estado sanitário que, dia a dia. melhorava, e fazer seguir ao abatimento dos espíritos as felizes disposições ardorosas do novo chefe. Recomeçando os clarins a dar os toques de ordem, às horas fixas tocaram a recolher. Já havia alguns dias que não os ouvíamos mais; e uma única corneta do quartel-general, tristemente, indicava a sucessão das horas. Mas o que, sobretudo, causou viva e agradável surpresa foi, da outra margem do rio, es­cutarmos as cornetas do nosso corpo de caçadores, que nos davam o troco. Velava, pois, ainda, sobre nós, a regra militar; cessara o isolamento. A distribuição de nossas forças parecia tê-las dobrado, por toda a parte, restabelecendo a confiança e o prestígio da disciplina

Desperta sempre uma mudança de chefe a atenção geral e poderosamente a agita, à espera da primeira ma­nifestação sensível. O que não dissera a ordem do dia do novo comandante exprimiram-no os atos. Tornara-se José Tomás Gonçalves a personificação da ordem e era o seu órgão. Fez sentir-lhe a força a alguns recalcitrantes que ousavam tentar desobedecer-lhe. Foi a repressão rá­pida, o que para as turbas constitui o sinal da legitimi­dade do poder.

Estávamos a 30; fora dada a ordem de se transpor o rio e tudo se determinara previamente. Regularizou-se o vaivém já colocado. soldados que, isoladamente, haviam passado sem autorização foram chamados da outra mar­gem e reincorporados às unidades a que pertenciam após severa admoestação por esta falta que, em cam­panha, e diante do inimigo, facilmente se transmuta em crime contra a segurança geral. Um sargento que, nesta ocasião, faltara ao dever foi imediatamente rebaixado.

Bastou este ato de firmeza para reparar os males que os quatro dias de moléstia do comandante haviam cau­sado à disciplina. Fizera o coronel Camisão o máximo empenho em a manter; mas ele não dispunha, como o sucessor, nosso novo chefe, do dom de tornar fácil e agradável o cumprimento do dever, graças aos modos afáveis; e embora estimado e respeitado pelas tropas, que nele viam um militar leal, vigilante, dedicado aos inte­resses da justiça e da humanidade, como o gênio con­centrado lhe desse um aspecto habitualmente sofredor, acabara como por incutir que, com efeito, a desgraça sobre ele adejava, coisa que ele próprio parecia recear. Nada há mais funesto ao crédito da autoridade: seja este o nosso último conceito sobre tão atribulada existência.

Quando, ao sinal convencionado, começou a passa­gem que, como já dissemos, fora determinada, tivemos sob os olhos um espetáculo que nada tinha de desinte­ressante.

Já se verificara, por meio de bons nadadores, a força de resistência do cabo, sob pesos assaz consideráveis. Agora, homens, em número sempre crescente, mas cal­culado, dele se suspendiam mudando as mãos, enquanto os corpos, completamente estirados pela velocidade da água à superfície, avançavam de empuxão em empuxão acabando, não sem esforço nem perigo, por atingir a margem oposta. Assim passou todo o 20.° batalhão.

Depois dele vimos coléricos tentar vencer o passo, e consegui-lo não somente, como até ainda da prova se saírem alguns completamente curados.

Alguns houve também que se afogaram; procuráva­mos no começo, por meio de boas palavras, conven­cê-los a que esperassem; mas como tivessem presenciado o abandono dos enfermos, ainda tão recente, não lhes saía da mente a previsão de igual destino. Não houve consideração que os levasse a aceitar manterem-se à re­taguarda. Teria sido preciso empregar a força para os conter; fora prudente e justo deixá-los correr os riscos de um acaso cujos perigos queriam afrontar como se alguma mercê implorassem.

Neste ínterim haviam armas e cartuchame sido transportados, em pelota, com alguns enfermos quase agonizantes, a quem este favor não pudera ser recusado, no estado de agitação convulsiva em que os punha a ra­pidez dos nossos preparativos e, principalmente, a par­tida de outros coléricos que tinham tido forças para passar pelo cabo.

Achando o comandante que já havia bastante gente do outro lado do rio, resolveu que, no dia seguinte, se transportassem as nossas quatro peças de artilharia. No meio de todas as nossas calamidades haviam-se elas cons­tituído em motivo de viva inquietação. Abandoná-las como troféus ao inimigo era inadmissível. Já outrora, em conselho de guerra, deliberara o coronel Camisão a seu respeito, daí resultando uma ata autorizando o co­mandante a fazê-las, em caso de premente necessidade, desaparecer no leito de algum caudal, à maior profundi­dade possível, de modo que se pudesse sempre, mais tar­de, ir buscá-las, acaso por elas se interessasse o senti­mento nacional. Conhecíamos os paraguaios, porém; que precauções poderiam ocultar-lhes tal depósito? De so­bra sabiam o que tais armas lhes haviam custado para que elas pudessem escapar às pesquisas prováveis que não deixariam de fazer.

Fosse como fosse, ainda não nos havia sido imposto tal sacrifício, era, sobretudo, para salvar os canhões que o major José Tomás Gonçalves tivera a idéia da insta­lação do cabo, e, tomado de legítimo entusiasmo, assis­tira ao seu feliz ensaio.

A 31, com a mais viva animação, puseram todos mãos à obra; não houve quem se não prestasse, quer para tra­zer à ribanceira a primeira peça, quer para multiplicar os nós da amarração em torno dos troncos de árvores da margem e os consolidar, quer ainda para a fixação das polias que deviam facilitar o transporte.

Moveu-se, afinal, a boca de fogo e quando puxada, de modo a escorregar ao longo do cabo, por diversas jun­tas de bois colocadas na ribanceira oposta, pareceu se­guir regularmente, estrepitosas aclamações ergueram-se, em ambas as margens, acompanhando-a até que saísse d'água No meio da corrente tanto fizera o cabo bojar que lhe receáramos o desaparecimento completo. Menos feliz foi a segunda peça: escapou de uma das alças, ar­rancou as demais e caiu no fundo do rio. Ponco faltou para que o cabo se não rompesse. Resistindo a tão forte tensão e, de repente, liberto do peso que o sobrecarre­gava, fustigou a água com enormes jactos de espuma, deixando, contudo, o canhão no fundo d'água. Felizmen­te, a nenhuma vida comprometeu o incidente que, em ambas as margens, provocou intensa agitação.

Um soldado, cujo nome merece ser recordado, Damá­sio, ofereceu-se imediatamente para mergulhar no ponto da imersão, e, tendo conseguido reconhecer o fundo, pôde, após duas ou três emersões, para tomar fôlego, passar em torno da peça uma corda de que se provera e serviu para a puxar. Foi a lição aproveitada quanto aos cuidados tomados com a amarração das demais bo­cas de fogo e apressou o resto da operação, permitindo completar a passagem à tarde daquele dia e na manhã seguinte.

A primeiro de junho, à tarde, achamo-nos todos, afinal, reunidos em torno da casa de Lopes, no seu pomar por nós despojado dos frutos, e logo, sem mais repouso ou alimento, recomeçamos a caminhar. O inimigo, que passara para a margem direita, lançou então os seus ati­radores contra a nossa retaguarda. Comandava-o o bi­zarro Pisaflores, que, com a costumada galhardia, não tardou em repelir este novo assalto; o único inconve­niente daí resultante foi obrigar-nos a uma parada que nos deteve até a vinda da noite, que nesta estação chega cedo. Embora não tivesse havido contramandado algum, e apenas se interrompesse a marcha, não foi sem al­guma surpresa que, logo após o toque de recolher cos­tumeiro, ouvimos as cornetas dar o sinal da partida ime­diata. Tornou-se a impressão tanto mais viva e penosa quanto a escuridão se tornara mais profunda, prenun­ciando-se próximo temporal e mais violento ainda. Cada qual, no entanto, compreendeu a necessidade urgente de transpor, custasse o que custasse, o espaço que nos se­parava da Vila de Nioac, quando o menor atraso de nossa parte podia causar-nos o aniquilamento total.

Recomeçamos, pois, a marcha, indo à vanguarda o capitão José Rufino, que conhecia bem o caminho. Por mais sombria e tempestuosa que estivesse a noite não nos ocultava a estrada que diante de nós se abria, larga e plana. Caminhávamos a passo dobrado. Restavam-nos poucos doentes, havendo vários falecido nos dias antece­dentes, e entre eles o alferes Muniz. No entanto, os sol­dados que se revezavam em carregar as padiolas come­çavam a murmurar ameaçando desvencilhar-se da carga

Este princípio de insubordinação que tudo poderia arruinar, não teve, contudo, tempo para progredir. Avi­sado, caiu o comandante, a todo galope e de espada desembainhada, sobre os rebeldes, encontrando-os a im­plorar perdão.

Desde este momento reinou o silêncio na coluna, em obediência às ordens dadas. Subitamente, no meio da es­trada, surgiu uma patrulha paraguaia, a quem o zunir do vento e o ribombo do trovão haviam encoberto qual­quer suspeita de nossa aproximação; e, ainda, sem que os seus cães, a ladrar, ou o gado, a mugir, houvessem dado o alarma. Caminhando à frente da coluna, man­dou nosso comandante que estacássemos e deu ordem que nos preparássemos a carregar à baioneta sobre o acampamento inimigo.

Mas já este a toda a pressa se retirava, deixando-nos o passo livre; nem tempo teve de reunir todo o gado que tangia; estremalharam-se alguns bois que apresamos; circunstância para nós de inestimável valor; era a pró­pria vida. Apesar da urgência que nos impelia a avan­çar, não foi possível recusar aos soldados o tempo ne­cessário para carnear algumas das reses apanhadas e comer um pouco da carne, às pressas assada.

Carregou-se o resto para as necessidades futuras. Atravessando o posto abandonado, tomaram os soldados o que ainda ali havia de víveres e até couros, que a penú­ria de dias precedentes lhes fazia considerar como último e precioso recurso contra a inanição.

Recomeçando a caminhar acompanhou-nos a chuva ainda, sem que a nossa marcha por isto se atrasasse, em­bora, de tempos a tempos, nos víssemos forçados a esta­car à espera da artilharia. Nos lugares piores retarda­va-se e, com ela, o batalhão da retaguarda, encarregado de a escoltar. Daí, freqüentemente, resultava, para a nossa marcha, perturbação tanto maior quando as or­dens eram transmitidas ao longo da coluna, por meio de agudos gritos, sujeitos a interpretações diversas. Avançamos, apesar de tudo, até às quatro da madruga­da Dado, então, o sinal de alto, estrompados, e quase sonâmbulos deixamo-nos cair no chão enrolados nos pon­chos encharcados como o capim e que nos servia de colchão.

Duas horas mais tarde, às seis, estávamos de pé e graças ao que havíamos ingerido, sentindo-nos mais for­tes prosseguimos, sob um céu sereno e uma atmosfera tépida, a nossa intérmina caminhada para Nioac, por toda a parte percebendo, sobre a estrada, onde os para­guaios nos precediam, o rasto de seus cavalos.

Desde a última parada atravessávamos cerrado ma­tagal, onde os soldados, já não mais temendo o ataque da cavalaria, marchavam com segurança, mais afastados uns dos outros. Sabíamos que o campo raso só o vería­mos depois de Canindé. Foi às duas da tarde que avista­mos a mata desse nome, que é o do rio que a corta. A ele chegamos às três, tendo vencido sete léguas, motivo de espanto geral, dada a fraqueza em que nos achávamos.

Ao atravessarmos o rio deparou-se-nos o cadáver de um capataz de carretas, chamado Apolinário, a quem os paraguaios acabavam de matar. Pertencia ao comboio daqueles mascates parados na Machorra, à espera de no­tícias e que, com os boatos dos combates de 8 e 9 de maio, segundo os quais passáramos como perdidos, cui­daram de retroceder. Vinte dias tinham gasto para atin­gir o Canindé, onde encontraram os boiadeiros que ali nos deviam entregar uma boiada, mas, antes de nossa chegada, haviam uns e outros caído às mãos do inimigo[3].

Notas editar

  1. Fez o governo brasileiro, alguns anos mais tarde, erigir modesto padrão sobre os túmulos dos dois comandantes do corpo de Exército retirante. Nos últimos anos foram estas sepulturas restauradas por ordem do general Alfredo Malan d´Angrogne, comandante da região militar mato-grossense. Vd. a este respeito as páginas patrióticas dos Heróis Esquecidos deste eminente oficial-general e as não menos vibrantes e comovidas do dr. Armando de Arruda Pereira em Heróis Abandonados.
  2. Ao então cabo do 17 ° de Voluntários da Pátria Calixto de Andrade Medeiros, hoje um dos três sobreviventes da Retirada, parecem referir-se os tópicos acima. Foi este abandonado como colérico e conseguiu reincorporar-se à coluna retirante. Em 1919 publicou-se uma narrativa de seus sofrimentos e aventuras recolhida pelo dr. Godofredo Rangel. Neste relato há algumas divergências da versão consignada nesta obra. Talvez aliás se refira o Autor a um outro colérico também escapo aos paraguaios.
  3. Apolinário Pereira de Sampaio chamava-se o carreteiro a que se refere o Autor.


Marcha sobre Nioac, que apenas dista duas léguas. O inimigo rodeia continuamente a coluna. O mascate italiano Saraco.

À vista do cadáver estendido à margem do Canindé, não tivemos mais dúvida a respeito da perda do comboio todo, da morte dos mascates e o saque das provisões que traziam, além dos objetos que se propunham mercar por conta própria. O que houvera sido necessário fazer, fora chegar dois dias mais cedo ao Canindé. Teríamos, então, encontrado e protegido estes viajantes desarmados, que regulavam sua marcha pela nossa e de quem dependera sempre grande parte do nosso abastecimento; enfim, e sobretudo, preservaríamos de triste fado a Vila de Nioac que, evidentemente, ia ser completamente arrasada. Tudo isto compensaria, bastante, um pouco de diligên­cia, se para tanto fôssemos capazes.

A observação maligna que daí decorreu, formulada a modo de acusação, como sói sempre acontecer na adver­sidade, provocou entre os oficiais, naquele mesmo local, discussão bastante azeda. Não foi, porém, difícil daí de­duzir-se uma justificação completa dos movimentos da coluna, desde que se soubera da chegada a Machorra do desastrado comboio.

Para apenas falar dos últimos dias: acaso fora exe­qüível mais rápida marcha? Não estava de sobra prova­da a fadiga excessiva que ela nos valera? Não devêra­mos à obrigação de salvar os canhões, o atraso de dois dias, decorridos entre a morte do coronel Camisão e a partida da estância do Jardim? E se quiséssemos ir além, até o momento em que preferíramos o atalho pro­posto por Lopes, convinha não esquecer que, para tal es­cala, entre diversas vantagens, preponderara a consideração do interesse dos mercadores que era deles desviar o inimigo, atraindo-o sobre nós. Tomássemos a estrada batida para ir ao seu encontro, e protegê-los, como parecia plausível, era mais que provável houvéssemos todos sucumbido, nós e eles, até o último. Apanhando-os conosco não os teria a cólera poupado menos do que a nós no itinerário então escolhido, fosse porque já lhes transportássemos o germe ou os paraguaios nos houvessem contaminado. Quanto aos contínuos ataques com que nos haviam atormentado, muito maior número de ensejos lhes teríamos proporcionado se precisássemos atravessar tantos rios: o Feio, o Santo Antônio, o Desbarrancado. Aí o comboio mais nos estorvaria, pois não estaríamos em condições de o defender.

Se algum erro se cometera, devia ser atribuído aos próprios mascates, quando ao passarem pela colônia de Miranda, tinham recusado ouvir os conselhos de Vieira de Resende, um deles, o mesmo que víramos figurar na tomada de Bela Vista. Propusera-lhes este homem, tenente da guarda nacional de Goiás, nortear a marcha do comboio para a estância do Jardim, a cinco léguas, apenas, da colônia. Ali tratariam de se emboscar na mata do rio, à espera de nossa coluna, que não podia deixar de lá chegar. E com efeito sua marcha para o norte assinalava-a no horizonte a fumaça dos incêndios que diante dela se renovavam sem conseguir detê-la. Mesmo que se aventasse alguma hipótese funesta, as vinte e duas carretas de mercadorias teriam formado excelente entrincheiramento contra o embate, quando muito momentâneo, de um troço de cavalaria, pois que, aliás, não podíamos, de modo algum, tardar em vir libertá-los. Debalde tentara Vieira Resende fazer ainda valer uma consideração decisiva, em relação a mercadores; acenara-lhes com o ensejo de venderem as mercadorias com belo lucro, exatamente no momento em que famintos iríamos sair daquelas planícies devastadas pelo fogo. Nada pudera persuadi-los. O lado militar de tal projeto, muito de acordo com as tendências aventurosas de quem o advogava - era esta a opinião geral - assustou aquela gente cujos sobressaltos cresciam na razão direta dos boatos de catástrofe que por toda a parte propalavam os nossos desertores. Persistiram na marcha para Nioac, pelo Canindé. Ali os alcançaram os paraguaios e os dispersaram, à primeira descarga; depois, saqueadas as carretas, empenharam-se em lhes prender os retardatários donos, atrapalhados como muitos deles estavam pelos objetos mais preciosos de suas cargas, que se não haviam disposto a abandonar. Inexoravelmente perseguidos fácil lhes fora, no entanto, graças a um pouco de firmeza, colocar-se sob a nossa salvaguarda.

Ao chegarmos ao Canindé nada mais ali havia do que destroços de toda a espécie, juncando os dois lados da estrada alguns montes nauseosos de farinha e arroz, amalgamados pelas bátegas de chuva, no meio das poças d'água do solo.

Ninguém jamais imaginara que este horrível amontoado de gêneros, quase irreconhecíveis, pudesse ser a causa de séria colisão, quase de um motim. Tal, porém, o império do organismo debilitado, tais os reclamos dos estômagos desde muito privados de alimento, que os soldados nele procuravam repasto com a avidez das feras que devoram uma presa. Todos para ali quiseram precipitar-se; romperam-se as fileiras, num tumulto inexprimível, no meio de um misto ensurdecedor de queixas, ameaças, vociferações e risadas idiotas, à vista daquele pasto imundo onde cada qual pretendia saciar-se. Quiseram a princípio os oficiais interpor a sua autoridade, vendo-se, porém, desrespeitados. Então um deles, o tenente Benfica, injuriado por estes alucinados, atracou-se com um deles, derrubou-o e o dominou com o revólver.

A surpresa causada por este ato de energia começou por conter a multidão. Passado este primeiro momento apaziguara-se geralmente, quando súbito irrompeu o grito: o inimigo! Quer houvesse este sido realmente divisado, quer se tratasse de expediente empregado, graças a feliz inspiração, para que surgisse uma diversão, ficou o ascoroso repasto esquecido.

Não teve esta desordem conseqüências. Fingiu o comandante ignorá-la como provindo do excesso de nossas misérias e ativando, para um pouco mais longe, esta marcha, para a qual já se não tornavam suficientes as nossas forças, ordenou logo que fizéssemos alto e tratássemos de acampar.

Foram as disposições tomadas pelo novo ajudante do quartel-mestre, tenente Catão Roxo, nomeado substituto do tenente-coronel Juvêncio. Passara o capitão Lago a exercer o cargo de assistente do ajudante general, o tenente Escragnolle Taunay o de secretário-geral adido ao comando. Ficara o tenente Barbosa o único representante da comissão de engenheiros recém-dissolvida.

Duas léguas, apenas, nos separavam de Nioac e o comandante, para avisar a nossa chegada, fez disparar, ao mesmo tempo, as nossas quatro peças, acompanhadas de um fogo rolante de todos os batalhões.

Nesta ocasião percebeu nossa gente a irregularidade do tiro pelo fato de que muito haviam as últimas chuvas deteriorado o armamento. Assim, pôs-se logo, e por si, a repará-lo e experimentá-lo várias vezes, a apostar quem atiraria melhor e mais depressa: luta improvisada que desvaneceu qualquer vestígio de torpor, chegando, aos últimos clarões do dia, a tomar festivo aspecto. A esperança de melhores dias está sempre pronta a renascer no coração dos homens.

Nova fase de existência, realmente, como despontara; despertara a vida e o nosso horrível passado da véspera a fome, a morte, sob todos os aspectos já não nos apareciam mais senão como as alucinações dum pesadelo.

Não é que os pensamentos tristes não nos assaltassem mais, após as realidades que presenciáramos. Contássemos quantos agora éramos! Quantos faltavam! Soavam os clarins e folgávamos em ouvi-los; mas que era feito das músicas de nossos batalhões? Companheiras das primeiras provações da expedição nos pantanais de Miranda, ainda luzidas, ao invadirmos o solo paraguaio, não demorara que as dizimasse o fogo inimigo. Logo depois, à medida que as nossas fileiras rareavam, fora necessário dentre elas recrutar soldados. Viera a cólera acabar a obra destruidora, prostrando quatorze músicos dos que haviam pertencido ao batalhão de voluntários de Minas.

Rapidamente percorremos no dia seguinte a distância até Nioac, observando com rigor a formatura adotada para atravessar os campos; e o inimigo que nos perseguia a retaguarda não ousou empreender nenhum ataque. Mostrou-se, pelo contrário, muito afoito em bater em retirada, sempre que lhe aconteceu ficar ao nosso alcance.

Costeávamos a margem esquerda do Nioac, e como estivessem a pastar uns bois de tiro, que os carreiros do comboio de mascates haviam abandonado, puseram-se alguns cavaleiros paraguaios a persegui-los. Uma companhia do nosso 21.° e uma peça foram então mandadas contra eles. Voltaram rédeas incontinente e com tanta precipitação que provocaram o riso geral e as vaias de nossa gente.

Era o vau bom; e sem mais demora o atravessamos. À margem direita encontramos o rasto ainda fresco da passagem de muita cavalaria e grande quantidade de papéis rasgados, livros, talões oficiais, sujos e dilacerados que evidentemente provinham do saque de alguma carreta brasileira, aprisionada naquele ponto pelo inimigo e destruída, ou por ele levada.

Algumas fumaças no horizonte ainda nos revelavam a presença do adversário e, pelo conhecimento que da permanência naquelas localidades obtivéramos, supusemos que os paraguaios acabavam de incendiar uma espécie de aldeia, de palhoças, que ali havíamos construído. Fez-nos isto apressar o passo e ao primeiro relance reconhecemos que não nos enganáramos.

As três da tarde estávamos no meio dessas ruínas abrasadas que habitáramos e a que deitamos último e melancólico olhar; o soldado e o viajante interessam-se sempre pelos lugares onde repousaram.

Muito a propósito veio um incidente de ópera-bufa distrair-nos desta impressão tristonha: a reaparição daquele italiano que, já no acampamento da Laguna, nos divertira com as suas jogralidades. Contara-se, mas inexatamente, que morrera, com os outros mascates que, por assim dizer, haviam desertado das nossas fileiras ao atravessarmos o rio Miranda. Deles, habilmente se separara, vagara entre Canindé e Nioac, sem noção do ponto para onde devia rumar, indo de moita em moita, a tremer de medo, não encontrando uma só que lhe inspirasse confiança. Acabara, no entanto, fazendo uma escolha e com tanta felicidade que, naquele mesmo dia. pudera do seu refúgio ver o avanço da nossa coluna. Fora-lhe a alegria tão viva que, por pouco, lhe ia sendo funesta.

O vestuário estrambótico e a precipitação dos movimentos fizeram-no passar por paraguaio. Nossos atiradores da vanguarda sobre ele atiraram. Deixou-se, então, cair como morto, na macega. Após um lapso de prudente imobilidade começou a levantar devagarinho, no ar, na ponta de uma varinha, o cachenê; e depois, vendo que as balas não vinham, um braço, a cabeça; e, afinal, o corpo todo, que não era senão o do nosso amigo e velho conhecido Saraco.

Reconhecendo-o imediatamente, encheram-no os soldados de abraços, cumprimentos e perguntas. Estava num estado de inexprimível êxtase, vendo-se escapo aos perigos onde crera deixar a vida, e de que se via salvo, e ainda barato, à custa da trouxa e de tantos momentos de pavor.

Quanto ao inimigo haveríamos de nos avistar com ele apenas uma última vez, embora lhe tivéssemos ainda que sofrer o efeito da pérfida e cruel animosidade.


Nioac. Decepção; encontramos a vila saqueada, incendiada e quase destruída pelos paraguaios. Infernal ardil de guerra. Desaparece o inimigo, definitivamente. Regresso pacífico do corpo de Exército. Ordem do dia sobre esta campanha de trinta e cinco dias.

O oficial encarregado da defesa de Nioac, durante a nossa incursão em território paraguaio, ausentara-se da vila, a 1.° de junho, sem que ali se tivesse notícia da aproximação do inimigo, procedendo assim contra as ordens terminantes de 22 de maio que lhe impunham a defesa, a todo o transe, de um ponto que era a nossa base de operações.

Não é que os víveres lhe faltassem, longe disto, deixa­ra-lhos abundantes o chefe da Intendência. Dar-se-ia o caso que os seus comandados, seduzidos pela vizinhança do rio, e suas matas, houvessem desertado, um após outro, até o largarem inteiramente só? Mas aí estavam todos os oficiais do nosso corpo de Exército concordes em atestar o espírito de submissão de nossos soldados aos chefes. Acaso se houvesse dado um "salve-se quem puder" geral não teria podido aquele comandante man­ter-se em observação pela vizinhança, onde tantos aci­dentes de um terreno florestado lhe podiam servir de abrigo, à espera de nossa chegada? Afastaria, assim, de si, a responsabilidade, não somente da enorme perda de material como do novo sacrifício de vítimas humanas fruto de tão funesto abandono. Faltou-lhe o ânimo; desapareceu deixando ligado ao nome a reminiscência de uma deserção em frente ao inimigo...

Tanto mais sensível e mais notada esta infidelidade quanto as demais providências do coronel Camisão, no mesmo ofício, haviam com exação sido observadas. As provisões de guerra e de boca, o arquivo, o dinheiro da pagadoria, esperavam-nos nos morros, para onde os transportara o coronel Lima e Silva; enquanto ele pró­prio, de acordo com as instruções, estacado à margem do Aquidauana, providenciava no sentido de encaminhar em primeiro lugar tudo o que poderia preceder-nos, enfermos, mulheres, crianças, soldados desgarrados ou inválidos. Cuidadosamente ordenara, aliás, aos con­dutores das carretas, que serviam para estes diversos transportes, voltassem sem demora, apenas desocupados, retendo ao mesmo tempo, ao seu lado, a maioria das viaturas carregadas de víveres, de que fizera um depó­sito volante, tendo em vista a nossa próxima chegada.

Assim abandonada passara Nioac a ser a presa dos paraguaios. Tudo haviam saqueado e queimado, salvo a igreja, poupada não por espírito religioso, mas, pelo con­trário, com o fito de a utilizarem num ardil infernal. Retirara-se a sua infantaria ante a nossa aproximação, entrincheirando-se no cemitério. Seguira, então, pela mata em direção a um vau do Orumbeva que a cavalaria reconhecera.

Sem preocupações quanto ao inimigo, fomos a toda a pressa ver o que haveria ainda a salvar.

Esta bonita povoação, abandonada, ocupada e pela segunda vez, desde o início da guerra, devastada, conver­tera-se num montão de destroços fumegantes. O grande galpão que, outrora, nos servira de armazém de manti­mentos e ainda o achamos de pé, sobre os esteios incen­diados, mostrava renques de sacos que nossa gente, sem dúvida, não tivera tempo de carregar e já serviam de pasto ao incêndio. O arroz e a farinha carbonizados, exteriormente; o sal, gênero este tão escasso e precioso no interior do país, negrejara e fundia sob as nossas vistas. Não pouparam esforços os nossos soldados em salvar o que puderam.

Aqui e acolá jaziam muitos cadáveres, todos de brasi­leiros. Constatamos que muitos dentre estes infelizes mortos haviam servido em nossas fileiras. Desertando por ocasião do exacerbamento de nossas misérias, e mor­rendo de fome pelas matas, haviam se apressado, embora correndo o perigo de serem reconhecidos, em tomar parte no saque.

Fora um deles, de pés e mãos amarrados, sangrando como um porco. Jazia outro, crivado de feridas, e uma velha, estirada a seu lado, de goela aberta e seios dece­pados, nadava no próprio sangue.

Foi quase toda a coluna acampar por esta noite atras da igreja, sobre o grande terrapleno que descrevemos e onde, escalonados com os canhões nos ângulos, para maior segurança contra o inimigo, nos apoiávamos à mata do rio. Ali gozamos, enfim, um pouco de verdadeiro descanso. Dupla e tripla ração se distribuiu; per­mitiam-no as circunstâncias; sentia-se o comandante feliz por contentar os soldados, quanto possível. Pela primeira vez, e desde muito, podíamos contar com o dia de amanhã. Restavam-nos, apenas, para nos pôr fora de qualquer perigo eventual, fazer quinze léguas, a cami­nhar por excelente estrada, de Nioac ao Aquidauana, onde éramos esperados. E para tal marcha tínhamos víveres sobejos.

Foi a noite calma, como tudo prenunciava dever suce­der. Apenas amanheceu fizeram os soldados uma visita às ruínas da aldeia. Acabaram tomando tudo o que aos paraguaios escapara. Graças a esta sucessão de roubos desaparecera, em alguns meses, destas terras novas o pouco que o incipiente comércio ali introduzira, como mecanismos e ferramenta, tudo, enfim, o que o trabalho conseguira juntar de frutos e poupança.

Durante a última estada em Nioac depositáramos na igreja muitos e diversos objetos, o instrumental das bandas de música, munições de guerra etc. Consta que os paraguaios encontraram ainda muita coisa deste ape­trechamento, não lhes havendo chegado o tempo para tudo carregar. Existia ali grande reserva de cartuchos e foi, talvez, o que lhes sugeriu a primeira idéia da horrível maquinação que tanto lhes condizia à feição cruel.

Depois de carregarem o que mais poderiam aprovei­tar, deixaram o resto por destruir, para nos engodar e nos reter o maior lapso de tempo possível em torno de um amontoado de objetos, sob o qual colocaram um barril de pólvora com rastilhos. Não podíamos ter a menor suspeita de semelhante cilada; e, à vista dos car­tuchos que devíamos transportar, tomamos as precau­ções costumeiras contra as eventualidades de uma explo­são. Enquanto na igreja trabalhava o nosso pessoal sentinelas vigiavam, a fim de que nenhum fogo se acen­desse pela vizinhança.

Ocorreu, contudo, que um infeliz soldado encontrasse pelo chão um isqueiro, dentro do edifício, e lhe viesse a estapafúrdia idéia de o utilizar. Saltou logo uma faísca sobre alguns grãos de pólvora dos que coalhavam a nave. Sem a umidade do solo, então muito grande ou acaso fossem os rastilhos contínuos, instantânea ocorreria a explosão. Para melhor nos enganarem haviam os para­guaios espalhado a pólvora sóbria e desigualmente com o minucioso cuidado, e os cálculos ardilosos do selvagem que preparara os seus malefícios. Só se viu, a princípio brilharem pequenas chamas e aqui e acolá se levantarem sucessivamente ligeiras espirais de fumaça. Já os solda­dos se precipitavam para conter o fogo, no momento em que ele tomava corpo, quando os oficiais presentes, compreendendo melhor o perigo, ordenaram que imediata­mente fosse a igreja evacuada. A esta voz correram todos, em massa, para as portas; como o atropelo per­turbasse a saída, deu-se a explosão antes que toda a gente se achasse do lado de fora. Pouco faltou para que todo o edifício voasse aos ares; foram as paredes sacudi­das, mas o conjunto resistiu; assim não sucedera e teriam todos os nossos, que ali se achavam, infalivelmente pere­cido esmagados sob os escombros.

Terríveis de se ouvir e sentir, até no ponto distante em que nos achávamos com o comandante, foram o estampido e o abalo. Grande grito acompanhou a explo­são seguida de silêncio, depois novo e horrível clamor e ainda pausa. Soaram os clarins; julgando todos que era o inimigo, os corpos entraram em formatura. Já nos precipitáramos para a igreja; dela saíam, dentre turbi­lhões de fumo, irreconhecíveis formas, fantasmas ene­grecidos e avermelhados pelo fogo. Ardiam uns com as roupas em chamas, outros completamente nus e cuja pele pendia em frangalhos, soltavam urros; alguns ain­da rodopiando como alucinados já se debatiam nas angústias da agonia. Perdera um soldado negro toda a epiderme do rosto, arrancada como uma máscara. Era­-lhe o corpo sangrenta chaga. Um sargento, cujas carnes se achavam inteiramente desnudadas, implorava, por misericórdia, que o acabassem com uma bala ou um pontaço. Morreram ali mesmo, no local, uns quinze desventurados.

Todos aqueles a quem podia a arte valer, ou para lhes diminuir o sofrimento ou para os salvar, passaram a ser o objeto do desvelo dos médicos e das nossas preocupa­ções. À nossa compaixão para com eles acrescia a indig­nação contra os autores deste cruel atentado; não houve depois dentre as vítimas arrebatadas à morte nenhuma cuja cura não saudássemos como verdadeira felicidade geral.

Foi o adeus dos paraguaios, a última demonstração de seu ódio contra nós. Sem nos abandonar de todo, porfiavam, contudo, em só se deixar entrever fora de alcance.

A 5, entretanto, ao raiar do dia, saímos da infeliz e bela Nioac, afinal, aniquilada com a sua igreja. Seguía­mos a estrada do Aquidauna e marchávamos penalizados sob a impressão do funesto sucesso da véspera.

A todas as vicissitudes atravessadas viera ajuntar-se a angústia da véspera. Já era muito porém, era legítimo triunfo estarmos de pé e ter dominado um inimigo tão perfidamente encarniçado em nos arruinar.

Foi o Orumbeva facilmente transposto. À margem direita se nos deparavam destroços de carretas que os paraguaios acabavam de queimar, muitos víveres e objetos de apretrechamento espalhados e todos sujos de terra como já na barranca do Canindé encontráramos; cadernos dilacerados, folhas soltas ao vento, notas, entre as quais o autor desta narrativa reconheceu a própria letra, e agora truncadas e inúteis.

A alguma distância deste caudal aguardava-nos, tal a primeira impressão, nova cilada, cujos efeitos foram, contudo, muito diversos de um desfecho trágico. Duas pipas, daquelas em que se conserva a aguardente de cana, ocupavam o meio da estrada. Lembrando-se da explosão da igreja e temendo algum novo estratagema, da parte de um inimigo que nenhum escrúpulo parecia poder conter, apressou-se o capitão Pedro José Rufino e precipitando-se sobre os tonéis arrombou-os com os copos da espada.

À vista do líquido, que a jorros corria, alguns solda­dos não podendo conter-se, ajoelharam-se ou deitaram-se de bruços, para alcançar o seu quinhão, espetáculo aco­lhido pelas gargalhadas, que se generalizaram em toda a linha.

Não teve o incidente outras conseqüências: pacifica­mente continuamos a marcha até o ribeirão da Formiga, perto do qual acampamos, ainda contemplados nesta nova fase de abundância pelo encontro de bom número de bois, em ótimas condições.

A 6 rumamos para nordeste, seguindo grande cami­nho a que numerosas moitas de taquaruçus dão o nome e aberto através da mata cerrada, que tanto se presta a surpresas. Nada, porém, ali, nos sobressaltou a marcha.

À medida que percorríamos estes terrenos a nós fami­liares e aos paraguaios menos conhecidos, cada vez mais frouxa e inofensiva se tornava a perseguição, embora não houvesse inteiramente cessado. Fizemos neste dia ponto, junto a um lindo ribeirão chamado das Areias. No dia seguinte, 7, quase vencemos as quatro léguas que medeiam deste ponto ao rio Taquaruçu. Atingimo-lo a 8 e, como a altura das águas não nos permitisse vadeá-lo, acampamos à sua margem.

Noite para nós memorável, esta! Foi aí que os paraguaios, avistados a alguma distância, se decidiram, enfim, a desaparecer. Deles próprios partiu o aviso da retirada, com uma fanfarra prolongada de clarins que tal sinal deu, mais lisonjeiro a nós outros de que a eles. Não se fizeram nossas cornetas rogadas, aliás, em asso­ciar-se àqueles toques com um estrépito a cujos ecos estremeceram longamente aquelas solidões. Soubemos, alguns dias mais tarde, que se haviam dirigido para Nioac, e, depois de recolhidas todas as suas patrulhas, pelo Apa regressado ao território de sua república.

Quanto a nós, cada vez mais bem providos de víveres, graças a um rebanho enviado das margens do Aquidaua­na, depois de um ofício do nosso chefe, ao coronel Lima e Silva, transpusemos, a 9, o Taquaruçu e, a 10, duas léguas adiante, um rio chamado Dois Córregos. A 11[1] chegamos ao porto do Canuto à margem esquerda do Aquidauana. Tal o último trecho de nossa penosa reti­rada. Ali findou o doloroso itinerário que, como expiação de nossas temeridades, nos fizera curtir tantas misérias quantas pode o homem suportar sem sucumbir. No Canuto nos despojamos dos miseráveis andrajos que nos cobriam, libertando-nos, afinal, da mais horrível sevandia e dos parasitos do campo, que, perfurando a pele, nela produzem dolorosas úlceras. Oferecia-nos o magnífico ensejo para as nossas abluções. Todas estas paragens podem ser chamadas: a terra das águas belas.

A 12 de junho baixou uma ordem do dia do nosso valente chefe José Tomás Gonçalves, em poucas palavras resumindo os acontecimentos desta terrível campanha de trinta e cinco dias: "A retirada, soldados, que acabais de efetuar, fez-se em boa ordem, ainda que no meio das circunstâncias as mais difíceis. Sem cavalaria contra o inimigo audaz que a possuía formidável, em campos onde o incêndio da macega, continuamente aceso, amea­çava devorar-vos e vos disputava o ar respirável, exte­nuados pela fome, dizimados pela cólera que vos roubou em dois dias o vosso comandante, o seu substituto e am­bos os vossos guias, todos estes males, todos estes desas­tre vós os suportastes numa inversão de estações sem exemplo, debaixo de chuvas torrenciais, no meio de tor­mentas de imensas inundações, em tal desorganização da natureza que parecia contra vós conspirar. soldados! Honra à vossa constância, que conservou ao Império os nossos canhões e as nossas bandeiras!"[2]

Notas editar

  1. No dia da invasão do território paraguaio, isto é, em abril de 1867, era efetivo da coluna de 1.680 soldados. A 11 de junho reduzira-se a 700 comba­tentes . Perdêramos pois 980 soldados pela cólera e o fogo. Morrera além disto grande número de índios, mulheres e homens negociantes ou camaradas que haviam acompanhado a marcha agressiva do nosso corpo.
  2. Esta ordem do dia é de lavra do Autor de Retirada da Laguna como ele o declara nos seus Dias de Guerra e de Sertão.