Índice
editar- Bênção paterna
- Capítulo I
- Capítulo II
- Capítulo III
- Capítulo IV
- Capítulo V
- Capítulo VI
- Capítulo VII
- Capítulo VIII
- Capítulo IX
- Capítulo X
- Capítulo XI
- Capítulo XII
- Capítulo XIII
- Capítulo XIV
- Capítulo XV
- Capítulo XVI
- Capítulo XVII
- Capítulo XVIII
- Capítulo XIX
- Capítulo XX
- Capítulo XXI
- Capítulo XXII
- Capítulo XXIII
- Capítulo XXIV
- Capítulo XXV
- Capítulo XXVI
- Capítulo XXVII
- Capítulo XXVIII
- Capítulo XXIX
- Capítulo XXX
- Capítulo XXXI
- Capítulo XXXII
- Carta ao editor
- Pós-escrito
- Notas do Autor
...posses non meus esse liber
(OVÍDIO)
Ainda romance!
Com alguma exclamação, nesse teor, hás de ser naturalmente acolhido, pobre livrinho, desde já te previno.
Não faltará quem te acuse de filho de certa musa industrial, que nesse dizer tão novo, por aí anda a fabricar romances e dramas aos feixes.
Musa industrial no Brasil!
Se já houve deidade mitológica, é sem dúvida essa de que tive primeira notícia, lendo um artigo bibliográfico.
Não consta que alguém já vivesse nesta abençoada terra do produto de obras literárias. E nosso atraso provém disso mesmo, e não daquilo que se vai desacreditando de antemão.
Quando as letras forem entre nós uma profissão, talentos que hoje apenas aí buscam passatempo ao espírito, convergirão para tão nobre esfera suas poderosas faculdades.
É nesse tempo que hão de aparecer os verdadeiros intuitos literários; e não hoje em dia, quando o espírito, reclamado pelas preocupações da vida positiva, mal pode, em horas minguadas, babujar na literatura.
Então com certeza se não há de buscar o crítico literário, entre os abegões do bezerro de ouro, que passaram a vida a cevá-lo, e com isso cuidam lá no seu bestunto que se fizeram barões da imprensa.
Ingrato país que é este. Ao homem laborioso, que sobrepujando as contrariedades e dissabores, esforça por abrir caminho ao futuro, ou o abatem pela indiferença mal encetou a jornada, ou se ele alcançou, não a meta, mas um pouso adiantado, o motejam, apelidando-lhe a musa de industrial!
Dá-te por advertido pos, livrinho; e, se não queres incorrer na pecha, passando por um produto de fábrica, já sabes o meio. É não caíres no goto da pouca gente que lê, e deixares-te ficar bem sossegado, gravemente envolto em uma crosta de pó, à espera do dente da traça ou da mão do taberneiro que te há de transformar em cartucho para embrulhar cominhos.
Também encontrarás algum crítico moralista que te receba de sobrolho franzido, somente ao ver-te no rosto o dístico fatal!
Se já anunciaram às tubas que o romance desacredita quem o escreve! De minha parte perguntarás ao ilustrado crítico em quais rodas, ou círculos, como ele as chamou portuguesmente, se não consente que penetre o romance.
Tenho muito empenho em saber disso para fugir o mais longe que possa dessa latitude social. Deve de haver aí tal bafio de mofo, que pode sufocar o espírito não atreito à pieguice.
Os críticos, deixa-me prevenir-te, são uma casta de gente, que tem a seu cargo desdizer de tudo neste mundo. O dogma da seita é a contrariedade. Como os antigos sofistas, e os reitores da Meia Idade, seus avoengos, deleitam-se em negar a verdade.
Ao meio-dia contestam o sol; à meia-noite impugnam a escuridão. Como Heráclito, choram quando o mundo ri, ou zombam com Demócrito quando a sociedade se lamenta. Dão-se ares de senado romano, com o afã de levantar uns e abaixar outros: — parcere subjectis et debellare superbos, como disse Virgílio.
Assim, livrinho, um, ao receber-te, talvez se lembre de teres saído de uma cachola, que na véspera não se descobriu amavelmente à sua passagem e não lhe catou a devida cortesia.
Estoutro te há de acolher com soberbo gesto de enfado, aborrecido como anda de dar notícia de tantos livros de um e mesmo autor. É prudente cortar as asas ao ambicioso para que não tome conta das letras e faça monopólio do público.
Haverá ainda quem, fiel ao preceito jurídico — do ut des, te dispense o remoque ou o elogio à medida do que lhe tiver cabido; e neste ponto, coitadinho, tens muito que sofrer, pois bem sabes tu quanto é parco teu autor de fofos encômios, arranjados com epítetos que soam como as teclas de um piano.
E efetivamente outra cousa não é o instrumento de um crítico senão um piano, a menos que para alguns não degenere a cousa em cravo ou espineta. As teclas não correspondem a notas de música, mas a uns certos adjetivos, tão sovados, que já soam a marimba.
Outros críticos te esmagarão com augusto e tenebroso silêncio, verbis facundior, crentes de que te condenam à perpétua obscuridade, não dando sequer a notícia de teu aparecimento, como quem dele nem se apercebe.
Lembra-me quando era criança, ter visto um menino muito afadigado em esconder o sol com a mão, para deixar o mundo em trevas. Queria por capricho fazer meia-noite do meio-dia que era.
Não te enchas aí de presunção, livrinho, pensando que te comparo ao astro rei. Não; a imagem dele é a opinião, a publicidade, a qual apesar das anteparas das gazetas, te avistará na tua humildade, como o sol aquece o mesquinho inseto escondido na relva.
Aos amigos, como Joaquim Serra, Salvador de Mendonça, Luís Guimarães e outros benévolos camaradas, tu lhes dirás, livrinho, que te poupem a qualquer elogio.
Para a crítica têm eles toda a liberdade, nem carecem que lha deem; mas no que toca a louvor, pede encarecidamente que se abstenham.
Tenho cá minhas razões; não te quero mira e alvo das iras que os encômios costumam levantar. Há certos adjetivos tão perigosos que importam quase uma excomunhão — latae sententiae.
Também, para dizer toda a verdade, os gabos e aplausos já andam tão corriqueiros, que parece mais invejável a sorte do livro, que merece de um escritor sisudo a crítica severa, do que a de tantos outros que aí surgem, cheios de guizos de cascavéis, como arlequins em carnaval.
É para aquela crítica sisuda que te quero eu preparar com meu conselho, livrinho, ensinando-te como te hás de defender das censuras que te aguardam.
Versarão estas, se me não engano, principalmente sobre dois pontos, teu peso e tua cor. Achar-te-ão com certeza muito leve, e demais, arrebicado à estrangeira, o que em termos técnicos de crítica vem a significar – “obra de pequeno cabedal, descuidada, sem intuito literária, nem originalidade”.
Ora pois não te envergonhes por isto. És o livro de teu tempo, o próprio filho deste século enxacoco e mazorral, que tudo aferventa a vapor, seja poesia, arte, ou ciência.
Nada mais absurdo do que esperar-se do autor um livro maduramente pensado e corrigido conforme o preceito horaciano — multa dies et multa littura coercuit — para atirá-lo na voragem, donde sai todo esse borralho do combustível, que impele o trem do mundo.
Quantas cousas esplêndidas brotam hoje, modas, bailes, livros, jornais, óperas, painéis, primores de toda a casta, que amanhã já são pó ou cisco?
Em um tempo em que não mais se pode ler, pois o ímpeto da vida mal consente folhear o livro, que à noite deixou de ser novidade e caiu da voga; no meio desse turbilhão que nos arrasta, que vinha fazer uma obra séria e refletida?
Perca pois a crítica esse costume em que está de exigir, em cada romance que lhe dão, um poema. Autor que o fizesse, carecia de curador, como um prodígio que seria, e esbanjador de seus cabedais.
Não se prepara um banquete para viajantes de caminho de ferro, que almoçam a minuto, de relógio na mão, entre dois guinchos da locomotiva.
Os livros de agora nascem como flores de estufa, ou alface de canteiro; guarda-se a inspiração de molho, como se usa com a semente; em precisando, é plantá-la, e sai a cousa, romance ou drama.
Tudo reduz-se a uma pequena operação química, por meio da qual suprime-se o tempo, e obriga-se a criação a pular, como qualquer acrobata. Diziam outrora os sábios: — naturà non facit saltus; mas a sabedoria moderna tem o mais profundo desprezo por essa natureza lerda, que ainda cria pelo antigo sistema, com o sol e a chuva.
Se isto que aí fica é verdade nos que fazem profissão de fabricar livros, dobrada razão têm para não improvisarem modelos e primores aqueles que aproveitam apenas umas aparas de tempo em rabiscar algum chocho volume, como outros em desenhar uma aquarela.
É o meu caso. Estes volumes são folhetins avulsos, histórias contadas ao correr da pena, sem cerimônia, nem pretensões, na intimidade com que trato o meu velho público, amigo de longos anos e leitor indulgente, que apesar de todas as intrigas que lhe andam a fazer de mim, tem seu fraco por estas sensaborias.
A razão deste fraco, não é senão capricho; o povo, como os reis, estão no direito e uso de os ter. Estes fazem ministros de qualquer bípede, e já o houve, que fez senador um quadrúpede. Aquele não lhes fica a dever; e, se a história não mente, fez um rei de uma mulher, e chamou-o Maria Teresa.
A suma de tudo isto vem a ser que, se alguém porventura incomoda-se com estes volumes, o modo de livrar-se da praga não é decerto a serrazina de crítica, para a qual o autor há muito, por força da consoante, fez orelhas moucas. Há meio mais seguro e bem simples.
Persuadam ao leitor que não vá à livraria à cata destes volumes. Em isto acontecendo, já o editor não os pedirá ao autor, que por certo não se metera a abelhudo em escrevê-los. Assim todos lucramos. O literato que não terá agasturas de nervos com a notícia de mais um livro; o crítico que salva-se da obrigação de alambicar um centésimo restilo de seu absíntio literário; o leitor que poupa o seu dinheiro; e finalmente o autor, que livre e bem curado da obsessão literária, poderá sonhar com a riqueza, desde que fizer da sua pena um côvado, um tira-linhas, uma enxada, ou mesmo um estilete a vintém o pingo.
Que fortuna para teu autor, livrinho, se lhe tirassem esta querida ilusão literária, como já lhe arrancaram o outro puro entusiasmo da política: essas duas cordas da pátria, essa gêmea aspiração do belo e do grande, que afagava-lhe os sonhos da mocidade e tocava-os de luz esplêndida.
Tornar-se-ia homem positivo, sabendo o valor ao tempo, medindo as palavras a peso, como fazem os grandes fornecedores desse gênero, tão consumido nos arsenais do governo. Arranjaria um pequeno monopólio; montava-se num milhar de contos; e esperava tranquilo e sereno o baronato, que é a canonização dos bem-aventurados neste reino do paraíso terrestre.
Quanto ao segundo defeito que te hão de notar, de ires um tanto desbotado do matiz brasileiro, sem aquele picante sabor da terra: provém isso de uma completa ilusão dos críticos a respeito da literatura nacional.
Eis uma grande questão, que por aí anda mui intrincada e de todo ponto desnorteada, apesar de tão simples e fácil que é. Lá uns gênios em Portugal, compadecendo-se de nossa penúria, tomaram a si decidir o pleito, e decretaram que não temos, nem podemos ter literatura brasileira.
A grande inteligência de Alexandre Herculano nos profetizara uma nacionalidade original, transfusão de duas naturezas, a lusa e a americana, o sangue e a luz. Mas os ditadores não o consentem; que se há de fazer? Resignemo-nos. Este grande império, a quem a Providência rasga infindos horizontes, é uma nação oca; não tem poesia nativa, nem perfume seu; há de contentar-se com a manjerona, apesar de ali estarem recendendo na balsa a baunilha, o cacto e o sassafrás.
Os oráculos de cá, esses querem que tenhamos uma literatura nossa; mas é aquela que existia em Portugal antes da descoberta do Brasil. Nosso português deve ser ainda mais cerrado, do que usam atualmente nossos irmãos de além-mar; e sobretudo cumpre erriçá-lo de hh e çç, para dar-lhe o aspecto de uma mata virgem.
Bem vês, livrinho, que uma questão desta monta não é para o teu modesto topete, e sim para algum prólogo campanudo, obra de bom punho. Muito farás se te defenderes dos críticos; e é só no que penso agora.
Aos que tomam ao sério estas futilidades de patriotismo, e professam a nacionalidade como uma religião, a esses hás de murmurar baixinho ao ouvido, que te não escutem praguentos, estas reflexões:
“A literatura nacional que outra cousa é senão a alma da pátria, que transmigrou para este solo virgem com uma raça ilustre, aqui impregnou-se da seiva americana desta terra que lhe serviu de regaço; e cada dia se enriquece ao contacto de outros povos e ao influxo da civilização?”
O período orgânico desta literatura conta já três fases.
A primitiva, que se pode chamar aborígine, são as lendas e mitos da terra selvagem e conquistada; são as tradições que embalaram a infância do povo, e ele escutava como o filho a quem a mãe acalenta no berço com as canções da pátria, que abandonou.
Iracema pertence a essa literatura primitiva, cheia de santidade e enlevo, para aqueles que veneram na terra da pátria a mãe fecunda — alma mater, e não enxergam nela apenas o chão onde pisam.
O segundo período é histórico: representa o consórcio do povo invasor com a terra americana, que dele recebia a cultura, e lhe retribuía nos eflúvios de sua natureza virgem e nas reverberações de um solo esplêndido.
Ao conchego desta pujante criação, a têmpera se apura, toma alas a fantasia, a linguagem se impregna de módulos mais suaves; formam-se outros costumes, e uma existência nova, pautada por diverso clima, vai surgindo.
É a gestação lenta do povo americano, que devia sair da estirpe lusa, para continuar no novo mundo as gloriosas tradições de seu progenitor. Esse período colonial terminou com a independência.
A ele pertencem o Guarani e as Minas de Prata. Há aí muita e boa messe a colher para o nosso romance histórico; mas não exótico e raquítico como se propôs a ensiná-lo, a nós beócios, um escritor português.
A terceira fase, a infância de nossa literatura, começada com a independência política, ainda não terminou; espera escritores que lhe deem os últimos traços e formem o verdadeiro gosto nacional, fazendo calar as pretensões hoje tão acesas, de nos recolonizarem pela alma e pelo coração, já que não o podem pelo braço.
Neste período a poesia brasileira, embora balbuciante ainda, ressoa, não já somente nos rumores da brisa e nos ecos da floresta, senão também nas singelas cantigas do povo e nos íntimos serões da família.
Onde não se propaga com rapidez a luz da civilização, que de repente cambia a cor local, encontra-se ainda em sua pureza original, sem mescla, esse viver singelo de nossos pais, tradições, costumes e linguagem, com um sainete todo brasileiro. Há, não somente no país, como nas grandes cidades, até mesmo na corte, desses recantos, que guardam intacto, ou quase, o passado.
O Tronco do Ipê, o Til e o Gaúcho, vieram dali; embora, no primeiro sobretudo, se note já, devido à proximidade da corte e à data mais recente, a influência da nova cidade, que de dia em dia se modifica e se repassa do espírito forasteiro.
Nos grandes focos, especialmente na corte, a sociedade tem a fisionomia indecisa, vaga e múltipla, tão natural à idade da adolescência. É o efeito da transição que se opera; e também do amálgama de elementos diversos.
A importação contínua de ideias e costumes estranhos, que dia por dia nos trazem todos os povos do mundo, devem por força de comover uma sociedade nascente, naturalmente inclinada a receber o influxo de mais adiantada civilização.
Os povos têm, na virilidade, um eu próprio, que resiste ao prurido da imitação; por isso na Europa, sem embargo da influência que sucessivamente exerceram algumas nações, destacam-se ali os caracteres bem acentuados de cada raça e de cada família.
Não assim os povos não feitos; estes tendem como a criança ao arremedo; copiam tudo, aceitam o bom e o mau, o belo e o ridículo, para formarem o amálgama indigesto, limo de que deve sair mais tarde uma individualidade robusta.
Palheta, onde o pintor deita laivos de cores diferentes, que juntas e mescladas entre si, dão uma nova tinta de tons mais delicados, tal é a nossa sociedade atualmente. Notam-se aí, através do gênio brasileiro, umas vezes embebendo-se dele, outras invadindo-o, traços de várias nacionalidades adventícias; é a inglesa, a italiana, a espanhola, a americana, porém especialmente a portuguesa e francesa, que todas flutuam, e a pouco e pouco vão diluindo-se para infundir-se n'alma da pátria adotiva, e formar a nova e grande nacionalidade brasileira.
Desta luta entre o espírito conterrâneo e a invasão estrangeira, são reflexos Lucíola, Diva, A Pata da Gazela, e tu, livrinho, que aí vais correr mundo com o rótulo de Sonhos d'Ouro.
Tachar estes livros de confeição estrangeira, é, relevem os críticos, não conhecer a fisionomia da sociedade fluminense, que aí está a faceirar-se pelas salas e ruas com atavios parisienses, falando a algemia universal, que é a língua do progresso, jargão erriçado de termos franceses, ingleses, italianos e agora também alemães.
Como se há de tirar a fotografa desta sociedade, sem lhe copiar as feições? Querem os tais arqueólogos literários, que se deite sobre a realidade uma crosta de classismo, como se faz com os monumentos e os quadros para dar-lhes o tom e o merecimento do antigo?
Chame-se à partida de sarau; à recepção, de agasalho; ao leão, de janota ou casquilho; aos salões, de casas de boa companhia; à pecadora, de rameira; à reunião, de assembleia; aos círculos, de roda, et sic de coetera.
Em vez de andarem assim a tasquinhar com dente de traça nos folhetinistas do romance, da comédia, ou do jornal, por causa dos neologismos de palavra e de frase, que vão introduzindo os novos costumes, deviam os críticos darem-se a outro mister mais útil, e era o de joeirar o trigo do joio, censurando o mau, como seja o arremedo grosseiro, mas aplaudindo a aclimatação da flor mimosa, embora planta exótica, trazida de remota plaga.
Sobretudo compreendam os críticos a missão dos poetas, escritores e artistas, nesse período especial e ambíguo da formação de uma nacionalidade. São estes os operários incumbidos de polir o talhe e as feições da individualidade que se vai esboçando no viver do povo. Palavra que inventa a multidão, inovação que adota o uso, caprichos que surgem no espírito do idiota inspirado: tudo isto lança o poeta no seu cadinho, para escoimá-lo das fezes que porventura lhe ficaram do chão onde esteve, e apurar o ouro fino.
E de quanta valia não é o modesto serviço de desbastar o idioma novo das impurezas que lhe ficaram na refusão do idioma velho com outras línguas? Ele prepara a matéria, bronze ou mármore, para os grandes escultores da palavra que erigem os monumentos literários da pátria.
Nas literaturas-mães, Homero foi precedido pelos rapsodos, Ossian pelos bardos, Dante pelos trovadores.
Nas literaturas derivadas, de segunda formação, Virgílio e Horácio tiveram por precursores Ênio e Lucrécio; Shakespeare e Mílton vieram depois de Surrey e Thomas Moore; Corneille, Racine e Molière depois de Malherbe e Ronsard; Cervantes, Ercilla e Lope de Vega depois de Gonzalo de Berceo, Iñigo Mendoza e outros.
Assim foi por toda a parte; assim há de ser no Brasil. Vamos pois, nós, os obreiros da fancaria, desbravando o campo, embora apupados pelos literatos de rabicho. Tempo virá em que surjam os grandes escritores para imprimir em nossa poesia o cunho do gênio brasileiro, e arrancando-lhe os andrajos coloniais de que andam por aí a vestir a bela estátua americana, a mostrem ao mundo, em sua majestosa nudez: naked majesty.
E agora, livrinho, só resta escrever-te o faciebat que os escultores antigos costumavam gravar no soco das estátuas, ao contrário de Arquelau que lhe substituiu o pretensioso fecit.
Aquele remate, se neles foi modéstia, para mim é uma confissão. As páginas que aí andam com o meu nome, já o disse uma vez, e o repito, nada mais são do que provas tipográficas, a corrigir, para a tiragem.
E não pensem os críticos, que é isso escusa para atenuar a severidade. Bem ao contrário, achasse eu um meio de a estimular, que decerto o empregaria.
Quem mais ganha com esses rigores sou eu. Se provêm do bom gosto e da cultura literária, são lições judiciosas, que se recebem, e mais tarde aproveitam. Se nascem da inveja, do despeito, do desejo de celebrizar-se, ou de qualquer outro lodo interior, onde se gere essa praga, ainda assim tem serventia: revelam ao autor o apreço do público, pelo desprezo a que são lançadas essas alicantinas.
Portanto, ilustres e não ilustres representantes da crítica, não se constranjam. Censurem, piquem, ou calem-se, como lhes aprouver. Não alcançarão jamais que eu escreva neste meu Brasil cousa que pareça vinda em conserva lá da outra banda, como a fruta que nos mandam em lata.
Tinha bem que ver, se eu desse ao carioca, esse parisiense americano, esse ateniense dos trópicos, uma paródia insulsa dos costumes portugueses, que entre nós saturam-se de dia em dia do gênio francês. A aurea scintilla da raça latina, que a família gaulesa herdou da romana, tem de a transmitir a nós, família brasileira, futuro chefe dessa raça.
A manga, da primeira vez que a prova, acha-lhe o estrangeiro gosto de terebintina; depois de habituado, regala-se com o sabor delicioso. Assim acontece com os poucos livros realmente brasileiros: o paladar português sente neles um travo; mas se aqui vivem conosco, sob o mesmo clima, atraídos pelos costumes da família e da pátria irmãs, logo ressoam docemente aos ouvidos lusos os nossos idiotismos brasileiros, que dantes lhes destoavam a ponto de os ter em conta de senões.
E como não há de ser assim, quando a esposa que lhes balbucia as ternas confidências do amor feliz, e depois os lindos filhinhos que enchem a casa de rumor e alegria, lhes ensinam todos os dias em suas carícias essa linguagem, que, se não é clássica, tersa e castiça, é a linguagem do coração, da felicidade, da terra irmã e hospedeira.
É preciso concluir, para que o faciebat não se torne moto-contínuo; e como desejo dar a este proêmio um ar de gravidade que lhe supra a leveza do miolo, terminarei apresentando aos doutores em filologia a seguinte e importantíssima questão, que espero ver magistralmente debatida.
Estando provado pelas mais sábias e profundas investigações começadas por Jacob Grimm, e ultimamente desenvolvidas por Max Müller, a respeito da apofonia, que a transformação mecânica das línguas se opera pela modificação dos órgãos da fala, pergunto eu, e não se riam, que é mui séria a questão:
O povo que chupa o caju, a manga, o cambucá e a jabuticaba, pode falar uma língua com igual pronúncia e o mesmo espírito do povo que sorve o figo, a pera, o damasco e a nêspera?
Sênio.
23 de julho de 1872.
O sol ardente de fevereiro dourava as lindas serranias da Tijuca.
Que formosa manhã! O céu arreava-se do mais puro azul; o verde da relva e da folhagem sorria entre as gotas de orvalho, cambiando aos toques da luz.
Frocos de névoa, restos da cerração da noite, cingiam ainda os píncaros mais altos da montanha, como pregas de véu flutuante, ao sopro da brisa, pelas espáduas das lindas amazonas, que durante o verão costumam percorrer aquelas amenas devesas.
Seriam sete horas.
Um passeador solitário seguia a pé e distraidamente por um dos muitos caminhos que se cruzam em várias direções pela encosta ocidental da montanha. Levava ele embaixo do braço esquerdo um álbum de desenho, naturalmente destinado à cópia das magníficas perspectivas, que oferecem a cada passo as quebradas da serrania.
Era moço de 28 anos. Seu rosto de traços nobres não tinha decerto a beleza correta e artística do tipo clássico, nem a faceirice de certos casquilhos, príncipes da moda: apresentava porém uma fisionomia simpática e distinta. O olhar sobretudo, que é o sol d'alma, lhe esclarecia a larga fonte pensativa de reflexos inteligentes.
Trajava com extrema simplicidade. Tinha um vestuário completo, ou no jargão parisiense dos alfaiates, um costume ainda bem conservado e decente, apesar de um tanto fanado na gola. Notava-se a ausência completa do ouro: a abotoadura era toda de marfim; e não se via sinal de relógio.
Depois de alguns minutos de passeio, o moço, cujos olhos iam percorrendo com indiferença as bordas do caminho, de um e outro lado alternadamente, desviou-se do trilho batido e seguiu por dentro do mato. Mal tivera tempo de sumir-se entre a ramagem do arvoredo, quando ouviu-se o tropel de um cavalo que passou a galope. Enfiando o olhar por entre as folhas, pôde ver o cavaleiro, o qual era rapaz de 21 anos, de belo parecer e maneiras agradáveis. Montava um cavalo castanho.
— Fábio!
O cavaleiro colheu prontamente as rédeas, fazendo estacar a montaria, e voltou-se duvidoso para ver se com efeito o haviam chamado, como lhe parecera. A rapidez do galope e a repercussão do solo tinham impedido que ouvisse distintamente a voz do passeador a pé:
— Que milagre!... Hoje madrugaste!...
— Ah! És tu, Ricardo?! exclamou o cavaleiro retribuindo o sorriso. Vou à Vista dos Chins com uns rapazes que estão aí no hotel do Jourdain. Convidaram-me ontem à noite. É um piquenique! Queres ir também?
— Só se partíssemos ao meio o Galgo, observou Ricardo, alisando a linda anca do cavalo.
— Dou-te garupa! replicou Fábio gracejando.
— Obrigado!... Luisinha teria ciúmes.
— Bem; vai romantizar com as flores, que os sujeitos estão à minha espera. Talvez já chegue tarde! Digam lá o que quiserem. Um homem deve se dar a respeito, e não comparar-se com os animais e os carroceiros que deitam-se de dia e acordam-se de noite.
Atirando esse gracejo, Fábio deu de rédeas ao animal e partiu a galope.
— Olha o Galgo, hem! gritou Ricardo.
— Com efeito!... nem de Bela tens tanto cuidado!
Ricardo sorriu, e acompanhou com os olhos o amigo até que sumiu-se na volta do caminho. Não era porém o cavaleiro, apesar de elegante, o que prendia a atenção do passeador, e sim o cavalo cuja fina roupagem castanha brilhava aos reflexos do sol. A esbelteza das formas esgalgadas e o garbo dos movimentos fáceis e vivos, lhe tinham merecido o lindo nome dado pelo dono.
Quando o vulto airoso do cavalo encobriu-se por detrás da folhagem de uma árvore que interceptou-lhe a vista, Ricardo, abafando um suspiro involuntário, desviou-se novamente do caminho ao qual voltara para falar com o amigo.
Às vezes o pensamento do moço vagava de um a outro objeto, desta àquela moita, do ramo ao tronco, da folha à raiz, como se procurasse um ponto qualquer onde se fixasse, distraindo-se das ideias e recordações do íntimo. Outras vezes, depois de adejar como uma borboleta, o espírito do solitário passeador recolhia-se insensivelmente, e abstraía-se de quanto o cercava, para envolver-se nos refolhos d'alma.
Alguma cousa porém chamou por momentos sua atenção. Foi a pequena flor silvestre de um arbusto que se encontra nas matas da Tijuca.
Não sei o nome do arbusto, nem mesmo se já foi batizado pela ciência. É natural que não tenha escapado às pesquisas dos dois ilustres freires da flora brasileira, o Veloso e o Alemão; mas, como apesar de tanto dinheiro esperdiçado pelo governo, as letras andam entre nós abandonadas à indiferença o ao charlatanismo, que são a medusa e o minotauro do talento, não me pude socorrer à ciência dos dois célebres botânicos.
A este respeito Ricardo não era menos ignorante. O modo por que ele admirava a pequena flor revelava o tato do artista ou do poeta. Seu exame nada absolutamente se parecia com a fria dissecação que o botanista opera nas diferentes partes de uma planta, para conhecer o seu gênero, classe e família.
A flor tem a forma de um junquilho, mas é de uma bela cor de ouro, e aveludada como a açucena. Falta-lhe o perfume, que é o coração da flor, a sua respiração.
A corola tubular, com cinco lóbulos agudos de lança, surge de um cálice que parece de coralina. Cada haste sustenta comumente três cálices dispostos como as aspas de um leque; aí dentro desses cálices formam-se os botões, como pequenas contas de ouro no seu róseo engaste.
Pelo conhecimento que fizemos, a planta e eu, durante o verão passado, notei-lhe duas particularidades. Talvez recebesse eu dela outras confidências se não nos separássemos tão cedo, e tão no princípio ainda de nossa amizade.
Os botões, que despontam em dezembro, por muito tempo se conservam estacionários, sem crescimento aparente. É só dois ou três meses depois, em fevereiro e março, que as gemas d'ouro se elevam como aljôfares, e desabrocham para murchar em um dia. Mas as três flores irmãs não crescem, nem abrem ao mesmo tempo; vêm solitárias, uma depois da outra.
Eram estas justamente as observações que fazia Ricardo, examinando a linda corola e os botões nascentes aninhados ainda no fundo do cálice nacarado. Muitas vezes em seus passeios tinha ele notado o arbusto coberto das lindas pérolas douradas. Cansado de esperar o desabrochar, supôs a florescência já passada, e naquilo que via, o embrião do fruto.
Depois de olhar a flor agreste com enlevos de artista, o moço, que procurava qualquer modelo, lembrou-se de copiar o arbusto em uma das páginas do álbum. Escolheu a posição, aproveitando os acidentes do terreno em ladeira, para servir-lhe de mesa. De joelhos na grama, debruçado sobre o declive de um barranco, traçou rapidamente a lápis o esboço da planta.
Enquanto descansava, examinou de novo a flor do ramo que tinha quebrado:
— Que bela cor de ouro! murmurou.
Então com as impressões poéticas da flor agreste se enlearam outras cismas que absorveram completamente o espírito de Ricardo. Como a seiva exuberante de uma árvore, que rompe a casca e borbulha aqui e ali pelo tronco em fios de resina, assim os pensamentos que enchiam a alma do mancebo se escapavam de vez em quando nas palavras entrecortadas de um monólogo.
— Ouro!... ouro!... És o rei do mundo, rei absoluto, autocrata de todas as grandezas da terra! Tu, sim, tu reinas e governas, sem lei, sem opinião, sem parlamento, sem ministros responsáveis!... Não tens nenhum desses trambolhos que arrastam os soberanos constitucionais.
“Lei?... Que lei é a tua, senão o capricho com que escarneces dos homens? Tu dizes ao pobre, cobiça; ao opulento, gasta; ao pródigo, esbanja; ao avarento, aferrolha; ao mendigo, esmola; ao ladrão, rouba; e a todos, grandes e pequenos, adorai-me!...
“Opinião?... Quem faz esse rumor que nos atordoa os ouvidos e a que chamam pomposamente opinião pública? Tu, que sustentas os jornais, pagas os jantares, ofereces lindos presentes, estreitas as amizades, e nutres a admiração e o entusiasmo!”
O monólogo expirou nos lábios do moço; porém a expressão de seu rosto indicava que o espírito seguia mentalmente o sucessivo desenvolvimento da ideia.
— Todos nós, bons ou maus, somos súditos de tua majestade, com a diferença que os maus te bajulam e se arrastam a teus pés para satisfação de ignóbeis instintos; enquanto que os homens honestos te respeitam como um grande poder, te servem para se robustecerem com tua força, mas não te sacrificam a dignidade e a virtude.
Um sorriso amargo pairou nos lábios de Ricardo:
— Por isso, como todos os reis, tu repeles quase sempre essas almas de rija têmpera, que não se dobram a teus caprichos. Preferes os lisonjeiros, os corações de cortiça, as almas de esponja, que à vontade se embebem ou se encharcam daquilo que te apraz ou te repugna.
A sombra de algum pensamento mais desanimador perpassou-lhe na fronte, e derramou-lhe pelo semblante uma expressão de melancolia. As pálpebras cerraram-se como se a luz do sol ofendesse a penumbra d'alma em que dormiam as mágoas íntimas e as queridas reminiscências:
— Minha felicidade, a felicidade de uma família inteira, depende de ti, de um teu bafejo!... Vinte contos!... Uma migalha das tuas imensas riquezas. Dizem que milionários já deram mais, muito mais, para terem direito a um nome de cinco letras! Quatro contos cada letra! Há mulheres que levam ao baile algumas noites, durante sua vida, joias que valem dez vezes mais do que essa quantia! Quanto não custa cada hora daquele prazer! Entretanto não são cinco letras, são oito criaturas, não são horas apenas, são anos, são vidas de amor e ventura, que eu obteria com esta miserável quantia... miserável para os opulentos; para mim um tesouro, um futuro!...
Sob a influência da profunda cisma, Ricardo tinha a pouco e pouco mudado a posição, que tomara para desenhar. O corpo debruçado anteriormente sobre o declive, que servira de mesa, inclinou-se insensivelmente para o lado, firmando-se no cotovelo. Assim com a cabeça apoiada na mão esquerda, quase deitado sobre a relva, como sobre um divã, prosseguia o moço nos seus devaneios, com os olhos fitos na flor, que embalançava-se lentamente aos movimentos dos dedos.
— Bastava uma tira de papel, um bilhete de loteria, ou uma carta de jogar, para dar-me essa quantia, o preço de minha felicidade, a saúde de minha mãe, o casamento de Luisinha e... Ah! Quantas vezes não me tenho embalado nestas ilusões sedutoras, nestes sonhos d'ouro!... São como tu, linda flor, os meus sonhos d'ouro. Brota uma tênue esperança, assim como o teu botão; vai crescendo lentamente, no meio de ânsias e dúvidas; afinal desabrocha em flor; mas é flor do vento, que logo murcha. Também tu não vives mais que um dia!... Nisto nos parecemos bem; constante a preocupação; o sorriso efêmero; tua preocupação é vegetar, a minha, pensar!
Decorrido um momento, o semblante de Ricardo expandiu-se:
— Há tanto tempo que vejo esta planta, e não lhe conhecia a flor!... Quem sabe? Talvez seja o anúncio do primeiro sorriso da fortuna!
Logo zombou de sua lembrança, e da puerilidade daquela superstição. Mas, longe de a repelir, embebeu-se na ilusão. Todos nós temos em nossa alma um cantinho, que, apesar dos anos, da experiência e dos trabalhos, fica menino até que enfim o homem volta à primeira infância. Nesse cantinho dormem as ilusões ingênuas, as esperanças infindas, a fé robusta e sobretudo certos laivos de loucura que tonificam a razão.
É aí, é justamente nesse santuário da infância, que a alma viril do homem costuma-se refugiar nos momentos de crise, quando sustenta alguma luta com a fortuna; ou vencedora para fortalecer-se com a seiva primitiva, e renovar o combate; ou vencida para escapar ao desespero, que a invade.
Ricardo deixou-se ir à mercê da fantasia, que recortava arabescos em seu espírito. Era um desses sonhos acordados, em que as noções confusas se agitam num claro-escuro do espírito. Esse jogo da luz e das sombras d'alma, junto à extrema volubilidade dos pensamentos, não deixava destacar-se cada uma das ideias. Bilhete de loteria, jogo de cartas, heranças inesperadas, a proteção de um milionário, o trabalho abençoado por Deus, e mil rasgos e acidentes da fortuna; tudo isto misturado com a imagem da flor se baralhava na mente de Ricardo, apagando-se e luzindo alternativamente, como os fogos-fátuos em noite escura. Mas todas essas fosforescências iam derramando n'alma, como que uma linda miragem, a abastança, a posse dos vinte contos de réis.
— Então!... Como havíamos de ser felizes, Bela! Que beijos, minha querida mãe, que eu te havia de dar para te beber nas faces as lágrimas de prazer! Porque tu havias de chorar de alegria, como choraste de dor. E também a ti, Luisinha! A todos!...
A cada uma dessas palavras o moço, completamente possuído e dominado por suas recordações, inclinava-se sobre a flor agreste que tinha na mão, e beijava-a com ardor, vendo naquela gentil criatura da natureza a imagem das pessoas a quem amava.
— Oh! então lhes pagaria em beijos as saudades que sentem por mim!...
O trino mavioso de um riso fresco e argentino arrancou subitamente o moço à profunda cogitação.
Aturdido um instante pela completa alheação do espírito, que andava bem longe dali, através dos mares, Ricardo voltou-se para ver quem tão bruscamente o havia chamado à realidade.
O quadro que tinha diante dos olhos era digno de uma das folhas do seu álbum, ornado de finas aquarelas.
Entre o arvoredo tecido de grinaldas amarelas aparecia uma esfera do azul do céu, como tela fina de um painel, cingido por medalhão de ouro. A sombra de uma nuvem errante infundia ao horizonte suave transparência.
Debuxava-se na tela acetinada o vulto airoso de linda moça, que montava com elegância um cavalo isabel.
A alvura de sua tez fresca e pura escurecia o mais fino jaspe. Nem os raios do sol, nem o exercício acenderam uma rosa mesmo pálida em sua face, cândida como a pétala do jasmim. A seiva dessa mocidade, o viço dessa alma, não se expandia no rubor da cútis, mas no olhar ardente e esplêndido dos grandes olhos negros, e no sorriso mimoso dos lábios, que eram um primor da natureza.
Admirando aquele rosto encantador, ninguém reparava na sua palidez; ao contrário parecia que os tons rosados maculariam a alvura do lírio. A alma que se derrama assim em ondas no olhar e no sorriso, está no íntimo, no coração, donde se desprende em centelhas: não pode tingir as faces.
Um roupão de caxemira verde-escura, debruado a cairel de seda preta, com abotoadura de aço, moldava um talhe esbelto, que parecia talhado em mármore, tal era a correção das linhas e a harmonia dos contornos. O gracioso chapéu de castor cor de pérola, em vez de cobrir-lhe a cabeça gentil, pousava como um pombo na rica madeixa negra, que lhe descia caprichosamente pelo pescoço em opulentas cascatas.
Calçava luvas de camurça amarela, cujo longo canhão afunilado cobria-lhe uma parte do braço, mas deixava admirar o pulso delicado, cingido por um punho de cambraia lisa, igual ao colarinho rebatido sobre a gola do roupão.
A mão esquerda sustinha as rédeas trançadas com bastante firmeza, porém com a graça fácil que teria segurando no baile o leque ou o ramalhete. A direita suspensa apertava pela haste um chicotinho, cujo cabo de madrepérola parecia machucar nos lábios o sorriso faceiro, que ali brincava, e de vez em quando trinava como um canário.
Da cintura de menina ou de silfo nasciam as amplas dobras do roupão de montar, roçagante sobre os flancos do belo animal. Como na constante ondulação do mar percebe-se, por uma inflexão mais forte, a vaga nascente que se empola, assim no meio das largas pregas do vestido sentia-se o relevo suave da perna esbelta e nervosa, que esticava o loro, enquanto o pé, despeitado por não se mostrar, agitava impaciente o estribo.
O cavalo era digno pedestal daquela estátua de Diana. Alto, airoso, de uma estampa soberba, respirava a elegância altiva e serena, que lhe imprimira a educação britânica. O cavalo do Cabo, de boa raça, tem alguma cousa do lord: a mesma fleuma aristocrática, o mesmo garbo frio e impassível, a mesma sobriedade do gesto, caracterizam os dois fidalgos.
Tenho para mim que um cavalo do Cabo olha para os cavalos de raça diferente com o mesmo polido desdém que sentia Lord Derby pela nobreza das outras nações. O lord inglês apropriou-se do antigo mote dos senhores do mundo, civis sum. O cavalo do Cabo, parodiando a divisa, diz equus sum; eu sou o cavalo por excelência, o fidalgo de raça, o gentleman da estrebaria.
Por isso na atitude do lindo animal montado pela gentil amazona não se via a impaciência fogosa, a vivacidade sôfrega, que sem dúvida ressumbraria no filho da raça brasileira, apesar de muito afastado de sua primitiva estirpe árabe. O lindo isabel, sentindo a doce pressão das rédeas colhidas pela mão da senhora, estacara imóvel, com a firmeza correta de uma posição acadêmica. As pernas lançadas pisavam o chão com rígida elegância; a cauda e a crina conservavam a artística ondulação que lhes imprimira a mão do escudeiro; a cabeça erguida com arrogância inclinava-se ligeiramente para despedir o olhar oblíquo do orgulho desdenhoso.
Pitt, o grande Pitt, parando no meio de um discurso eloquente, ao influxo da súbita inspiração de um epigrama, que seu lábio sarcástico ia desferir contra Fox, devia ter no parlamento inglês aquela atitude soberba.
Se a linda moça ficasse ali horas, creio que o seu impassível cavalo não daria sinal de impaciência, nem levantaria a unha aristocrática para escarvar o chão. Podiam também as moscas impertinentes pousarem na anca; ele não se preocupava com a ralé. Apenas, muito importunado, agitaria o corpo com um movimento semelhante ao do fidalgo que levanta os ombros em sinal de tédio.
Eis o quadro original que Ricardo viu de relance. O vulto da moça, esclarecido por um raio do sol coado entre a folhagem, se estampava no fundo azul, com vigor de colorido e animação de tons admiráveis. Através da névoa sutil que há pouco envolvia seu espírito, o desenhista podia supor um instante que via uma paisagem de Delacroix através da ilusão diáfana de um diorama.
Chegando-se ao arbusto para examinar-lhe a flor, não reparou o moço que, seguindo por dentro do mato, se aproximara do caminho no lugar onde este fazia uma curva. Deitara-se pois voltando costas ao trilho, que lhe ficava a duas braças de distância.
A linda amazona, que vinha ao passo do animal, descobriu o solitário passeador, e pressentiu nele algum desses eternos sonhadores que se chamam poetas ou artistas: gente por quem as mulheres têm o mesmo fraco dos meninos pelas bolhas de sabão; cousa para se ver um instante, enquanto brilha.
Disfarçando a sua indiscrição com o pretexto de esperar alguém que a acompanhava, fez a amazona parar o animal. O vento, volvendo as folhas do álbum, mostrava as aquarelas, que os olhos curiosos tentavam espiar, enquanto a mão afastava o longo véu cor de havana. Esguardando os desenhos, não esquecera a moça o artista que, entregue a seus pensamentos, murmurava palavras soltas.
Quando o viu beijar com ardor, uma e muitas vezes, a pequena flor agreste, não se pôde conter, e deixou escapar-se a risada harmoniosa, que ainda se desfolhava em sua boca travessa, como uma rosa desabrochada naquela manhã. Debalde quis ela, pousando nos lábios o cabo de madrepérola do chicote, trancar aquele cofre de pérolas e rubis: as joias se desfiavam rorejando as melodias de uma voz suave.
O riso fresco de uma linda boca, ainda quando borbulha dele alguma malícia, é sempre doce e saboroso. Por isso Ricardo, apesar de reconhecer que a moça ria-se dele, em vez de zangar-se, riu-se para ela.
O véu caiu imediatamente, ocultando em uma nuvem espessa o rosto encantador. A uma vibração da rédea, o soberbo isabel desatou o passo elegante em um trote largo, de suprema correção hipiátrica. O quadro arrebatador se tinha apagado de repente, deixando a tela azul erma da imagem sedutora.
Em compensação porém outro quadro mais cheio desenhou-se no claro do arvoredo. Era formado por uma inglesa gorda, de meia-idade, dessas mulheres que teimam em não envelhecer, e por um português magro, desses homens que aos quarenta anos envelhecem sem cerimônia.
Estas duas criaturas eram o epigrama vivo uma da outra. Montada a cavalo, com um chapéu de abas enormes, a inglesa parecia, relevem a comparação, um queijo londrino posto em prato alto e coberto com a tampa de cristal. O português, esguio e curvado sobre a mula que o levava, com um chapéu afunilado, era a perfeita imagem de uma salsicha assada num espeto.
Para que o contraste fosse perfeito, a mulher falando ao homem, estropiava o português de uma maneira horrível; e o homem, escutando-a atentamente como se a compreendesse, arranjava de vez em quando no fundo da garganta um grunhido que tinha a pretensão de ser um yes, como uma careta tem a pretensão de ser um sorriso.
Ricardo vendo o segundo painel sentiu na vista uma sensação igual à do paladar que, saboreando a polpa deliciosa de um cambucá, sentisse de repente o gosto do pepino. Fechou os olhos enquanto o mútuo epigrama em carne e osso passava, acompanhado por um pajem de libré.
Um novo gorjeio de riso melodioso derramou-se pela solidão; porém Ricardo não ouviu mais do que um eco remoto.
— De que se ri, menina? perguntou a mestra em inglês. Why do you laugh, baby?
— Bonito romance, Mrs. Trowshy! respondeu a moça na mesma língua.
— Que título tem?
— Título!... replicou a moça rindo. Não está escrito ainda! Se agora mesmo eu vi o primeiro capítulo!
— Não entendo.
— Ande lá, Mrs. Trowshy! E a senhora bem caladinha!...
— Mas o que é?
— Não viu um moço que estava recostado na grama ao lado do caminho?
— Onde?... Não vi nada!
— Sim? Não me engana! Pois o moço tinha uma flor na mão, creio que era um girassol, e pensando que eu não o via, ou talvez que era outra pessoa, dava tais beijos na flor, que de cada beijo comia um pedaço.
— Oh! oh! engraçado! exclamava a mestra com um riso puro cockney.
— Espere; o mais interessante é que ele não cansava de dizer enquanto beijava o seu girassol: My love, my soul, my darling Harriot, my pretty Mrs. Trowshy!
— Baby, baby!... repetia a mestra afogada em riso.
O português não entendera meia palavra do diálogo travado em inglês; mas ele julgava que, sendo incumbido de acompanhar a moça e a mestra na qualidade de criado grave, devia compor-se à feição daqueles de quem estava constituído a sombra.
— Você tem ideias, menina!
— É sério, Mrs. Trowshy. Palavra que vi o moço. E a senhora também; não disfarce.
A mestra voltou-se gravemente para o criado, e com os dentes cerrados para destrinçar as palavras portuguesas, como se fossem cabeloiro, disse mais ou menos isto:
— Senhor Daniel, nós ver young gentleman?
— Iuh!... iuh!... iuh! respondeu o Sr. Daniel que ficara em branco.
— Não disse? exclamou a moça desatando a risada com extremo prazer.
— Iuh!... iuh!... fez a mestra arremedando o português. Que quer dizer iuh?...
Neste momento um cavaleiro a galope assomou na curva do caminho, e encontrou-se de frente com a moça e sua comitiva. Era Fábio que voltava do seu passeio gorado; ao avistar o grupo, moderou o andar do animal para melhor examinar as pessoas, com especialidade a gentil amazona.
Cumprimentou respeitosamente a moça, que retribuiu-lhe com uma inclinação da fronte, bastante graciosa para revelar a fina educação, mas tão reservada e altiva que não permitia a quem a recebesse dirigir-lhe uma palavra, ou aproximar-se.
O Galgo e o formoso isabel também se cortejaram: o cavalo brasileiro, vivo, ardente e prazenteiro, enfreando-se garboso e soltando um ligeiro nitrido de prazer; o cavalo do Cabo, com o cumprimento protetor que um ministro enfatuado se digna deferir a um deputado novel.
Como o jovem deputado, o jovem corcel, vendo aquela fatuidade, sentiu certo prurido na pata, mas pelo respeito ao cavaleiro que o montava, pela decência devida à boa sociedade, e sobretudo pela educação que lhe dera o dono, desprezou a arrogância do colega.
— É este o moço, menina? perguntou a inglesa motejando.
— Não, Mrs. Trowshy. Este é outro: é rival do primeiro, replicou a moça. Não viu que cumprimento lhe fez? Creio que teremos duelo! É como há de acabar o romance!
E o riso que se escondera nas covinhas da face, quando se aproximara um estranho, voltou de novo ao lábio da moça.
— Hop! Hop! exclamou ela, desaparecendo em um tempo de galope.
A pouca distância, Fábio tendo apressado a marcha do animal, ouviu uma voz sua conhecida que recordava à surdina um tema da Norma.
— Ainda estás por cá, Ricardo? disse ele. Parece que não te lembras do almoço?
Ricardo, que estava embrulhando os lápis e fechando o álbum para ir-se, ergueu a cabeça surpreso.
— Oh! E o piquenique?
— Ora! Não me fales! Os tais sujeitos fiaram-se uns nos outros, e afinal querendo ser muito espertos ficaram todos logrados, e me lograram a mim. Apenas percebi a cousa, mosquei-me a toda pressa para não perder o magro cafezinho da tia.
— E vieste num galope desesperado? disse Ricardo passando a mão pelos peitos do cavalo, umedecidos de suor, assim como o ventre.
— Qual? Isso é calor: o sol está muito quente e o Galgo é tão fogoso! Sua por nada.
— Eu creio que tu ainda és mais fogoso que ele, Fábio! disse Ricardo ganhando o caminho na direção em que viera.
Fábio apeou-se, e atirando as rédeas ao pescoço do Galgo, seguiu ao lado do amigo.
— Viste quem passou aqui?
— Uma moça? disse Ricardo sorrindo.
— Conheceste?
— Não.
— É a Guida!... A filha do Soares.
— Soares... Um ricaço?
— Um milionário, um bezerro de ouro, uma espécie de Midas, que tem o dom de transformar tudo em dinheiro.
— Começando pela própria consciência? observou Ricardo.
— Ah! Ele era capaz de vender-se aproveitando a alta, para comprar-se depois na baixa, ganhando alguns contos de réis na operação.
— Já vejo que é uma grande cabeça em finanças. É pena que não se aplicasse à política; seria o criador de uma situação!
— Mas vem cá, Ricardo. No fim de contas hás de confessar que isso de consciência é traste de pobre. Eu a comparo a uma mala de couro, ou uma canastra de pau. Numa casa rica seria sumamente ridículo!...
— Queres então dizer...
— Entendo que ninguém pode enriquecer, deixando-se levar pelos conselhos da tal velha rabugenta, que se agasta com a menor cousa e de tudo se aflige.
— Pois eu penso ao contrário que a consciência é indispensável à riqueza, justamente para contê-la e coibir os seus excessos. A pobreza tem para reprimir-se a própria fraqueza; mas a opulência, servida pela justiça e até cortejada pela lei, carece de um freio, a fim de não precipitar-se: esse freio é a consciência; não há outro.
— Bela teoria!... A moral prática é muito diferente!
— Não decores com este nome a tolerância do abuso e a transação cômoda que muita gente faz entre o seu interesse e o seu dever. A moral prática não pode ser outra cousa, senão a virtude nos atos da vida. Seriamente, me entristeço, Fábio, quando te vejo defender o que no fundo de tua alma reprovas, estou bem certo!
— Foi um gracejo!
— O ouro é a pedra de toque da consciência; o prumo que lhe sonda a profundidade. Creio que sou um homem honesto; mas não tenho a certeza disso, porque ainda não me vi à prova, entre os escrúpulos da probidade e os lucros certos de uma ação menos digna.
— Pois eu confio mais em ti, do que tu mesmo. Se por acaso o tal milionário, o Soares, te oferecesse vinte contos de réis para comprometeres a causa de alguns dos teus quatro clientes de meia-cara, estou convencido que o repelirias com indignação!
— Também creio, replicou Ricardo sorrindo. Entretanto tu sabes o que vale esta soma para mim, para nós, Fábio.
— É verdade! Quando eu me lembro que para sermos felizes bastava-nos o que esse Midas ganha enquanto dorme a sesta!
— Exageras também!
— Dizem que ele tem um rendimento anual de mais de duzentos contos, o que dá vinte e cinco mil-réis por hora. Ora ele costuma dormir duas horas, e três quando janta feijoada; portanto aí tens, cinquenta mil-réis, o que não ganharás, meu Ricardo, nem quando fores ministro e senador.
— Estás bem servido!
— Hás de ser! Mas vê o que é este mundo. Viste o cavalo do Cabo em que ia a Guida, um lindo isabel?
— É um bonito animal.
— Pois enquanto nós, dois cidadãos brasileiros, duas esperanças da pátria, vamos almoçar o magro café com pão, o tal fidalgo antes de sair a passeio já saboreou um pau de chocolate fino.
— Chocolate? Ora, Fábio!
— Não é brincadeira; chocolate marquis! Ah! tu não conheces a Guidinha. Um dia o tal cavalo do Cabo, que é delicado como um rapazinho da moda, constipou-se aqui na Tijuca, numa manhã de chuva, e sobreveio-lhe uma tosse. A menina entendeu que o seu querido isabel estava sofrendo do peito, e que portanto devia tomar chocolate todas as manhãs.
— É luxo que o nosso Galgo não lhe inveja.
— Sim; mas o teu Galgo chegando à casa, se quiser enxugar o corpo, há de rolar-se no chão; não tem como o fidalgo a seu serviço um criado, melhor pago do que dois advogados do nosso conhecimento. Esse criado, depois de enxugar-lhe o corpo com uma toalha de riço, veste-lhe uma camisa de brim de linho, mais fino do que o de minha calça. Isto quando o isabel não transpira; porque nesse caso vem uma garrafa de vinho para esfregar-lhe o pelo; vinho generoso, como nós só bebemos uma vez por outra, nalgum banquete.
— Admira-me que andes ao fato de tudo isto!
— Compreendes! Moça bonita e rica!...
— É uma celebridade, como a Lagrange ou a Ristori; pertence ao público, que tem o direito de saber as particularidades de sua vida.
— Justamente; são os próprios amigos da casa que referem estas cousas como prova da graça e espírito da moça. Queres saber uma que me contaram há poucos dias?
— Dás tanta importância a esses caprichos?
— Rio-me; e acho uma fortuna quando os ricos nos divertem, e não nos afligem como tantas vezes sucede. Mas ouve, que é engraçado.
— Conta.
— Foi com o doutor... Um dos primeiros médicos da corte... Esquece-me agora o nome... o doutor...
— Não importa.
— Pois bem. Uma noite, seriam duas horas da madrugada, chovia a cântaros, quando batem-lhe à porta. Era um chamado a toda a pressa para a casa do Soares; a carta era instante; o carro estava à espera. O velho doutor consultou todas as juntas do corpo para ver se não tinha algum travo de reumatismo, que o desculpasse com o capitalista e a consciência. Achando-se perfeitamente lépido, não teve remédio senão erguer-se e partir.
— Fez sua obrigação.
— Sem dúvida. Chegando o doutor foi recebido pela Guida...
— A filha?
— Sim; a qual muito aflita comunicou-lhe que o incomodara àquela hora da noite para ver Sofia, que estava muito mal, a decidir, de uma moléstia de coração. O doutor conhecia melhor o dinheiro do que a família do capitalista; não sabia pois de quem se tratava; pensou porém que devia ser uma pessoa importante da casa. Acompanhou a moça a uma alcova frouxamente iluminada por uma lamparina, onde havia um leito envolvido em alvos cortinados de filó. O doente parecia uma criança; estendendo a mão para tomar-lhe o pulso, sentiu o médico um pelo macio; aproximou a vela e então distinguiu perfeitamente uma cachorrinha, deitada em travesseiros de cetim e coberta com uma colcha de damasco.
— Será exato isto?
— Asseguro-te que é. Faze ideia do como ficou o doutor, arrancado à sua casa à uma hora da noite, e rebaixado do seu pedestal de médico do que há de mais ilustre e elevado na corte, a médico de cão. Se a graça fosse de qualquer outra pessoa, ele decerto não a suportaria; mas era de uma moça bonita. O velho assentou que o melhor meio de sair-se do caso era levá-lo em tom de galhofa... “Ah! É sua maninha?” disse ele. Examinou com uma gravidade cômica o doente, pediu papel e receitou neste gosto: “Récipe: Uso interno: Maçada — 2 oit. Capricho de criança — 1 onça. Misture e faça infusão para tomar às colheres de hora em hora. Uso externo: Gargalhada — 3 oitavas. Paciência — 1 libra. Faça uma fomentação. Para a Sr.a D. Sofia Soares. Dr. F.” Entregou a receita à menina, e assegurou-lhe que D. Sofia se restabeleceria brevemente.
— Era pachorrento o doutor.
— Que havia ele de fazer; dar o cavaco? Mas escuta o resto. É um romance. A Guida mandou a receita à botica da casa. Podes bem avaliar do como ficaria embaraçado o boticário para aviá-la: nunca na sua vida tinha manipulado semelhantes drogas. Mas a menina fez-lhe saber muito positivamente, que se não mandasse os remédios receitados pelo médico perderia a freguesia. Nestes apertos passou-lhe o doutor pela porta; contou-lhe o que sucedia; o velho desatou a rir. “Olhe; maçada, é qualquer amargo. Capricho de menina, umas cócegas, como as que produz o súlfur. Gargalhada, um pouco de muriato no pelo da cachorrinha, e verá que boas risadas ela dá. Paciência, isso é um emoliente, farinha de linhaça.” O boticário aproveitou a lembrança e aviou a receita. Se a Sofia tomou o remédio não sei; mas ficou boa.
— Então é mais provável que não tomasse.
— Estou por isso. Tempos depois aparecendo o doutor em sua casa, a Guida exigiu a conta da visita feita à Sofia. O velho, julgando-se autorizado pelos sessenta anos e pelo gracejo da menina, disse-lhe que o preço era um beijo. Nesse momento chegava à porta a mestra, uma inglesa gorducha e míope.
— Naturalmente uma que vi passar...
— É a tal. A Guida corre a ela; inventa de repente uma história da chegada imprevista do marido, uma alegre surpresa; e acaba mostrando-lhe o vulto do doutor, que não entendia a conversa por ser em inglês. A mestra precipita-se como uma bala de canhão, agarra-se ao pescoço do velho, e cobre-o de uma chuva de beijos sonoros e cheios, verdadeiros beijos de lei, pesando 24 quilates cada um.
— E o doutor?
— Quando se pôde desvencilhar dos braços e da boca da gorducha, viu a Guida que ria de sua triste figura: “Está vendo, doutor, como eu pago generosamente as minhas dívidas. O senhor pedia um beijo, e leva algumas dúzias deles.” O velho limpava a cara, enquanto a inglesa esfregava os beiços como se lhes quisesse tirar a pele. Não achas engraçada a anedota, Ricardo?
— Acho que essa moça tem pouco juízo.
— Juízo tem ela: mas é juízo de moça rica, muito diferente do juízo de moça pobre. O velho Soares é uma máquina de fazer dinheiro; vive no escritório. A mulher, esta suporta a sua opulência como um cativeiro. Os outros filhos ainda estão no colégio. Quem há de usar daquela riqueza e da posição que ela dá senão a Guida?
— Podia usar de uma maneira mais séria e mais útil.
— Não seria então uma criança de dezesseis anos?
— Mas é justamente por não ser uma criança que eu a censuro. A travessura aos dezesseis anos é inocente; não tem a malícia das comédias de mau gosto representadas por essa moça.
Fábio voltara-se cuidando ouvir um rumor. Os dois amigos conversando ao lado um do outro tinham deixado a estrada e tomado um atalho que descia pela encosta da montanha.
— No fim de contas, assim deve ser, acrescentou Ricardo. Ela é muito bonita e muito rica; deve ter algum defeito; são os espinhos da rosa, como diria um poeta, ou o azinhavre do ouro, como dirá naturalmente o marido que lhe desfrutar o dote.
Conversavam os dois amigos de coração aberto, em voz clara, como quem não se receia de ouvir o eco de seu pensamento; não se lembrando que as folhas das árvores têm olhos, e as brisas ouvidos sutis.
Expiravam as últimas palavras quando soaram distintamente no chão batido do caminho, que lhes ficava sobranceiro, passos de animal. Erguendo os olhos viram a linda amazona que passava lentamente de volta de seu passeio.
Não abaixou a cabeça nem voltou o rosto; mas um olhar cintilou sob o véu espesso, como a luz de um relâmpago, e caiu sobre os dois moços, apagando-se logo.
— Terá ouvido? perguntou Fábio rindo.
— É provável! disse Ricardo com indiferença.
— Nesse caso estamos comprometidos.
— Por que razão?
— Tinha uma ideia. O Soares está passando o verão aqui na Tijuca. Sabes, assim no campo, tomam-se relações com muita facilidade. Queria ver se nos apresentavam na casa.
— Que lembrança! Havíamos de fazer uma bonita figura no meio dessa gente que arrota ouro, nós dois pobretões!
— Talvez a riqueza pegue como a lepra!
— Pega; quando se tem mau sangue.
— Mas, fora de graça: é preciso fazermos relações, adquirir amigos, do contrário nada alcançaremos.
— Não digo o contrário.
Continuando a conversa, chegaram os dois moços a um pequeno vale escondido entre duas pontas da montanha. Um escasso ribeiro descia em cascata rumorejando por entre as pedras, e serpejava à sombra das bananeiras.
No meio do vale havia uma pequena casa cercada por algumas fruteiras.
Por entre duas linhas de cafezeiros aparecia a porta da casa; e em pé na soleira, uma velhinha de cabelos brancos em carrapito, com vestido de chita amarela e um lenço vermelho de Alcobaça, cruzado ao peito.
Era D. Joaquina Sampaio, tia de Fábio e senhora da pequena propriedade. Passava ela entre todos os parentes como rica, porque possuía esses dois palmos de terra e uns três escravos. Com a sua rocinha, como ela lhe chamava, ia vivendo, pobremente sim, mas tranquila e feliz.
Tudo ali era velho: a casa, as árvores, a dona e os escravos. A mocidade só brilhava no renovo das plantas e no semblante dos dois amigos, que passavam habitualmente o domingo em companhia da velha.
— Vocês hoje não têm muita fome! disse D. Joaquina apenas avistou os dois moços.
— Ao contrário, minha tia, trago duas fomes em vez de uma, respondeu Fábio.
— Pois não parece. Já o sol está entrando pela casa, replicou a senhora mostrando a réstia no pavimento da sala.
— É tarde com efeito! disse Ricardo.
O moço levara maquinalmente a mão ao bolso do colete para tirar o relógio; mas reprimiu o movimento involuntário, enquanto um sorriso triste lhe fugia dos lábios. Tivera há dias necessidade de pagar algumas dívidas impertinentes. Era preciso vender o cavalo ou o relógio; preferiu desfazer-se deste último traste. Que lhe importava saber com exatidão as horas, se elas não lhe traziam nenhuma felicidade?
O almoço era frugal como de costume. Café com leite muito bem feito, três pães, um para cada pessoa, e excelentes bananasmaçãs. Todos os domingos punha-se invariavelmente no meio da mesa uma grande manteigueira de louça azul, como era o resto do aparelho. Fábio nos primeiros tempos destampava sem cerimônia a manteigueira e empastava a fatia; mas acabou-se a primeira porção e só restava a crosta ligeira que fica aderente às paredes da louça. Ricardo fez-lhe compreender que não deviam se tornar pesados à excelente senhora, cuja hospitalidade era oferecida de tão bom coração. Desde esse dia a tampa da manteigueira caiu como a lousa de um túmulo, para não mais se abrir. Posta no meio da mesa ela não era mais do que um símbolo ou um emblema; atestava a decência do almoço, pois na opinião da dona da casa não havia mesa capaz sem manteiga.
No domingo em que estamos, D. Joaquina fez uma surpresa a seus hóspedes. Havia quatro ovos quentes.
— Oh! exclamou Fábio alegremente. A Nanica brilhou desta vez.
— Estes sobraram de uma dúzia que estou guardando para tirar uma ninhada.
— É verdade, minha tia. Havemos de fazer uma sociedade para ficarmos ricos de repente. Conheço um americano que inventou uma máquina de chocar ovos...
— Já sei; para tirar os pintos sem galinha.
— Ora! Isto não vale nada. A minha máquina é cousa mais sublime; olhe, minha tia: mete-se um ovo, um ovo só. Três dias depois abre-se a porta da máquina, e enche-se a capoeira de galos, galinhas e frangos.
— Grandes?
— Pois então? Manda-se vender à cidade a primeira capoeira. Mas como as galinhas antes de saírem da máquina puseram lá os ovos, e estes já estão feitos galinhas, é um não acabar!
A velha ria-se às gargalhadas das pilhérias do sobrinho; e assim iam temperando o almoço com o sal da alegria e do prazer, que é sem dúvida o melhor adubo.
A ligação íntima e sincera que havia entre os dois moços era mais do que amizade, era uma afeição fraternal, que o casamento de Fábio e Luisinha devia mais tarde consagrar. Pela idade, como pela gravidade do caráter e superioridade da inteligência, Ricardo exercia sobre o amigo a doce autoridade de um irmão mais velho: a autoridade do exemplo e do conselho.
Estas relações tinham começado havia seis anos na cidade de São Paulo, onde habitava Ricardo com sua família. No ano em que o talentoso estudante ia concluir o seu curso e formar-se, Fábio, muito mais moço, matriculou-se na faculdade. Apesar dessa circunstância que os devera separar logo no princípio de seu conhecimento, a amizade estreitou-se entre os dois. O meigo sorriso de Luisinha foi naturalmente o fio dourado que teceu essa mútua afeição.
Havia três meses que Fábio se tinha formado. Para ele o prazer que sempre desperta esse dia no coração do estudante, veio travado de saudades. Sua pobreza não lhe permitia realizar o voto mais querido de sua alma; tinha de separar-se de Luisinha, para recolher à corte, ao seio da família. Ia trabalhar na esperança de adquirir uma posição modesta, mas decente, para oferecer à companheira de sua existência. Os dois corações sofreram com a ausência, mas resignaram-se.
Ricardo de seu lado reconhecera que em São Paulo não poderia, apesar de seu talento, obter os recursos indispensáveis para assegurar o futuro da numerosa família que pesava sobre ele, depois da morte de seu pai. Aproveitando a ocasião, veio com Fábio para a corte tentar fortuna.
Estabeleceram-se ambos como advogados. Obtido o escritório, posto o nome na porta e feitos os anúncios, esperaram pelos clientes. Nos três meses decorridos, conseguira Ricardo quatro causas gratuitas, que por grande obséquio lhe arranjara um procurador. Apenas lá de tempos a tempos, uma inquirição, ou algum requerimento, ia ajudando a compensar as despesas.
Os dois amigos suportavam sua pobreza nobremente. Às vezes Fábio, mais desabusado, sustentava umas ideias materialistas, como aquelas que exprimira durante o passeio; mas Ricardo, que não transigia em matéria de escrúpulo e honestidade, combatia tais aberrações do espírito de seu amigo, e destruía a influência nociva que o mal poderoso e laureado exerce sobre as almas cuja têmpera não é bastante forte para resistir-lhe.
A semana passava-se na expectativa ilusória dos clientes que não vinham, ou na meditação de um estudo obrigado e sem estímulos. No sábado, os dois amigos tomavam a gôndola de Andaraí, com o fim de aceitar de D. Joaquina uma hospitalidade oferecida com o maior gosto e satisfação. Para a excelente senhora, enterrada viva naquele retiro, a chegada de Fábio e seu companheiro era uma visita do mundo àquela solidão, donde não saía senão de ano em ano. O contacto daquela mocidade a remoçava; ela escutava com admiração a palavra inspirada do talentoso advogado, ou ria das graças do sobrinho.
Ricardo possuía em São Paulo um cavalo, o Galgo, ao qual muito se afeiçoara. Mudando-se para o Rio de Janeiro não se animara a vendê-lo; trouxe-o consigo. Ignorava quanto é dispendioso na corte o trato de um animal. Sem dúvida seria obrigado a separar-se do Galgo, se Fábio não pedisse à tia para conservá-lo na sua rocinha da Tijuca. Assim pouco se aproveitava o dono do seu cavalo; porém obtinha conservá-lo, esperando melhores tempos.
Os dois amigos partilhavam igualmente os serviços do cavalo, e o Galgo parecia compreender essa comunidade, porque os considerava a ambos como senhores, embora respeitasse mais a Ricardo.
No sábado, quando subiam a serra, um por seu turno montava o Galgo, enquanto o outro ia a pé com a fresca, até que o cavalo tendo chegado à casa, vinha-lhe ao encontro para poupar-lhe um resto de caminho. Na segunda-feira pela manhã, voltando para a cidade, revezavam igualmente.
O domingo era repartido da mesma forma: um desfrutava o passeio da manhã, o outro o da tarde. Se pois o Galgo descansava durante os quatro dias da semana, nos outros fazia sofrível exercício.
Fábio, de gênio descuidado e folgazão, às vezes abusava, fazendo proezas com o Galgo; mas Ricardo coibia as travessuras, moderando o ardor do amigo. Disto nunca resultava a menor desconfiança entre ambos. Nessa boa e verdadeira amizade, um punha em comunhão o sorriso, o outro o conselho; um era a alegria e a esperança, o outro era a consolação e a fé.
Depois do almoço, enquanto a velha foi rezar, como de costume, Fábio tomou a espingarda, Ricardo, sentando-se à janela, abriu o álbum e entreteve-se a desenhar. Primeiramente coloriu a figura do pequeno arbusto, parte de memória, e parte à vista do galho que tinha quebrado.
Enquanto se ocupava com esse trabalho, a mente repassava as recordações da cena recente e da posição em que o surpreendera a moça a cavalo; com essas lembranças vinham de envolta as saudades das pessoas a quem amava, e de quem se achava ausente. Quando as veria para contar-lhes todos esses pequenos incidentes de sua vida, para referir-lhes essa longa história de uma esperança tão ansiada!
Como não se haviam de rir aqueles entes por quem se estremecia, quando soubessem dos beijos ardentes que ele dera na florinha agreste, e da risada desdenhosa que de repente o chamara à realidade!
Passou-lhe pela ideia traçar o quadro de Guida como ele a vira. Sua família teria curiosidade de conhecer essa moça de que Fábio naturalmente havia de contar as travessuras. Insensivelmente o lápis começou a traçar no papel o primeiro e leve esboço do quadro que lhe ficara gravado no espírito plástico.
Ricardo nunca aprendera desenho com mestres da arte. Sentira em si a intuição da forma, e cultivara essa disposição natural, guiado pelas próprias observações. Não teve necessidade de que lhe ensinassem as regras da perspectiva, pois as tinha diante dos olhos nas paisagens que se desdobravam pelas lindas várzeas de São Paulo.
Deus criou três linguagens para o artista: a linguagem da forma, a pintura; a linguagem dos sons, a música; e a linguagem da palavra, a poesia, de todas a mais sublime porque fala não só ao coração, como à inteligência.
Ricardo era um poeta da forma; ele fazia versos com as cores. Suas impressões, debuxava-as sobre o papel em imagens, retratadas ao vivo. Copiava-as da memória, onde ficavam estampadas como em uma lâmina fotográfica; depois a imaginação bordava a lápis com essas recordações algum soneto ou alguma ode, corretos no desenho, brilhantes no colorido.
Os contornos gerais do quadro já estavam delineados; via-se em traço quase desvanecido a moldura da folhagem entrançada de grinaldas amarelas, a estampa do soberbo cavalo isabel, e o lindo perfil da amazona cujo véu se enrolava ao sopro da brisa.
Sentindo que Fábio se aproximava, Ricardo voltou a página do álbum, e disfarçou esboçando figuras grotescas em uma folha solta. Se o amigo visse o quadro, adivinharia quem era a moça; seria necessário referir a cena dos beijos. Ora, Ricardo tinha vexame de contar essa infantilidade de seu coração; e sobretudo a Fábio, que ele considerava como um irmão mais moço. À sua mãe não duvidaria contar, em um momento de ternura, e depois de decorrido algum tempo. Um coração de mulher compreende certas delicadezas, que parecem ridículas ao espírito de um homem; ainda mais quando esse homem é um moço de gênio prazenteiro, como era Fábio.
O resto do dia passou como de costume, repartido entre a conversa, a leitura, o banho, o jantar, e o jogo da paixão de D. Joaquina, a bisca-cega.
À tarde, Ricardo, a quem tocou a vez, arreou o Galgo e foi dar um passeio, enquanto Fábio saía a pé sem destino, em busca de alguma companhia para passar a noite.
Seriam 6½ horas da tarde. Apenas um doce reflexo de ouro tingia o cume das mais altas montanhas. A suavidade do crepúsculo derramava-se na atmosfera. É encantador esse adeus do dia quando se despede da formosa serraria da Tijuca. O céu, despindo o fulgor da luz, mostra a limpidez e transparência do puro azul, seio infindo onde a alma se embebe, como o filho no colo materno.
Ricardo vinha entregue ao enlevo da contemplação da tarde, quando ao dobrar uma volta do caminho achou-se diante de um rancho de moças, que andavam passeando. Entre todas distinguia-se, pelo talhe esbelto e gracioso, uma, vestida de seda escocesa, desde a botina até as fitas do cabelo.
Diante dela corria, saltando e latindo, uma cachorrinha felpuda, muito alva, com brincos de ouro e uma coleira de veludo; mas apenas percebeu o cavaleiro, atirou-se ao Galgo para mordê-lo no jarrete.
Ricardo, tendo reconhecido a Guida, supôs que a cachorrinha era a mesma da história contada por Fábio, a Sofia. Mais aborrecido ficou ainda com o impertinente animal, que investia furioso contra as pernas do cavalo.
A situação nada tinha de agradável; o caminho era estreito; de um lado o despenhadeiro, do outro a montanha cortada a pique. O Galgo, fogoso, e irritado com a insultante ameaça do cão, encrespava-se, lançando fogo pelas narinas. Ricardo, excelente cavaleiro, conseguiu dominar o primeiro ímpeto, e tocando no chapéu, disse para as moças que se tinham posto ao abrigo subindo a ribanceira da montanha:
— Acho bom chamar o cãozinho!
A Guida deu um estalo com os dedos:
— Cá, Sofia.
— Deixe! disseram as outras rindo.
Pensavam que Ricardo tinha medo do cavalo, e queriam divertir-se com a queda. Não se lembravam, que naquele lugar, à borda de um despenhadeiro, podia ser fatal.
Sofia ouvira a voz da senhora; mas com o seu privilégio de cão mimoso desobedeceu; e investiu contra o Galgo com maior sanha. Ela estava acostumada àquele brinquedo; já tinha mordido o jarrete de muitos cavalos, atirando ao chão os cavaleiros, para divertimento da senhora e suas amigas.
Ricardo, vendo a inutilidade de sua recomendação, deu largas à cólera do Galgo. O brioso cavalo juntou, e atirando-se para a frente de um salto, arremessou o couce. A cachorrinha foi cair no fundo do precipício, sem tempo sequer de soltar um gemido de dor.
— Sem dúvida morreu! disse uma das moças.
— A culpa é dela. Se não fosse tão teimosa! observou Guida.
Passando pelas senhoras, Ricardo cortejou:
— Queiram desculpar, minhas senhoras; este cavalo é um provinciano; ainda não tem maneiras cortesãs.
À noite, antes de dormir, Fábio dava risadas gostosas ouvindo o episódio do passeio.
Decorreu mais de um mês.
Durante esse tempo Ricardo passou com seu amigo três domingos na Tijuca. De cada vez o acaso o fizera encontrar a Guida quando mal pensava.
A primeira vez foi na manhã do domingo que seguiu-se às cenas referidas.
Ricardo saíra no Galgo a passeio. Tomando para o lado da cascatinha, que as chuvas dos últimos dias tinham enriquecido, lembrou-se o moço de subir até a Floresta, um dos mais lindos sítios da Tijuca. O nome pomposo do lugar não é por ora mais do que uma promessa; quando porém crescerem as mudas de árvores de lei, que a paciência e inteligente esforço do engenheiro Archer têm alinhado aos milhares pelas encostas, uma selva frondosa cobrirá o largo dorso da montanha, onde nascem os ricos mananciais.
Viva imagem da loucura humana! Refazer à custa de anos, trabalho e dispêndio de grande cabedal, o que destruiu em alguns dias pela cobiça de um lucro insignificante! Aquelas encostas secas e nuas, que uma plantação laboriosa vai cobrindo de plantas emprestadas, se vestiam outrora de matas virgens, de árvores seculares, cujos esqueletos carcomidos às vezes se encontram ainda escondidos nalguma profunda grota. Veio o homem civilizado e abateu os troncos gigantes para fazer carvão; agora, que precisa da sombra para obter água, arroja-se a inventar uma selva, como se fosse um palácio. Ontem carvoeiro, hoje aguadeiro; mas sempre a mesma formiga, abandonando a casa velha para empregar sua atividade em construir a nova.
Ricardo pensava pouco mais ou menos neste sentido, enquanto ganhava a ponte da Cascatinha, com intenção de subir até a Floresta. Mas essas preocupações se desvaneceram completamente diante do quadro arrebatador que se oferecera a seus olhos.
Brancos lençóis de espuma se desdobravam pelas escarpas do rochedo, como as pregas de alvo manto flutuando sobre as espáduas de Agar, a Africana. A vegetação se debruçando de um e outro lado, derrama sobre a cachoeira uma sombra doce, que torna mais negra a pedra e mais cândida a espuma.
Há cascatas muito mais ricas e abundantes do que essa, não só na grande massa das águas, como na vastidão e aspereza dos penhascos. Têm sem dúvida aspecto mais soberbo e majestoso; inspiram n'alma pensamentos mais graves e sublimes.
A Cascatinha da Tijuca, porém, prima pela graça; não é esplêndida, é mimosa; em vez da pompa selvagem respira uma certa gentileza de moça elegante; bem se vê que não é uma filha do deserto; está a duas horas da corte, recebe frequentemente diplomatas, estrangeiros ilustres e a melhor sociedade do Rio de Janeiro.
Assim não se despenha ela com a fúria de uma serpente, mas com a indolência com que uma senhora da moda se derreia no recosto do divã. Sua voz não é um trovão, mas um rumorejo que embala docemente o coração. Perto dela sente-se no ar o hálito fresco das águas que se esfrolam, e não a constante neblina produzida pelos borbotões que se desfazem em pó com a violência do choque.
O jovem advogado tinha contemplado muitas vezes a Cascatinha, e até já possuía em seu álbum uma aquarela da formosa paisagem; mas nunca a vira tão abundante d'água, tão enfeitada e casquilha. Projetou voltar a pé, depois do almoço, para tirar outra vista. Assim teria a Cascatinha em traje de festa e em desalinho.
Uma voz soou a pouca distância:
— Oh! Beautiful! very beautiful!
Ricardo estava no centro da ponte, com o cavalo atravessado, para ver de frente a cascata. Conhecendo que outras pessoas se aproximavam fez voltar o animal para dar-lhes passagem. Este movimento colocou-o em face de Guida, que chegava.
A moça tinha o mesmo traje de amazona que no domingo passado; mas em vez de serem de camurça amarela as luvas eram de peau de Suède cor de castanha e o chapéu de palha de arroz com um véu branco. Salvas essas ligeiras modificações do vestuário, que naturalmente escaparam aos olhos do moço, era a cópia viva do quadro, que lhe aparecera à borda do caminho, oito dias antes. A moldura sim, era diferente: os florões dourados dos corimbos da aroeira foram substituídos pela negra e musgosa cercadura do rochedo.
Os olhos de Guida e Ricardo se encontraram.
Reconhecendo-a, o moço envolveu-a com o olhar, um desses olhares ardentes e profundos, que embebem em si os objetos, como um molde, para depois vazá-los dentro d'alma. Olhar de poeta ou de artista, que esculpe na memória as estátuas, os relevos e arabescos da natureza; donde os copia depois a imaginação em poemas, em harmonias, em raios de luz. Esse olhar tem alguma cousa do cinzel que talha, e da lava ardente que se coalha e vitrifica sobre os objetos.
Guida, que trazia nos lábios o sorriso gracioso, perturbou-se, e desviou a vista corando. Pareceu-lhe descobrir naquela expressão estranha do olhar de Ricardo uma exprobração pela cena do domingo anterior.
Conhecendo que tinha vexado a moça, Ricardo arrependeu-se do seu movimento de curiosidade artística. Da última vez que estivera na Tijuca desenhara de memória a cena do seu primeiro encontro com Guida; julgou porém impossível dar à figura da moça os traços da fisionomia encantadora, que ele apenas vira tão de relance. Oferecendo-se essa ocasião de ver Guida de mais perto e demoradamente, quis decorar-lhe as feições.
A delicadeza d'alma do advogado compreendera o acanhamento da moça, embora o atribuísse a causa diferente. Por isso cuidou em afastar-se dali. Fazendo o Galgo voltar sobre os pés, cortejou de longe e subiu na direção da Floresta.
Durante esta rápida cena, Mrs. Trowshy, enlevada diante da cascata, não cessava de expandir a sua admiração em exclamações patéticas, semelhantes às que lhe ouvimos em princípio. A poética imaginação da inglesa quis infundir um raio do seu entusiasmo no companheiro, o nosso conhecido Sr. Daniel; mas perdeu seu tempo: o português era feito de músculo e osso; por conseguinte impenetrável à poesia, como um capote de borracha é impenetrável à água.
Foi no momento de afastar-se, que a inglesa reparou no moço:
— Este não é o sujeito que ia matando Sofia? perguntou em inglês.
— Creio que é!
— Que monstro! exclamou Mrs. Trowshy, com o horror que lhe inspiraria um tigre.
— Ele não teve culpa. Depois é que vi; podia o cavalo atirar-se no despenhadeiro.
— Era bem-feito; para que anda em um cavalo tão fogoso?
— Mas é muito bonito! Não acha, Mrs. Trowshy?
— Oh! Não tem comparação com Edgard!
— Edgard é um cavalo de preço, um cavalo de raça; tem a estampa mais vistosa e elegante; porém acho o outro mais bonito! Olhe a graça dos movimentos. Como é vivo e faceiro! Como brinca! Está-se vendo a alegria nos seus olhos, e no garbo com que move o pescoço.
Guida falava seguindo com o olhar o Galgo que subia o primeiro lanço da estrada.
— Se não possuísse esse lindo isabel, havia de achá-lo magnífico!
— Ora, Mrs. Trowshy! Não é por isso. Acho Edgard esplêndido, incomparável: tudo que a senhora quiser; mas não gosto desta frieza; um cavalo que não sabe brincar, sempre grave e empertigado como um ministro em audiência.
Dobrando o segundo lanço da estrada em zigue-zague, viu Ricardo que a moça tomava a mesma direção; naturalmente ia como ele até à Floresta, ou mais acima ao pico da montanha que tem a forma e o nome de Bico do Papagaio.
Essa coincidência incomodou o jovem advogado. Por quê? Se tivesse de explicar, naturalmente não lhe acudiria a razão, e por uma circunstância muito simples, porque não existia. Com efeito não fora um motivo distinto, suscetível de apreciação, o que atuara em seu espírito; porém unicamente certas repugnâncias que às vezes despertam em nosso espírito a respeito de um fato. É uma espécie de antipatia.
A possibilidade de sucessivos encontros, a facilidade de se verem de longe, subindo os lanços da estrada em zigue-zague e, finalmente, essa comunidade de passeio, embora fortuita, todas essas circunstâncias confusas, indistintas, calaram no ânimo de Ricardo uma súbita contrariedade. Refletiu que a Floresta era distante, e, a não ir de corrida, chegaria tarde para o almoço; ora, passear, para ele, não era correr e sim contemplar.
O resultado dessas reflexões foi apear-se o advogado e puxar o cavalo para uma vereda que vai ter ao cimo da cascata. Aí oculto pela folhagem ouviu o tropel dos animais que passavam. Quando presumiu que já estivessem bem longe, tornou a cavalgar, e descendo o caminho da cascatinha, foi acabar o seu passeio interrompido na bela estrada que vai ter ao Jardim Botânico.
Fábio esperava-o para o almoço, deitado em uma esteira no terreiro da casinha, enquanto D. Joaquina andava apanhando umas goiabas maduras para a merenda. O praticante de advocacia tinha brilhado naquele dia: empregando a manhã na caça de passarinhos, trouxera uma dúzia de rolas, que chiavam no espeto, trescalando perfumes estranhos naqueles lares acostumados às refeições frugais.
O outro encontro fora no mesmo lugar da primeira cena.
Subia Ricardo a pé, e tomara involuntariamente, pela força do hábito, o caminho que seguira da vez passada. Chegando ao ponto onde estivera desenhando sobre a grama, procurou o arbusto, que ainda estava coberto dos seus botões de ouro; apenas duas flores desabrochadas brilhavam sobre o ramo verde-escuro.
Notou o moço que junto à planta estava o chão pisado por casco de cavalo; mas não deu grande atenção a essa circunstância, tão vulgar em um sítio onde frequentemente andam animais soltos.
Abriu o álbum na página em que desenhara a cena do primeiro encontro da moça; e cotejando-a com o sítio, corrigiu alguns traços do arvoredo, não porque eles prejudicassem a beleza do quadro, mas por um capricho de artista. A paisagem era uma cópia e não uma fantasia; queria que fosse o mais exata possível.
Tinha concluído esse trabalho e estava examinando os botões de ouro e as flores abertas, quando repercutiu o tropel de uma cavalgata. Eram com efeito diversas pessoas, senhoras e homens, que iam de passeio rindo e conversando.
Fitando os olhos no caminho, Ricardo viu a Guida, que também o percebera. Ou fosse espanto de Edgard, ou descuido da gentil amazona no governo das rédeas, ou qualquer outra circunstância, o lindo isabel ao passar em frente do moço tinha-se desviado do caminho, penetrando no mato, com direção ao arbusto.
Descobrindo porém o moço, Guida com sua habitual destreza corrigiu o desvio do cavalo, e fustigando-o com um movimento de contrariedade, ganhou a frente da cavalgata, que desapareceu num turbilhão de poeira.
— E a flor, Guida? perguntou uma das moças.
— Não achei!
Ricardo compreendeu então o movimento da elegante amazona e a circunstância que a princípio notara de rastos de cavalo junto ao arbusto; a ferradura inglesa fina e um tanto oval estava denunciando a pata aristocrática de Edgard.
Pensou que a filha do milionário também gostava da linda flor agreste. E quem não se agradaria daqueles aljôfares graciosos? Para ela sobretudo deviam ser de um encanto especial; não tinham a cor do ouro, essa cor sedutora que a natureza destinou para o sol e o dinheiro, os dois clarões que deslumbram, um a vista, outro a alma?
Naturalmente a moça já conhecia a flor antes do primeiro encontro; passando procurava-a com os olhos, quando o descobriu, a ele Ricardo, na posição ridícula de um namorado de novela antiga, beijando o cravo que lhe atirou da janela a dama dos seus pensamentos.
Agora a Guida encaminhara o cavalo para o arbusto a fim de colher um ramo; mas avistando o importuno passeador, desistiu, disparando a galope.
— Esta moça, disse Ricardo rindo-se interiormente, há de me considerar como uma espécie de borboleta preta!
Depois do almoço, estando o sol muito quente, Fábio deitou-se a ler no quarto, e Ricardo, tomando a sua caixa de tintas, foi trabalhar junto à janela. Continuou a colorir o quadro que representava a Guida, e cujos traços ele havia corrigido pela manhã. As feições da moça, se não eram de uma semelhança perfeita, recordavam sem dúvida a gentileza de sua fisionomia.
Seriam onze horas do dia; fazia uma calma abrasadora. D. Joaquina e as pretas estavam recolhidas lá para o interior; Fábio, contra o seu costume, lia tão placidamente que causava suspeitas. Tudo na casa estava em silêncio. Fora, o Galgo tosava uns tufos de capim-melado; e a Nanica ciscava no terreiro em companhia de um galo e de um pinto.
A janela junto da qual trabalhava Ricardo, era de tacaniça, onde havia sombra; daí não se enxergava a frente da casa, nem a rua de cafezeiros e abacates que ia dar à cancela da entrada; por isso não pôde ele ver um grupo de cavaleiros que, parados no caminho, espiavam para descobrir alguma pessoa da casa.
Afinal avistaram uma das pretas velhas que saíra a apanhar gravetos para o fogo.
— Vem cá, mãe; você nos dá um pouco d'água? disse um dos cavaleiros.
— Sim, meu senhor; pode entrar, respondeu a preta velha abrindo a cancela.
Os cavaleiros invadiram a propriedade de D. Joaquina; a maior parte porém ficou à sombra das árvores; apenas alguns mais impacientes se aproximaram da porta, a fim de esperar a água. Essa impaciência não era produzida tanto pela sede que eles tinham, como pelo desejo de cada um em ser o primeiro a servir uma linda amazona, que esperava à sombra de uma laranjeira.
— Duvido que a tal velha tenha água bastante para matar a sede de tanta gente! observou um cavaleiro.
— Felizmente o rio passa perto.
— O melhor é irmos logo a ele; que dizes, Guimarães?
— Que espécie de copo nos trará a preta? Aposto que alguma xícara!
— Água em xícara!
— Senhores, esta casa está bem boa para uma fogueira de S. João. Não acham?
— É mais velha que a Tijuca.
— Quem morará aqui?
— Alguma velha caraça do século passado.
— Segundo tomo da sujeita dos cambucás!
Estes ditos mais ou menos chistosos, entremeados de riso, eram proferidos com intenção de divertir a gentil amazona. Mas esta, inteiramente distraída, estivera olhando com atenção o Galgo que se aproximara da cerca do pasto, apenas percebera a chegada dos outros animais; depois examinara a casa com uma expressão de surpresa desagradável.
O cavalo, sentindo as rédeas frouxas, andara alguns passos, o que o aproximara do canto da casa. Os olhos da moça caíram sobre a janela, junto à qual Ricardo estivera trabalhando. O álbum aberto ficara encostado à ombreira onde o desenhista o pusera para secar as tintas, antes de dar-lhe os últimos toques. Não aparecia o busto do moço; ao rumor das vozes na porta tinha-se ele voltado, e procurava distinguir a fala das pessoas.
O primeiro movimento da menina foi recuar o cavalo; porém seu olhar tinha descoberto na página aberta do álbum a paisagem recentemente pintada. Ela teve um pressentimento; e correu a vista rápida por seu talhe, verificando a semelhança que do primeiro relance se lhe afigurara.
Era o mesmo roupão verde-escuro, o gracioso chapéu de castor cor de pérola, e as luvas de camurça amarela. A estampa de Edgard completava a sua figura de amazona.
Nesse momento Ricardo, erguendo-se, descobriu o vulto da moça; ela corou reconhecendo a sua indiscrição; mas não obstante, um olhar afouto interrogou o semblante do advogado, fitando-se alternadamente nele e na paisagem.
Ricardo cortejara polidamente a moça, mas com esse movimento chegou-se quanto pôde à janela, e disfarçadamente ocultou o álbum.
— Estamos esperando a água que foram buscar! disse a voz maviosa de Guida, como uma desculpa, ou um pretexto para sair da situação em que o acaso a colocara.
— Ah! com muito prazer.
Voltando o álbum com o movimento que lhe imprimira furtivamente o braço, Ricardo colocou-o fechado sobre a mesa e recolheu-se ao interior para mandar trazer a água. Tudo isto foi executado de modo que se observaram as delicadezas devidas a uma senhora.
Guida, apesar da curiosidade imensa que tinha de ver a aquarela, se afastara modestamente.
Molhou os lábios no copo d'água que lhe apresentou um dos cavaleiros; e lançando um último olhar à velha casa e às velhas árvores que a rodeavam, partiu a todo o galope. Debalde os companheiros de passeio se esforçaram por alcançá-la.
No domingo seguinte, voltando Ricardo da Vista Chinesa, soltara as rédeas ao Galgo que esticava os músculos em um galope ligeiro.
De repente o animal retraiu as orelhas finas e vivas: tinha ouvido o tropel de outro animal, que vinha atrás a alguma distância, e também de galope. Pouco depois a estampa elegante de Edgard alongou-se pelo lado direito, e a Guida passou rapidamente voltando-se para ver se o cavaleiro a seguia.
O Galgo aceitando o desafio que Edgard lhe tinha lançado na passagem, juntara para arrojarse avante como uma flecha; mas a mão firme do cavaleiro o sofreara, privando-o do prazer de dar uma lição ao fidalgo.
Era a quinta vez que Ricardo inesperadamente, por uma singular combinação do acaso, encontrava aquela moça. A Tijuca não é muito extensa em verdade; mas oferece vários passeios e tem caminhos desencontrados. Entretanto, em direções opostas, em horas diferentes, com intervalos desiguais, uma coincidência estranha aproximava os dois desconhecidos.
— Se eu fosse algum dos muitos apaixonados que há de ter esta moça, dizia Ricardo consigo e continuando o seu passeio, havia de empregar os maiores esforços para preparar estes encontros casuais; andaria de relógio na mão, espiando a hora em que ela costuma sair de casa, estudando o programa habitual de suas excursões, a direção que toma frequentemente. E apesar de tudo isto, e das boas corridas que daria a cavalo, muitas vezes havia de perder o meu tempo e a minha paciência. Entretanto eu, que já não possuo relógio, que tenho apenas uma metade de cavalo, que saio de casa sem me lembrar de semelhante moça, não venho mais à Tijuca um só dia, que não a encontre uma e duas vezes. Caprichos da fortuna!
O moço conjeturou que a mestra e o criado, comitiva habitual da filha do milionário, tinham ficado atrás, e talvez a grande distância. A Guida naturalmente seria obrigada a esperá-los; e portanto teria ele um segundo encontro.
— Nada! pensou ele; e parou à sombra de uma árvore.
Mas a inglesa e o seu companheiro não apareciam; os minutos corriam; e Ricardo, surpreso, não sabia o que pensar, repugnando-lhe admitir a possibilidade de andar a moça sozinha por aqueles sítios desertos. Teria decorrido um quarto de hora quando ressoou do lado oposto o galope do cavalo.
— Querem ver que é ela que volta? Não há dúvida!
Era Guida com efeito; tendo passado o cavaleiro, estimulada pelo prazer vivo da equitação, arrependeu-se de haver deixado tão distantes os seus companheiros. Resolveu esperá-los. Naturalmente o moço não tardaria a passar; aquele encontro, num ermo, a incomodava; mas ela já o conhecia como um homem delicado; demais a mestra não podia estar longe.
A demora inquietou-a. Temeu que alguma cousa houvesse sucedido a Mrs. Trowshy, e que então se achasse realmente só naquela solidão. Já não era de Ricardo que se receava, mas do isolamento.
Por isso retrocedia de corrida o caminho percorrido.
Ricardo, apenas se persuadiu que era com efeito a moça, disparou a galope na direção da Vista Chinesa, a ver se escapava a novo encontro. Chegando à Mesa, viu Mrs. Trowshy sentada ao lado do Sr. Daniel conversando com o maior sossego.
O advogado passou como um raio, o que fez a inglesa fingir um desmaio, imaginando algum jovem salteador que a vinha raptar. O Sr. Daniel assegurou-lhe que os salteadores da Tijuca, chamados quilombolas, furtavam bananas, galinhas e outras cousas leves, mas não inglesas que pesassem dez quintais portugueses.
Nesse dia Ricardo chegou tarde para o almoço; mas livrou-se de segundo encontro.
Do lado que olha para o mar, a serra da Tijuca apresenta um aspecto muito diferente. As encostas que descem para o Andaraí, como os vales e eminências que se encontram pelo dorso da montanha, têm a fisionomia risonha e pitoresca: são ondulações amenas ou recortes caprichosos, que deleitam a vista.
Na outra face, a natureza é agreste; dir-se-ia uma terra convulsa. O fogo subterrâneo ferveu nas entranhas da terra, e rasgando-lhe os flancos, arremessou aqui e ali pelas encostas aqueles enormes calhaus ou maciços de rocha, fragmentos da primeira carcaça do globo.
A superfície da terra conserva ainda um aspecto combusto e árido; vê-se que por aí passou a lava em tempos remotos. De espaço a espaço o trabalho do homem cobriu a encosta da montanha de plantações; mas entre esses pontos cultivados destaca-se ainda mais a bronca aspereza dos sítios agrestes.
No domingo em que estamos, Ricardo dirigiu o seu passeio a pé para aquelas bandas. Já tinha algumas vezes feito essa excursão até a Cascata Grande, um dos pontos mais frequentados pelas pessoas que passam o verão na Tijuca; naquele dia porém tencionava ir mais longe, até à habitação de uma pobre gente, conhecida de D. Joaquina, e às vezes por ela socorrida em suas misérias. O saquinho da boa velha, apesar de escasso, tinha sempre uns vinténs para as esmolas do sábado.
Justamente na véspera, D. Joaquina recebera por intermédio de algum quitandeiro um recado da pobre gente e exprimira a intenção de mandar-lhe qualquer pequeno socorro, como costumava. O advogado lembrou-se disso, quis dar a seu passeio um fim caritativo; tinha na véspera recebido dez mil-réis, como honorário por um requerimento. Estava rico; podia pois aliviar dessa vez o saquinho de D. Joaquina daquela despesa.
Com este pensamento tomou às seis horas da manhã o caminho da Barra.
Aí, próximo à Restinga, havia então, e talvez ainda exista, uma cabana coberta de palha de sapé, com paredes de emboço. Em muitos lugares porém tinha caído o barro, deixando entre as varas grandes buracos, tapados com ramas secas.
Esta choça miserável ficava a algumas braças do caminho. Para chegar à porta, Ricardo tomou uma vereda que rodeava uma quebrada de terreno. Estendida em varas via-se a enxugar alguma roupa de chita e algodão, muito bem lavada, mas aberta em crivo de tão gasta e rasgada que já estava. Sobre o capim do terreiro estava emborcada alguma pouca louça branca de beira azul, uma panela, uma frigideira e uma colher de pau.
Esse terreiro era, não chovendo, a lavanderia, a copa, a cozinha e a sala da pobre gente. A choça tinha apenas um compartimento, onde se acomodavam Simão, a mulher, e três crianças.
Esse homem sustentava sua família com o produto da pescaria e de uma pequena plantação de bananas; assim iam vivendo pobremente, mas sem grandes privações, quando de repente tudo começou a desandar. O peixe fugia da tarrafa do pobre Simão; as bananeiras começaram a mirrar; e até os ovos da galinha goravam ao menor ronco da trovoada.
O pescador era homem ativo, incansável no trabalho, porém caráter débil, que desanimava com os reveses. As contínuas decepções o acabrunharam; caiu em uma prostração moral, muito mais perigosa do que a enfermidade do corpo. Convenceu-se de que o seu infortúnio era um castigo do céu por algum pecado que cometera; e resignou-se a sofrer sem lutar.
— Não se resiste a Deus, mulher! dissera ele.
A Gertrudes porém atribuía a desgraça ao quebranto que algum invejoso deitara à sua casa. Ela se lembrava que um dia passara por ali e pedira água um inglês muito magro, sem dúvida chupado pelas almas do outro mundo. Desde esse dia tudo andava às avessas, dizia a mulher; porque o sujeito saindo zangado com o pequeno que o chamara de goddem, deitara à casa uma figa.
Entrando na choupana, viu Ricardo o Simão deitado em uma esteira sobre a cama de varas da altura de um palmo apenas. A magreza extrema, a atonia e lividez do semblante, estavam indicando uma moléstia grave. A mulher, sentada defronte em um toco de pau, cismava na sua vida, enquanto descansava um momento da lida de cada dia. Era ela quem valia agora à desgraçada família, com seu trabalho e sua diligência.
— Então que é isto? disse o moço correndo os olhos do marido à mulher.
— O Simão anda bem doente!
— Que tem?
— Nada, nada, meu senhor. Isto vai assim mesmo até acabar de uma vez.
A mulher levantou os ombros:
— Ninguém lhe tira aquilo da cabeça.
— Mas o que sente? perguntou Ricardo ao doente.
— Eu sei!
— É assim uma fraqueza, que já nem se pode levantar, respondeu a mulher. Há uma semana que está aí, nessa cama, que nem ata, nem desata.
— Não tem tomado remédio?
— Que há de tomar, meu senhor?
Ricardo achou-se embaraçado na resposta; nada absolutamente entendia de medicina, ciência aliás em que todos arranham seu tanto. Tirando da carteira uma nota de dois mil-réis, pô-la na mão da mulher do pescador.
— É D. Joaquina que lhe manda!
— Deus lhe há de pagar a ela as esmolas que nos tem feito, disse a Gertrudes.
— E como vão agora? Têm sido mais felizes?
— Qual, meu senhor! O quebranto não nos deixa. A pescaria... não se fala; depois que Simão caiu de cama, ainda eu fui deitar a rede com o pequeno; mas é à toa! As bananeiras enfezaram de uma vez. Se não fossem uns pintos... Que para bem dizer não foram os pintos, mas a cachorrinha. Se não fosse isso, a gente já estava morta de fome.
— Então sucedeu-lhe alguma cousa boa? Sinal de que a fortuna está voltando.
— Foi boa e foi má; porém no fim de contas saiu pelo melhor. Imagine o senhor que a muito custo eu tirei uma ninhada de pintos, que estavam-se criando muito espertinhos. Sempre eram uns cobrinhos... Mas um dia apareceu aqui uma moça a cavalo, bem vestida, com uma velha gorda e mais um português que é um espirro de gato. Eles já tinham passado na véspera e estiveram falando com o pequeno. Então salta do colo da moça uma cachorrinha, e vai-se aos pintos e mata a todos, um por um.
— Uma cachorrinha branca felpuda, que tem brincos de ouro?
— Isso mesmo. O senhor conhece? É muito bonitinha; mas também nunca vi uma demoninha assim.
— Então matou-lhe os pintos?
— Um por um. E a moça ria que era um gosto, dando estalinhos nos dedos; mas depois que a cachorrinha acabou de matar os pintos, então a senhora ficou muito zangada e ralhou bastante com ela. Disse que tinha pena do que sucedera, e mandou entregar a Simão um dinheiro para pagar os pintos. Foi dinheiro que chegou para a gente viver até agora.
— E depois? A moça?
— Esteve atirando no capim umas moedinhas de prata; a cachorrinha de aposta com os pequenos corria para apanhar: aquele que achasse ganhava. Uma vez o Pedrinho quis tomar da cachorrinha; mas ela ia mordendo-o na mão. Se não fosse a moça que acudiu tão depressa com o chicotinho!
Enquanto Ricardo conversava com a Gertrudes, e o Simão ouvia mergulhado no mesmo torpor, dois meninos e uma menina, acocorados a um canto, cochichavam entre si. A penúria tinha apagado naquelas crianças a vivacidade natural da infância. Havia no seu gesto e semblante um espasmo de tristeza, que afligia.
Enfiando a vista pelo buraco da parede, as crianças se agitaram com certa curiosidade tímida, despertada por alguma cousa que tinham visto. O rumor de passos de animais indicava a chegada ou passagem de pessoas a cavalo.
— Mamãe! disse uma das crianças.
— A moça!... acrescentou a outra.
Gertrudes reclinou-se, para estender a vista pela abertura da porta. Ricardo imitando seu movimento reconheceu Guida, acompanhada pela habitual comitiva.
O moço ergueu-se contrariado.
— Adeus. Voltarei depois.
— Não quer ver a moça? Ela é bem bonita.
— Já a conheço; e por isso não quero que me encontre aqui. Sairei pelo fundo.
— Mas então o melhor é ficar aqui dentro porque ela não se apeia.
Nisto a Gertrudes que se chegara à porta voltou ao moço:
— Ora, está vendo! Que artes desta moça!
A Guida tinha dirigido Edgard para o lugar onde estava a secar a mesquinha louça da pobre gente, e o elegante cavalo divertia-se em espedaçar desdenhosamente com a pata cada um dos pratos.
Os meninos assistiam à cena admirados; Guida ria-se como uma criança; a inglesa despedia da garganta uma cascata de ohs! e o Sr. Daniel impassível estava mentalmente calculando o custo da louça quebrada.
Ricardo viu esta cena pelas fendas da choupana. Quando não houve mais nada a quebrar, Guida, sofreando com força o cavalo, exclamou com um fingido assomo de mau humor:
— Este cavalo é insuportável! Está sempre fazendo destas! Não posso mais aturá-lo!
A mãozinha afilada vibrou o chicote com força. Edgard, saindo de sua habitual impassibilidade, começou a pinotear, o que espalhou a mestra, o português e as crianças cada um para seu lado. O resultado dessa escaramuça foi atirar ao chão a vara da roupa, que o lindo isabel despeitado pisou acabando de esgarçar com os cascos aqueles andrajos.
— Tome, Daniel, dê a esta gente: é para pagar o estrago que fez o cavalo.
A Guida tirara de uma carteirinha de tartaruga uma nota de cinquenta mil-réis.
— Mas agora me lembro: talvez eles não tenham louça para comer hoje. Mande o moleque comprar!...
— Não é muito, senhora?
— Sr. Daniel, eu não pedi a sua opinião.
O Daniel abaixou a cabeça.
— Onde está sua mãe? perguntou a moça a uma das crianças.
— Estou aqui, senhora dona.
— Já sabe o que fez este cavalo mal-educado?
— Vi, sim senhora. Foi como da outra vez a cachorrinha com os pintos!
— É verdade! Fiquei depois tão arrependida de a ter trazido!
Mrs. Trowshy atalhou em francês, com um olhar de exprobração:
— Allez! Vous l’avez fait exprès, par méchanceté!
— Mais non! disse a Guida sorrindo; e voltou-se para continuar a conversa com a mulher.
— Sabe? A Sofia depois daquela travessura quase morreu!
— De que, gentes!
— Quis morder o cavalo de um moço que passava, e levou um couce que a atirou da montanha abaixo.
— Jesus!
— Foi bem feito para não ser tão travessa. Ainda está de cama.
— É como o meu companheiro. Vive ali espichado, que não se levanta mais.
— Ah! Seu marido está doente? De quê?
— Ninguém sabe; depois que o peixe lhe fugiu da rede, começou assim a desandar.
— Onde está ele? Chame-o.
— Qual! Não pode consigo.
— Chame sempre.
O Simão a custo arrastou-se até à porta da choupana.
— O senhor amanhã há de levar peixe em nossa casa. Olhe lá.
— O peixe conhece as minhas tarrafas! É à toa.
— Verá. Eu sou muito feliz; obtenho tudo que desejo. Basta que eu lhe encomende o peixe, para o senhor tirar a rede cheia.
— Mas é castigo, senhora.
— Castigo de estar aí deitado, sem fazer nada, enquanto a pobre da mulher se amofina de trabalhar.
— Mas ele está doente! acudiu Gertrudes.
— Doente de manha!
Guida lançou o cavalo contra o pescador, que, vendo-se ameaçado pelas ferraduras de Edgard, arrancou-se à prostração para recuar de um salto, com uma rapidez aliás desnecessária, porque a mão firme da moça obrigara o cavalo a girar sobre os pés.
— Não vê como ele salta? disse Guida soltando uma risada. Que vergonha! Curtindo a preguiça enquanto os filhos e a mulher não têm que comer!
A moça chamou o menino mais velho:
— Venha cá, menino. Amanhã tome a rede e vá pescar, já que seu pai de nada serve.
O pescador deu no ar um safanão; apanhou a tarrafa ao canto e foi resmungando estendê-la na cerca ao lado da choupana; Daniel chegou-se a ele para tratar a respeito da louça quebrada; e a Guida despedindo-se partiu com a mestra.
Ricardo do interior da choupana ouvira todas as palavras da moça, e por várias vezes enfiando os olhos entre as fendas da taipa, estudara a expressão daquela fisionomia encantadora, que lhe aparecia então como uma espécie de mito.
Havia com efeito nas ações e nas palavras da moça alguma cousa de estranho e confuso, que escapava à compreensão do jovem advogado, aliás espírito profundo e observador. A volubilidade do pensamento, saltando dos gracejos infantis às cousas mais sérias; o estouvamento que se notava em certas ocasiões, para logo ceder à reflexão; e finalmente as liberalidades com que ela desculpava suas travessuras, davam a essa fisionomia moral um caráter vago e indeciso.
Era um espírito leviano ou sensato? Era um bom ou mau coração? Ou seria acaso uma e outra cousa: a luta perigosa da alma na transição da infância à juventude? Nessa crise surgem as paixões, que sopitam as puras crenças e as ilusões da inocência. Se a alma tem para ampará-la a educação e os germes da sã moral, sai triunfante da luta: a virtude coroa a inocência. Se porém o coração não é defendido nem pelo princípio, nem pelo exemplo, sucumbe; e a flor da mocidade quando brota da infância, vem já eivada.
À noite, quando conversavam esperando o sono, Ricardo disse a seu amigo:
— Sabes, Fábio! Aquela Guida assim mesmo não é tão má, como nós pensávamos.
— Por quê?!
O advogado referiu a cena a que assistira pela manhã, e o que anteriormente lhe contara a Gertrudes.
— O que pensas disso então?
— Penso que no meio das travessuras desta moça há um escrúpulo de consciência, direi mesmo, um fundo de bondade. Estouvada, como é, não pode resistir à vontade de brincar, e faz cousas de que logo se arrepende; mas esse arrependimento pelo menos é generoso. Assim as faltas que ela comete são ocasiões para uma liberalidade, que talvez nunca lhe inspirasse espontaneamente o sentimento da caridade.
Fábio, que não apreciava as demonstrações fisiológicas, tinha adormecido.
No próximo domingo, Ricardo montado no Galgo descia da Pedra Bonita, para onde naquela manhã dirigira o seu passeio.
A Pedra Bonita é uma rocha que se levanta sobre um cabeço de montanha como um gorro de granito. Daí, dessa atalaia das nuvens, goza-se uma vista soberba sobre o mar, e vê-se de perto o enorme cesto da Gávea, habitualmente cingido de vapores.
Como todos os belos sítios da Tijuca, a Pedra Bonita é muito frequentada pelos filhos da loura Albion, incansáveis exploradores desse belo arrabalde do Rio de Janeiro. Contam que um inglês aí se perdera, ficando sobre o gigantesco pedestal de rocha, elevado à condição de estátua, durante três dias, sem comer nem beber. Foi-lhe o penedo o contrário do outeiro da Ilha dos Amores: mais fácil de subir que de descer.
Também contam que nessa pedra, ou em outra que demora na mesma altura, entre as nuvens, algumas senhoras tendo lá subido foram obrigadas, para descer, a tirar os balões. O vento engolfando-se nas armações, ameaçava arrebatá-las à terra, levando-as de uma vez ao céu, pelo caminho do mar.
Os ingleses herdaram dos jesuítas um sétimo ou oitavo sentido, que possuíam em alto grau aqueles mestres da vida: é o sentido da higiene. Por onde passou a poderosa companhia, foi deixando conventos nas situações melhores, tanto pela salubridade como pela formosura. O inglês foi dotado do mesmo faro do belo e do saudável. Chegando ao Rio de Janeiro, volve os olhos para a cinta de montanhas que cerca a cidade, e considera isso um sobrado natural que a Providência construiu por cima do escritório para alcova de dormir.
Pese embora ao nosso amor-próprio nacional, eles naturalizaram inglesa a nossa Tijuca; fizeram daquela serra onde campearam os Tamoios, uma Escócia brasileira. O grito dos highlanders percorre as formosas encostas. Pelas grotas onde reboava primitivamente o brado selvagem da pocema, ouve-se agora repetido de vale em vale pela voz suave das amazonas o gracioso la-la-hi-ti.
Se quereis ver o que há de mais belo e encantador naquele arrabalde, procurai o conhecimento de algum filho da Grã-Bretanha. Ele conhece a Tijuca de uma à outra extremidade, desde a gruta mais funda até o pico mais alto. Sabe não só dos vários passeios, como do dia e da hora em que se deve apreciar cada um deles. Afinal, quando tiverdes visto toda a Tijuca já descoberta e explorada, o inglês inventará uma pedra ainda não conhecida e uma excursão pitoresca como a de subir à Gávea por um caminho de lagarto.
Ricardo vinha pensando que felizmente naquele dia escapara de encontrar-se com a Guida. Era este o quarto domingo depois que a conhecera, e seria o primeiro em que não a visse. O advogado não daria importância a esses encontros fortuitos se, além de serem eles contínuos, não se houvessem dado as circunstâncias especiais, que já conhecemos.
Felicitava-se porém o moço muito cedo. Numa curva da estrada achou-se em face de numerosa cavalgata, que tomava-lhe a passagem. Guida, que vinha na frente em companhia de algumas senhoras, exclamara:
— Ali está a flor, Clarinha. Não é tão linda?
— Aonde?
— Ali, um arbusto. Não vê? disse ela indicando o lugar com a haste do chicotinho.
— Vejo. Amarela...
— Cor de ouro.
Guida tinha parado, e todos os cavaleiros se gruparam de modo a ver o objeto que lhes excitava a curiosidade. Ricardo, havendo-se adiantado na esperança de passar, foi obrigado a demorar-se em frente do grupo.
— Onde vai a senhora, D. Guida?
Esta pergunta foi dirigida por um dos cavaleiros à moça, vendo-a impelir Edgard contra o barranco do caminho para aproximar-se do arbusto, que ficava cerca de duas braças ladeira abaixo.
— Já que nenhum dos senhores se lembrou de oferecer-me uma daquelas flores, que eu acho tão bonitas, vou eu mesma buscá-la.
— Não faça isto!
— É uma imprudência!
— Eu não consinto!
Com efeito havia temeridade no intento da moça. Quem foi à Pedra Bonita sabe quanto é ab-rupta aquela montanha; o caminho, bastante íngreme, atravessa encostas rudes, cortadas em rápido talude e profundamente sarjadas pelos sulcos das torrentes que descem do cimo da serra quando chove. Seria sumamente perigosa a descida por semelhantes barrancos, até mesmo para um animal solto.
Desprezando porém as advertências que lhe dirigiam suas amigas e companheiras, a moça fustigou o cavalo, que refugara. Castigado asperamente, Edgard descera alguns passos por um trilho, ou antes por um rego; mas, reconhecendo o perigo que havia em continuar aquela descida quase a pique, tomou rapidamente por outro rego que atravessava, e galgou o leito do caminho com grande esforço.
— Vai, Guimarães! disse um dos cavaleiros.
— Por mim, não tinha dúvida. Mas não há cavalo capaz de fazer isto.
Ricardo que assistia à cena, de parte, esperando ocasião de passar, não perdeu as palavras que pronunciara o Guimarães, e sentiu despertar-se-lhe o zelo pelos brios do Galgo. Aos 27 anos, o homem é ordinariamente temerário. A vida não representa ainda a seus olhos um cabedal, mas uma simples aspiração.
O moço avançou.
Por esse tempo continuavam os pedidos e admoestações a Guida para abandonar seu projeto; mas ela, indiferente ao que diziam em torno, a princípio rira do susto dos outros; mas agora, muito irritada contra Edgard por ter recuado, castigava o animal, que girava corcoveando. A amazona, forcejando para trazê-lo à borda do barranco, afinal o conseguiu, mas de uma maneira bem desastrada.
Com efeito, o cavalo, pungido ao mesmo tempo pelo freio e pelo chicote, perdera a sua calma habitual; irritou-se, e obrigado a fazer o que lhe repugnava, caminhava para o despenhadeiro, disposto, não a descer, mas a precipitar-se.
Felizmente Ricardo chegara a tempo. Inclinando-se, pôde segurar Edgard pelo freio, quando já levantava as mãos para pular. Obrigou-o então a voltar-se para o leito da estrada, e disse simplesmente à moça:
— Não desça!
Guida ficou imóvel acompanhando com os olhos o Galgo, que descia com admirável agilidade e firmeza o sinuoso barranco. Só havia para apoio do casco a estreita borda do sulco, por onde dificilmente andaria um homem a pé: e contudo o cavalo desceu e subiu sem vacilar um passo, com plena confiança na força e elasticidade de seus músculos.
Todas as pessoas que faziam parte da cavalgata acompanharam a descida e ascensão com surpresa e interesse. Os mais nervosos estremeciam com a ideia da desgraça, que podia acontecer ao desconhecido. Os outros sentiam uma comoção análoga à que lhes despertaria uma briga de galos, uma corrida de cavalos, ou talvez uma representação no circo.
Ricardo tinha partido do arbusto duas ou três hastes com flor. Era a mesma flor cor de ouro, que ele costumava colher nos seus passeios a pé, e que já por duas vezes fora testemunha de seu encontro com a moça.
Quando o cavalo, correspondendo dignamente ao nome, galgou com ligeireza o caminho, o advogado apresentou à moça o ramalhete que tinha colhido, e fazendo um cumprimento geral, apartou-se rapidamente da alegre cavalgata.
Ao passar entre os cavaleiros, ouviu uma voz que o chamava pelo sobrenome:
— Adeus, Nunes! Aposto que já não te lembras de mim?
O advogado reconheceu um de seus colegas de ano, a quem não vira desde a formatura.
— Ah! Guimarães?
Trocaram um aperto de mão com algumas palavras banais, e separaram-se.
Entretanto Guida, tendo prendido o raminho de flores no peito do roupão, continuara o passeio, acompanhada pelas outras senhoras e cavaleiros. Vendo aproximar-se o moço que pouco antes falara a Ricardo, dirigiu-lhe a palavra:
— Conhece este moço, Sr. Guimarães?
— É o Dr. Nunes. Foi meu colega de ano.
— Ah! Formaram-se juntos?
— E se não me engano, fizemos ato no mesmo dia.
— É bacharel?... disse Guida, como se completasse um pensamento interior.
Supunha talvez que Ricardo era um artista, algum pintor que percorria os sítios da Tijuca para copiar perspectivas, que mais tarde lhe servissem de assunto a algum quadro a óleo. O álbum de desenho, que o moço trazia habitualmente nos seus passeios a pé, e a aquarela em que ela se julgara reconhecer, deviam com efeito induzi-la àquele engano.
— Foi um dos primeiros estudantes do nosso ano. Moço de grande talento, porém muito pobre; dizem até que foi o tio, o Dr. Costa, quem o ajudou a formar-se.
— Que faz ele agora? perguntou a moça com interesse.
— Não sei. Creio que está aqui advogando; mas perde o seu tempo; não faz nada.
— Por quê? Não tem tanto talento?
— Mas de que lhe serve se ninguém o conhece? Servia-lhe mais ficar com metade do talento que tem, e a outra metade de proteção.
— Como proteção?
— Ora: negociantes que lhe deem boas causas e o recomendem a seus amigos.
A moça, lançando um olhar para o cimo da montanha que se desenhava no horizonte, mudou de repente o tom e o assunto da conversa.
— A Pedra Bonita ainda fica muito longe? disse ela nesse dúbio tom que vacila entre uma interrogação e uma afirmativa.
— Falta um bom pedaço.
— Ainda não passamos o Carneiro. O melhor é voltarmos; já está o sol tão quente! Hoje saímos muito tarde.
— Como quiser!
— Vamos voltar? perguntou a moça virando-se para consultar as amigas.
As opiniões dividiram-se; alguns desejavam a continuação do passeio apesar do tempo perdido com o episódio da flor; outros porém julgavam que era mais prudente voltar, à vista da hora adiantada e do intenso calor.
— Que horas são? perguntou uma senhora.
— Meia antes do almoço, respondeu Guida sorrindo.
— Neste caso voltemos! gritou a oposição.
Guida exagerava no interesse de sua causa. O almoço foi servido quarenta minutos depois, às dez horas em ponto. Cercavam a mesa perto de trinta pessoas.
Na cabeceira estava D. Paulina, a mulher do Comendador Soares, senhora de estatura regular, e bastante nutrida. Tinha na fisionomia um ar de bondade e singeleza que lhe conciliava a simpatia geral. Seus gestos eram acanhados; via-se que não estava a cômodo, nem se ocupava em desempenhar o seu papel de dona de casa. Esta senhora, que nascera para uma vida modesta, sentia-se acabrunhada pela riqueza, e opressa por esse luxo de ostentação que a envolvia e se apoderara até de sua pessoa. Seu vestido feito no rigor da moda era uma túnica de Nesso para aquele gênio pachorrento.
Na extremidade oposta, ou na outra cabeceira, estava o Comendador Soares, homem de cinquenta e cinco anos, de mediana estatura e talhe franzino, mas vivo e ágil, respirando saúde e alegria no rosto prazenteiro e no gesto animado. Trazia a barba rapada e o cabelo cortado à escovinha.
— Dr. Nogueira, não quer um pouco deste lombinho? Diz aqui o Bastos que não está mau.
— Está magnífico.
A pessoa a que se dirigira o Soares, era um homem de trinta e seis anos e parecer distinto.
— Obrigado, comendador! Nada mais.
— Pois eu vou a ele. Quem me acompanha? Aposto que o Guimarães?
— Está dito!
— O Sr. Guimarães deve ter bom apetite. Fez um grande passeio a cavalo.
— É verdade!
— Onde foram? perguntou Soares.
— Íamos à Pedra Bonita; mas não chegamos até lá. D. Guida quis voltar...
— Já era tão tarde!
— E perdemos muito tempo com a tal flor.
— Ai, que lá se vai o segredo.
— Que segredo?
— Ora; eu lhe conto, papai, disse a Guida. Queria apanhar uma flor, mas Edgard, que é um poltrão, teve medo de descer...
— Sim; mas que ladeira! quase direita!
— Ora. O outro cavalo não desceu?
— Com que risco!
— No fim de contas Edgard, zangado, ia-se atirando da montanha abaixo, quando um moço que passava, conhecido do Sr. Guimarães, agarrou-o pelo freio; e desceu para apanhar a flor!
— Se não fosse ele, quem sabe o que sucederia.
— O Sr. Guimarães deve apresentar-nos o seu amigo, não acha, papai?
— Decerto!
— Terei muito prazer. Encontrando-me com ele... ia respondendo o Guimarães.
Atalhou porém o Dr. Nogueira:
— A flor é naturalmente essa que a senhora tem no seio?
— Sim, senhor, é esta mesmo. Veja papai, como é linda!
— Muito! Quase que podias trazê-la como pingentes.
— Boa ideia, papai! Vou mandar fazer uns brincos deste feitio.
— Ficarão magníficos.
— E há de ser moda!
— Sr. Bastos, o senhor me há de fazer o favor?... disse a moça.
— Com muito gosto, D. Guida!
A flor corria de mão em mão; e teria se desfolhado afinal se a dona não reclamasse com instância para restituí-la à sua posição.
— Guida anda apaixonada por essa flor, disse D. Clarinha. Há mais de um mês que me fala nela.
— Será pela flor? perguntou o Dr. Nogueira com um sorriso malicioso.
Guida lançou-lhe um olhar, que era um alfinete embebido em aljôfar:
— Não é pela flor, não. É pelo senhor. Pois não sabia?
— Ah! se fosse, D. Guida, eu seria o homem o mais feliz do mundo, acredite!
— Bravo, bravo! E então, D. Paulina?
— Guida sempre foi muito apaixonada de flores, respondeu a senhora, aturdida por aqueles constantes diálogos que se cruzavam.
A moça respondera à fineza do Dr. Nogueira, inclinando altivamente a fronte, e soltando um irônico — “obrigada!”
Quando aplacou-se o rumor das risadas e exclamações provocadas pela declaração amorosa que, a título de fineza, lançara o Dr. Nogueira tão à queima-roupa, o Soares, ocupado em despachar conscienciosamente o lombinho de porco, pôde introduzir uma observação que lhe acudira.
— Ande lá, Dr. Nogueira, creio que não é o senhor o único. Há mais quem pense da mesma maneira!
— Decerto, disseram quase ao mesmo tempo o Guimarães e o Bastos, um enrubescendo, o outro empalidecendo.
Talvez que outras exclamações mais submissas viessem aos lábios, e outros rubores mais tímidos subissem às faces; mas não se animaram a aparecer. Perderam-se nos aplausos com que foi recebida a observação do dono da casa.
— Está bom, disse a Guida, a quem o tema da conversação não agradava; ninguém quer saber disto agora, papai; mudemos de assunto.
— Pois muda tu, que nisso de mudar, as mulheres estão no seu elemento.
— O que não é muito lisonjeiro para os homens.
— Conforme.
— Mas escute, papai. Estou resolvida a vender Edgard. Depois do que me fez hoje, não posso mais suportá-lo. Quer comprá-lo?
— Não; eu cá, não deixo a minha mula paulista. Esses cavalos da moda, que vocês apreciam por serem muito grandes e muito caros, não me servem.
— Então compre para mamãe.
— Pois não! Que lembrança! acudiu D. Paulina.
— Nada. Contigo não quero negócio, replicou o Soares. Dizem por aí que eu sou um espertalhão; mas ainda está para ser a primeira vez que não me logres.
— Qual, papai! exclamou Guida sorrindo. É o senhor que se engana a si mesmo; o pai logra o capitalista!
— Muito bem!
— Será isso então! replicou o Soares rindo com prazer.
Acabara o almoço. Guida, com uma cortesia geral, deu o exemplo levantando-se da mesa.
Ela exercia esse direito por uma delegação tácita da mãe, incapaz de tomar por si tão grave resolução. O Soares, que poderia adverti-la com um sinal, estava inibido de o fazer. Se nos dias de trabalho o capitalista almoçava a vapor, nos domingos tinha saudades da mesa e custava a separar-se dela.
Deixando a mesa do almoço, as pessoas reunidas em casa do Soares espalharam-se pela sala, varanda e jardim, formando grupos.
As senhoras ficaram na sala, vendo álbuns e figurinos, conversando sobre modas, ou tocando e cantando. Alguns cavalheiros resistiam ao perfume do havana para gozarem por mais tempo da amável companhia das moças. Outros, para voltarem mais cedo, saboreavam já o seu charuto, passeando no jardim, defronte das janelas, por onde às vezes intervinham na conversação.
Na varanda os capitalistas e negociantes discutiam sobre o estado da praça; apreciavam as transações mais importantes da semana finda; faziam conjeturas sobre a alta e baixa do câmbio, caindo por fim no assunto inesgotável de todas as conversas daquele tempo, por ser a preocupação constante de todos os espíritos: a conclusão da Guerra do Paraguai, que o intrépido Câmara acaba de selar com a última vitória.
Além, desdobravam-se as mesas de jogo à espera dos apaixonados do solo e voltarete; mais longe, se ajustavam passeios a pé e a cavalo, ou visitas aos hóspedes do amável Sr. Bennett.
Em toda essa reunião de pessoas havia dois pontos para os quais convergia a atenção: eram o Soares e a filha.
Os espíritos positivos, os homens de negócio, os soldados da cruzada fanática do ouro, que é a grande preocupação do século atual, esses infatigáveis obreiros do dinheiro contemplavam o capitalista como um herói ou como um gênio, como o César ou o Napoleão da praça. O comendador representava a seus olhos o símbolo ou mito da riqueza, como Hércules o era da força.
A rapidez com que Soares, de simples dono de um armarinho, se elevara a milionário por uma série de operações lícitas, mas combinadas com tino superior e executadas com incrível arrojo; o milagre dessa riqueza colossal honestamente acumulada em cerca de vinte anos, enchia de admiração não só os neófitos no culto do bezerro de ouro, como os mesmos negociantes já possuidores de algumas centenas de contos.
As vistas fitavam-se com afinco no rosto franco e prazenteiro do capitalista, que se lhes afigurava o dinheiro encarnado, o milhão feito homem. Estudavam sua fisionomia, aprendiam seus menores gestos, decoravam suas palavras ainda banais. O Soares tinha em si o grande segredo de ganhar dinheiro; talvez o precioso condão da riqueza estivesse em alguma particularidade de sua pessoa e fosse possível a um homem hábil surpreendê-lo.
Esforçavam-se pois em imitar aquele tipo de milionário improvisado. Um tinha notado que ele trazia sapatões de bico espalmado, feitos em uma tenda da Travessa do Carmo. Pensando que o segredo podia estar nisso, recorreu ao freguês antigo do capitalista para lhe fazer calçado em tudo igual. Outro observara que o Soares trazia uma pequena caixa oval cheia de rapé, não para tomar, mas simplesmente para cheirar.
Havia gente que não só copiava o milionário no vestuário e nos hábitos, como até na comida. Um chegou a convencer-se que o feijão preto e o lombinho de porco tinham virtude aurífera; e apontava a província de Minas como a prova do fenômeno.
De seu lado, Guida era naquele céu o astro da beleza, de que as outras moças não passavam de satélites. Em torno dela giravam os cavalheiros elegantes, todos aqueles que não tinham resumido a sua existência no balcão, e ainda se ocupavam de música, de arte e de sentimento. Para esses o dinheiro não é um fim, como para os primeiros, os cruzados do século; é meio apenas de obter o gozo; é um engaste para o prazer. Assim uma mulher bonita na pobreza parece uma crisólita embutida em estanho; na riqueza, torna-se uma pérola cercada de diamantes.
Os olhares desta parte da sociedade acompanhavam os movimentos de Guida com admiração e insistência igual à dos adoradores do dinheiro encarnado na pessoa de Soares. Ela também representava o mito do século, o milhão. Se o pai figurava o milhão feito homem, ela era o milhão feito anjo; o ouro convertido em luz, a libra esterlina transformada em estrela, o bilhete do banco adquirindo de repente a graça diáfana da asa de borboleta.
Os etimologistas, gente que profetiza o passado e inventa o esquecido, dizem que ouro, palavra de origem egípcia, significou primitivamente a luz, o sol, passando a designar o metal precioso por analogia. Se assim foi, como me parece racional, Guida personificava o ouro segundo a delicada comparação da poesia oriental: era o sol esplêndido da fortuna; era a réstia de luz coalhada em barra, o prisma bancário, o raio amoedado.
Entre todos os cavalheiros que se prostravam humildes ante o ídolo, distinguiam-se três, ou pela assiduidade na adoração, ou pela esperança que afagavam. Eram o Guimarães, o Bastos e o Dr. Nogueira: pessoas que sem dúvida merecem alguma notícia, pois um deles, segundo se dizia geralmente, teria de ser o feliz, o querido da fortuna, o marido da mais rica herança e da mais bonita moça do Rio de Janeiro.
Guimarães era um moço de vinte e sete anos, filho de um antigo procurador muito ginja, que devia deixar-lhe uma legítima de uns seiscentos contos de réis. O pai à custa de empenhos conseguira formá-lo em Direito; mas só por luxo, para dar-lhe o título que tanto invejara. Sucedeu porém que ninguém tomou ao sério a cousa, nem mesmo o rapaz. Todos continuaram a tratá-lo pura e simplesmente pelo nome, sem o competente doutor. Era tão profundo o esquecimento da formatura do filho do procurador que seus amigos e camaradas acreditariam mais facilmente que ele fosse um príncipe incógnito do que um bacharel.
Guimarães tinha um exterior agradável: bem feito, de talhe vantajoso, vestia-se no rigor da moda, mas ao gosto do alfaiate, e portanto com todas as extravagâncias do figurino. Montava bem a cavalo; fumava com garbo o seu havana; sustentava sofrivelmente uma dessas conversas de ninharias, essenciais nos intervalos da quadrilha e em ocasiões de apresentação.
Bastos era um corretor, que aos trinta e quatro anos já havia feito uma bela fortuna.
Soares o tinha no melhor conceito, e num círculo de íntimos lhe profetizara o milhão aos quarenta anos. Ora, o milhão, segundo o comendador, é o pólipo, que se reproduz com espantosa rapidez.
O corretor era o que se chama um bonito homem; isto é, uma estampa soberba para granadeiro ou tambor-mor. Alto de estatura, porte robusto, mas bem talhado, tinha um rosto de feições regulares, moldurado por uma bela suíça negra. Vestia-se com a simplicidade do negociante inglês; falava com acerto em assuntos comerciais; animava-se a discutir política até com os mais notáveis estadistas; porém numa roda de senhoras faltava-lhe a fluência, a menos que não se tratasse de compras e encomendas, ponto em que mais ou menos entrava o gênio mercantil.
O Dr. Nogueira advogava. Como todos os homens de talento, tinha-se envolvido na política, esse terrível maelstrom que arrasta em nosso malfadado país todas as grandes inteligências, como todas as ambições ardentes. Sua posição não passava de uma espera na grande caçada nacional. Apresentava-se candidato por sua província, e cheio de entusiasmo acreditava que ia abrir-se a seu talento uma carreira brilhante.
Ele tinha os dotes necessários: bela inteligência, palavra fácil e elegante, que amenizava as mais áridas questões e elevava os assuntos triviais; caráter dúctil, suscetível de amoldar-se a todas as situações como de ligar-se a qualquer indivíduo; caráter que se pode bem comparar ao estanho, de que se faz a solda. Soares tributava ao advogado a maior consideração e tinha plena confiança em seu futuro.
Apesar de magro e descarnado, o rosto do advogado tinha expressão muito distinta, sobretudo quando falava com interesse; então a fisionomia e o gesto desenhavam-lhe a ideia, antes que a palavra elegante viesse dar-lhe o colorido. Quem o escutava recebia ao mesmo tempo pelos olhos e pelo ouvido o seu pensamento, sempre elevado.
Cada um dos três candidatos a sol da bela estrela de ouro tinha mais ou menos consciência das suas, como das vantagens dos competidores. O Guimarães confiava na herança e na proteção de D. Paulina, em virtude da amizade antiga que existia entre a mãe da menina e a sua. Bastos descansava no conceito em que o comendador tinha a sua habilidade comercial, e nos trezentos contos bem líquidos, fechados na carteira em bilhetes do tesouro. O Dr. Nogueira contava com a consideração que lhe tributava o comendador, mas sobretudo com as altas e brilhantes posições, cujo prestígio sem dúvida fascinaria mais do que o dinheiro, a um homem habituado como Soares, a nadar em ouro.
Estes eram os títulos que exibiam os campeões em relação à escolha paterna; mas eles, que bem conheciam a Guida, sabiam quanto era importante e necessária a escolha da filha. Por isso empregavam todos os esforços para granjear o amor ou pelo menos a simpatia da linda moça.
Quando se tratava de um passeio, de uma conversa fútil para fazer rir as senhoras, de um brinquedo de sala, ou qualquer outra ninharia, Bastos e Nogueira se arredavam, deixando o campo ao Guimarães. Nenhum deles seria capaz de disputar ao moço a palma da garrulice banal e fofa, que imita as farfalhas da seda, ou os floreios do leque. Quando se ouve discorrer uma dessas nugas encasacadas, parece com efeito que não é um homem que fala, mas um alfinete, um grampo, um colchete, qualquer dos objetos indispensáveis ao vestuário feminino, que de repente adquirisse o dom da palavra.
O Bastos ficava mudo e pasmo diante da volubilidade do Guimarães; ele não compreendia que um homem tivesse essa propriedade de fazer-se realejo, e repetir durante horas e horas o que dissera na véspera ou ouvira dos outros. Quanto ao Nogueira, compreendia; mas, se alguma vez lembrou-se de competir com o Guimarães, arrependeu-se e corou de si mesmo, porque reconheceu o ridículo. Sua palavra era uma águia, pensava ele: a águia da inteligência, habituada a plainar entre as nuvens. Como podia fazer dessa ave corpulenta uma abelha que borboleteasse entre as florinhas de um jardim?
Para a asa altaneira só a flor gigante, a grande ninfeia escarlate, a rainha dos lagos, que os ingleses chamaram “vitória”, em honra de sua soberana, mas eu chamarei “imperatriz”, em razão de ser uma majestade brasileira. Dir-me-ão que não sou botânico, e portanto não tenho autoridade para crismar essa espécie de loto, que os indígenas chamavam “milho-d'água”. Não é decerto minha intenção invadir os domínios da ciência. Podem os botânicos inventar quanto nome grego e latino lhes aprouver para apelidarem as plantas; podem fazer a autópsia das inocentes criaturas para reduzi-las a sistema; mas as flores, como mimos da natureza, pertencem à literatura; são do domínio da poesia.
Onde me ia levando o pensamento? Voltemos à Tijuca.
O Bastos desforrava-se do Guimarães e do Nogueira, quando se tratava de alguma encomenda, de qualquer dos pequenos serviços que uma senhora, privada em nosso país da plena liberdade de sair só, tem necessidade de exigir e aceitar. O Rio de Janeiro é sem dúvida uma cidade de muito luxo, abundantemente sortida pela indústria estrangeira de todos os artigos de moda e fantasia; mas, como as especialidades não estão ainda bem distintas, em virtude da desigualdade e incerteza do consumo, muitas vezes é difícil saber onde encontrar-se aquilo que se deseja.
O corretor tinha um perfeito conhecimento dessa topografia especial do comércio a retalho. Quando se tratava de comprar uma fita de cor muito rara e perfeitamente igual à fazenda; de procurar um objeto que não se encontrava na Rua do Ouvidor ou da Quitanda; de escolher um presente de gosto, novo, ainda não visto; de descobrir uns botões ou enfeites de forma original e esquisita, fantasiados pela imaginação de Guida, o Bastos triunfava. Realmente fazia cousas admiráveis: ninguém arranjava uma encomenda melhor, nem mais depressa e mais barato.
Nogueira e Guimarães não ousavam disputar-lhe essa superioridade. O candidato, porque nem para si próprio sabia comprar; além de que sua posição não lhe permitia descer ao papel de comissário, nem mesmo de uma moça bonita. O Guimarães não tinha jeito, nem dinheiro: a mesada que recebia do pai, e os presentes que a mãe lhe fazia, não chegavam para operar os milagres de barateza, inventados pelo corretor.
Batido pelo Guimarães nos divertimentos, e pelo Bastos nas encomendas, o Dr. Nogueira tinha também seus momentos de triunfo: não eram mui frequentes, mas acreditava ele que deixavam profunda e longa impressão. Quando a reunião se tornava mais solene, o que sucedia em ocasião de alguma visita de consideração ou de algum jantar de cerimônia, o advogado aproveitava algum assunto favorável para soltar as asas à sua palavra fascinadora. Divagava com graça; e sobre o mais pequeno fato tinha a arte de bordar anedotas curiosas, ditos chistosos, reminiscências interessantes, que lhe fornecia uma sofrível lição histórica. Havia em tudo isto muita afetação, e mais liga que ouro; porém entusiasmava o seu auditório habitual.
Nestas ocasiões, Bastos e Guimarães afundavam-se em sua mediocridade. Os elogios, que obtinha a cada instante o talento do Nogueira, os incomodavam como um enxame de vespas; mas nada os esmagava como a atenção com que Guida ouvia.
O candidato, vendo a moça presa de seus lábios, com os olhos fitos nele, acreditava que essa alma gentil se abria docemente ao calor de sua palavra, como a flor ao raio da aurora; e que ele penetrava-lhe no seio, e a pouco e pouco tomava posse dela. Contudo não se desvanecia; acreditava que não era ainda o coração da menina quem o ouvia, mas apenas sua curiosidade.
Estas pretensões à mão da filha do milionário eram conhecidas não só pela família e pessoas que frequentavam a casa, como pelos estranhos. Nenhum dos três pretendentes recatava seus projetos; ao contrário, não perdiam ensejo de fazer ostentação deles, nem se embaraçavam com o reparo dos indiferentes, quando podiam colher uma vantagem sobre os rivais.
A sociedade habitual do comendador assistia a esse jogo matrimonial com o interesse e curiosidade com que os romanos apreciavam uma luta de gladiadores, e os ingleses acompanham um steeple-chase. Dividiam-se as opiniões, e também os votos e simpatias. Havia intermináveis questões a respeito da preferência de Guida por algum de seus três adoradores.
Talvez excite reparo a tolerância do Comendador Soares neste assunto, que tão de perto lhe devia interessar como pai. Esse modo de proceder não provinha de negligência, mas de uma resolução bem calculada. Entendia ele que o casamento de uma moça é questão vital tanto para os pais, como para ela; e portanto depende do consentimento de ambas as partes. Em outros termos, assim exprimira chistosamente o seu pensamento ao Nogueira, um dia em que este o sondou a respeito de suas intenções:
— Nesta matéria de casamento, meu caro doutor, eu sou a coroa, a Guida é o parlamento. Ela tem o direito de votar o projeto; eu limito-me à sanção ou ao veto. Assim o pretendente, quero dizer, o ministro, se quiser orçamento, deve usar de toda a sua eloquência no parlamento para derrotar a oposição.
O comendador era pois um pai constitucional representativo. Assistia com imparcialidade à luta dos partidos, reservando-se contudo o direito de ensaiar habilmente o governo pessoal, quando fosse indispensável ao bem público.
Além das três pretensões confessadas, havia no círculo do Soares um grande número de esperanças em botão, que não ousavam desabrochar; mas também não se resolviam a murchar. Ah! a esperança é uma das plantas mais vivazes que eu conheço; quando uma vez brotou no coração, não há meio de extirpá-la: é como a urtiga. Embora o ferro a corte, rebenta de novo. Só morre quando lhe esmigalham as raízes.
Assim, apesar de reconhecerem a impossibilidade de sua realização, essas esperanças pululavam em torno da moça, como um bando de besouros verdes nas pétalas de uma rosa. Quando à noite, depois de algumas horas passadas na casa de Soares, se recolhiam, ao deitar-se balbuciava cada uma em seu aposento, por este gosto mais ou menos:
— Este bigodinho!... pensava um, alisando diante do espelho o fino buço. Tem-se visto cousas!
— O caso é que ela gosta bem de cantar comigo! sonhava outro, recordando um dueto do Hernani.
— No fim de contas a elegância é o fraco das moças, murmurava terceiro, requebrando o talhe bem torneado.
— Um homem que valsa como eu, chama atenção num baile. E o que é um baile senão a batalha campal, onde se conquista a beleza? exclamava um jovem oficial que fez a campanha do Paraguai nas tertúlias de Montevidéu.
— Que ela me acha engraçado, não há dúvida; ora, o riso é o caminho do coração, dizia um repetidor de pilhérias, espécie de bobo de sala, esfregando as mãos.
Estas e outras esperanças viviam de ar, como os camaleões, e como eles, mudavam constantemente de cor: ora tinham o verde risonho da folha que nasce, ora o amarelo bronzeado da folha mirrada pelo sol, que o vento leva de envolta com o pó.
Guida animava com a sua graça e gentileza os diversos grupos que se tinham formado na sala.
No sofá, onde se conversava, ia sentar-se um instante para ouvir e interromper, excitando a réplica e provocando o riso com suas travessuras. No piano aparecia de repente, tocava ou cantava alguma cousa às pressas, e aproximando-se da mesa, mostrava às pessoas, que folheavam álbuns, lindas vistas da Suíça, da Escócia, de Sintra e da Tijuca.
O Guimarães, que estava naquele dia em veia de felicidade, acompanhava a moça nessas evoluções com certo ar pretensioso que não escapava às outras pessoas. Decididamente parecia que a preferência se manifestava pelo mais jovem e mais elegante dos pretendentes; tal foi pelo menos a opinião das senhoras, que nesta matéria falam de cadeira.
O Dr. Nogueira, despeitado com o remoque da Guida, na ocasião do almoço e a propósito da flor, conservava-se arredio; estava ainda no jardim fumando o seu charuto. Entretanto, quem o observasse com atenção conhecia que através das folhas das árvores ele não perdia de vista as janelas da sala.
Bastos estava indeciso; não se animava a entrar em combate, nem se resolvia a abandonar o campo. Recostado à sacada pela parte de fora, mas completamente voltado para dentro, observava a moça, sem contudo esforçar-se por atrair-lhe a atenção. Bem desejava obter aquela ventura; mas sua imaginação ingrata não lhe suscitava um meio de realizar seu desejo.
Teria decorrido cerca de uma hora depois do almoço, quando Mrs. Trowshy mostrou a Guida a figura esguia do Daniel em pé na porta do interior. A moça aproximou-se do criado, que lhe disse:
— Dei o recado; respondeu que há de escrever ao Sr. comendador agradecendo.
— Escrever? perguntou Guida.
— Sim, senhora.
— Então não vem?
— Pode ser.
— Bem!
Guida herdara do pai certa impetuosidade do desejo, que foi a origem da riqueza do capitalista, e devia exercer na vida da filha notável influência.
Depois do último encontro com Ricardo, naquela manhã, teve desejo de conhecer o advogado; desejo que revelou com franqueza na ocasião do almoço, pedindo a Guimarães que o apresentasse. Não confiando porém na promessa do moço, ao levantar-se da mesa, tomou o braço do pai e preveniu-o de sua intenção de mandar o Daniel convidar a Ricardo da parte dele, Soares.
— Manda! respondeu o pai com indiferença, habituado a confiar todas essas minúcias domésticas à mulher, que as abandonava à filha.
O Daniel partiu imediatamente; e o resultado de sua incumbência acabava ele de comunicá-lo à moça, com a sua imperturbável gravidade.
— Is he coming? (Vem?), perguntou Mrs. Trowshy.
Guida disse que não, com um ligeiro aceno de cabeça.
— Why not? (Por que não?)
Novo aceno exprimiu a ignorância da moça a respeito do motivo por que Ricardo não vinha. Contudo o tato de sua alma de mulher lhe indicava, embora vagamente, a natureza daquele motivo.
— Ele é pobre, pensava ela, muito pobre; há de ser suscetível portanto.
Talvez Ricardo se ofendesse com o convite, feito por intermédio de um criado; e a sua resposta de que havia de “escrever agradecendo”, manifestava bem seu pensamento: era uma alusão. Guida se desculpava consigo mesma, dizendo que Daniel era mais do que um simples criado: era um homem da confiança de seu pai. O convite por esse intermédio parecia-lhe tão delicado, como por carta, sem a solenidade que ela justamente não lhe queria dar.
Se Guida desejava anteriormente a presença do moço em sua casa, agora mais que nunca. Duas razões atuavam em seu espírito. A contrariedade do obstáculo e a vontade de desvanecer uma ofensa involuntária. O que fora até então uma lembrança delicada apenas, mudava-se em capricho.
Capricho? Quem não sabe o que isso é? A palavra o está dizendo. É a alma da mulher que se precipita sobre uma ideia, com a mesma temerária vivacidade e petulância da cabra selvagem a arremessar-se pelas arestas do despenhadeiro.
Guida sentou-se ao piano e começou a preludiar. Não tardou que o Guimarães se aproximasse, atraído pelo ímã, e bordasse sobre o tema da música uma dessas falas que parecem um crochê de palavras de diversas cores. A moça tomou interesse na conversa, e prolongou-a por algum tempo; mas interrompeu-se de repente como se lhe ocorresse uma ideia:
— Não pretende apresentar hoje seu amigo, Sr. Guimarães?
— Como? Que amigo?
— Já se esqueceu? Com efeito!
— Ah! lembro-me. O Nunes. Mas hoje?
— Então quando há de ser?
— Qualquer outro dia.
— Se não for hoje, que ele está na Tijuca, nunca mais o senhor achará uma ocasião para apresentá-lo. Amanhã estou certa que já nem se lembrará disso!
— Sou esquecido, é verdade; mas da senhora, D. Guida, lembro-me até demais.
— Pois lembre-se menos de mim, para se lembrar mais do que prometeu a meu pai. Vá buscar o seu amigo!
— Agora?
— Neste momento, disse Guida levantando-se.
— Mas se não sei onde ele está!
— Daniel há de saber. Vou dizer-lhe que sele o seu cavalo e o acompanhe.
Chegando à porta, a moça deu as ordens necessárias.
— Mas, D. Guida, confesso-lhe que poucas relações tenho com o Nunes; depois que nos formamos há seis anos, é a primeira vez que nos encontramos. Mesmo em São Paulo, nunca fomos amigos; apenas conhecidos. Chegou à corte, não o visitei. Não me julgo pois com direito a procurá-lo assim de repente...
— Tudo isto o senhor devia ter pensado antes de se comprometer: agora tenha paciência. Seu pai costuma dizer que dívidas não se perdoam.
— Ainda há uma razão. Eu sei que o Nunes pôs aqui um escritório de advocacia, porque vi o anúncio; mas se procede bem, se é homem fino, capaz de entrar na primeira sociedade, ignoro. Não posso portanto tomar sobre mim a responsabilidade de trazer à casa do comendador um moço que pode praticar algum ato...
Guida sorriu.
— Esse receio não tenha: eu o absolvo da responsabilidade.
— Mas o comendador?
— Fica por minha conta.
— Não! não devo abusar.
Guida olhou o moço com certo ar resoluto:
— O senhor não vai?
— A senhora fica zangada comigo?
— Oh! não; muito agradecida ao contrário!
Soltando essa frase cheia de ironia, a moça deixou o Guimarães atordoado; e voltou-se para sua mestra, que lia nesse momento um número da Illustrated London News.
— Mrs. Trowshy, a senhora hoje há de jantar perto do Sr. Guimarães.
Se ainda restava alguma hesitação no espírito do filho do procurador, desvaneceu-se de súbito e completamente diante daquela terrível ameaça. Jantar perto da inglesa significava o mesmo que ficar-lhe hipotecado pelo resto da tarde e por toda a noite. Para evitar essa calamidade, Guimarães entendeu que não lhe restava outra saída senão obedecer ao capricho da menina partindo em busca do colega.
— Já vou, D. Guida!
— Ah! Esquecia-me dizer-lhe que seu colega tem um amigo, um companheiro; é preciso convidar a ambos.
— Sim, senhora; cumprirei a sua ordem. Mas não me condene a jantar perto da mestra.
— Se trouxer quem o substitua! disse Guida rindo.
— Fica a meu cuidado!
Guimarães montou a cavalo e partiu com o Daniel. Todo este episódio não escapou, nem ao Bastos recostado à janela, nem ao Nogueira que passeava no jardim. O último não vira o diálogo trocado entre a Guida e o Guimarães; mas bastou a partida deste, acompanhado pelo criado da casa, para excitar-lhe apreensões.
Animado pela ausência dos dois competidores, só em campo, o Bastos, mais desassombrado de espírito, descobriu afinal o meio de solicitar a atenção da filha do milionário:
— D. Guida! disse ele com a voz um pouco trêmula.
— Chamou-me? perguntou-lhe a moça voltando-se.
— Como há de querer então os brincos?
— Que brincos, Sr. Bastos?
— Pois não me pediu no almoço para mandar fazer-lhe uns brincos do feitio dessa flor? replicou o corretor rubro como um tenor sem voz quando dá um dó de nariz.
— É verdade. Desculpe-me; não me lembrava assim de repente. Depois lhe darei uma flor para servir de modelo.
— Esta que a senhora tem?
— Esta ou outra, é indiferente, observou a moça com intenção.
Bastos perturbou-se, e nesse intervalo a atenção de Guida se desviou para outro lado, de modo que achou-se o corretor outra vez na mesma posição cruel em que estava anteriormente, recostado àquela janela e atado ao seu acanhamento, que era para ele um rochedo de Tântalo.
No meio das paixões que se agitavam em torno dela, Guida conservava, devido a seu recato e altivez natural, uma grande serenidade. Quando alguma vez uma palavra mais significativa ou uma alusão mais direta a vinha provocar, ela a afastava com a sua ironia, ou com essa expressão de indiferença que perturbara o Bastos.
Assim permanecia estranha à luta de que era objeto. Sua alma pura plainava como um astro sobre as vagas que a ambição ou o amor sublevavam naqueles corações. As bonanças, como as tempestades, desse oceano, se eram produzidas por sua influência celeste, não a atingiam: ela brilhava sempre com o mesmo esplendor e a mesma limpidez.
Em princípio, suas palavras, seus olhares, seus menores gestos, eram estudados por adoradores, como por indiferentes, e interpretados ao sabor de cada um. A moça incomodava-se muito com isso; retraía-se; tornava-se cada vez mais reservada, constrangendo sua jovialidade e franqueza. Não obstante o círculo em que vivia, obstinava-se em dar a quanto ela dizia ou fazia, uma significação oculta e misteriosa.
Uma noite sucedeu dançar duas quadrilhas com o mesmo par; tão indiferente lhe era o sujeito que não se lembrou de já ter dançado com ele no princípio da partida. O fato foi muito comentado, até por algumas amigas, que viram nele uma preferência manifesta. Guida aproveitou a ocasião para de uma vez pôr termo a essa insistência que a afligia.
— Tenho muito tempo para ser moça. Agora ainda sou criança, e quero sê-lo até dezoito anos. Não cuido nessas cousas de que os outros tanto se ocupam; só penso em divertir-me. Para mim é indiferente o par com quem danço, desde que for um homem delicado, de boa sociedade. E assim quanto ao mais.
Estavam presentes Nogueira, Bastos, Guimarães, e muitos outros apaixonados ocultos. Momentos depois as palavras da moça, repetidas em vários grupos, eram conhecidas por todos.
Guida dizia a verdade. Se era já moça na flor da beleza e na graça, tinha contudo a ingênua isenção da menina. Seu coração ainda estava em botão; seus pensamentos, embora alguma vez se embalassem nos sonhos azuis de um futuro risonho, eram em geral absorvidos pelo estudo, ou pelo prazer dos passeios e divertimentos inocentes.
Não brincava mais com bonecas, é verdade; suas bonecas eram Edgard e Sofia, ou as flores de seu jardim. Mas também ninguém a via tomar ares melancólicos e atitudes pensativas, suspirar a cada instante, ou recitar poesias de amor, acentuando as frases apaixonadas do poeta. Em uma palavra, não era romântica. Tinha a suas amigas afeição sincera; mas não lhes emprestava a linguagem ardente, que afetam certas moças, e que faz supor, sob o pretexto de amizade, a expansão de algum amor oculto, ou pelo menos de um amor ideal criado pela imaginação.
Por isso dificilmente podiam os adoradores de Guida iludir-se a respeito de sua indiferença. As palavras da menina não tinham sentido ambíguo, nem misteriosa alusão; o olhar, o sorriso, o gesto eram transparentes e não conheciam o jogo cruel de semear esperanças e excitar desejos, para depois machucá-los, como as flores ou as fitas que se trouxe no cabelo.
Assim o espírito sério de Nogueira não se deixava embair por seu amor-próprio; ele acreditava que Guida não dava a menor preferência a qualquer de seus adoradores; mas pensava que de repente podia seu coração desabrochar, e nesse momento se despertariam as impressões gravadas n'alma da menina. Toda sua tática se limitava a imprimir no espírito de Guida, como em uma cera branda, a admiração por seu talento e a confiança em seu futuro brilhante.
Mas, apesar de hábil, o futuro deputado estava apaixonado pela moça, e tanto bastava para tirar-lhe a calma necessária à realização de seu plano. Assim, na ocasião do almoço, ouvindo referir o incidente do serviço prestado por Nunes, tivera uma suspeita; e para esclarecê-la fizera a propósito da flor uma alusão que lhe valera a réplica irônica da moça. Arrependera-se e esperava a primeira ocasião para desvanecer a desagradável impressão.
Eram estas as cismas que ainda o preocupavam no jardim, enquanto fumava o segundo charuto:
— Quem será esse moço?... dizia ele consigo, arrancando distraidamente as pétalas de uma rosa. Foi hoje a primeira vez? Guida passeia a cavalo todos os dias; não o terá encontrado anteriormente?... Algum romance começado... quem sabe! O Guimarães saiu com o criado. Aposto que foi em busca do sujeito para apresentá-lo hoje mesmo. Não há dúvida! Por que motivo ela daria tamanha atenção àquele boneco, se não fosse o desejo de obter dele um serviço? E o tolo prestou-se!...
Nogueira meditou alguns instantes, e por fim murmurou:
— A cousa desta vez é séria!
Atirando fora a ponta do charuto, entrou na sala.
Enquanto sucediam estes fatos, Ricardo, a causa involuntária deles, estava bem tranquilo em casa de D. Joaquina.
De volta do passeio, saboreou com o amigo o frugal almoço da boa senhora. Ainda estavam à mesa galhofando e rindo, quando ouviram o som do búzio, e pouco depois apareceu-lhes o Simão pescador, alegre, corado e bem disposto.
Trazia várias celhas de cipó cheias de peixe; uma delas era destinada a D. Joaquina, a quem a Gertrudes a mandava de presente.
— Oh! já está bom? perguntou-lhe Ricardo.
— Ora, senhor; para bem dizer, não tinha moléstia; andava banzeiro; mas a moça me trouxe felicidade. Depois daquele dia em que ela ralhou comigo, o senhor bem viu, não há mãos a medir. É peixe tanto, que a rede quase não aguenta.
— Está bom; estimo muito!
Depois de algumas palavras trocadas com a velha, o pescador despediu-se:
— Adeus, sinhá dona. Ainda vou levar este peixe à casa do comendador, o pai da moça. Bom freguês!
Este fato deixou alguma impressão no espírito de Ricardo, que lembrou-se da cena a que assistira domingo passado. Haverá criaturas abençoadas, que tenham o dom de comunicar aos outros sua influência propícia? pensou o moço.
Tendo a presença do pescador despertado a lembrança de Guida, Ricardo contou a Fábio o seu encontro pela manhã e o incidente da flor.
— Bem, creio que sempre tomamos a praça de assalto! exclamou Fábio.
— Não abandonas tua ideia!
— Ora, se fosse comigo o encontro desta manhã, agora estaria eu almoçando em casa do Soares.
— E de que te servia isto?
— De quê?... É bom que o dinheiro vá-se acostumando conosco, e o meio é chegarmo-nos àqueles que o têm.
— Receio ao contrário que nossa pobreza o importune, indo procurá-lo no meio do luxo.
A discussão prolongou-se. Os dois amigos ainda estavam empenhados nela quando chegou o Daniel com a incumbência que sabemos. Ricardo, a princípio surpreso pelo convite que não esperava, não hesitou na resposta que o português transmitiu a Guida. Fábio tomando o amigo de parte instou com ele para aceitar a fineza do capitalista; mas nada obteve.
— Decididamente, assim não iremos para diante; é desenganar, disse Fábio muito contrariado.
— Não tens razão; é justamente assim que podemos merecer consideração, não aceitando uma posição menos digna. Reflete bem: que figura ridícula não havíamos de fazer naquela sociedade?
— A mesma que fazem os outros. Nem todos que frequentam a casa do Soares, são ricos.
— Decerto; mas os que não têm um tratamento correspondente ou são amigos ou parasitas. Nenhum destes papéis nos cabe.
Fábio levantou os ombros. Tornou-lhe Ricardo:
— Não sou desses homens que ostentam um desprezo fingido pelo dinheiro e odeiam os favoritos da fortuna. Ao contrário, quando a riqueza é honestamente adquirida, eu a respeito e estimo, porque representa a meus olhos o fruto, tão legítimo como brilhante, do trabalho; mas em caso algum lhe sacrificarei minha dignidade; não me farei cortesão dessa como de qualquer outra grandeza da terra. O lisonjeiro para mim é um eunuco moral.
— Então um pobre não pode sem bajulação ter relação com pessoas ricas? Que doutrina!
— Sem dúvida que pode, quando se estabelece uma certa igualdade social por virtude de alguma causa, como, por exemplo, a amizade, o parentesco, uma posição elevada, a consideração pública, etc. Um escritor notável, embora nada tenha de seu, pode aceitar a hospitalidade do milionário, porque trata de igual a igual: se este é rei na praça, ele é rei na imprensa. Sua presença, assim como a de todas as outras pessoas distintas, é honra que os ricos solicitam.
— Nesse caso, tu que tens talento e escreves bem, devias aceitar o convite; era uma honra que fazias ao Soares.
— Obrigado pela ironia.
— Onde está a ironia?
— Somos dois pobretões obscuros; eu podia acrescentar de minha parte, e desconhecido, porque realmente o sou nesta grande cidade. Em casa de um milionário, no meio de uma sociedade habituada ao luxo e às grandezas, qual seria nossa posição? Creio que a classifico bem dizendo que faríamos o ponto de transição entre o parasita e o criado; formaríamos o elo desses dois anéis da cadeia.
— Com efeito! Modéstia tão requintada degenera em orgulho. Entendes que não sendo dos primeiros, te rebaixas?
— É outra fragilidade que eu não tenho, Fábio, esse fofo orgulho da pobreza, que serve de forro a um fingido desprezo da riqueza. Não me envergonho de ser pobre, de parecê-lo e confessar em qualquer ocasião; mas estou longe de fazer da minha pobreza uma espécie de dorna de Diógenes. A falta de dinheiro pesa-me, sem contudo me acabrunhar; e justamente porque ela me pesa, me elevo mais em minha consciência, sentindo-me incapaz de cobiçar a fortuna adquirida por meios ilícitos. Estás portanto enganado, meu amigo; não tenho orgulho, mas dignidade.
— É a mesma cousa com diverso nome.
— Não: o orgulho é um impulso para elevar-se acima dos outros; a dignidade é a firmeza, que não consente descer da posição que nos compete. Ora, cada degrau que eu subisse da escada do Soares, era um passo que descia do meu nível. Isolado no meio de tantos convidados, desconhecido naquela sociedade habitual, perguntariam: “Que veio aqui fazer este sujeito? — Prestou um pequeno serviço à filha do comendador, responderia algum íntimo; se fosse um criado, dava-se uma gorjeta; mas como é um pobre bacharel, convidaram-no a jantar.”
— Tu não conheces a sociedade do Rio de Janeiro; nunca a frequentaste. Julgas por São Paulo, ou por informações falsas.
— Conheço-a melhor do que tu, pela razão do provérbio “que no olho dos outros vê-se o argueiro, e não se enxerga no nosso o cavaleiro”. Bem sei que esses intrusos de que falo muitas vezes, não só obtêm a tolerância, como se tornam necessários; tocam quadrilhas, fazem dançar as feias, ou exaltam as virtudes dos donos da casa. São os criados de galão amarelo dos ricaços e banqueiros, ou um móvel de palácio, necessário à comodidade e ao bem-estar, como um sofá de estofo, um tapete aveludado, uma cadeira de balanço. Um traste, bem vês, que não tem consciência do papel que representa; sai dali o tocador de quadrilhas, por exemplo, acreditando que é um amigo da casa, e dos mais estimados.
— Se todos pensassem como tu, não haveria sociedade possível.
— Se todos pensassem como eu, a sociedade não seria o que é hoje, uma floresta negra, onde o salteador de luva de pelica assalta o homem honesto; onde o assassinato e o roubo tomam tantas vezes o nome de casamento por amor e de aliança por amizade.
Já se vê pois quanto era difícil a missão de que estava incumbido o Guimarães. Segundo todas as probabilidades, o filho do procurador não escaparia naquele domingo ao recrutamento a que a Guida o condenara no caso de não apresentar substituto idôneo. Tinha de sentar praça de cavaleiro servente de Mrs. Trowshy, pelo resto do dia.
Para destruir os escrúpulos porventura exagerados de Ricardo, e demovê-lo de sua primeira resolução, fora preciso um espírito hábil e atilado, que sondasse os motivos de sua recusa e os abalasse. Ora, o Guimarães era a mais positiva denegação dessas qualidades; só tinha viveza para as frioleiras; incapaz de sentir, como de compreender as nobres suscetibilidades da alma do colega, nunca poderia desvanecer-lhe a repugnância.
Ao contrário, nenhum tipo tão próprio para arredar cada vez mais o jovem advogado da casa do Soares! O enfatuamento da riqueza, a impertinência do herdeiro a quem a vida do pai retarda o gozo da legítima, a ambiguidade dessa posição no meio de um passado de dívidas e de um futuro de dissipação faziam daquele moço o contraste vivo de quanto há de delicado no coração e de sensato no espírito.
A presença, a simples presença daquele boneco, a torcer constantemente o bigodinho, e a mirar-se todo em si mesmo, quando não encontrava um espelho, produzia em um homem sério o efeito de uma lixa moral: erriçava a epiderme d'alma. Essa fora a impressão que pela manhã, na ocasião do passeio, o Guimarães deixara no ânimo do colega, apesar de trocarem apenas algumas palavras.
Guida, pois, tinha errado. Querendo apressar a apresentação de Ricardo, talvez a tivesse impedido. Se o Guimarães não fosse à procura do moço, porventura um concurso de circunstâncias levaria o jovem advogado à casa do comendador. Entretanto, agora, quem sabe se a situação não se agravou, e a dificuldade mudou-se em impossibilidade? A moça não podia prever todos os escrúpulos de Ricardo; supunha que o obstáculo provinha apenas de uma questão de forma. Entretanto, cumpre confessá-lo, não tinha ela plena confiança na intervenção de Guimarães; o que até então lhe parecera tão usual, uma simples apresentação, agora se afigurava a seu espírito como um acontecimento, e quase tomava as proporções de um lance dramático.
O Dr. Nogueira, sentando-se perto dela, tomara sobre a mesa um álbum de paisagens da Suíça.
— Não tem vontade de passear à Europa, D. Guida? disse ele folheando o álbum.
— Muita; por meu gosto já teria ido; mas papai prometeu-me que nestes três anos me levaria.
— Há de ir antes, disse uma senhora sorrindo.
— É verdade! acudiu outra que tinha compreendido a malícia da observação. E sem o comendador!
O futuro deputado abaixara a cabeça, e parecia completamente absorvido em ver as estampas. Recordava-se do incidente da flor, e não queria provocar segundo motejo, quando procurava apagar a impressão do primeiro.
— Não entendo! dissera Guida fitando seu límpido olhar no semblante da senhora.
— Casando-se, Guida. Agora é moda; as moças que podem vão passar a lua de mel em Paris.
— É bem possível que me case antes de três anos, D. Guilhermina; mas asseguro-lhe que não me lembro disso.
Guida pronunciou estas palavras com a maior calma. As contínuas alusões a este assunto, banalidades com que de ordinário se entretêm as moças, a tinham habituado. Longe de corar ou perturbar-se, como aquelas que sofrem desse fraco, ficava tão serena como se lhe falassem do baile que havia de festejar os seus dezoito anos.
— Altorf!... disse o Dr. Nogueira em meio solilóquio observando a vista da cidade suíça. É a pátria do libertador: de Guilherme Tell!
Guida lançara os olhos à estampa.
— A senhora recorda-se do fato? É o assunto de uma das mais belas óperas do grande maestro, do imortal Rossini. Um elegante escritor francês, Méry, observa com muito chiste, que esse primor de harmonia, a música tão sublime do autor da Semíramis, foi escrito sobre um libreto indigesto, sem merecimento e até sem gramática. Isto prova, minhas senhoras, que o coração não precisa para ser eloquente nem de sintaxe, nem de retórica.
— Já se representou aqui no Rio de Janeiro essa ópera? perguntou D. Guilhermina.
— Guilherme Tell? Sim, minha senhora; há muitos anos.
— Qual é o enredo?
— É com alguns episódios o fato histórico. Sabe que Gessler, governador da Suíça e homem cruel, aborrecido com a fama de bom archeiro que tinha um camponês, chamado Wilhelm, teve o bárbaro capricho de obrigá-lo a atirar ao alvo em uma maçã colocada sobre a cabeça do filho. Embora tivesse o archeiro plena confiança em sua destreza, a ideia de que uma linha podia fazer dele o assassino de seu próprio filho, o enchia de terror. Mas o que não pode a vontade do homem? A flecha arrebatou a maçã da cabeça do menino incólume. Contudo o pai já tinha outra embebida no arco. “Para que esta segunda flecha? perguntou o tirano. — Para ti, se eu tivesse a desgraça de ferir meu filho.”
— Bonito, não é, Guida?
— É com efeito admirável, continuou o doutor; entretanto a perícia do alemão nada é à vista da destreza dos selvagens do Brasil. Estes faziam cousas incríveis.
— Deveras?
— Furavam os olhos de um pássaro a voar; e flechavam o peixe dentro d'água.
— Que vista! acudiu D. Guilhermina.
— Este ponto indica o lugar donde Guilherme Tell atirou. Aqui ele pronunciou aquela palavra que foi o primeiro grito de liberdade de sua pátria.
— É então o Ipiranga da Suíça? disse Guida sorrindo.
— Justamente; mas o nosso Ipiranga não tem uma fonte, nem sequer uma lápida, que comemore o dia 7 de Setembro. Bajulam-se os reis e os grandes; mas não se honra a nação. Quando eu for deputado, hei de advogar esta causa, que é a dos brios nacionais.
O doutor voltou a página:
— Esta é Friburgo, célebre por sua ermida, que um homem só, cavou na rocha viva trabalhando 25 anos; verdadeiro milagre de fé e paciência. Já ouvi contar um fato análogo, sucedido em Minas; mas esse, a ser verdadeiro, é mais para admirar porque foi um aleijado dos braços que trabalhava com os pés, e assim construiu uma capela. Desta cidade de Friburgo vieram os primeiros colonos que fundaram a nossa cidade do mesmo nome.
— Ah! Nova Friburgo. O ano passado lá estivemos! exclamou uma travessa menina.
— Eis Genebra e o seu belo lago: é a pátria de Rousseau, de Calvino, de Staël e outros personagens ilustres.
Continuou Nogueira por algum tempo essa viagem a voo de pensamento pelas montanhas da pitoresca Helvécia, que ele tinha visitado havia três anos. Descreveu o aspecto dos campos e bosques durante o inverno, e aquela natureza áspera e desabrida, que educa o homem para os grandes cometimentos, ensinando-lhe o trabalho, como uma defesa contra o frio e a fome.
Guida e as senhoras o escutavam embebidas, quando o Guimarães passou defronte da janela.
— Onde iria o Guimarães? perguntou o doutor com indiferença.
— Foi convidar a pessoa que ele ficou de nos apresentar, respondeu Guida com a maior naturalidade.
A moça ergueu-se para saber o resultado da comissão. O Guimarães vinha nadando em satisfação; de ordinário o porte do moço e a sua compostura manifestavam o enlevo que ele sentia da própria pessoa. Naquele momento, porém, era uma aleluia viva.
A filha do comendador e o Nogueira conjeturaram que o Guimarães fora bem sucedido, mas cada um a seu modo.
— Vem, pensou a moça.
— Não vem, felizmente! cogitou o doutor.
O Nogueira não sabia da penitência que estava reservada ao Guimarães; por isso entendia que o motivo de sua satisfação era ver-se livre do novo e temível competidor, depois de haver delicadamente condescendido com o desejo da moça.
— Então? perguntou Guida ao filho do procurador.
— Às quatro horas cá está.
— Obrigada, disse a menina apertando-lhe a mão.
Estava satisfeito seu capricho; não pensou mais nisso. Poucos instantes depois, Nogueira encontrou-se com Guimarães:
— Já sei que foi infeliz em sua embaixada.
— Nada. Fiz como Napoleão; foi só ir, ver e vencer.
— Tenho ouvido atribuir estas palavras a César, replicou o doutor; mas naturalmente há erro nos historiadores.
— César ou Napoleão, é a mesma cousa, com a diferença de falar um o latim e o outro o francês.
— Neste caso as palavras que citou devem ser de algum César em português. Mas então o sujeito vem? E o senhor chama a isto vencer? acrescentou Nogueira chasqueando.
O Guimarães tinha com efeito vencido; mas não como ele dizia, à maneira de César, em três tempos — veni, vidi, vici. Havia nisso modéstia de sua parte. Fora mais do que César; mais do que Alexandre: cortara o nó górdio com um revés da língua. Não tivera tempo de chegar, nem de ver, e já tinha vencido; bastou-lhe abrir a boca.
A cousa se passara deste modo. Próximo à casa de D. Joaquina, Guimarães encontrou Fábio; este o desenganou. Atordoado, saiu-se o Guimarães com uma pachouchada:
— Quem sabe se o Nunes não pregou algum calote no comendador e...
— Boa ideia! atalhou Fábio a rir. Sabe que mais! Lá vamos comer o jantar do homem.
— Olhe lá!
— Com certeza!... Eu me incumbo do negócio.
— Então às quatro horas?...
— Sem falta.
Tinham dado três horas da tarde.
Guida recolhera a seu aposento; era o momento de vestir-se para o jantar.
Sentada defronte do toucador, percorria com os olhos os dois guarda-roupas, cheios de vestidos de vários gostos e padrões. Conhecia-se que estava embaraçada na escolha, e esperava alguma inspiração para improvisar a ode de gaze, seda e rendas, que escrevem cada dia as senhoras elegantes.
Há duas espécies de faceirice.
Uma é a inocente e pura expansão da beleza. A mulher bonita obedece a uma lei da natureza, revelando-se na plenitude de sua graça; enfeita-se, como a flor desabrocha, como a estrela cintila, como o céu se anila. Deus criou tais primores para serem admirados.
Esta faceirice é casta, simples, sem afetação; seu desejo resume-se em ser natural, em revelar a gentileza própria no maior brilho. É a poesia de Horácio, a música de Bellini, a pintura de Rafael, copiadas no traje da mulher formosa.
A outra faceirice consiste em uma orgulhosa ostentação da beleza. A mulher não cede à força espontânea de seu organismo, mas ao estímulo da vaidade. Adorna-se como o cristal que imita o diamante, ou como a centelha que se afigura uma estrela na treva da noite. É linda, mas pretende ser esplêndida.
Esta faceirice vive da afetação, que transforma uma criatura humana em um aleijão da moda. Não se contenta com ser admirada; exige a adoração, o culto ardente de todos que a contemplam, embora tenha de pagar com olhares e sorrisos o incenso que lhe queimam aos pés.
Guida não tinha decerto esta faceirice de mau cunho, espécie de ouropel da beleza; mas sentia, como toda a moça bonita, o desejo inato de ser castamente admirada. Naquele dia esse desejo adquiria a intensidade que costuma em ocasiões de espetáculos, festas e bailes.
Entretanto nada disso havia em casa do Comendador Soares. Era o jantar habitual dos domingos, talvez menos concorrido do que em semanas anteriores. Afora as pessoas que tinham assistido ao almoço, ninguém mais se esperava além dos dois bacharéis; mas a presença destes não dava decerto o caráter de uma festa àquela simples reunião campestre.
Quem pudesse acompanhar o pensamento de Guida, nessa ocasião, conheceria sem dúvida a causa de seu embaraço na escolha do vestuário. A menina, recostada na cadeira, tinha começado a calçar um par de botinas cor de pérola; mas de repente se distraíra, permanecendo na mesma posição, com o pezinho mimoso cruzado sobre o joelho e os olhos fitos no espelho, onde parecia rastrear a sombra das cogitações que lhe perpassavam na fronte pura.
Guida lembrava-se de seu primeiro encontro com Ricardo, e da série de impressões que se tinham gravado em seu espírito desde aquele momento.
Rindo-se da atitude de namorado em que vira o moço, e aproveitando o pretexto para brincar com sua mestra, a menina pouca importância deu àquele pequeno incidente; e já o tinha completamente esquecido, quando, na volta do passeio, ouvira casualmente um trecho da conversa dos dois amigos.
Como todas as pessoas que vivem na alta sociedade e em posição superior, Guida estava acostumada à maledicência. Já não estranhava, quando via uma ação ou uma palavra acremente censurada pela mordacidade e pela inveja. Ela própria na sua qualidade de dote milionário, disputado por tantos adoradores, não era um altar onde se queimavam como incenso tantos despeitos e ciúmes?
Entretanto a palavra grave de Ricardo, a opinião severa desse desconhecido, pronunciada com a calma e a firmeza da razão, traspassou a alma da moça de uma sensação desagradável. O olhar que ela deixou cair sobre os dois moços, foi de desdenhosa altivez; mas a eletricidade do lampejo bem indicava que o coração se confrangera, e o céu dessa alma pura se toldara.
— Ora! dizia Guida interiormente ao chegar à casa, que me importa a opinião desse moço a meu respeito! Não tenho juízo?... Mas não ando aos beijos com as flores que encontro! Não pareço uma criança, apesar de ter dezesseis anos?... Se há homens que, mesmo de cabelos brancos, ainda são meninos... Não é de admirar...
Durante o resto do dia não se lembrou do incidente; mas à tarde, a cena provocada por Sofia avivou as impressões da manhã, dando-lhes porém novo aspecto. O mancebo, que lhe aparecera de manhã como um pensador grave, mostrava-se agora elegante cavaleiro; por outro lado, ela, que se queixara interiormente da censura do desconhecido, não acabava de a justificar arriscando a vida de um homem com um de seus caprichos, a posse da cachorrinha mal-educada?
Quando Ricardo desapareceu na volta do caminho, uma voz murmurou num cantinho da consciência:
— Ele tinha razão!...
Depois estas preocupações se afogaram de novo no entretenimento da conversa e da música. Só ressurgiram um momento, antes de adormecer, nesse crepúsculo da alma entre a vigília e o sono, quando as impressões do dia flutuam vagamente diante do espírito como objetos que se imergem na sombra.
A imagem de Ricardo beijando a flor perpassou no meio da visão. Nessa hora em que a travessura do gênio alegre já estava sopitada, o coração expandiu-se. Guida pensou que devia ser ardente e sincero aquele amor que se exalava, no ermo, à face de Deus; talvez fosse um amor infeliz.
— Se eu pudesse saber a sua história!
Adormeceu; e sonhou que encontrara a florinha agreste cor de ouro, e que esta lhe contara a razão por que o moço a beijava. Mas de manhã não se lembrava mais da história; só lhe ficara a imagem fugitiva do sonho.
As moças afagam muito os sonhos, quase tanto como costumam as mães aos primeiros filhos. A razão é porque os sonhos são os primeiros filhos da imaginação da menina que chega à adolescência. Os desejos vagos, as tímidas esperanças, os perfumes do coração, que não se animam a exalar-se durante o dia, recendem à noite, no abandono do sono, como o aroma de certas flores que só abrem com o orvalho.
Guida ocupou-se durante o dia com o seu sonho; e passando pelo mesmo lugar onde na véspera encontrara Ricardo, desejou ver a flor e conhecê-la. Viu com efeito; achou-a muito linda; desde esse dia ficaram amigas. Sempre que vinha desses lados quebrava alguns ramos, que levava consigo.
A lembrança de Ricardo se apagara completamente do espírito de Guida, e do primeiro encontro não restava outro vestígio senão a afeição à linda florzinha agreste, quando o encontro na Cascatinha veio debuxar outra vez a reminiscência fugitiva. Guida, que já havia notado o garbo e a beleza do Galgo, pôde então contemplá-lo a seu gosto; e a estampa do lindo cavalo foi a recordação que lhe ficou desse domingo.
Mais tarde o acaso lhe deparou a ocasião de ver a aquarela do álbum de Ricardo. A suspeita ou pressentimento de que o desenho representava seu vulto a cavalo, excitou-lhe vivamente a curiosidade. Ela daria sem hesitar o mais querido dos seus caprichos, Edgard ou Sofia, para ver aquela paisagem.
A imagem de Ricardo, passada a primeira impressão, desmaiava a pouco e pouco. Os últimos encontros já não lhe destacavam os contornos: o vulto do desconhecido permanecia vago, indistinto, no fundo das reminiscências da moça. Fora um homem, um homem qualquer, que passara um momento no horizonte de sua existência, e só lhe aparecia agora como uma sombra.
O que estava bem gravado na alma de Guida, o que ela afagava em algum momento de cisma, não era o moço, não; mas cousa muito diversa. Era a linda flor agreste, a quem amava; era o formoso cavalo, que desejava ardentemente possuir; era finalmente a aquarela do álbum, que ansiava por ver. Ricardo não figurava nas recordações da menina, senão como um amigo da flor amada, como o dono do cavalo cobiçado, e o autor do desenho misterioso.
Sem dúvida era agradável ao espírito de Guida que a pessoa ligada a ela por essas relações, fosse um moço distinto pela inteligência e educação. Nas poucas vezes que de relance vira o advogado, a moça tinha reconhecido ou antes pressentido nele com o tato da mulher os dotes do espírito e do coração. Por isso consentia que a lembrança do desconhecido se associasse em sua memória aos objetos de seu desvelo.
O encontro daquela manhã não mudara a situação do espírito de Guida. Ricardo dera novamente provas de delicadeza e galanteria; deixara de ser um desconhecido, para assumir a posição digna que lhe davam um grau científico e uma profissão nobre; mas seus títulos ao interesse especial da menina continuavam os mesmos. Se não fosse a flor, o cavalo e o desenho, passaria desapercebido aos olhos da filha do milionário, ante a qual se curvavam diariamente tantas distinções do talento, da posição e da riqueza.
Guida estimou bastante que Ricardo estivesse nas condições de ser apresentado em sua casa, e que as circunstâncias facilitassem essa apresentação. Mas por quê? Seja embora desconsolador para o romance o motivo que influía no coração da menina, não podemos ocultá-lo.
Desde que se estabelecessem relações com o moço, podia ela satisfazer sua curiosidade de ver a aquarela, preparava a aquisição do lindo animal, e teria um cavaleiro destro para dirigi-la no caso de ser o Galgo fogoso demais para montaria de senhora; finalmente conversaria sobre a flor querida, com alguém que também a amava. Mais tarde, quem sabe? Saberia a história daqueles beijo ardentes; mas isso era menos importante; já pertencia à imaginação e não ao coração.
Realmente não há poesia que resista a essa fria autópsia da alma e dissecação do sentimento.
Quando se devia esperar que os encontros românticos de uma moça rica e bonita com um mancebo pobre, mas de grande talento e nobre caráter, gerassem no coração virgem uma paixão poética e generosa; quando se podia contar com um idílio gracioso bafejado pelas auras suaves da Tijuca, perfumado pela fragrância das flores agrestes, embalado pelo canto das aves de envolta com o murmúrio das águas, e aljofrado pelos orvalhos daquele céu azul, o romancista não acha mais do que um capricho de criança, uma curiosidade infantil, um desejo de menina travessa!
Felizmente Ricardo não amava Guida, nem sentia por ela a vaga inquietação, que anuncia crises do coração. Felizmente: porque do contrário teria de sofrer a angústia de uma cruel decepção.
Depois de repassar estas reminiscências, o pensamento da menina voltou ao objeto que as tinha provocado, à escolha do traje para aquele dia. Precisava, queria agradar a Ricardo, e por isso estudava o meio, não de excitar-lhe a admiração, deslumbrando-o com o brilho da beleza ou da opulência, mas sim de atraí-lo pela simpatia.
O resultado de sua cogitação foi repelir o par de botinas que tinha na mão, um primor de arte: duas joias de camurça trabalhadas pelo Guilherme. As persianas da alcova cerraram-se, derramando no aposento um doce crepúsculo. A beleza casta é violeta, que só abre na sombra.
Ainda não eram quatro horas quando Guida apareceu na sala.
Tinha um vestido branco de extrema simplicidade, fitas no cinto e no cabelo, botinas de duraque preto, e uma gargantilha de veludo da mesma cor, com um medalhão de jaspe. Era de jaspe também a pulseira, ofuscada pela alvura do braço mimoso, que surgia dos folhos da manga, como uma magnólia dentre frocos de neve.
Só no andar se revelava a deusa, disfarçada com esse traje modesto e comum. Apenas assomou na porta da sala, todos os olhares se fitaram nela, e a alma de cada um de seus apaixonados desdobrou-se sobre o tapete, para ter o sumo gozo de ser pisada por aquele passo airoso, que se desenvolvia como a ascensão de um astro.
As senhoras porém não puderam conter a surpresa. Onde a filha de um milionário, a moça mais elegante do Rio de Janeiro, conhecida pelo seu luxo e bom gosto, onde fora buscar aquele traje comum, que uma menina pobre aceitaria para chegar à tarde à janela, mas não traria por certo em um domingo, quando houvesse visitas em casa? Algumas não acreditariam uma hora antes que a filha do Soares possuísse em seu guarda-roupa os acessórios precisos para criar um adereço tão vulgar e rococó.
Guida conseguira portanto realizar seu pensamento. Achando em suas recordações a imagem de Ricardo, como a de um moço pobre e de um caráter austero, compreendeu, com a admirável intuição da sensibilidade feminina, que o meio de atrair essa alma não era decerto a ostentação de sua formosura e opulência: ao contrário, por esse modo aumentaria a repugnância que levara o advogado a declinar o primeiro convite, e sem dúvida o afastaria de sua casa.
Era preciso não magoar o pudor da pobreza, não irritar as suscetibilidades de um espírito severo, para conciliar sua benevolência e obter a sua estima. Bem quisera Guida eliminar em torno dela, da casa, das salas, do jantar, dos convidados, o aparato da riqueza a que estava habituada; mas, não sendo isso possível, desejou ao menos que sua pessoa fosse um protesto contra o luxo que a cercava, e uma delicada fineza ao hóspede esperado.
As fitas que ela trazia no cinto e no cabelo eram da cor do traje com que andava ordinariamente o jovem advogado. Eu que descrevi esse traje no primeiro encontro, já não me lembrava dele; mas Guida o achara no fundo de suas reminiscências quando pouco antes estivera cismando. Não há como as mulheres para guardarem estas arestas sutis no coração.
No seio, onde as bandas do corpinho se cruzavam, formando o níveo regaço, brilhavam algumas das flores e botões de ouro, colhidos pelo advogado no passeio daquela manhã. Havia também nisso uma fineza a Ricardo, um agradecimento à delicadeza com que satisfizera o seu capricho de menina.
Inocente criança! Não pensava no mal que podia resultar desses galanteios infantis.
Dentro em pouco devia chegar à sua casa um mancebo, a quem ela encontrara por diversas vezes, e afinal abrira as portas de sua casa. Esse coração jovem, ardente, podia notar as identificações da alma da moça com a sua, expressas por uma combinação de cor ou pelo gosto de uma flor: aí estava a centelha da paixão, a faísca do incêndio que ela ia atear sem querer.
Guida descera antes de quatro horas; queria assistir à chegada de Ricardo, não só para evitar a solenidade de uma apresentação em plena sala, como porque sentia que sua presença era indispensável para desvanecer o acanhamento natural de quem pela primeira vez é introduzido em uma sociedade desconhecida.
Davam quatro horas, quando Ricardo e Fábio com pontualidade escrupulosa entravam a casa de Soares.
O Comendador Soares jogava a manilha com seus parceiros habituais, três velhos amigos e camaradas.
O primeiro, à direita, era o Barão do Saí. Natural de Minas, onde começara a vida como tocador de tropa, em uma de suas viagens à corte arrumou-se de caixeiro no armazém de mantimentos do consignatário.
Aos cinquenta anos achou-se o João Barbalho possuidor de algumas centenas de contos; e convencido que não era próprio de um grande capitalista chamar-se pela mesma forma que um moço tropeiro, trocou por um título à toa aquele nome que valia um brasão; fidalgo brasão, se já o houve, pois era o do trabalho e perseverança, e tinha por timbre e divisa a probidade.
O parceiro da esquerda fazia com o precedente o maior contraste. Curto, esguio e encarquilhado, quanto o outro espaçoso e amplo, as mínguas do corpo sobravam-lhe nas mãos e nariz, ou como diziam os malignos, nas garras e no bico. Tudo o mais era miniatura.
O Visconde da Aljuba começara a sua vida mercantil na escola, onde exercia o mister de belchior. Livros, lápis, roupa, tudo ele comprava por bagatela aos meninos, em princípio como agente de um negociante de cacaréus da esquina, e depois por conta própria.
Quando o deram por pronto na escrita e tabuada, arranjou ele uma espelunca, chamada casa de penhor, onde emprestava dinheiro, especialmente aos pretos quitandeiros. A pouco e pouco elevou-se a clientela, até que pôde fechar em sua carteira as primeiras firmas da praça do Rio de Janeiro.
Foi então que, de repente, apareceu o Camacho transformado em visconde, sem que ninguém pudesse atinar com o meio por que obtivera, logo de supetão, aquele título, quando o costume era começar por barão. Diziam uns que fora comprado, outros que lho tinham dado.
— Nem dado, nem comprado! acudia o Soares em tom de pilhéria. O velhaco do Camacho empalmou o aljube, que lhe tinham dado de penhor, e fez-se visconde. Com todo o direito! Não resta dúvida.
Os ouvintes riam; e o visconde, imperturbável, metia as mãos nos bolsos e repetia com certo sonsonete que lhe era próprio, um dito muito conhecido:
— A alma do negócio é o segredo.
Os amigos mais íntimos do Soares, sobretudo o Barão do Saí, por vezes lhe tinham feito observações a respeito da privança a que ele admitia o visconde, cuja reputação dava para um excelente herói do romance galeote, atualmente na moda.
Mas o Soares, que lhe sabia as anedotas, galhofava.
— É preciso lidar com essa gente, para aprender-lhe as manhas, senão corre-se o risco de ser-se enganado a cada instante. E quem as conhece melhor do que o bicho?
Por isso o Soares, que era um gaiato de conta, a toda a hora, no jogo ou em negócio, chamava o visconde de – “meu mestre”; com o que este se lisonjeava, pois tinha para si que não era pequena glória dar lições de velhacaria a um espertalhão daquele tope.
O último dos parceiros, que ficava fronteiro ao comendador, mostrava uma figura respeitável. Poucas fisionomias possuem aquela sisudez, tocada por uma expressão de mansuetude, exalação, ou eflúvio d'alma, a ameigar as asperezas de uma consciência rígida e austera.
Nada mais enganador porém do que esse prospeto de homem importante, conhecido por Conselheiro Barros. Dentro, o que havia, era um desses entes ambíguos, destinados a viver em perpétua irresolução, almas bonachas e inertes, a quem a natureza deu em vez de cabeça um cabo, em lugar de coração uma azelha, para serem empunhados por outrem, sem o que não se movem, nem se abalam.
Em casa, o Barros era manejado pela mulher; se ela não tinha de véspera à noite apartado sobre um cabide a roupa necessária para o dia seguinte, ele não se vestia, e era capaz de ficar até meio-dia de chambre e chinelas, como já lhe acontecera. Nunca sabia quando tinha fome, e seria escusado perguntarem-lhe; era D. Guilhermina quem lhe regulava o apetite, o sono, e até a moléstia. Uma ocasião, ardendo ele em febre, a mulher o persuadiu de que estava perfeitamente bom; levou-o a um passeio em que apanharam sol e chuva. À noite, quando se recolheram, o homem nada sentia.
Fora de casa, não saindo com ele, entregava-o a mulher a um lacaio de confiança, que o levava a visitas e negócios indicados no rol; ou o conduzia direito ao escritório, onde tomava conta dele o seu jovem sócio e “suplente no mercantil e doméstico”, segundo o maligno Visconde da Aljuba.
Filho do consignatário, onde se arrumara em rapaz João Barbalho, quando deu demão ao ofício de tocador de tropas, herdara o Barros bom patrimônio, o qual se lhe multiplicava na burra, sem que ele se apercebesse do como isso se fazia. Quando o sócio no fim do ano lhe atestava com o balanço os grandes lucros da casa, não se imagina o pasmo em que ficava por muitos dias.
Chegado o tempo de entrar para a roda dos figurões, lembrança que bem se vê não partiu dele, mas da mulher, e entabulada a negociação, tratou-se da escolha do título. D. Guilhermina tinha paixão pelo de condessa, e achava que uma coroa de três castelos ia às maravilhas com as tranças opulentas de seus cabelos negros.
Desta vez, porém, o marido quis ter voto e ser homem. Preferiu o título de conselheiro; e turrou de modo que não houve meios de arrancá-lo daí. Nem a mulher, nem o sócio, nem mesmo o Soares, que era um oráculo para ele, o demoveram do seu propósito. Essas almas de gelatina têm isso de particular, que em se inteiriçando, tornam-se guascas; não dobram mais.
Foi o único momento, em que esse homem, habituado desde a sua vinda ao mundo a ser qualquer, foi eu. Toda a energia que devia ter despendido a pequenas doses durante quarenta anos, acumulou-a para empregá-la de um só jacto. Debalde tentaram persuadi-lo que podia ser conselheiro e conde ao mesmo tempo, contanto que pagasse em proporção. Na paga, não havia dúvida de sua parte; mas a prática do mundo lhe ensinara que o conde mata o conselheiro; e se ele caísse em afidalgar-se, ninguém o trataria jamais por “Conselheiro Barros”, que era a sua grande ambição.
A maior concessão, a que chegou, foi consentir que a mulher se fizesse condessa, ela só, ficando ele conselheiro. Neste sentido, a instâncias de D. Guilhermina, deram-se os passos necessários; mas o governo, depois de ouvir os mestres da lei, decidiu que uma condessa só pode ser mulher de um conde.
Resignou-se pois D. Guilhermina, com o maior pesar, ao seu nome de batismo; mas não perdeu de todo a esperança. Consta que apelou para a emancipação das mulheres, ideia de que era ardente sectária, e com razão, porque de seu casal foi ela sempre sem contestação o cabeça.
Já agora aproveitemos a ocasião para completar o quadro, com alguns traços biográficos do Soares.
Era ele paulista; e dos quatro o mais moço, e mais rico ele só do que todos os outros juntos. Viera ao Rio de Janeiro pela primeira vez aos onze anos de idade, tocando uma porcada, que trazia ao mercado seu tio, velho roceiro de Lorena.
Naquele tempo as porcadas percorriam as ruas, como ainda hoje os bandos de perus. Estando parados em uma rua, enquanto o velho comprava chita, um moleque à sorrelfa introduziu no ouvido de um leitão uma bicha. Ao estalo do foguete, espirrou o bacorinho, e ei-lo a correr espavorido. O rapazinho barafustou atrás, para atalhar-lhe a corrida.
Mas corrida foi aquela que o meteu por um labirinto de ruas, onde a cabo de uma hora achou-se às tontas, sem novas do bacorinho nem do tio. Quanto mais procurava orientar-se, mais se atrapalhava; e todo o resto do dia levou a quebrar esquinas, até que exausto de fome e de cansaço, acocorou-se no vão de uma porta, a engolir as lágrimas que lhe queriam saltar aos bugalhos.
Passava um menino de volta do colégio, acompanhado de seu pajem, que sentindo lhe puxarem pelo jaquéu, voltou-se e viu o lapuzinho, de mãos postas a implorá-lo.
— Que tem você? perguntou-lhe com pena.
— Me perdi!
O menino era o Barros, filho do consignatário, onde já estava de caixeiro João Barbalho. Levou o caipirinha para a casa; e a família compadecida o agasalhou, mandando em busca do velho roceiro, que não foi possível encontrar apesar de todas as pesquisas. Resolvido a encarreirar o rapazito, o consignatário o arranjou de caixeiro em casa de um cambista; e aí começou ele a carreira que devia levá-lo ao apogeu da riqueza.
De gênio franco e jovial, tinha Soares uma fonte perene de alegria, com que orvalhava as agruras da vida; mas através dos risos e pilhérias, seu espírito pronto e seguro trabalhava com a inflexibilidade da mola de aço que move as figuras de um realejo.
Suas melhores operações, combinava-as no meio de um jantar ou de uma partida de jogo, e executava-as a galhofar. Brincava com seus milhões, como um menino com seus trebelhos.
Sendo de todos o mais rico, era para notar-se que fosse o menos graduado. A comenda era uma história, e vale a pena de saber-se.
Quando a riqueza de Soares tornou-se sólida e incontestável, até para os invejosos, começaram a chamá-lo de comendador, e por mais que o milionário metesse a cousa a ridículo, defendendo-se contra a honraria, por tal modo vulgarizou-se o tratamento, que não houve meio de resistir-lhe. O público soberano entendeu que um homem tão recheado de ouro não podia existir sem que fosse ao menos comendador, como qualquer troca-tintas.
— Ora pois! dizia o Soares, eis-me comendador por unânime aclamação dos povos. Mas há de ser da ordem do bacorinho!
Essa referência à humildade de sua origem, ele a fazia frequentemente; e percebia-se que tinha sua vaidade em ter subido de tão baixo àquela sumidade financeira. Custava-lhe a compreender o vexame do Barão do Saí, quando aludiam ao começo de sua carreira, e por isso estava sempre a apoquentar o amigo chamando-o de Barão do Lote, com o que este se resmoía.
Ficou pois o Soares comendador, por uso e cortesia, como tanta gente boa; e ninguém havia nesta corte imperial que não o acreditasse inscrito no grande livro das ordens; no que de todo não erravam, pois era ele terceiro de São Francisco de Paula. Mas este Santo não consta que fosse cavaleiro, e palmilhava como qualquer plebeu sem esporas, nem prosápias.
Em cartas, sobretudo nas de empenho, em listas de acionistas de banco, chapas de diretores, e gazetilhas, lá vinha estampado o infalível “comendador”; que aderira ao nome do Soares, como uma dessas alcunhas implacáveis que perseguem certos indivíduos toda a vida, e afinal colam-se à geração, criam raízes e transmitem-se a toda a descendência. O público é um tirano, e bem gaiato às vezes.
É bem possível, pois, que à imitação dos mais, já o tratasse eu de comendador e continue a fazê-lo.
A partida estava empenhada. O Barros fizera a vaza; cabia-lhe a mão.
— Quem joga? perguntou Soares.
— É o conselheiro! respondeu o barão.
— Então podemos ir jantar. Temos tempo, e ainda chegaremos cedo.
De feito o Barros, na forma do costume, esperava que o concílio dos sujeitos que o estavam aperuando, decidisse a grande questão da melhor carta a jogar.
— O homem quer abarrotar-nos? observou o visconde. Está pensando.
— Anda, conselheireiro, instou o Soares; se pensas tanto, ficas em branco para outra vez.
O banqueiro queria bem, do fundo d'alma, ao filho de seu falecido benfeitor, e por ele faria todos os sacrifícios. Mas a veia sarcástica, que ao próprio dono não poupava, às vezes sem ele o querer, beliscava o inofensivo e pachorrento amigo. Nunca o Soares pudera tomar ao sério o título de conselheiro do Barros; e por isso inventara aquele termo mais apropriado, pela etimologia idêntica à de cabeleireiro.
Impassível como sempre, o Barros nem se ressentiu, nem se apressou.
Foi nessa ocasião que aproximou-se o Guimarães, acompanhado de Ricardo e Fábio, a quem fora receber na entrada:
— Sr. comendador, tenho o prazer de apresentar-lhe os meus amigos, os Srs. Dr. Nunes e Dr. Araújo!
— Tenho muito prazer em conhecê-los! Esta casa está sempre ao seu dispor, quando queiram. Nada de cerimônias. Estamos em família!
Estas palavras, Soares as proferiu soerguendose da cadeira, no tom de cortesia e amabilidade corriqueira, de que na sua qualidade de milionário era obrigado a fazer gasto frequente com a turba de parasitas e gaudérios, que assaltam as casas ricas.
Depois do usual aperto de mão, voltava à partida de que fora um instante distraído, e já esquecera os novos hóspedes, em cujas feições nem reparara, quando sentiu no ombro o doce toque da mão de Guida:
— Papai, é o Dr. Nunes que esta manhã encontramos no passeio.
— Ah! exclamou o milionário erguendo-se e abandonando a mesa de jogo.
Notara Guida de parte a desagradável impressão que deixara na fisionomia de Ricardo aquele acolhimento de carregação que lhe fizera o banqueiro; e por isso indiretamente advertira o pai de que tratava-se de um hóspede especial, e não de um intrometido.
— Eu é que devia primeiro visitá-lo, doutor, para agradecer-lhe seus obséquios; mas os velhos merecem desculpa dessas faltas, não é assim?
— Quando as há; mas neste caso, só vejo uma extrema fineza da sua parte, sr. comendador.
— Perdão! Não tenho comenda de qualidade alguma; é uma intriga de certa gente. Não faça caso. Chame-me Soares, sem mais.
— Queira desculpar, acudiu Ricardo. Eu não sabia, Sr. Soares.
— Sem dúvida, nem vale a pena falar mais nisso. Quero apresentá-lo à minha mulher. Onde está tua mãe, Guida?
— Na sala.
Apresentando Ricardo a D. Paulina, o Soares deixou-o em companhia das senhoras.
— Desceu muito depressa a Pedra Bonita? disse Guida ao advogado. Nós voltamos logo depois e já não o avistamos.
— Estavam à minha espera.
— E o seu cavalo é muito bom!
— Está acostumado aos morros. É um bonito passeio o da Pedra Bonita; não o tinha feito ainda.
— Que pena! Não chegarmos até acima! disse D. Clarinha.
— Iremos outra vez! acudiu Guida.
— Depois que o encontramos, o senhor não faz ideia, Guida ficou impaciente por voltar! disse a sonsa da Clarinha.
— O sol estava muito quente! observou Ricardo.
— Não foi por isso; o passeio tinha perdido a graça para mim, respondeu a altiva menina com serena candidez.
Fábio conversava com D. Paulina, que ria-se dos seus gracejos. Guida, que se afastara do grupo das senhoras para sentar-se perto da mãe, tomou parte na conversa; e à hora do jantar estavam, ela e Fábio, muito camaradas um do outro.
Na ocasião de passarem à sala da comida, Fábio aproximando-se de Ricardo, disse-lhe rapidamente ao ouvido:
— Então ainda achas que fiz mal?
Ricardo encolheu os ombros. Fábio o tinha resolvido contra vontade a aceitar o convite do Soares. Para isso foi necessário afiançar-lhe que dera sua palavra de honra a Guimarães, e o fizera para esmagar a calúnia de que ele se tornara eco.
Era Ricardo dos homens para quem não há bagatelas em matéria de probidade. Desde que exigiam dele um sacrifício em nome dos escrúpulos de consciência e do respeito à palavra de honra, era certo obtê-lo ainda que se tratasse de uma ninharia. Assim exprobrando a Fábio de se haver comprometido sem o consultar, e quando já conhecia sua repugnância, se resignou à humilhação de que bem desejava poupar-se.
O primeiro acolhimento de Soares foi como uma nomeação que ele recebesse, ali ante toda gente, de parasita da casa. O sentido daquelas palavras confeitas em amabilidade, à guisa de filhoses de algodão, ele bem o compreendeu. “Entra; eu te admito no rol dos gaudérios desta casa; come, diverte-te, intriga; arranja teus negócios; caloteia os meus amigos; namora nossas filhas; desfruta-me por todos modos. Dou-te licença para tudo, até para falares mal de mim; contanto que mobilies minha casa com decência. Tenho grandes salas, ricos tapetes, cadeiras de estofo, soberbos jantares; mas preciso de gente de casaca, para encher estas salas, pisar esses tapetes, sentar-se nessas cadeiras, e comer estes jantares.”
A Ricardo não surpreendeu a recepção: ele a esperava. Todavia incomodou-o tanto a realidade que decidiu eclipsar-se no meio da confusão, e retirar-se antes do jantar, sem prevenir Fábio.
Demoveu-o desse intento a distinção com que logo depois o tratou Soares e a família. As prevenções que trazia, se de todo não se dissiparam, ao menos emudeceram, diante do caráter franco do banqueiro, da singeleza ingênua de D. Paulina, e da natural e graciosa isenção de Guida, que parecia flor exótica naquele áureo clima do milhão.
Sentiu que deixara de ser um número de rol, um anônimo perdido na turba; e por conseguinte não tinha já o direito de se escapar, sem dar satisfação. A delicadeza, e também o assomo ainda vago dum desejo a espontar, exigiam que assistisse ao banquete do Soares.
— Chamam-nos para jantar! disse o dono da casa convidando com um gesto seus hóspedes a passarem ao salão.
A Ricardo estava destinado um lugar à direita de D. Paulina; quanto a Fábio, como não se lembravam dele, e pela simples razão de já haver tomado conta da casa, a igual de conhecido velho, foi colocando-se ao lado de D. Guilhermina, que mostrava-se encantada com a lábia cintilante e espirituosa do bacharel.
— Doutor Nunes, cuide de si! disse o Soares logo depois de tomada a sopa, senão minha mulher deixa-o com fome.
— Fico prevenido! respondeu Ricardo sorrindo.
— Está sempre a brincar! observou D. Paulina, respondendo ao sorriso do moço.
— Como quer começar? À francesa pelo peixe, ou cá à nossa moda brasileira pelo cozido? tornou o dono da casa.
— Já estou servido.
Um criado acabava de trazer o prato de peixe, que lhe servira a Guida fazendo como de costume as honras da casa.
No correr do jantar conversando com D. Paulina, Ricardo sentia um prazer íntimo, como que um aroma das rosas guardadas no seio d'alma. Era que o aspecto sereno da senhora, a efusão de bondade que ressumbrava de toda a sua pessoa, e especialmente as maneiras tão lhanas, lhe estavam retratando na imaginação o aspecto venerável de sua mãe, e mostrando-a tal como havia de ser, se a fortuna a colocasse no pináculo da riqueza.
Às vezes, Guida sentada à cabeceira e atenta a seus deveres de dona de casa, que ela exercia com exímio tato, intervinha com alguma observação na conversa de D. Paulina; e Ricardo recordava-se de Bela, tão linda como a filha do banqueiro, embora lhe faltasse o garbo que dava ao talhe da última supremo realce.
Falando a mãe dos vários sítios da Tijuca, a moça disse para Ricardo:
— Domingo, havemos de ir à Vista Chinesa!
— Com muito prazer.
— É um passeio agradável! observou D. Paulina.
— A vista é soberba; mas como passeio, a Barra.
— E tem razão; é mais pitoresco! replicou Ricardo.
— Por que então não convidaste antes o Sr. Dr. Nunes para ir à Barra?
— Por quê?... repetiu Guida a sorrir. O caminho do Jardim é melhor para galopar.
— Travessa! disse D. Paulina com bondade.
— Gosta muito de andar a cavalo? perguntou o advogado.
— Muito! É minha paixão!...
Ao exíguo visconde, sumido atrás do enorme peru, não escapavam as várias impressões que se manifestavam na fisionomia do banquete, sob o ruído da conversa banal travada de uma à outra ponta da mesa, e acompanhada do tinir dos cristais e rangir dos talheres.
“O prato é o homem”; tradução livre do axioma de Brillat-Savarin: Dis-moi ce que tu manges, je te dirai ce que tu es. Diante do visconde erguia-se um coculo de iguarias; mas era um cúmulo usurário e avarento; compunha-se de uma nica de cada cousa. Servia-se do primeiro ao último dos acepipes; mas só tirava o juro: uns magros 3%.
Com dois daqueles pratos enciclopédicos, estava jantado.
Nesse momento comia ele rapidamente, resmoendo com um dos tais bocados esta palavra, que lhe estava a fazer cócegas nos lábios:
— Que álgebra!... Que álgebra!...
Na linguagem peculiar do visconde “álgebra” significava uma dessas operações intrincadas de juros acumulados e múltiplos, inseridos em cláusulas aleatórias e onzeneiras, que fulminam o mísero caído nas garras de um capitalista mitrado.
Notara o modo atencioso com que o Soares, depois da sutil advertência da filha, tratara a Ricardo; também a fineza de o colocarem à direita de D. Paulina; e por último o gesto sério e meigo com que lhe falava a Guida, para os outros sempre desdenhosa com o remoque a frisar-lhe o lábio.
Lobrigou nesse concurso de circunstâncias um plano de casamento, que, bem conduzido, podia ao cabo de um ano tornar Ricardo o feliz possuidor de um dote milionário, com o acessório de uma galante pequena.
E o capitalista, que houvesse fornecido ao noivo em projeto os fundos necessários para sustentar a posição, poderia retirar da operação um lucro prodigioso.
No meio deste monólogo que reproduzimos sem o sainete de seu estilo financeiro, o visconde começou a calcular, como se fossem algarismos, os grãos de ervilha que espetava no garfo:
— Vamos a ver: 500$ por mês, para o patife lordear por aí e meter num chinelo a rapaziada da Rua do Ouvidor; em um ano, temos 6:000$, dois anos que digamos, 12:000$. Para o alfaiate, charutos, carro e o diabo, ponhamos 8:000$, sem falar dos calotes que ele há de pregar à grande. Aí temos 20:000$. Com um juro magro, de 3%, acumulado de mês em mês, vai ficar-me o tal boneco um tanto salgadete. Mas pode render uns duzentos conteclos...
Nesse ponto o visconde foi interrompido por um incidente.
O Dr. Nogueira observara o enlevo de D. Guilhermina a escutar os floreios que Fábio murmurava-lhe a meio-tom; derreando-se no encosto da cadeira, passou por fora da mesa ao Bastos, colocado três lugares mais longe, uma observação maliciosa.
O Guimarães que de passagem apanhara o dito, percebendo pelo riso do Bastos que havia espírito, assentou de aproveitá-lo.
— Meus senhores, uma novidade!
— O quê?
— A firma Barros e C.ia vai admitir um sócio de indústria, gritou repetindo textualmente o dito do Nogueira.
Felizmente poucos lhe davam atenção; mas nestes o pasmo foi geral. Percebendo pelo espanto quanto era crespa a graça, o Guimarães tratou logo de tirar de si a responsabilidade.
— Foi o Dr. Nogueira que disse!
— Não costumo falar por procurador, meu caro! acudiu o candidato, carregando na palavra.
O Guimarães, que se envergonhava da profissão do pai, amoitou-se, remexendo-se na cadeira.
Que luzida companhia desfila pela estrada do Jardim?
Assim é conhecido o caminho que serpeja pelas encostas da serra da Tijuca, e contornando a base da montanha desde a Cruz, no alto da Boa Vista, vai morrer nas praias de Copacabana.
Cerca de dez cavaleiros, entre os quais elegantes amazonas, baralham-se na marcha ligeira e trote dos fogosos cavalos, soltando à brisa da manhã e aos ecos das quebradas, exclamações de prazer, réplicas joviais, e o saboroso riso da alegria descuidosa.
A uma quadra de distância aprecia outro pequeno grupo, do qual cavaleiros e cavalgaduras faziam com o primeiro absoluto contraste.
Era figura proeminente nele Mrs. Trowshy, flanqueada à direita pelo Visconde da Aljuba, e à esquerda pelo Sr. Benício, um dos mais assíduos comensais da casa do comendador. Seguia-os à cola o Sr. Daniel, como sempre metido naquele sério e empertigado, que lhe servia de estojo.
Os quatro iam montados em mulas baias, que no mais cadente chouto os chocalhava dentro das roupas e da pele, como sacos metidos em bruacas. Por vezes Mrs. Trowshy, amiga da palestra, buscou travar conversa com o visconde; mas a voz, já prestes a sair da boca aberta, com o solavanco afundou-se-lhe pela garganta abaixo; e não houve meio de tirar senão um gorgotão.
Condenados assim ao silêncio forçado, e sacolejados até o âmago, os quatro companheiros de passeio, temendo esbroarem-se com o trote infernal, haviam tentado cada um por sua conta moderar o ardor à respectiva mula; mas fora baldado o intento. As baias estavam apostadas, e não havia modo de dobrar-lhes os queixos, por mais que puxassem dos freios.
Se uma parasse, todas a imitariam; mas aí estava a dificuldade, que nenhuma queria ser a primeira; entendiam lá entre si que a sua dignidade burresca sofreria com semelhante condescendência.
Afinal a inglesa não pôde mais com o vascolejo, que estava por um triz a sacudi-la pela boca fora; pediu socorro ao Sr. Daniel, que também se via nos mesmos apertos.
— Se... nhor, nhor, nhor... Da... ni, ni, ni...
Ouvindo afrautar-se a voz de Mrs. Trowshy à maneira de fuga entre bemol e sustenido, pensou o criado que a mestra ensaiava alguma ária italiana, onde figurasse um tenor com o seu nome, o que lhe fazia lá por dentro umas cócegas mui gostosas.
Foi quando a última sílaba de seu nome, depois de gargarejar algum tempo na sonora laringe da professora, e rompendo afinal dos queixos britanicamente cerrados como uma bala raiada, vibrou um grito de angústia, que o Sr. Daniel, subitamente arrancado ao seu enlevo, compreendeu o susto da mestra.
No trêmulo olhar que lhe permitia o chouto valente da mula, viu o grosso volume da inglesa aos trambolhões na sela, e por tal modo, que ia a despencar-se ao chão, e só por milagre escapara até aquele momento.
Bem quis o Daniel parar a mula e apear-se para acudir a tempo; mas ainda uma vez convenceu-se que nem sempre governa o de cima. Quando ruminava essa reflexão filosófica, ouviu-se um gemido, e a inglesa adernando então completamente como uma corveta inglesa de quarenta canhões, despenhou-se da sela abaixo.
Deu-se nesta ocasião, porém, um incidente, que precisa de explicação.
As mulas em que vinham os quatro companheiros de passeio, eram as baias do tiro do Comendador Soares, acostumadas a trabalhar juntas, quando a vitória ia à Tijuca ou ao Jardim, puxada a quatro. Naquela manhã, crescendo o número dos passeantes, foi necessário recorrer a esses animais, que passavam por dar sela.
A Gatinha, que era a mão da primeira parelha, tocou a Mrs. Trowshy; e a Sinhá, sua companheira, ao Daniel. Da segunda parelha deram a da mão ao visconde, que por exceção naquele domingo arvorou-se em passeante, e meteu-se no meio da rapaziada; a da sela ficou para o Benício.
Ora, desde o princípio do passeio que as mulas procuravam emparelhar-se, como de costume; mas a Gatinha, fustigada pela inglesa, metera-se entre as duas da outra parelha; e a Sinhá, a quem o Daniel trazia bem esticada a rédea, era obrigada a ficar atrás.
Com o susto, soltou o criado de todo a rédea; de modo que a Sinhá, metendo o focinho, alongou-se pelos ilhais da companheira, e tão a tempo, que o busto respeitável da matrona, ao virar de querena, encontrou o toro magriço mas rijo do Daniel, que lhe serviu de espeque.
Emparelhadas e de rédeas soltas, as duas mulinhas despregaram pelo macadame um trote bonito, que era o orgulho do cocheiro do Soares, mas nesse momento causava o desespero do Daniel, agarrado ao arção para escorar a rotunda que desabara sobre ele.
Todavia, ao cabo de alguns instantes sentiu que ele próprio ia aluir-se ao peso da carga; na sua aflição gritou aos outros:
— Acudam, ó senhores, que eu só não aguento!
O visconde e o Benício, cuja parelha trotava no couce da outra, como se a prendessem os tirantes e guias da carruagem, não pediam aos céus outra cousa senão que lhes fosse dado parar as mulas e pôr um termo àquele chouto formidável, que ia com certeza esmoer-lhes os ossos e bater-lhes manteiga dos miolos amassados dentro da cachola.
— Então, senhores! exclamou o Daniel já esmagado, mas tentando um surto. Deixam cair a mestra de D. Guidinha?
O principal cuidado do ilhéu era a sua pessoa, ameaçada seriamente de ser despenhada com aquele desabe humano que por seguro o achatava em terra.
Na impossibilidade de sofrearem as mulas e fazê-las parar a fim de, apeados, acudirem ao Daniel, e ampararem da queda a inglesa, os dois acólitos tiveram nesse transe supremo um rasgo heroico. Estendidos, quase deitados ao pescoço das baias, cada um inteiriçando o braço direito, meteu mão ao trambolho luso-britânico e o afincou na sela.
Afinado cada vez mais no trote largo e cadente, o tiro das mulas despejou o caminho às braçadas, conduzindo em charola a grotesca penca dos quatro; e com pouca demora apanhou a luzida comitiva, que já tinha moderado o primeiro ardor.
Ao dar com o grupo cômico, digno de uma farsa equestre em circo de cavalinhos, despregou-se o riso de todos os lábios, e uma gargalhada estrepitosa rolou pelas quebradas da serra, como a cascata grande da Tijuca a espadanar por entre os fraguedos.
Topando com os outros animais, as baias moderaram o entusiasmo e afinal estacaram, pois a um aceno de Guida alguns cavaleiros tinham saltado ao chão a tempo de apararem na queda a cambulhada humana, que já de todo pendurada sobre as ancas da Sinhá ia finalmente despencar-se.
Concertada a marcha da comitiva, continuou ela a passo por algum tempo, não só para dar respiro à batida dos animais, como sobretudo para que Mrs. Trowshy e os seus companheiros de tiro tornassem a si da esfrega, e pudessem de novo soldar-se na sela.
Na frente ia Guida, montada no Galgo, que ela governava com a mesma elegância e correção do costume, mas com certa prevenção que se revelava na firmeza do gesto e vivacidade do olhar. Ela sentia que não tinha de haver-se com a arrogância aristocrática do filho de Albion, mas com a briosa independência do árdego curitibano.
Perto da moça vinha Ricardo em Edgard, conversando com D. Clarinha. Aos lados, Guimarães e o Bastos disputavam a direita ou a esquerda da moça, conforme as sinuosidades do caminho e evoluções da cavalgada.
No segundo plano notava-se D. Guilhermina a par com Fábio, que se desempenava em um soberbo cavalo campista, cujo defeito único era ser um tanto pesado. Seguiam-se outras moças e cavaleiros, sem contar a bagagem pesada, que fechava agora o bando.
Eram sete horas da manhã, e pouco havia que o rancho alegre partira.
Conforme o ajuste do domingo precedente, Ricardo às seis horas se dirigira à casa do Soares. Não lhe causava o mínimo alvoroto esse passeio; dispunha-se a ele, como ao cumprimento de um dever de cortesia.
Guida o convidara para obsequiá-lo; e ele, que reconhecia-se injusto nas prevenções que nutrira contra o banqueiro e sua família, considerava-se obrigado em consciência a aceitar de rosto alegre o agasalho que lhe faziam nessa casa. Era o único meio que tinha de agradecer a fineza.
Todavia, não foi esse o principal motivo. Da conversa de Fábio, percebeu ele que o amigo ardia em desejos de tomar parte no passeio e não faltaria por certo, se o Galgo pudesse dividir-se em dois ou estivesse em moda a garupa.
Desde então Ricardo, que tinha suas razões, não hesitou mais; e decidiu-se a ir ao passeio, para evitar que Fábio o substituísse.
Muito cedo, pois, chegou à casa do Soares. Grande porém foi a sua surpresa, e não menor a contrariedade, avistando no pátio, entre o grupo de senhoras e cavaleiros, que se preparavam para montar, a Fábio ocupado em apertar a cilha do cavalo de D. Guilhermina.
Madrugando nesse dia, contra o costume, o sobrinho de D. Joaquina se aprontara e saíra a passeio para o lado da Boa Vista. Afagava-o uma esperança.
Em caminho encontrou D. Guilhermina que voltava do banho com outras:
— Então não vai à Vista dos Chins? perguntou ela.
— Não arranjei animal! respondeu Fábio.
— Que desculpa! Eu lhe empresto um. Venha!
Fábio acompanhou as senhoras à casa do Soares. No pátio já estavam arreando os animais. D. Guilhermina chamou um escravo:
— O cavalo do Sr. Lima aqui para o Sr. Dr. Fábio.
— Sim, senhora.
— Este castanho é o seu? perguntou Fábio.
— Acha bonito?
— Soberbo!
Guida, que descia os degraus da escada, viu Ricardo apear-se, e foi-lhe ao encontro.
— Como passou?
Saudara ao moço com estas palavras e um aperto de mão; mas o olhar cheio de afagos foi para o Galgo. Havia nesse olhar a angélica voluptuosidade com que a moça cobiça um capricho, e a menina uma boneca.
Edgard estava pronto e esperava pela senhora. O estribo de Guida era feito de modo que lhe permitia montar sem auxílio de banco, apesar da altura do cavalo. Era uma simples invenção de seu gênio travesso, a qual o melhor correeiro da corte, o Lambet, se incumbira de pôr em prática. A volta do loro passando na mola atravessava o suadouro e prendia-se no outro lado a um pequeno gancho pregado na armação do selim e elegantemente disfarçado por uma aba de couro.
Antes de montar o loro frouxo descia o estribo até o ponto de não constranger; elevando-se rapidamente sobre esse apoio, de um salto a moça galgava o selim; e recolhendo então o loro, prendia-o mais curto, encaixando o ilhó no gancho.
Assim tinha ela a liberdade de apear-se quando queria, durante o passeio, e montar sem auxílio estranho.
Já estava com o pé no estribo, e a ampla saia do roupão mostrava a ponta da bota castanha a brincar sobre o disco de aço quando, tomada de súbito desgosto, afastou-se de Edgard:
— Aborrece-me este cavalo!... disse ela com enfado. Pedro!...
O preto acudiu.
— Não há outro animal para mim?
— E o alazão? perguntou o preto embasbacado e apontando para o isabel.
— Não quero este!... É muito feio.
— Oh! que injustiça! disse Ricardo sorrindo.
— O senhor acha bonito?
— É um soberbo animal.
— Pois vá nele.
— E a senhora?
— Eu irei em qualquer.
— De modo algum. Se o Galgo não fosse tão esperto!
— Por isso não! Mas o senhor não se há de privar por minha causa. Não; eu fico, vou passear a pé.
Depois de alguns escrúpulos mais por parte de Guida, a instâncias de Ricardo, fez-se a troca; e partiu enfim a passeata.
Em uma aberta do mato que borda o caminho, avistaram os passeantes ao longe a barra da Tijuca, ao longo da qual estendia-se o cordão de espuma das vagas, como uma franja de arminho, guarnecendo o manto de cetim do oceano, a embeber o azul do céu.
Os passeantes saudaram com uma exclamação de prazer o quadro encantador daquela marinha, tocada pelos raios do sol nascente, que aveludava as cores mimosas da palheta americana.
Com pouco, dobraram o Canto da Saudade, e os olhos desafogados do arvoredo que vestia a orla do caminho, se desdobraram ávidos pelos horizontes abertos, recreando-se com a paisagem de várias chácaras, derramadas no vale, ou alteadas pelas assomadas das fronteiras colinas.
Entre estas notam-se principalmente duas, a do Moke, por ser das residências mais antigas que se estabeleceram nesse aprazível sítio; e a do Dr. Cócrane, arranjada à feição de um modesto parque inglês, o que lhe atraía outrora grande número de visitantes.
Aqueles dos passeantes, que mais conheciam o prédio por tê-lo percorrido frequentes vezes, apontavam de longe os vários pontos de recreio:
— Olhe, lá está o lago!
— E a ilha!
— Ali, por aquele caminho vai sair-se na Cascatinha.
— Lá naquele morro é a Vista do Mar.
— Como se chama a ilha?
— Malacoff.
E outras exclamações.
Talvez nessa ocasião percorria o escritor destas páginas as bordas do lago sereno, em seu passeio matinal, bem longe de imaginar que teria de referir a comédia, cujas figuras principais passavam ao longe, sem que ele as percebesse.
Entre todos os alegres companheiros, só Ricardo mostrava-se reservado, como já era naturalmente fora da intimidade, e ainda mais quando tinha preso o espírito de uma constante preocupação.
Seu olhar inquieto se repartia entre Guida, que ia perto, mas pouco adiante, e Fábio, que o seguia a pequena distância, do lado oposto.
Percebendo o desejo de Guida, o moço insistira em satisfazer-lhe inocente capricho, com o oferecimento do Galgo para aquele passeio.
Causava-lhe tão íntimo prazer a circunstância de poder ele, um pobretão, prestar um obséquio no meio daquela sociedade cosida a ouro, que os primeiros receios sobre o animal se desvaneceram com a segurança da gentil amazona.
A caminho, porém, conheceu Ricardo que embora Guida se mostrasse tão destra, como era elegante cavaleira, todavia o seu pulso delicado, que cerrava o canhão da luva de camurça amarela como a corola de um jacinto a desabrochar, teria o vigor necessário para domar as impetuosidades do generoso corcel?
E o Galgo nessa manhã estava nem de propósito em um de seus momentos de fogo. A presença dos outros animais excitava-lhe os brios generosos; e o ar puro da manhã, que ele hauria às golfadas para lançar das narinas em fumo ardente, parecia repassá-lo da ligeireza e mobilidade do vento.
Ricardo, sabedor das travessuras e floretas com que nessas ocasiões costumava o Galgo divertir-se, e lembrando-se de quanta firmeza de rédea e agilidade carecia para evitar que estes folguedos se transformassem em revoltas sérias e cóleras indomáveis, Ricardo estava em constante sobressalto e arrependido de haver consentido na troca.
Acompanhando a garbosa inflexão da mão esquerda de Guida, a cada instante passava-lhe prudentes avisos sobre o manejo do animal, advertindo-a dos sestros e modo de os corrigir ou abrandar. Guida ouvia-o com indiferença, quase distraída, e apesar de sua afabilidade com o advogado, bem se conhecia que essa solicitude beliscavalhe o amor-próprio; pois a moça tinha presunção de ser perfeita cavaleira.
Não escapava a Ricardo essa contrariedade; mas, ainda com risco de desagradar, não poupava as observações, toda a vez que as julgava necessárias, embora por último já procurasse um disfarce para as dissimular.
Se tirava os olhos do Galgo e da elegante amazona, era para relanceá-los ao lado oposto, onde Fábio brincava com D. Guilhermina. Já no domingo anterior notara a assiduidade do amigo junto à mulher do conselheiro; mas supôs que não passava de um galanteio sem consequência.
O noivo de sua irmã, bem o sabia o advogado, era dos tais de coração andejo e buliçoso, que não podem ficar quietos, como crianças que são; mas estão sempre a bisbilhotar quanta boneca lhes cai no goto. E o pior é impedi-los de traquinar, pois são capazes então de estripulias diabólicas.
Na manhã do passeio, contudo, entendia Ricardo que o galanteio já ia entrando demais pelo recato de uma senhora casada.
Fábio não só tinha servido de escudeiro a D. Guilhermina para suspendê-la do banco, meter-lhe no estribo o pé elegante, e arranjar-lhe as dobras da saia de montaria, como continuara pelo caminho a exercer o mesmo agradável mister.
Era ele quem levava o chapeuzinho de sol, o lenço, as flores, o leque e até o chicotinho de madrepérola da senhora, que lhe confiara de boa vontade todos esses objetos, não só pela comodidade de os trazer à mão em um cabide ambulante, como para dar ao moço o prazer de os guardar.
Se precisava do lenço para enxugar os lábios úmidos do sorriso, como um lilás ressumando orvalhos; se tinha fome, como o colibri dos perfumes de seu ramo de violetas; se os dedos cativos na luva de pelica bronzeada sentiam ímpetos de se agitarem, como os passarinhos de voar, e queriam divertir-se a cortar os talos das folhas com a vergasta do chicotinho, Fábio prontamente lhe passava o objeto desejado, e nessa troca, repetida de instante a instante, as mãos se tocavam uma e muitas vezes no meio dos risos causados pelos desencontros.
Quando o sol montando as assomadas fronteiras começou a castigar o caminho, Fábio apressou-se em abrir o chapelinho de sol para resguardar o rosto da formosa senhora, que de bom grado prestou-se a essa fineza oriental como uma sultana a receberia de seu escravo.
Assim, tendo necessidade de conchegar o animal para melhor interceptar o sol, sentia Fábio roçar-lhe pelo braço a linda espádua, cujo tépido conchego o trespassava. Nestas ocasiões um ligeiro rubor repontava na face aveludada da moça; mas desfolhava-se logo em um riso desdenhoso, como uma rosa a que a chuva arranca as pétalas.
Esse jogo mútuo de ademanes e brincos, Ricardo o considerava não mais simples amabilidade, porém namoro formal e já escandaloso para uma senhora casada.
Nisso mostrava Ricardo o seu atraso nas regras da boa sociedade. Ainda estava pelo antigo rojão, quando se reparava em tais bagatelas, e fazia-se mau juízo da senhora que desse a qualquer moço, ainda mesmo um íntimo, tanta liberdade.
Atualmente é a moda: a moça solteira ou casada, que não tiver essas maneiras distintas, certamente não passa por elegante.
Outra circunstância muito incomodava a Ricardo: era a facilidade com que Fábio insinuava-se nessa sociedade, onde ambos se deviam considerar apenas como hóspedes de arribação, prontos a deixá-la ao cabo de algumas horas. Ao contrário, o amigo já começava a desfrutar os favores com tal desembaraço, que pouco faltava para entrar no rol dos íntimos, espécie de parasitas da pior casta, porque não só devoram os jantares e ceias, estragam os cavalos, carruagens e móveis, mas babujam a reputação, quando não a honra.
Eis os motivos que traziam tão preocupado o jovem advogado durante o passeio.
Outra pessoa porém perseguia a Fábio com olhares furibundos; era o Benício, que por vezes tentara aproximar-se, mas tivera de ceder à baia, rebelde ao freio, e mais teimosa que ele.
Estaria o Benício também apaixonado por D. Guilhermina?
E por que não? Apesar das compridas pernas, do longo talhe em abóbada, e da cabeça a três quinas, pode um homem ter o coração sensível.
Próximo à crista da montanha, onde o caminho talhando-lhe o cimo, começa a descambar para a vertente, deu-se um pequeno acidente que só notaram três pessoas, além daquelas entre quem se passou.
— Pode fechar! disse D. Guilhermina para Fábio indicando-lhe com o olhar o chapéu de sol. O senhor deve estar cansado!
— Por tão pouco? Não me prive deste prazer.
— Deveras? Acha que é um prazer trazer um chapéu de sol aberto? perguntou a moça com remoque.
— Para abrigá-la do sol?... Decerto que o é!
— Neste caso deixe-me também experimentar. Faça-me o favor de passar o meu!
Fábio quis desobedecer e retorquiu; mas, insistindo a senhora, deu-lhe o chapelinho de cetim verde e contentou-se com apertar-lhe a ponta dos dedos, que não fugiram a tempo de escaparem à cilada.
D. Guilhermina tinha casualmente, por duas ou três vezes, encontrado o olhar perscrutador de Ricardo; e sentindo-se alvo da atenção do moço, também teve de seu lado curiosidade de observá-lo.
O chapéu de sol de Fábio interceptava-lhe o olhar; afastou-o pois, e adiantou o cavalo de modo a não perder os movimentos do moço, sem deixar contudo que ele o percebesse.
D. Guilhermina era bonita, e tinha consciência de sua formosura, que estava então no esplendor.
Teria vinte e oito anos; de desenvolvimento tardio, como uma dália a que faltasse por algum tempo o sol, essa idade que para outras começa a desfolha, para ela, depois de dez anos de casamento, era a mais brilhante floração.
A tez aveludada de seu colo; o fresco e delicioso encarnado das faces; olhos rasgados como duas favas de baunilha e afogados em cristal de leite; a boca, talvez grande, mas primor de graça, cheia de seduções irresistíveis; e as formas encantadoras do talhe modelado com a maior correção e harmonia; tudo nela estava respirando o viço dessa plenitude da mocidade que é o apogeu da mulher.
Como era natural, essa beleza, tão reputada nos salões, supôs-se o objeto de uma admiração ardente, e talvez mesmo já envolta em sentimento mais terno. Qualquer dúvida desapareceu no espírito da moça, apenas notou a expressão de desgosto que se derramava na fisionomia franca de Ricardo, ao surpreender um requebro ou ademane namorado de Fábio.
Desde então procurou o olhar de Ricardo e encontrando-o tentava retê-lo com um lânguido volver do seu. Uma vez demorando-se muito tempo em aspirar o perfume das violetas com os olhos fitos no mancebo, deixou depois cair a mão que segurava o ramo, e este escorregou ao chão.
O chapelinho de sol, faceiramente inclinado, ocultou esta mímica às acesas vistas de Fábio; e um relancear rápido e vivo indicou a Ricardo a queda do ramo de violetas.
O primeiro assomo do advogado foi ditado pela cortesia; as rédeas colhidas de pronto sofrearam a marcha do animal. Mas logo após retraindo, mostrou-se de todo alheio ao incidente; nem suspeitou sombra de provocação, onde só via mero acaso.
D. Guilhermina porém parara de repente procurando em si um objeto que lhe faltasse.
— O que é? perguntou Fábio solícito. Perdeu alguma cousa?
A resposta demorou-se um instante à espera que Ricardo se voltasse; mas este afastava-se.
— Meu ramo!
— Caiu sem dúvida; vou procurá-lo.
Fábio retrocedeu à cata do ramo; mas já o Benício o tinha apanhado, e para não machucá-lo, o trazia a pé, e puxando a mula.
— Faz favor! disse Fábio.
— Nada, meu senhor; quero entregá-lo à dona.
D. Guilhermina que esperava parada, o recebeu, mui contrariada.
— Pode seguir, Sr. Benício, disse Fábio que desejava aproveitar a ocasião de ficar só com a moça.
— Não se incomode! Talvez D. Guilhermina tenha outra vez necessidade de meus serviços.
A mulher do conselheiro percebendo a impaciência de Fábio e receando que ele tivesse algum desaguisado com o pachorrento Sr. Benício, pôs o cavalo a meio galope.
— Viva! disse o moço contentíssimo por livrar-se do sujeito.
Mas o homem, soltando o chouto à mula, aí estava rente com eles e os acompanhou até apanharem os outros.
A Guida não escapara a provocação de D. Guilhermina, e vendo Ricardo render-se no primeiro assomo, sorriu. Era a ocasião de subtrair-se à vigilância contínua que o dono do Galgo exercia sobre ela.
— Bravo, D. Guidinha!...
— Nem a rainha do ar.
Estas exclamações do Bastos e Guimarães festejavam as escaramuças com que a moça se divertia à beira do profundo despenhadeiro.
Voltando-se, viu Ricardo as curvetas do Galgo, e adiantou-se:
— Confesso-lhe que estou arrependido da troca! Pensei que a senhora não fosse tão...
— Tão estabanada!... Pode dizer!... acudiu a moça.
— Queria dizer imprudente, apenas.
— Muito obrigada! retorquiu com um sorriso de gentil motejo. Tenho eu culpa das estripulias de seu cavalo?
— Mas eu preveni-a do quanto é ele árdego! Não suporta certas birrazinhas que a senhora costuma fazer a Edgard! É um caipira, como eu.
— Está o senhor também querendo fazer o Galgo pior do que é! Não o acho tão feroz como o pinta o dono!
— Em todo o caso eu lhe peço, não o irrite!... disse Ricardo alisando a anca do animal para acalmá-lo.
— Eu estou bem quietinha, vê! disse a moça com as mãos cruzadas sobre o gancho do selim. Ainda quer mais? acrescentou atirando a Ricardo um sorriso cheio de malícia.
— Por que não chega mais para o meio? Vai muito na beira do barranco!
— Ah! também faz mal? Pode cair a ribanceira? Não é? Mas lá; se a montanha vier abaixo?
Ricardo não respondeu.
— Que diz?
— Zombe a seu gosto!... Divirta-se à minha custa, contanto que deixe o Galgo sossegado, tornou Ricardo gracejando.
— Está bom, não quero que tenha queixa de mim.
E inclinando as rédeas, fez o Galgo, já apaziguado, tomar o meio da estrada.
— Está satisfeito?
— Se continuar assim...
— O senhor está prevenido contra mim. Quem sabe se não me fizeram alguma intriga? Pois engana-se, tenho um gênio de água morna.
— Não supunha, acudiu Ricardo; mas depois do que tenho visto esta manhã, posso jurar!
— Não é verdade?... Estamos quase no fim do passeio e ainda não dei um galope!
— O galope não é das piores cousas.
— Ah!... Então o galope não faz mal?
— Conforme; num cavalo manso, o galope é agradável e não tem o menor risco; mas em um animal arisco, como o Galgo, não convém a uma senhora.
— É perigoso? perguntou Guida com um modo cândido.
— Pode tornar-se.
— Deveras!
— Se não acredita...
— Ao contrário, acudiu Guida.
— Uma tarde destas e neste mesmo caminho esteve a atirar-se com Fábio pela montanha abaixo.
— E como escapou?
— Esbarrando contra os bois de um carro que por felicidade estava atravessado na estrada.
— Hã!... O tal senhor Galgo faz dessas estripulias!... repetia Guida afagando o pescoço do animal com a mãozinha enluvada.
De repente um sibilo cortou os ares; e o Galgo se arremessou no espaço como um turbilhão, no meio do qual mal se distinguia o torvelim da saia de Guida, agitada pela corrida impetuosa.
Fora o chicotinho que, vibrado pela mão nervosa, fustigara cruelmente o brioso corcel; ao passo que a menina inclinando a cabeça desdenhosamente sobre a espádua, soltara estas palavras no momento de abandonar-se ao ímpeto do animal:
— Quero ver!...
Surpreso, Ricardo olhou um instante o vulto da moça que voava, soltando aos ecos da montanha o seu mote hípico:
— Hep!... hep!... hep!...
Cobrando-se logo do enleio causado pelo imprevisto arrojo, Ricardo largou rédeas a Edgard, que partiu à desfilada no encalço do Galgo, e sem dúvida o alcançaria, pois, contido pelo freio, já o curitibano moderava o primeiro ímpeto.
Mas Guida ouviu o estrupido; e voltando-se, conheceu que Ricardo a seguia e talvez a alcançasse. O chicotinho sibilou nos ares, semelhante a uma víbora que se enrosca; e o Galgo, alongando-se como uma flecha, devorou o espaço.
No meio daquele turbilhão, pareceu ao moço que o talhe esbelto da menina oscilava na sela, e buscou afirmar a vista, quando um grito de terror, que se escapara fremente dos lábios de Guida, cortou os ares.
Fincar esporas no isabel e dispará-lo como um tiro de canhão, foi para Ricardo um movimento maquinal, que ele executou antes de pensar.
Estendia-se por diante o lanço do caminho, que fazendo volta na extremidade corta o cabeço da montanha, e corre alguma distância entre dois taludes profundos para surdir já na outra encosta da serra, no ponto chamado Mesa.
Havia nesse lugar uma longa mesa, feita de paus toscos e ensombrada por espesso bambuzal. Talvez já o tempo a tenha consumido; há três anos ainda a vi, reparada dos primeiros estragos e já outra vez carcomida.
Quantos piqueniques não tem visto o nemoroso bosque dos bambus? Que segredos não guardam em hieróglifos e datas os verdes troncos das taquaras, que a fouce do trabalhador da estrada não cortou ainda para empalhar o rancho? Que banquetes dados sobre aquela rude estiva de varas, sem toalha nem serviços de prata, mas tão opíparos de contentamento e prazer?
Passando à direita do bambuzal, alonga-se o caminho pelo lançante da montanha, e ao cabo de algumas braças derrama-se por uma pequena esplanada, que serve como de rampa ao magnífico cenário.
Aí, à esquerda, no socalco do caminho, está a palhoça onde pousavam os colonos, que abriram o caminho do Jardim e deram nome ao sítio. Conhecido a princípio o lugar pela simples indicação de Rancho dos Chins, a imaginação popular enlevada pela brilhante perspectiva, de lembrança fantasiava alguma das pinturas diáfanas e aveludadas que vira debuxadas em papel de arroz: e daí o nome de Vista Chinesa.
Devorou Ricardo em completa disparada o lanço do caminho, até a garganta onde sumira-se o Galgo levando a moça, talvez já de rasto.
Ao entrar no estreito passo, ainda pôde ele ver de relance o vulto de Guida que passava como uma sombra, por defronte do bambuzal. Ferrando de novo as esporas em Edgard admirado daquela aspereza, o mancebo, sem perder a calma de que tanto precisava, fez um último esforço para alcançar o Galgo, cortar-lhe a dianteira, e evitar a desgraça iminente.
Mas nenhuma esperança tinha de o conseguir; bem conhecia seu cavalo, e avaliando do isabel pela amostra, via que não era ele para bater o corredor paulista, em condições iguais, quanto mais com tal partido.
O espaço desaparecia; e Ricardo via aproximar-se com espantosa rapidez a rampa da montanha, donde o Galgo ia precipitar-se arrastando a infeliz moça.
Já não restava mais que dois trancos do galope, quando arrebatado pela mão destra da amazona, que o suspendeu no ar, o Galgo, rodando sobre os pés, com as mãos no ar e quase vertical, retrocedeu a disparada em que ia, e sofreado veio esbarrar-se contra Edgard, que seguia a vinte braças de distância.
Com tamanha rapidez fora executada esta evolução, que antes de Ricardo voltar a si da surpresa, assomou-lhe em frente o rosto mimoso de Guida, animada pelo ardor da corrida, como pela galhardia da sua proeza equestre.
— Não sou tão má cavaleira, como pensava! disse-lhe a moça desfolhando um riso fresco e argentino.
— Não acho a menor graça nisto! retorquiu o moço com um modo sério e displicente.
— Assustou-se?... Por uma pessoa indiferente!... Se fosse uma irmã ou alguém que lhe interessasse!
— Não é nada agradável sair-se a passeio, e ter-se de assistir a uma catástrofe. Se me houvesse convidado para uma representação equestre à borda de um precipício, eu por certo não me acharia aqui; e sobretudo não concorreria de alguma forma para estas brilhaturas.
— Quer dizer que não me emprestava o seu cavalo? Então pensa que eu precisava dele para atirar-me da ladeira abaixo, se me viesse à fantasia experimentar essa emoção? Está enganado. Para isso preferia Edgard, pois com sua fleuma britânica, só obrigado por mim ele se precipitaria, mas friamente, como um cavalo que se respeita; e não desastradamente, e às cegas, como o seu Galgo, que não tem maneiras.
— Em todo o caso, a senhora há de permitir que tire de mim a responsabilidade que tomei, sem a avaliar, disse Ricardo em tom firme, embora envolto em um modo cortês e polido.
— Pois não! Aí o tem, o seu mimoso! exclamou Guida saltando da sela, com extrema agilidade.
— Desculpe-me...
— Por quê? Por exigir o que lhe pertence? Estava em seu direito. No que não estava, e eu não lhe desculpo, é na ideia que fez de mim.
Dos lábios da moça desprendeu-se um riso sarcástico, prelúdio de sua palavra irônica:
— Pensa o senhor que tendo-o convidado para um passeio, era eu capaz de dar-me ao desfrute de correr um perigo qualquer, como por exemplo, o de atirar-me da montanha abaixo, para que o senhor, como um herói de romance, chegasse a tempo de salvar-me? Pois saiba que nada me aborrece tanto como esses romantismos, já tão vistos e corriqueiros. Além de que seria incômodo para nós ambos: o senhor teria de suportar todo o peso da minha gratidão; e eu de combater a cada instante os escrúpulos de sua modéstia e delicadeza. Imagine o agradável divertimento que teria cada um de nós, o senhor, esmagado pela minha riqueza e generosidade, eu, crivada pelos espinhos de sua dignidade. Ao cabo de um mês não nos poderíamos ver; e faríamos um do outro a mais triste ideia.
Ricardo ocupado em trocar os selins dos cavalos, ouvia impassível essa loquela. Reprimida a primeira contrariedade, conseguira dominar-se e estava resolvido a não interromper a moça; que melhor meio de apagar o fogo àquele despeito feminino?
Passeando de um para outro lado, Guida falava, abatendo com a chibata os largos rofos da saia de montar; na ida e vinda lançava a Ricardo um olhar impaciente por causa do silêncio com que ele a escutava.
— Não sabe o conceito que havíamos de fazer um do outro?
— Não, senhora.
— Eu lhe digo; mas permita que nos substitua por outros quaisquer para haver mais franqueza. O herói do romance teria a heroína na conta de uma criatura sem alma, nem coração; espécie de mulher de ouro, para quem o sentimento é cálculo, e que só conhece uma linguagem, a moeda. A heroína consideraria o salvador como um presunçoso, que aproveitara-se de um mero acaso para se guindar ao pedestal de herói, e humilhar os outros com o seu desdém. Pensa que exagero?
— Ao contrário, acudiu Ricardo firme no seu propósito de não chocar o melindre da moça.
— Já se vê que fez uma ideia muito errada a meu respeito. Não tenho queda para romântica, nem jeito para representar de musa suplementar, e como Safo atirar-me do rochedo abaixo, a pé ou a cavalo. Sou filha de banqueiro, e deram-me educação inglesa. Devo ter pois o espírito positivo, e saber o valor do tempo, o que quer dizer, da vida. Para mim não há homem neste mundo que valha um suspiro, quanto mais um suicídio!
Nesse momento chegava o rancho dos cavaleiros, cujo primeiro susto se desvanecera com esta observação, que, se tivesse acontecido alguma desgraça, Ricardo houvera gritado por socorro.
O Benício correu direito ao paulista, ocupado em mudar os arreios, e atirou-se ao chão como uma bala:
— Sucedeu alguma cousa?... Tenho aqui meu estojo! Se precisa furar... Olhe, aqui está! Quem sabe se a excelentíssima não se machucou. Eu tenho aqui arnica! É uma cousa que trago sempre comigo! Então!...
Vendo aproximarem-se os companheiros de passeio, Guida afastou-se deixando Ricardo às voltas com o Benício, e foi contemplar o esplêndido cenário que se desdobrava em face dela.
Além, na extrema, campindo os horizontes do soberbo painel, o oceano calmo e sereno que se vinha desdobrar até babujar com branca orla de espuma as praias de Copacabana e de Marambaia. Era a tela onde se estampava com vivo colorido, sobre o campo azul, a magnífica paisagem.
Um jardim encantado, como se desenha à imaginação, quando lemos aos vinte anos os contos das Mil e uma Noites; um sonho oriental debuxado em porcelana ou madrepérola; tal era o quadro deslumbrante que debuxavam aquelas encostas.
Lá, no mar, as ilhas que fingem ninhos de gaivotas, a se balouçarem ao reflexo das ondas. Na praia junto à Lagoa, as alamedas do Jardim Botânico, recortando em losangos os maciços da folhagem; e as palmeiras-imperiais meneando às brisas da manhã os seus verdes cocares.
Não vês junto ao sítio aprazível um enorme caramelo, servido sobre uma taça da mais pura safira, como a promessa dos regalos que a natureza americana oferece aos que visitam suas plagas?
É o Pão de Açúcar, no esforço a que o reduzem a distância e a eminência, donde o avistamos.
A nossos pés, o gigante de pedra, o prócero Corcovado, que ao nauta em demanda da barra antolha-se como o guarda desse jardim das Hespérides e daqui parece agachado, como um anão, à base da grande montanha que nos serve de pedestal.
O que porém dava a essa perspectiva um aspecto fascinador, era sobretudo a diáfana limpidez do ar, e uma plenitude da luz que estofava os objetos, cobrindo-os com uma espécie de áurea expansão. Não se podia chamar resplendor, porque não reverberava nem deslumbrava os olhos; era antes uma pubescência, doce e aveludada, onde se engolfavam os olhos com delícia.
Derramaram-se os passeantes pela borda da esplanada para melhor apreciar os vários pontos de perspectiva, e cruzaram-se as observações de toda a casta, e as réplicas ou risos que elas provocavam.
— É o reino das fadas, disse Fábio a D. Guilhermina, mostrando-lhe o admirável panorama. Está a senhora nos seus domínios.
— Se assim fosse, eu encantava-o já, respondeu a moça a sorrir.
— Em quê?
— Nesta flor! tornou mostrando-lhe uma violeta que prendeu ao seio.
A esse tempo dizia o Guimarães:
— Não sei o que acham demais neste lugar! Abalar-se a gente para ver morros trepados por cima doutros!
— Pretexto para o almoço, homem, disse o Bastos, a quem o passeio afiara o apetite; contanto que não se demore o farnel.
Era o nosso corretor desses homens cujo estômago professa a maior independência em relação ao coração e à cabeça: imagem de uma república bem organizada, com perfeito equilíbrio dos poderes.
— Fairy!... Fairy! exclamava entretanto Mrs. Trowshy, estatelada diante daquela magnificência.
— Oh! Guimarães! gritou um dos elegantes da comitiva.
— Que é lá?
— Eras capaz de virar uma cambalhota daqui no Jardim?
— Abraçado contigo.
No seu entusiasmo travou a inglesa do braço do Benício, que estava engomando com a mão a calça amarrotada pelo burro.
— Look, Sir, how beautiful!
— É Botafogo, sim, senhora! respondeu o homem sem desconcertar-se.
À parte, o visconde parecia enlevado ante a cena maravilhosa; tal concentração de espírito mostrava sua atitude contemplativa.
— Está admirando, sr. visconde? perguntou-lhe Guida.
— Estava parafusando uma cousa.
— Não se pode saber? insistiu a moça com malícia.
— O terreno que Deus esperdiçou para fazer mar!
Guida voltou-se com um sorriso para Ricardo que escutara o diálogo:
— É dos meus!
Chegaram à Mesa os copeiros com os petrechos do almoço, que formavam a carga de um burro. O Bastos e o Benício foram dos primeiros a avistar o farnel e deram as alvíssaras aos mais.
Dirigiram-se então os convidados ao bambuzal, onde os esperava um lauto almoço.
O Visconde da Aljuba não perdeu seu tempo. Enquanto devorava o improvisado almoço, ia resmoendo os seus cálculos. Anexara-se à passeata, com surpresa de todos, unicamente para julgar por si da posição do Ricardo em relação a Guida.
Os rapazes, que não podiam nem remotamente perscrutar a intenção do refinado usurário, cuidaram que estava apaixonado por Mrs. Trowshy, e pretendia disputá-la ao Sr. Benício, o cavaleiro servente da inglesa.
O velho deixava-os rir à sua vontade, e ia lançando na memória, como em um borrador, as observações que depois contava tirar a limpo.
Assim não lhe escapou o afastamento que de repente, depois da disparada, havia entre Ricardo e a moça.
— Arrufos! dizia consigo o visconde polvilhando de pimenta-do-reino os camarões. Isto arde, mas abre o apetite!
E ria-se por dentro da pachouchada.
Depois do almoço, cada um quis deixar nos bambus uma lembrança do passeio. Escreveram uns o nome e a data; outros a simples inicial; D. Guilhermina foi desse número, e Fábio cercou o dístico de um traço fingindo um coração espetado em um F.
Durante esse tempo o Sr. Benício, depois de ter fornecido à direita e à esquerda canivetes e tesouras para os dísticos, à sorrelfa tirava os arreios da baia e passava-os para o machinho da carga, sem que os copeiros, ocupados a devastar as ruínas do almoço, dessem pela barganha.
Ricardo gravou o nome de Luísa, sua irmã, talvez na esperança de pungir com aquela recordação a alma de Fábio; mas este nem se apercebia de sua presença ali, tão enlevado o tinham os olhos da mulher do Barros.
O visconde, armando-se de um garfo, marcou um bambu com um enorme cifrão; o que inspirou a Guida um enigma pitoresco. Com um grampo desenhou a moça na casca verde da taquara um cifrão dando braço a um xis rechonchudo, o que todos aplaudiram com risadas descobrindo a alusão aos requebros da inglesa com o usurário.
Às onze horas montaram a cavalo para a volta. Ricardo, a pretexto de arranjar os arreios do Galgo, deixou-se ficar, resolvido a separar-se da companhia, tomando pelo caminho de baixo.
Quando supôs que o farrancho devia ir longe, Ricardo montou no Galgo e seguiu a passo.
— Decididamente esta sociedade não me convém, e eu estou fazendo aqui uma triste figura: a figura de um estafermo num baile de máscaras, ou de um enfermo em dieta à mesa do banquete. Há certas loucuras e vícios da sociedade, em que o homem deve tornar-se cúmplice, sob pena de passar por grosseiro ou imbecil. A mim nem ao menos resta a consolação do dilema; na opinião desta gente já tenho direito incontestável à dupla qualificação. Imbecil, porque me falta o jeito para explorar as boas relações com um milionário; grosseiro, porque não aplaudo à esperteza de uns, ao descaro de outros, e finalmente aos caprichos de uma menina presunçosa e mal-educada.
Desatando indiferente estes pensamentos à brisa, com os frocos da fumaça de seu charuto, feriu-lhe o espírito uma recordação amarga:
— Pobre Luísa!... Não me quiseste crer, quando te mostrei o caráter de Fábio, como ele é, homem do dia ou antes do momento, sem elos no passado, nem cuidados no futuro. Esses homens são na sociedade a imagem das plantas aquáticas, vivendo à flor d'água, sem raízes na terra, nem ramas no ar, ervas sempre, como são meninos sempre aqueles homens. Cobrem-nas lindas flores, uma folhagem sempre viçosa; mas não há aí tronco, nem âmago. Bem me compreendeste, e tua alma te disse que eu tinha razão! Mas tu já o amavas.
Afundou-se ainda mais em suas reflexões:
— E agora? Agora que se atira à sociedade, faminto dos prazeres e divertimentos que tanto cobiçou, quererá ele, ou poderá, nunca mais voltar ao amor obscuro, suave e calmo da família?...
No meio de suas cogitações foi Ricardo surpreendido pelo galope de um cavalo que lhe vinha no encalço, e não tivera o tempo de voltar-se quando Edgard flanqueou o Galgo.
— Não me esperava, aposto! disse Guida com um gesto garrido.
Perturbado com o gracejo da moça depois do que entre eles houvera, e sobretudo com aquele a sós em um caminho deserto, não soube Ricardo que responder.
— Errou o caminho? perguntou ao cabo de alguns instantes.
— Não! Quis ficar atrás; e escondi-me.
Era a verdade. Reparando na demora de Ricardo, suspeitou da intenção do paulista, que ela sabia quanto era desconfiado. Sentindo-se culpada, e ré de seus assomos altivos, assentou de apagar aquele ressentimento.
Pronta em suas resoluções, lançou o cavalo a todo o galope, e desaparecendo à vista dos companheiros, ganhou sobre eles uma grande distância. Chegando ao ponto onde cruzava uma picada que vai ter ao Moke, apeou-se e escondeu-se no mato com Edgard.
Daí viu passar o rancho, e notando a ausência de Ricardo, esperou que este passasse, para alcançá-lo.
Os dois moços seguiam ao lado um do outro, mudos, e enleados daquele encontro. Afinal Guida, revestindo-se da sua gentil petulância, rompeu o silêncio:
— Eu sou uma estouvada! disse ela voltando-se para Ricardo com expressão adorável.
E como ele não respondia:
— Confesse! Não é esse o juízo que forma de mim?
— Nem tanto, replicou Ricardo no mesmo tom. Se dissesse caprichosa e travessa, eu não reclamaria.
— Entretanto minha avó me chama de “Santinha”.
— Talvez as santas sejam assim quando meninas.
— Que quer? Estou habituada a me fazerem todas as vontades!
— O que é bem perigoso.
— Como assim?
— A vontade?... É a fera mais indomável que eu conheço, bem entendido, para aqueles que a têm, porque não dou esse nome ao influxo que dirige certos indivíduos, como o vento impele o navio. A vontade é a soberania d’alma, a acentuação de sua superioridade moral; é o rei que temos em nós, e que pode tornar-se de repente um déspota, contra o qual não há nem o recurso da república. Nas senhoras, este autocrata chama-se capricho, como outrora em Roma lhe deram o nome de imperador, moda que pegou. O capricho é um tirano do gênero de Augusto. Ama o despotismo brilhante de luxo e galas, representado no tom da alta comédia, por bons atores, e com rica decoração! Ah! perdão que estou falando política!... exclamou o advogado interrompendo-se e a rir.
Ricardo aproveitara o primeiro tema, para quebrar com uma conversa banal, mais ou menos salpicada do sal e humor do espírito, o acanhamento da singular situação em que se achava, só com essa moça, em sítio ermo.
— Que tem? Eu gosto da política... para rir, bem entendido.
— É para o que ela serve.
— Mas quanto ao capricho, não concordo com sua opinião.
— É natural; as posições são tão diversas!
— Ou os gênios.
— E o que é o gênio senão o molde que a sociedade imprime n'alma desde o berço, pela educação primeiro, e depois pela opulência ou pobreza, pela grandeza ou humildade de condição?
— Então acredita que não é a natureza, porém o mundo, que nos faz o que somos? Creio que se engana. Há pessoas que vivem deslocadas na posição em que a fortuna as colocou, e a quem essa posição não pode transformar a alma que receberam de Deus.
— Exceções raras. As almas que resistem ao ambiente que as cerca, e não tomam a conformação do mundo onde se desenvolvem, mas conservam sempre sua feição original; essas almas são privilegiadas. Sua missão é reformar, rompendo as cadeias, que manietam as vocações. Quantas vezes porém não sucumbem? E o mundo nem se apercebe das vítimas desse eterno martirológio social.
— É verdade! disse Guida gravemente, curvando a fronte pensativa.
Com essa inflexão e o formoso semblante tocado de uma doce tinta de melancolia, continuou o caminho em silêncio, e como esquecida do companheiro.
A posição tornou-se de novo incômoda para Ricardo, que em vão excogitava um meio polido de romper esse encontro comprometedor para a moça.
Felizmente que veio tirá-lo daquele embaraço o gênio obsequiador de uma pessoa, a quem não prestamos ainda a devida consideração.
Surdindo de um desabe do talude onde se metera com o machinho para abrigar-se da soalheira, o Sr. Benício saiu ao encontro de Guida, com um respeitável chapéu de sol, empunhado à guisa de pendão de irmandade.
— Aqui está o guarda-sol, excelentíssima!
— Obrigada, Sr. Benício, respondeu Guida arrancada a suas reflexões com um ligeiro sobressalto.
— Mas o sol está tão quente!
— Basta-me o véu, respondeu a moça desdobrando o filó verde do chapéu.
— Faça favor, D. Guida?
— Não posso com o peso da sua barraca, Sr. Benício, disse Guida com um remoque.
— Por isso não, eu carrego, respondeu imperturbável o homem.
— Dispenso! acudiu a moça.
— Com licença! tornou o Benício metendo os calcanhares no machinho a fim de guardar a moça do sol.
— Ora deixe-me!
— A excelentíssima pode ficar doente.
— Não tenha susto!
— Então neste tempo em que há tanta febre por aí!...
Guida começou a solfejar o buona sera do Barbeiro de Sevilha.
— A Sr.a D. Paulina não há de gostar, quando souber o sol que a excelentíssima apanhou. A senhora já está tão afogueada!
— Decerto! replicou a moça.
— É o calor!...
— É o seu guarda-sol que me está irritando os nervos.
— A excelentíssima há de ver, se amanhã não está com sardas na pele. E será uma pena!
Colhendo as rédeas a Edgard, com gesto de impaciência, fez Guida uma evolução rápida, e fustigando a valer a anca do machinho em que montava o Sr. Benício, despachou-o a trote largo pela estrada fora.
Sacudido pelo chouto cadente, o homem agarrado ao arção da sela, voltou-se ainda para reiterar o oferecimento, que era escandido em uma espécie de soluço causado pelo vascolejo.
— A excel (uf)... lentíssima (uf)... faz mal (uf)... Aposto que (uf)... chegan' a (uf)... cas'a'stá com... (uf) dor de cab'ça...
E mais diria, se não desaparecesse na sinuosidade da estrada.
Era o Sr. Benício a encarnação de um tipo muito usual de nossa sociedade, o do “homem serviçal”, uma das encarnações do aresko de Teofrasto.
A maior satisfação desse homem era obsequiar; não pensava em outra cousa, não tinha outra ocupação. Tanta arte e perícia punha nesse mister, que o elevara à importância de uma profissão, embora ninguém a tenha exercido com o mesmo zelo e amor.
É certo que tinha um empreguito no tesouro, se não era nalguma secretaria de estado. Mas esse não passava de um pretexto para receber os magros vencimentos, e de um meio de exercer com maior proveito a sua vocação irresistível de obsequiar.
Aparecia às vezes na repartição para tratar do negocinho do seu amigo o Conselheiro A. ou de seu amigo Barão B.; e aproveitava o ensejo para assinar o ponto e pôr-se em dia com os atrasados. Esta regalia, o chefe não a permitiria a qualquer; e se o fizesse, havia de coçar-se com a mofina que sem falta os empregados teriam o cuidado de atiçar-lhe nos jornais.
Mas a um homem tão serviçal como o Sr. Benício, quem podia recusar essas liberdades; e quem teria ânimo de censurá-las?
Achava-se o amanuense em toda a parte, mas sobretudo onde havia pessoas a obsequiar; só em dois lugares era ele incerto, e até mesmo vasqueiro: na repartição e na casa de morada. Afora estas exceções, ficava-se tentado a crer que o homem tinha o dom da ubiquidade.
Trazia habitualmente uma grande sobrecasaca de pano azul-ferrete, que era menos uma peça de vestuário, do que um agregado de bolsos. Tinha quatro: dois nas abas e dois no peito, mas de tais dimensões que se tocavam, acolchoando todo o forro, com o chumaço de papéis, lenços, carteiras, fósforos e mil outros objetos de que andava sempre munido, para ter o sumo prazer de obsequiar.
Usava chapéu de copa baixa e abas largas. Esse traste característico tinha pregado por dentro uma folhinha-cartão, um horário da estrada de ferro, o mapa da partida dos correios, e os sinais do incêndio; tudo isto por baixo do forro volante de tafetá.
Ninguém o via, de dia ou à noite, a pé ou de carro, sem o enorme chapéu de sol verde-gaio a que dera Guida o próprio nome de barraca. A esse traste precioso, devia ele o inefável prazer de preservar dos ardores da canícula, ou da chuva repentina, o seu velho amigo Senador C. quando atravessava o campo, e o outro seu velho amigo o Desembargador D. ao sair da Relação.
Se ao sair ameaçava chuva, ou os calos lha tinham anunciado à noite, munia-se por precaução de um par de galochas de borracha, que sumia na profundeza de um dos quatro bolsos insondáveis. Achava sempre modos de aparecer a propósito para resguardar da lama os pés de alguns personagens desprecatados.
A essa previsão deveu ele a preciosa amizade do Monsenhor E.. Vendo-o um dia entrar no bonde com sapato fino e meia carmesim, acompanhou-o até Botafogo, e aí teve a satisfação de encaixar-lhe o par de galochas, com que a excelência patinhou no mingau do macadame, sem mácula das insígnias prelatícias.
Outros objetos constituíam o indispensável do Sr. Benício e sem os quais não saía de casa: eram os jornais do dia, uma provisão de lenços brancos e de rapé, um papel de palitos, caixas de fósforos, e um estojo de viagem no qual havia tesoura, canivete, alfinetes, preparos de costura, e até dois frasquinhos, um com arnica e outro com éter.
Perdemos de vista nestes últimos tempos ao digno Sr. Benício; mas apostamos que ele introduziu no seu necessário mais um frasquinho para a “hesperidina”.
Assim armado de ponto em branco, lançava-se o nosso homem na labutação do costume; por onde ele passava, não perdia ocasião de obsequiar: era médico, modista, agente, recadista, alfaiate, folhinha, gazeta, almanaque, guarda-roupa, estojo, paliteiro e tudo enfim que fosse preciso, contanto que desse largas a seu gênio serviçal.
Entre duas e três horas, Benício era infalível na Rua do Ouvidor. Se a família de seu íntimo amigo o General F. queria avisar a este do lugar onde o estava esperando; se o seu ilustre amigo o Conde G. ao chegar ao Largo de São Francisco de Paula não encontrava o carro e precisava que o fossem chamar; se a sua respeitabilíssima amiga a Baronesa H., que andava às voltas com encomendas, procurava alguma casa de pechincha; se finalmente o seu bom amigo o Camarista I., ou o Almirante K. ou o Marquês L. queriam perder-se em certas ruas abstrusas e enganar-se de porta: aí estava rente o incomparável Benício; era ele o homem da situação.
Em um ápice dava ele com o general em certa barraca de campanha, que este gostava de contemplar, lá para as bandas do Mercado, efeitos da nostalgia guerreira; farejava o lacaio do conde na barraca do Largo da Sé onde o brejeiro jogava o pacau por conta do senhor; conduzia a matrona a uma casa misteriosa, onde ia todo o mundo grande, mas ninguém confessava; e por último tais voltas dava com o camarista, o almirante e o marquês, que eles perdiam-se por detrás de umas rótulas...
O Benício tinha não só um, como diversos abecedários de amigos; mas entre esses escolhia uma dúzia, que eram os do peito. Havia neste último número suas disponibilidades necessárias, como outrora no conselho de estado. Assim era de rigor que aí estivesse o presidente do conselho certo e o provável, para o que ninguém tinha melhor faro do que o nosso amanuense; e isso provinha da sua privança com um particular de São Cristóvão, o filho, senão o mesmo, que tivera certa contestação com o D. França, o velho. Destas anedotas, já não se fazem hoje em dia.
Para estes amigos do peito era o Sr. Benício o Petrus in cunctis, o pau para toda a obra. Por isso lhe pagava o estado um conto e seiscentos como amanuense.
Tal era pelo menos a convicção em que estava o nosso homem.
Incorporando-se ao passeio, não tivera o Sr. Benício outro fim senão dar pasto ao gênio serviçal. A princípio a fogosa mula baia o impedira de aproveitar as ocasiões; mas para a volta tivera o cuidado de passar os arreios para o machinho cargueiro.
Com a arrancada do machinho, bem a contragosto do Benício, ficaram outra vez sós os dois moços.
Mas a poucos passos de distância cruza a volta que desce para o vale.
— Aqui, peço licença para separar-me, disse Ricardo.
— Não passa o dia conosco?
— Há de me desculpar; tenho necessidade de estar em casa.
— Já vejo que não esqueceu!
— O quê?
— A impertinência de há pouco.
— Oh! minha senhora!
— Tem medo de outra cena igual.
— Que ideia!
— E eu me não posso queixar.
— É uma injustiça que me faz, D. Guida.
— Há um meio de convencer-me.
— Qual?
— Passe o dia conosco.
Ricardo hesitou um instante.
— Passarei, disse naturalmente.
Refletiu que se persistisse em retirar-se naquele momento, deixaria no espírito da moça a convicção de o haver ofendido, e o desgosto que sempre causa a suspeita de ter decaído da estima de um homem sisudo.
Que necessidade tinha de humilhar essa moça, de quem afora um instante de contrariedade naquela manhã, só recebera amabilidades e delicadezas? Eram mais algumas horas de constrangimento, que lhe custava essa condescendência.
— Agradeço-lhe de coração, respondera Guida. Em outro dia sua companhia me seria agradável, como sempre.
Ricardo inclinou-se:
— Hoje se não jantasse conosco, eu ficaria triste, acrescentou a moça com um cândido sorriso.
— Então fique alegre, replicou o moço retribuindo o gracejo.
— E estou!
Uma terceira voz misturou-se ao diálogo:
— Então a excelentíssima não quer aceitar?
Era, não carecíamos dizer, o incansável Sr. Benício, que tendo afinal conseguido sofrear o chouto do machinho, voltara atrás; e aproximando-se sem que o percebessem, ali estava de espinhaço arqueado e braço estendido, a empunhar o guarda-sol, em posição de archeiro.
Desta vez Guida não respondeu-lhe e seguiu adiante. Voltou-se então o Benício para Ricardo e apresentou-lhe a veneranda barraca:
— Sr. doutor, V. S.a é servido?
— Não; obrigado.
— Olhe que o sol está pelando.
— Nem por isso! Ao contrário, acho bem fresca a manhã! Fizemos um passeio magnífico. Não gosta da Vista dos Chins?...
— Faça favor! insistiu o obsequioso Sr. Benício com o guarda-sol.
— É um panorama admirável; não creio que haja no mundo uma tela igual, a não ser uma que eu conheço de fundo verde-gaio, por detrás da qual se desenha a figura de Mefistófeles. Não a que representa no drama de Goethe, mas uma que aparece na farsa do Judas em sábado de aleluia.
— Tenho muito gosto! acudiu imperturbável o Sr. Benício metendo à cara do advogado o chapéu de sol.
O riso cristalino de Guida que, ao remoque do moço, trilara como um colar de pérolas a desfiar-se, desatou em risada com a réplica do amanuense.
Ricardo tinha dois fins, travando conversa com o Benício, e falando-lhe em linguagem que para este era grego ou hebraico.
Conseguia em primeiro lugar reter junto de si aquele algarismo social, que tinha naquele momento a grande importância de uma unidade; somada ao número dois fazia três.
Além disso defendia-se da serrazina dos oferecimentos com que o ia apoquentar, e nada obstava a que tratasse de rir-se em vez de amofinar-se.
— Olhe! não me incomoda.
— Já conhecia a Vista Chinesa, Sr. Benício?
— Vim uma vez o ano passado, e por sinal que fazia um sol de abrasar como agora, e eu ofereci o meu guarda-sol ao Dr. Nogueira, o que valeu-lhe bem! Aceite, tome o meu conselho!... concluiu o amanuense enristando de novo a cana para investir contra o advogado.
Apanhado de surpresa, quando pensava que o Benício ia divagar, protestou Ricardo não cair mais no logro de escutá-lo; e tomando a palavra começou a fazer ao companheiro a descrição pitoresca da Tijuca.
— Mais bonito do que a Vista Chinesa, é o Bico do Papagaio. Ali é que eu o queria ver, Sr. Benício, para comparar os dois picos. No de lá há justamente por cima do nariz da pedra uma árvore que finge bem um chapéu de sol!
— Não faça cerimônia, sr. doutor! atalhou o Benício voltando à carga.
O amanuense divertia à maneira das caricaturas, que depois de vistas, se tornam monótonas.
Assim era o nosso homem quando ele exibia algum de seus perfis, de um cômico irresistível; mas à força de reproduzir-se com a regularidade do autômato, caía em uma insipidez esmagadora.
Não tardou que Ricardo sentisse invadi-lo o tédio a ponto de não poder mais suportar nem a vista do amanuense. Para subtrair-se a esse foco de aborrecimento, apressou o animal:
— É de primeira força! disse Guida lendo-lhe no rosto.
— Com efeito! Não imaginava!
— Há pouco não dizia o senhor que a vontade ou o capricho é um rei? Pois tem destes cortesãos!
— Ah! É preciso! São os cortesãos que vingam os oprimidos; quando não comprometem, intrigam ou traem os soberanos, ao menos lhes moem um pouco a paciência.
— Não duvido da utilidade dos cortesãos, respondeu sorrindo a moça. Mas quanto à sua comparação, não a acho exata. A respeito de capricho há de concordar, que devo entender alguma cousa.
— Muito!
— Por uma simples razão! Sou muito caprichosa.
— Não acredito!
— Se eu confesso!
— Por isso mesmo.
— Há de mudar de opinião.
— Bem, pode ser. É a moda.
— O capricho está bem longe de ser rei. É apenas o valido, o primeiro ministro ou presidente de conselho, a quem o rei eleva acima dos outros súditos para ter o prazer de o contrariar, de picar-lhe a vaidade, de crivá-lo de alfinetes como ao Sr.***
Guida pronunciou o nome; eu porém que não estou para divulgar a malignidade, e comprometerme com gente poderosa, substituo-lhe a reticência estrelada.
— Mas quem é o rei desse valido? perguntou Ricardo.
— O rei? É o mundo, e portanto qualquer pessoa. Pode ser o senhor, por exemplo.
— Eu?
— Por que não? Vou lhe confessar uma fraqueza minha. Eu tenho neste momento três desejos... Não cuide que são os da caixinha do jogo de prendas.
— Ainda bem; eu já me tinha lembrado do Sr. Benício e de seu chapéu de sol.
— Qualquer desses três desejos depende do senhor; entretanto eu estou certa que não é capaz de satisfazer a nenhum.
Estava Ricardo surpreso ao último ponto da direção que tomara a conversa; mas o modo natural de Guida, e a garridice com que falava, o punham a gosto.
— Está me metendo em brios, notou o moço a rir.
— Também tenho a minha diplomacia.
— Mas enfim sem conhecer os tais desejos, é que nada posso dizer.
— Decerto! Há quase um mês, que estão me tentando! E eu perderia esta ocasião de acabar com eles; pois bem, convencida de que não posso satisfazê-los...
Guida levou a mão aos lábios e soltou um arrulo gracioso, que pareceu, com o gesto, desfolhar nos ares:
— Prrrr!... solto-lhes as asas e... Adeus, pombinhos!
— Quem sabe?... A senhora está figurando a cousa como muito difícil, para sazonar o gostinho. Aposto que eu vou, como a lâmpada de Aladino, realizar esses grandes desejos, o primeiro dos quais eu já adivinhei.
— Ah!
— É tirá-la da sombra implacável de um monstro verde-gaio...
— Ora! Eu já nem me lembrava disso.
— Bem; já vejo que não sou forte na adivinhação; o melhor é escutar.
— E não interromper; porque já estamos perto de casa. Quem sabe se não é também diplomacia para ganhar tempo?
— Estou mudo como um reposteiro.
— Pois ouça. O primeiro desejo era, note que eu não digo é; era que o Galgo fosse meu.
— Não vejo a impossibilidade.
— Eu lhe mostro. Se papai quisesse comprá-lo, o senhor recusaria vendê-lo.
— Certamente.
— Era o único meio.
— Perdão; há outro.
— Não há mais nenhum. O senhor não podia nem pensar em oferecê-lo a pessoas com quem não tinha relações íntimas; e menos agora, depois desta confissão. Portanto é impossível.
— Assim, decerto.
— Passemos ao segundo.
— É verdade, ainda restam dois desejos.
— O meu segundo desejo... Promete não desconfiar? disse Guida voltando-se para ele com gentileza.
Ricardo teve uma suspeita de que a filha do banqueiro o estava debicando, como costumam as moças bonitas e prendadas, para mostrarem espírito e darem expansão à natural petulância de um coração de dezoito anos. O primeiro impulso foi retrair-se; mas não se deixou levar dele; seu caráter sério não o inibia de aceitar com a moça esse desafio de garrulice.
A borboleta queria voejar, ostentando suas roupagens magníficas e farfalhando as asas sussurrantes. Não havia ali flor, que libasse; pois seria ele o pretexto desse inocente devaneio, do qual também de sua parte contava participar.
— Desconfiar?... Fique descansada; não quero passar por provinciano duas vezes no mesmo dia.
— Lembra-se da primeira vez em que nos encontramos? perguntou Guida.
E fitou no moço um olhar, que esperava a resposta da interrogação.
— Foi aqui mesmo na Tijuca! disse Ricardo.
Assomou à face um leve rubor, que o olhar de Guida evitou, mal o percebeu.
— O senhor estava muito embebido a olhar a florzinha amarela...
— Sim; a da Pedra Bonita?
— Essa mesma.
— Admirava. É um mimo essa flor.
— É uma joia, é; mas deixemos a flor por enquanto. Eu também tenho paixão por ela e a admiro. Mas o senhor admirava e fazia outra cousa.
— Não me recordo.
— Eis um recurso de que não precisa.
— Tem razão. E por que hei de negar? Beijava-a: está satisfeita?
Guida fez com a fronte um aceno afirmativo:
— Cuidei que essa poesia do sentimento que faz conversar com uma estrela, beijar uma flor, adorar uma lembrança, já não se encontrava hoje em dia, a não ser nos romances. Se alguma vez se misturava com o prosaísmo desta nossa vida fluminense, era a moda de comédia de sala: para divertir as moças da moda, que chegaram aos dez anos e já não podem mais suportar as bonecas. Ora, desta última suposição, está claro que não se trata. A causa portanto é séria.
— Muito séria, acudiu Ricardo.
— Confessa?
— Há nada mais sério e real do que a fragilidade humana? Eu lhe conto a história dos “Sonhos d'ouro”. É assim que chamo a florzinha amarela...
— O nome é bonito!
— Se tem outro, não sei, eu dei-lhe este. É bonito e lembra uma cousa muito agradável. “Sonhos d'ouro”!... A senhora não pode ter esse prazer; Deus, dando aos ricos a opulência, negou-lhes a ardente esperança de a obter, e reservou-a como uma compensação para nós, os pobres. É somente para nós que essa fada incomparável levanta os suntuosos castelos, os jardins encantados, os paraísos na terra. Quando a senhora me viu, eu entrava no mais belo de meus castelos, à vista do qual o rico palácio que seu pai tem nas Laranjeiras é um albergue; subia as escadas de pórfiro marchetadas de ouro. Abriam-se de par em par as portas de rubi da sala da saudade; e minha mãe aparecia-me sobre um trono de safiras. Atirei-me a ela, que recebeume em seus braços, beijei-lhe os olhos, coalhados de lágrimas, e... A senhora acordou-me.
— Ah! Compreendo. Lembrava-se de sua mãe. Nessa poesia também eu creio, disse Guida com terna expressão.
— Dirá a senhora que é uma infantilidade cair assim um homem feito, um doutor, a sonhar com o sol alto e os passarinhos a cantar. Mas a isso respondo, que a natureza humana é esta mesma contradição. O menino tem “homenices”... Não repare no termo; tenho um mau costume de inventar uma palavra quando não acho outra já feita para exprimir meu pensamento. Mas dizia eu que o menino tem suas “homenices” que o tornam insuportável; portanto era preciso que o homem tivesse suas “meninices”, que o tornam ridículo.
— Pensar em sua mãe ausente é uma cousa tão santa!
— Mas creio que ainda falta um desejo?
— Ainda; não me esqueci. Ia perguntar-lhe o que representava o desenho... Sabe; aquele que o senhor fazia à janela?...
— Não adivinhou?
— Não.
— Quis mandar à minha mãe uma lembrança de meu sonho. Se eu tivesse talento de retratista reproduziria suas feições. Fantasiei uma moça da corte.
— Favoreceu o original, observou Guida. Galanteria de artista.
— Não era possível. Ainda que eu fosse Rafael.
— O melhor juiz sou eu. À vista do desenho...
— Eis a dificuldade. Já ele está em São Paulo.
Foi interrompida a conversa pelo encontro com o rancho dos passeantes, a poucos passos de distância da casa.
Talvez tenha alguém a curiosidade de saber o que era feito do impertérrito Sr. Benício durante todo esse tempo.
Em posição e a jeito de proteger os dois moços com o formidável guarda-sol verde-gaio, acompanhou-os passo a passo sempre da banda do poente.
Refocilando no gosto incomparável de obsequiar o próximo, caíra em uma espécie de êxtase. Imaginava-se, não em cima do machinho a trotar, mas recostado nas almofadas de um coche, acompanhando um casamento.
Que glória não seria a dele, quando dissesse aos convidados:
— Eu os resguardei com o meu chapéu de sol, no primeiro dia do seu namoro!
Terminara o jantar em casa do Soares.
O crepúsculo da tarde cambiava-se com o frouxo lampejo da lua que assomava por trás das serras.
Erguendo-se da mesa, os convidados espalharam-se pelo jardim, uns para gozarem da frescura e beleza da ave-maria campestre; outros para se recrearem com o passeio e o movimento; alguns maquinalmente, por imitação.
Mrs. Trowshy traçando o braço de Guida e recitando-lhe uns versos de Shakespeare atravessou o jardim:
Come, gentle night, come, loving, black brow'd night,
Give me my Romeo, and when he shall die,
Take him, and cut him out in little stars,
And he will make the face of heaven so fine,
That the world will be in love with night
And pay no worship to the garish sun.
Encontrando Ricardo, a mestra parou para dizer-lhe em francês:
— Veja que injustiça, senhor doutor, Guida não gosta destes versos.
— Ouça! disse Guida, e repetiu os versos.
— Se os lesse, poderia dizer alguma cousa, respondeu Ricardo.
— Pois eu pensava que tinha excelente pronúncia, acudiu a moça com ar zombeteiro. Minha mestra diz que pareço uma inglesa; salvo quando eu repito o nome dela — “Missis Trouxa”. Aí acha-me horrível.
— Trowshy! emendou gravemente a mestra que pouco entendia de português.
— Mas a culpa não é de sua pronúncia: é do meu ouvido que ainda não se habituou, nem creio que se habitue nunca, a essa língua mais de engolir que de falar!
— Pois eu vou traduzir-lhe os versos ao pé da letra, se me permite: Vem, gentil noite, vem, amável e escura noite, dá-me o meu Romeu e quando ele morrer, tomai-o, cortai-o em estrelinhas, e ele tornará o céu tão belo, que todo o mundo se apaixonará pela noite, e não pagará mais tributo ao garrido sol. Não são magníficos?
Ricardo sorriu:
— São originais, pelo menos.
— Suponha o senhor que um poeta brasileiro fizesse alguma índia falar semelhante linguagem, e pedir à noite que picasse o seu amado em estrelinhas, não de massa, mas de papel dourado. Que risadas não dariam os ingleses e como não encheriam a boca de nonsense? Mas é Shakespeare... o grande mestre...
— The immense, the prodigious Shakespeare!... interrompeu Mrs. Trowshy no plenilúnio de seu entusiasmo.
— Talvez o poeta quisesse exprimir por esse modo a ingenuidade infantil de Julieta, que era quase uma criança.
— E não achou um modo mais delicado? O senhor escreveria semelhantes versos?
— Não sou poeta.
— Ora! Quem não o é hoje em dia? O senhor conceberia Julieta pedindo a Deus para fazer duas estrelas dos olhos de Romeu; ou para mudar os seus cabelos em raios de luz, como os de Berenice; mas para cortá-lo a ele em pedacinhos... Shocking! disse a menina pedindo ao inglês a expressão de seu sarcasmo.
A rir afastou-se Guida com Mrs. Trowshy, pelo caminho da Cascatinha que era o ponto do passeio.
O Dr. Nogueira aproximara-se de Ricardo e lhe oferecera um dos seus “regalias” convidando-o a fumar no canto mais afastado. Ali via-se uma fonte de ferro esmaltado representando a náiade do jardim dentro duma concha, a banhar-se nas próprias águas que vertiam-lhe dos olhos como torrentes de lágrimas.
Desde o primeiro dia Ricardo notara o Dr. Nogueira, cujo nome já conhecia pela reputação de talento que o cercava, e desejou aproximar-se dele. Deteve-o porém a expressão de fria arrogância que esticava o perfil e o talhe do candidato. Esse empertigamento moral revelava a afinidade que havia entre a alma do candidato e a vaidade feminina. Era alma que não dispensava os arrebiques e espartilhos ainda mesmo em casa.
Foi pois com prazer que Ricardo aceitou o charuto e a palestra, que lhe oferecera o Dr. Nogueira.
O candidato, como alguns homens de talento, longe de desdenhar os gozos materiais, entendia que é a carne que faz o espírito, o apura e lhe dá o nervo. Assim apreciava ele depois de um excelente jantar a febre sibarítica, perfumada com as fumaças do melhor tabaco da Havana, e embalada pelo burburinho da água trepidando na fonte ou pelo ruge-ruge das folhas das palmeiras.
E na forma do preceito de Horácio — miscuit utile dulci — aproveitou aquelas horas voluptuosas do quilo, para conhecer o adversário com que tinha de bater-se na campanha matrimonial, em que se achava empenhado.
— Aqui estaremos perfeitamente, disse Nogueira sentando-se na ponta do banco e indicando a seu lado um lugar ao moço. Gosto de fumar neste canto o meu charuto depois de jantar. O barulho da fonte, misturado com o dos coqueiros, derrama uma ligeira sonolência, quanto basta para não pensar; mas não tanto, que se deixe de sentir e gozar.
Notou Ricardo que o devaneio desse espírito, como a sua amabilidade, tinham às vezes umas quinas ásperas: eram como tela de painel, que uma lasca da madeira estofa. Uma circunstância mínima lhe revelou esse traço fisiológico. O termo “barulho” para indicar o burburinho d'água, empregado por homem de tribuna e eloquente, mostrava um defeito de educação. Como sucede à maior parte dos talentos que figuram em nosso país, não tinha Nogueira o polimento literário, e embora sentisse depois de certo tempo a necessidade de dar à sua palavra certo verniz de estilo, contudo notava-se ainda muita falha, em que através da arrogância do figurão, percebia-se a crosta do filho das ervas. A palavra é para esses mercenários o instrumento do ofício, a trolha do pedreiro.
— Temos demais a vantagem de livrar-nos da algazarra, que por lá vai. Esta gente avalia do espírito, como do champanha, pelo estouro; e então desafiam-se a quem dará as mais descompostas gargalhadas, para chamar a atenção.
— No fim de contas, parece que eles têm razão. É o rumor quem governa o mundo.
— Quer dizer a opinião.
— Não é a mesma cousa?
— Há sua diferença, impôs dogmaticamente o Nogueira, e passou adiante. A tarde está quente!... A estas horas costuma correr alguma brisa, mas hoje está abafado. Neste ponto Petrópolis é preferível à Tijuca. Eu, se não estivesse preso a esta gleba da cidade, é onde passaria o verão.
— V. Ex.a é advogado? perguntou Ricardo para dizer alguma cousa e encher a pausa que lhe deixara o Nogueira.
— Tenho um escritório com o nome na porta, mas é para constar... serve de ponto de palestra aos amigos. A advocacia já não é uma profissão.
— Perdão; eu a conto entre as mais nobres.
— Assim devia ser. Mas aí, como em tudo, o fato insurge-se contra o princípio. Não é esta a história do século dezenove, ao contrário do século dezoito, que foi a revolta da ideia contra o abuso e o prejuízo? A advocacia não passa de um pretexto; é um título de apresentação na sociedade. No foro inventou-se outrora um nome decente para certas indústrias, que se não confessam; certos réus ou testemunhas interrogados aos costumes, declaram que vivem de “suas agências”. Pois a palavra “advogado” tem o mesmo préstimo, com a diferença de serem os agentes mais graduados e as agências mais gordas.
— E V. Ex.a pertence a esta classe? observou Ricardo com ironia.
— Por que não? Charles Nodier dizia no princípio deste século — Je ne connais qu’un métier à décrier, celui de Dieu!
O Nogueira, que tinha presunção de falar bem as línguas estrangeiras, pronunciou a citação francesa com uma afetação ridícula e um sotaque que devia ferir o ouvido normando.
— Pois eu creio que em França nenhum ofício caíra em maior descrédito, observou com muito a propósito o paulista.
— Deixemos de parte a religião. É ponto que não discuto, atalhou categoricamente o candidato, e prosseguiu.
Mas Ricardo interrompeu:
— Não chamo religião essa exploração da consciência a que o escritor francês dava com muita propriedade o nome de ofício.
Custou a Ricardo inserir no discurso do Nogueira esta pequena observação. Foi necessário cortar-lhe a palavra, e arrostar o gesto desdenhoso e magistral do candidato que desviava a réplica, dum revés do rosto.
— Em país algum é tão verdadeiro o dito de Nodier como em o nosso, continuou o Dr. Nogueira com o tom amplo e sobranceiro de que servia-se para abafar as interrupções. Há cousa que mais se tenha ridicularizado do que sejam as altas posições políticas, e sobretudo o cargo de ministro? E não obstante todos caminhamos para lá.
— Nem todos! contestou Ricardo.
— Sou advogado, pois, como serei deputado amanhã e mais tarde ministro e senador. Em toda a parte onde se reúnem i animali parlanti, por força que há de haver o deus e a besta. Ensinam as Santas Escrituras que o Criador formou o homem do lodo, amassando o barro e inspirando-lhe a centelha divina. Pois não é de admirar que em se chocando uns com outros, a lama de certas figuras se desmanche, e então que remédio têm os outros homens, senão patinharem nela, se querem passar adiante?
— Os ambiciosos vulgares, não duvido que tenham pressa de chegar e não escolham caminho, nem companheiros de jornada. Mas há quem se desvie com asco do charco, embora se resigne a não passar adiante.
— O senhor formou-se ultimamente? perguntou o Nogueira com um sorriso protetor.
— Há cinco anos.
— E é advogado também?
O protesto que em tom veemente acabava de fazer contra as doutrinas do Nogueira, não o pudera conter o jovem e brioso paulista. Mas, arrependido, prometeu-se não tomar ao sério as excentricidades do Dr. Nogueira, o qual sem dúvida sofria de um sestro, que ataca muito os homens vaidosos de seu talento, o sestro do paradoxo.
Assim como as damas, desvanecidas de sua formosura, inventam modas esquisitas e farfalhadas, penteados incríveis, anquinhas atentatórias da moral pública, escandalosos falbalás e cinturas extravagantes, assim os talentos fátuos se deleitam em provar absurdos.
— Aspiro a sê-lo; mas não como V. Ex.a o entende, respondeu Ricardo com polida ironia à pergunta do Nogueira.
— Pensa então o senhor, que a ciência do mundo aprende-se nas escolas e academias? Se conheço hoje a nossa sociedade, não foi pelo que me ensinaram em Olinda, mas pelo que aprendi em um curso mais longo, em cerca de vinte anos de experiência. Na sua idade também tinha a cabeça cheia de utopias, e o coração abarrotado de ilusões. A advocacia representava para mim o sacerdócio da justiça, a nobre independência do talento. A imprensa, eu a considerava como uma realeza, e a mais legítima, porque tinha o seu trono na opinião.
— Mas isso não passava de uma abusão?
— Completa, meu colega. Quando tiver alguma prática do foro, há de reconhecer que são as boas causas as que mais frequentemente se perdem. Quem sustenta um pleito justo, confia no direito; mas o seu adversário emprega todos os recursos: e ganha. Quanto à independência, não passa de uma burla; todos nós, que mais somos do que uma cadeia de fuzis? Cada um segura-se ao anel de cima, e por sua vez suspende o anel de baixo; e assim trabalha a corrente do guindaste.
— Não confunda V. Ex.a a independência com a barbaria, ou ainda com a misantropia. A sua virtude consiste justamente em manter o caráter no meio das colisões e embates que o abalam. Aí está a dignidade do homem, lutar e vencer; isolar-se do mundo, parece mais covardia.
— Devaneios, replicou Nogueira com desdém. Isso que chama dignidade, meu colega, é nada menos que um crime e grave; vale tanto como uma insurreição, ou uma revolta. Todos a condenam; ninguém perdoa. Se o caluniarem, aparecerá um poder chamado moderador, que fará presente de sua honra ao pasquineiro; mas para o insulto que o senhor fizer a uma cidade corrompida, afrontando-a com os seus brios, para esse delito de lesa-sociedade não há graça; ao contrário, toda a severidade amassada nas altas regiões desfechará sobre o réu convicto do pundonor e integridade!
— Neste ponto não duvido que tenha razão. Como Circe que transformava os seus amantes em barrões, a política namora os mais belos talentos, e nada lhes recusa, contanto que fossem.
— Gosta da fábula? disse o candidato com um leve toque de pedantismo. Pois eu prefiro a história, a grande mestra. A política é em nosso país o mesmo que tem sido em toda a parte, uma cortesã. Quando recebe na alcova...
— No gineceu...
— Na alcova os Péricles e os Sócrates, torna-se Aspásia; mas, se entrega-se aos gladiadores e servos, cai em Messalina.
— Se V. Ex.a permite uma observação...
— Sem dúvida.
— Não foi Péricles quem fez Aspásia; ao contrário, depois que morreu o grande ateniense, ela casou-se com uma casta de barão daqueles tempos, um rico marchante, e conseguiu tirar desse lixo de ouro um grande orador.
O Nogueira, que não se deixava derrotar, ainda mesmo nos seus eclipses, acudiu pronto:
— Acredita nisso? É uma galanteria do historiador, se não foi do próprio Lísicles, que para lisonjear a mulher, atribuiu-lhe o que só devia a seus esforços.
— Acredito, sim; porque não o dizem somente as tradições de Atenas: é a história eterna da humanidade. Por toda a parte a mulher é a alma do homem.
Deixou o candidato cair a conversa um instante para repousar a palavra, e ao mesmo tempo imprimir outra direção ao diálogo.
Tiradas as últimas fumaças do “regalia”, e metida a ponta do charuto em um talo da palmeira, com o respeito que o verdadeiro fumante vota às cinzas desse companheiro e confidente de mágoas como de prazeres, ergueu-se o candidato, deu alguns passos pelo jardim e voltou para o mancebo que o esperava apoiado ao esteio do caramanchão:
— Uma cousa lhe asseguro, meu colega. Se os moços de talento, que vão começar a sua carreira, ouvissem o conselho de minha experiência, não desbotariam por certo a flor de sua inteligência nesse mister ingrato, de urdir enredos forenses, e desbastar autos, consumindo a mocidade na incessante labutação de borrar o papel e a consciência.
— O que fariam então?
— Para que se matarem a construir pedra a pedra uma posição às vezes bem medíocre, se podem tomar de assalto o futuro, e conquistar a reputação d'un coup de main, como fazem por aí os espertos? O processo é simplicíssimo. Marca-se entre os vultos notáveis do país aquele que mais convém à ambição do pretendente: um estadista, se o fuão destina-se à política; um literato, se o fuão aspira a escritor. Escolhido o alvo, assesta o sujeito contra ele toda sua metralha: a mentira, a injúria, o insulto grosseiro. A cidade ocupa-se imediatamente do escândalo. “Quem é?... Quem é que ousa atacar o homem eminente?” Conhecidos, mas principalmente os amigos, correm açodados à compra do pasquim; comentam as insolências e vão com uma caramunha de jesuíta propalando a notícia... O autor, de fuão que era na véspera, torna-se personagem; todos inquirem dele, apontam-no quando passa, repetem seu nome como um epíteto do caráter por ele agredido e atassalhado. Assim abre-se caminho até à celebridade, que é a base de toda a grandeza. Obtido esse pedestal, “o temível”, ou o parvenu, como o chamam os franceses, pode-se deitar à espera das honras e pepineiras que lhe chovem a mancheias. Só lhe falta um casamento rico, para coroar a obra de sua rápida fortuna. O casamento rico é em verdade um achado da maior importância. Se o indivíduo não tem pátria, nem família, dá-lhe uma apresentável; se já possui esses trastes, ficam-lhe duas, o que não é para desprezar. São duas amarras para tudo; lá e cá, diz-se com toda a sem-cerimônia, “nosso país”. Além disso traz o casamento a fortuna patrimonial, que tem sempre uma certa respeitabilidade, e serve para decorar umas vergonhas e misérias do passado. Ora, a um homem de recurso não é difícil, desde que trepou ao pedestal da celebridade, ou por outra, desde que se tornou um “temível”, não é difícil arranjar uma aliança nessas condições.
Sustando a palavra um instante para observar-lhe o efeito na fisionomia de Ricardo, que o escutava com repugnância, concluiu o Nogueira:
— Eis, meu colega, como um hábil pelotiqueiro de um passe escamoteia parte da reputação por outros laboriosamente adquirida; e com esta sorte edifica um brilhante futuro. Experimente!
Ricardo até ali escutara apenas com tédio o que ele tomava por sarcasmo pungente; à última palavra alteou a fronte com indignação:
— O senhor não fala seriamente!
Desfechou o Nogueira uma gargalhada cromática:
— Decerto! Como se há de falar seriamente, quando é tão grotesca a verdade? Não lhe expendi opinião minha; referi o fato; olhe ao redor de si, e vê-lo-á talvez bem de perto.
— Explique-se V. Ex.a; não o compreendo.
— Quando abrir os olhos, compreenderá.
E Nogueira solfejando a sua risada dirigiu-se para a casa.
Enquanto a um canto retirado do jardim se travara tão interessante conversa entre os dois colegas, do lado oposto se havia formado uma roda, a que servia de eixo o Bastos.
O piquenique derrotara o nosso corretor, que mostrava-se um tanto amarrotado, nas feições e nas esperanças.
As barbas já não tinham aquela simetria irrepreensível que dava-lhes a imobilidade do postiço. Uma bomba na praça não houvera estrompado o nosso pretendente, como aquele maldito passeio à Vista dos Chins.
Quando, adiantando-se à comitiva, chegara à casa na esperança de ali encontrar a filha do banqueiro, achou-se em branco. Retrocedeu já um tanto azoado, e de todo ficou, vendo aparecer na volta da estrada Guida e Ricardo em conversa animada.
Foi um golpe para o corretor que viu a bancarrota iminente sobre sua empresa matrimonial, que na véspera ainda parecia-lhe tão próspera!
Jantou mal, pensando no quanto é vária a fortuna, e incerta a carreira do comerciante.
Contudo não descoroçoava ainda o Bastos; tinha fé no jeito e habilidade do Soares, que bem sucedido sempre em todas as transações, não havia de errar a boa mão, justo em negócio tão do peito, e do qual dependia a sorte de sua filha.
Ao levantar da mesa, tratou o corretor de colher informações exatas acerca do passeio; queria saber ao certo o ponto a que já tinham chegado as cousas, para desde logo pedir a intervenção paterna, se as circunstâncias reclamassem esse extremo recurso, ultima ratio dos pretendentes repelidos pela noiva.
Os companheiros de passeio, moços do comércio, ou porque em verdade nada tivessem observado de suspeito, ou para consolarem o corretor, mostraram-se convencidos de que não havia da parte de Guida para Ricardo mais do que a amabilidade de uma moça espirituosa e, quando muito, uma pequena dose de coquetterie. Assim falavam eles; eu diria: coquetismo em linguagem da moda, e faceirice, à nossa maneira.
O Guimarães não tomou a cousa ao sério:
— Ora, estão vocês aí com histórias! A Guida o que fez hoje no passeio, assim como no domingo passado, foi debicar o tal caipira de São Paulo. Aquilo é um pratinho soberbo, nem vocês imaginam!...
E soltando um ritornelo da sua implicante risada, lá se foi o moço bonito a borboletear entre o círculo das moças, amolando as guias do bigodinho assassino, e mirando-se em falta de espelho n'água cristalina que enchia a bacia de mármore dos repuxos.
Convencido de estarem todas aquelas meninas morrendo por possuí-lo, pensava lá consigo que era uma crueldade causar tantos infortúnios para satisfazer a paixão de uma só, de Guida. Mas não obstante o desengano, sabia que não podendo resistir à sedução, ardiam em desejos de se fartarem de beijos naquela boca tentadora; imaginando que já o perseguiam as míseras namoradas sem ventura, por faceirice furtava-se o rapaz às suas carícias. E com efeito, às vezes interrompendo o giro pelo jardim, fazia uma pirueta à vista das senhoras.
Entretanto na roda do Bastos, continuava a investigação dos pormenores do passeio com relação ao ponto importante. Chegara-se o Lima e sabendo do que se tratava, quis também dar sua opinião, fundada em informações verídicas:
— Esteja descansado, disse ele ao Bastos. Não há nada!
— Deveras! Você me assegura?...
— Pode escrever.
— Mas como sabe? perguntou o Visconde da Aljuba, que até aí se tinha contentado com ouvir.
— É verdade. Você não foi do passeio.
— Eu lhe digo o como sei melhor do que todos que lá foram. Conversando com D. Guilhermina, antes do jantar, falei a respeito dessa novidade que os senhores trouxeram.
— Eu não! repetiu meia dúzia de vozes.
— Creio que foi o sr. visconde!
— Se fui eu, do que não me lembro, é que alguém me disse, respondeu sem desconcertar-se o homúnculo.
— Quer saber o que me respondeu D. Guilhermina? — “Qual, Lima, não acredite! Deixe-os falar! A Guida nem pensa nisso. Pois não vê que se houvesse alguma cousa, ela não trataria o Ricardo com tanta familiaridade e sem acanhamento, como eu trato o Fábio, por exemplo?”
— Esta última razão, acrescentou sonsamente o visconde, não me tinha lembrado. É de arromba! Está decidido que não há nada absolu...
Não acabou o Aljuba de debulhar tranquilamente as sílabas do seu advérbio, porque foi de repente arrebatado à terra, e depois de uma ascensão curta e rápida se achou sentado no jardim, sem compreender ainda como isto acontecera.
A causa do fenômeno ali estava em carne e osso. Era o Sr. Benício que, passando casualmente pela próxima alameda, a farejar no jardim, o que não descobrira na sala, isto é, “uma pessoa a obsequiar”, bispou de longe a figurinha do visconde aprumada sobre a base.
— O sr. visconde de pé!... exclamou o Benício.
O incomparável obsequiador possuiu-se de um horror que talvez não lhe causasse o visconde, se em vez de ter-se direito, como a natureza o fizera, pusesse as mãos na areia, e fazendo cauda d'aba da casaca, imitasse o gambá, de que tinha seus traços fisionômicos.
Em dois saltos o homem serviçal galgou a escadaria de pedra, arrebatou da sala uma cadeira, e arremessando-se com ela ao jardim, foi cair precisamente no meio da roda. Aí fincando com a mão esquerda a cadeira na areia, com a direita empunhou o exíguo visconde pelo pescoço, como o faria ao gargalo de um moringue, e assentou-o em cheio na cadeira.
Esta rápida operação foi acompanhada da seguinte jaculatória:
— V. Ex.a de pé, sr. visconde! E eu sem ver! Oh! desculpe-me, excelentíssimo. Aqui tem V. Ex.a uma cadeira. Mas não se incomode, excelentíssimo, por quem é! Deixe, eu mesmo o sento! Para que ter este trabalho! Assim; esteja a gosto; não precisa mais nada?
— Nada, nada! obrigado, muito obrigado, Sr. Benifício, mil vezes obrigado! pôde afinal responder o visconde, fincado na cadeira, e desdobrando-se como um couro amarrotado.
— Aqui está quem pode dar boas informações! disse um da roda.
— Oh! o Benício deve saber. Pois era ele quem os acompanhava, acudiu outro.
— Não veem como está bem penteadinho! tornou o primeiro alisando as falripas do amanuense.
— O quê? O que, homem? dizia no entanto o Benício.
— Estávamos aqui numa dúvida de que só você nos pode tirar.
— Vamos a ver! Para o que é servir aos amigos, eu estou pronto sempre.
— O que acha o senhor? A Guidinha está deveras mordida?
— Hem?
— Deu corda ao bicho?
— Aí, que os amigos querem se divertir à minha custa!
Interveio o visconde:
— Não seja desconfiado, homem. Estes senhores desejam saber se pelo que observou esta manhã no passeio, especialmente quando acompanhou a D. Guida, percebeu que ela tinha sua quedinha pelo tal Ricardo.
— Ah! é isso?
O homem serviçal não tinha observado cousa alguma, nem era capaz de semelhante exerção de espírito. Acompanhara os dois moços absorvido na satisfação de obsequiar dois mortais a um tempo; e isto bastava para ocupar toda a atividade moral de que era capaz o seu indivíduo. É certo que lá num refolho escuro daquele miolo animal despontava um grelo de ideia. O homem tinha uma bronca intuição de estar obsequiando os dois moços, não só com a sombra do chapéu de sol, mas com a sombra da cabeleira.
Agora, metido na roda, entre as galhofas dos rapazes, e com as explicações do visconde, o grelo da ideia lhe abrolhara no cérebro; percebeu do que se tratava, ainda mais dando com a cara amarrada do Bastos.
O amanuense tinha especial birra ao corretor. A emulação é achaque de que padecem os talentos. O empenho do Bastos em incumbir-se das encomendas de D. Paulina, de Guida e outras senhoras, despertara justo zelo no amanuense, que tomava aquelas obsequiosidades por verdadeiras usurpações de suas ocupações privativas. Entendia o “homem serviçal”, que, dando-lhe uma sinecura, o governo lhe concedera privilégio exclusivo para obsequiar o próximo, e ninguém podia privá-lo dessa honra.
Em sua qualidade de animal daninho tem o homem um faro para vingança. Doutro modo não se explica o que passou na cachola do Benício:
— Cá para mim é negócio decidido, respondeu impavidamente o amanuense. Esta manhã quando tive a honra de segurar o chapéu de sol para os noivos, bem me estava lembrando que amanhã tenho de visitar o meu amigo monsenhor. É bom a gente andar prevenido; e como eu é que hei de ser incumbido de arranjar os papéis na Conceição!...
— São histórias do Benício, atalhou o visconde metendo à bulha o amanuense. Que o maganão não pilha a moça, nem o dote, por essa fico eu, e se quiserem uma apostazinha...
Não obstante a confiança na sagacidade do Aljuba e sobretudo em sua avareza, que não havia de arriscar a aposta sem plena certeza de a ganhar, a balela do casamento da filha do banqueiro continuou a correr entre os convidados, e não se falava em outra cousa no salão, quando ali entrou Ricardo.
Todas as vistas fitaram-se nele procurando-lhe no semblante a ufania do triunfo; e tal é o poder da imaginação, que muitos a viram desenhada em uma fisionomia onde os paradoxos do Nogueira haviam deixado traços bem expressivos de tédio e desgosto.
Notou Guida essa expressão de Ricardo, que distraidamente e sem percebê-la, sentara-se a seu lado.
— Sabe a novidade? perguntou a moça.
— Qual?
— Ainda não lhe deram os parabéns?
— Por que motivo?
— Deveras não sabe?
— Entrei agora mesmo na sala.
— Pois então, deve-me as alvíssaras. O senhor está para casar comigo.
— Não entendo! respondeu Ricardo fugindo ao gracejo.
— Parece-me que é bem claro. Depois do jantar não se tem falado aqui de outra cousa.
— Mas é uma indignidade! exclamou o mancebo, mal contendo a revolta dos brios.
— Faça como eu! acudiu Guida sorrindo. Não se importe! A princípio também me incomodavam essas impertinências; agora estou habituada; e ainda agradeço quando não me dão por noivo algum bobo ou algum traste, como já tem sucedido.
— Mas eu não lhes dei o direito de se divertirem com meu nome!
— E dei-lhes eu acaso? tornou Guida. Tenha paciência; amanhã me inventarão outro noivo; e o senhor ficará descansado. Eu é que infelizmente não tenho quem me tire da berlinda.
Ditas estas palavras em tom que flutuava entre o motejo e a contrariedade, a filha do banqueiro ergueu-se para dirigir-se ao piano, onde a chamara D. Clarinha.
Terça-feira seguinte, estava Ricardo como de costume em seu escritório.
Seriam dez horas passadas. Reinava na pequena sala, dividida a meio em dois cubículos por um tabique de pinho, um silêncio desanimador, sem dúvida propício à meditação, porém pouco prometedor a respeito de clientela.
Sentado à clássica mesa de vinhático, inteiramente limpa de autos, Ricardo, trabalhador infatigável, escrevia desde as nove horas da manhã em que habitualmente chegava ao escritório.
Lembrara-se de fazer algumas traduções para distrair as horas enfadonhas do estéril plantão, nutrindo a esperança de tirar daí alguns parcos recursos com que fosse atamancando as necessidades.
Ricardo bem sentia que não tinha real vocação para a profissão forense; a aridez desses estudos, que os rábulas costumam amenizar com desbragadas verrinas, não conformava por certo à sua inteligência brilhante, colorida por uma imaginação de artista.
Mas o mancebo, não obstante, aceitava essa carreira como um dever, pela impossibilidade de escolher outra que lhe proporcionasse os meios de subsistência e os recursos para manter a sua família, que se achava em circunstâncias precárias.
Um camarada de São Paulo se lhe oferecera para obter alguma colaboração em um dos jornais da corte. Mas até então nada conseguira; as pequenas empresas não podiam pagar; as grandes entendem que o verdadeiro redator de uma folha que se respeita, é o soberano público, à razão de tantos réis por linha.
O livro que Ricardo traduzia era de Balzac: Eugênia Grandet. Esperava achar um editor para a obra-prima do ilustre romancista francês; cousa bem duvidosa.
Às vezes deitava a pena sobre a bandeja do tinteiro, e derreando contra o recosto da cadeira, perdia-se em cogitações que o trabalho interrompera, e agora com a pausa voltavam a eito.
Conhecia-se-lhe pelo aspecto que tristes eram aquelas cismas; ressumbrava em seu olhar apagado o desalento que iam derramando-lhe nos seios d'alma.
A expressão habitual do mancebo era a sisudez afável, que nem se arruga na carranca, nem se descompõe no frouxo de riso. Nesse dia porém mostrava-se grave e preocupada sua fisionomia.
O dinheiro, esse azoto social, sem o qual não se vive nas cidades: eis a grande questão, que se debate nas ruas e praças, desde o mendigo até o rei, um esmolando os magros vinténs, o outro distribuindo os milhões nacionais.
Era essa também a preocupação de Ricardo naquele momento. As circunstâncias do mancebo de dia em dia se tornavam mais estreitas.
Morava ele com a mãe de Fábio, que o agasalhara como o futuro cunhado de seu filho; já essa posição de hóspede o constrangia, apesar dos contínuos protestos da boa senhora, a repetir todos os dias, que a despesa de casa não aumentara um real por sua causa, e que longe de incomodar-se, tinha ela ao contrário o maior prazer com tão agradável companhia.
Ainda quando assim fosse, e Ricardo procurava tornar-se o menos pesado, acanhava-o essa dependência de alheio favor, e repugnava-lhe viver a expensas de outrem, apesar da amizade de Fábio e dos laços que breve deviam ligar as duas famílias.
Mas o que exacerbara naquele dia estas nobres suscetibilidades de Ricardo, era a posição especial em que se achava com relação a Fábio, desde o último domingo.
Já anteriormente não gostara do desembaraço com que o noivo de sua irmã se portara em casa do Soares; disfarçara contudo, fazendo-lhe apenas ao de leve alguns reparos, a que o outro não deu importância.
Foi porém no dia do passeio à Vista Chinesa que Ricardo se recolheu contrariado ao último ponto, não só pela sem-cerimônia com que se intrometera o Fábio na roda dos convidados, filando o cavalo do Lima, como pelo namoro escandaloso que travara com D. Guilhermina.
Sentia Ricardo a necessidade de ter com o amigo uma prática séria, na esperança de coibir a tempo aqueles ímpetos e evitar futuros dissabores, senão verdadeiros desregramentos, que trariam a infelicidade de duas famílias.
Fábio porém evitava as ocasiões em que o assunto pudera muito naturalmente vir a talho, trazido pela divagação de uma palestra entre amigos. Um emprazamento emprestaria à conversa ares de solenidade que seriam de mau prenúncio. Podia o noivo de Luísa enxergar nas palavras do amigo uma exprobração de quem já se arrogava autoridade de chefe de família; e irritando-se, persistir no caminho que levava.
Razão tinha Ricardo para recear esse resultado; pois desde a primeira visita à casa do Soares sentia que o espírito de Fábio, arrastado pela sedução daquela sociedade, subtraía-se à sua influência.
O menor arrefecimento nas relações dos dois moços teria consequências graves, pois determinaria a retirada de Ricardo para São Paulo, desvanecendo a esperança por tanto tempo afagada de fazer carreira na corte, e preparando para Luísa uma decepção cruel.
Tais eram os pensamentos que nessa manhã carregavam a fronte do jovem advogado de uma nuvem de tristeza.
Eram dez horas e meia, e Fábio ainda não chegara ao escritório. A sua mesa, colocada do outro lado da sala, estava intacta como ele a deixara sábado. Nos dois cantos viam-se as rimas de autos velhos, que o moço pedira aos escrivães a pretexto de estudar certas questões; mas realmente para dar à sua banca o aspecto forense. Esses cartapácios faziam as vezes de uma tabuleta.
— É capaz de não vir hoje, como já não veio ontem, disse consigo Ricardo.
E ia voltar à tradução, quando ouviu passos na escada; momentos depois na porta de comunicação entre os dois repartimentos surdiu a figurinha encarquilhada do Visconde da Aljuba:
— Pode-se entrar?
— Oh! sr. visconde!... Faça favor.
Ricardo, surpreso da visita, ergueu-se para oferecer ao Aljuba uma cadeira a seu lado.
— Custou-me a dar com o escritório. Também foi procurar uma rua tão esquisita. Nada; isto não serve. É preciso arranjarmos quanto antes uma sala aí na Rua Direita, ou mesmo na da Quitanda...
— Ainda não é para mim; e quem sabe se o será algum dia.
— Ora qual! disse o visconde com seu riso fagoteado e batendo no ombro do moço. Você breve está aí recheado! Veja o que lhe digo.
Uma das particularidades do visconde era familiarizar-se com as pessoas que tratava a ponto de chamá-las por você desde o primeiro dia. Entendia que o dinheiro lhe dava essa liberdade, como lhe dera a excelência com que o abarrotavam a cada canto.
Ricardo não gostou do modo achavascado; mas disfarçou.
— Dito por V. Ex.a, é um bom agouro.
— Oh! Eu cá nunca me engano. Sujeito que tem de ser apatacado, eu o descubro logo pela pinta. Olhe o Soares. Foi vê-lo, e conhecer logo que aquele patife acabava podre de rico.
— Então acha-me com jeito de homem apatacado?
— Tem todos os sinais.
— Quais são eles?
— Eu cá sei. Mas vamos ao que serve. Para começar, temos aqui uns dois negocinhos... Meu procurador há de passar por cá depois. Trouxe os papéis para explicar-lhe bem a cousa.
Tirou o visconde do bolso um maço de papéis preso por um elástico, e pô-lo na ponta da mesa.
— Este é uma escritura de hipoteca dum sujeito que me deve seis contos. A casa há de valer uns vinte; ainda tem uns escravinhos; bem tangida a embromia, como os senhores sabem fazer, podemos passar a mão em tudo.
— Engana-se; eu não sei fazer desses milagres, disse Ricardo, já não podendo conter o sarcasmo.
— Ande lá, ande lá! Isto agora é uma letrinha dum rapaz, um peralta que já esbanjou a legítima do pai, e está à espera da herança da mãe. É preciso pôr-lhe em cima o ano do nascimento e andar com a tramoia depressa para arranjar uma sentençazinha, que fique na gaveta bem guardada à espera do bolo. Enquanto o marreco anda na pinga, não olha para estas cousas, nem dá o cavaco, sobretudo caindo eu com uns cobres, que ele anda seco. Mas assim que meter-se na herança, é capaz de vir com histórias de que são falsas as letras, que ele as aceitou quando já estava declarado pródigo, e outras petas.
— Desculpe-me, sr. visconde, não posso encarregar-me destes negócios, disse Ricardo com fria gravidade, carregando sobre a última palavra.
— Por que então?
— Permita-me que reserve para mim os motivos de meu procedimento, tornou Ricardo no mesmo tom.
— Ora já sei! É sobre isso mesmo que eu vinha falar-lhe; mas precisava antes de apalpar o terreno... Compreende, hem!
Foi Ricardo quem dessa vez ficou surpreso do desembaraço do usurário.
— A cousa está bem encaminhada! Você é um finório! continuou o visconde apertando o joelho de Ricardo. Mas, olho vivo, que anda uma súcia de galfarros à cola da rapariga. Então o Nogueira e o Bastos? Dois velhacos de marca. Deixe-os por minha conta, que os conheço; têm de haver-se com um macaco velho. Lá o Guimarães não mete medo, é um pateta.
— Explique-se melhor, sr. visconde, eu não o entendo.
— Faça-se de inocente! Ah! maganão?! Quem não sabe que a rapariga está pelo beiço! Você é um ladrão feliz!
— De que rapariga me fala o senhor?
— Ora de quem há de ser senão da Guida, a filha do tratante do Soares? Domingo na Tijuca, todos conheceram como ela se derretia... E tinha razão! Olé se tinha.
— Não admito gracejos a este respeito, sr. visconde.
— E esta! Não costumo gracejar com os negócios.
— Então é um negócio que o senhor veio propor-me?...
— E que negócio!... Magnífico!... Olhe; um namoro com uma rapariga como a Guida, custa caro! Eu conheço aquela sujeitinha! Está acostumada a atirar fora as notas do banco como se fossem papéis de bala! Além disso há de ser preciso sustentar por muito tempo, um ano seguramente, a tramoia, o que fica um tanto salgadete.
O visconde hesitou um momento, calculando uma última vez as probabilidades da especulação. Ricardo, mantendo com esforço a calma de um frio desprezo, desviava com desgosto o olhar da fisionomia grosseira e astuta do usurário:
— Pois, meu amigo, eu forneço todo o dinheiro necessário para o nosso negocinho... Já sabe, com a condição de tirar a minha fatia do bolo. Que diz? Vamos ao ajuste; sempre é bom.
— Creio que terminou a sua proposta? perguntou Ricardo com a voz contida. Cabe-me agora responder.
— Sem dúvida.
— Não tenho pretensões à filha do Sr. Soares; nem existe entre nós mais do que relações do acaso, que vão como vêm. Enganou-se, pois, sr. visconde; não é a mim que devia dirigir-se, para a sua especulação.
Deu o Aljuba um saltinho na cadeira.
— Hã! Não quer? Percebo a embromia. Fia-se na rapariga? Olhe lá, não se arrependa...
— Queria poupar-me à necessidade de dar-lhe a resposta que merecia sua proposição; mas o senhor força-me...
— Isso de mulher, não há que fiar, insistiu o visconde receoso de que lhe escapasse a pechincha. Então aquela que é o diabo de saia, ou o pai, o Soares, que tudo é um. Aposto que já o engazopou...
Ergueu-se Ricardo afinal ao impulso da indignação que por muito tempo recalcara; abotoou o visconde pela gola do casaco, e arrastou-o até a porta da rua.
Executada esta expulsão em silêncio, apenas interrompido por algumas interjeições do visconde, Ricardo, vendo que lhe ficara sobre a mesa o chapéu do miserável, atirou-lho do alto da escada.
Só então reparou ele na presença de Fábio, que se ocultara na janela para deixá-lo passar com o visconde a reboque.
— Ouviste?
— Tudo! O sujeito esteve impagável!
— E sabes quem é o culpado do que acontece?
— Sou eu, se te parece!... Ora, pois, arranja-me daí já um processo. Servirá para praticares no crime. Código, artigo 264. Mete-me nessa tarrafa policial! Anda; um estelionato, de cumplicidade com o visconde!
— Não estou de veia para gracejos. Conversemos seriamente, Fábio. Desde ontem que desejo esta ocasião.
— És difícil de contentar. Queres cousa ainda mais grave do que o Código Criminal e um bom processo de estelionato?
Sem atender às facécias do amigo, Ricardo continuou:
— São estas as consequências do passo errado que me obrigaste a dar, indo à casa do Soares.
— Com esta lógica sou capaz de te provar que, se não viesses de São Paulo, não estarias aqui; e portanto o visconde não te pilhava.
— Se todo o mal recaísse unicamente sobre mim!... Porém a minha pobre irmã Luísa também tem o seu quinhão. Mal sabe ela que as suas meigas saudades andam aqui desfolhadas ao vento do prazer, e quem sabe se já não calcadas aos pés de alguma falsa deidade!
— Meu caro Ricardo, estás hoje tétrico, como o Saião Lobato na Câmara. Aparece-te de repente o Vasques, disfarçado em visconde, para representar uma cena cômica, e tu em vez de dares boas gargalhadas e te divertires à custa do velho ginja, tomas o caso ao sério, e cais no dramático! Até aí, enfim passe. Na cena da “ejaculação” tocaste o sublime. Far-me-ias lembrar o Rossi, se eu o tivesse ouvido. Mas depois de te haveres levantado a essas alturas épicas, desceres assim ao sentimentalismo corriqueiro de um poeta de sala, eis o que eu na minha qualidade de crítico, de amigo, e de futuro irmão, não posso tolerar.
— Queres fazer o favor de me ouvir? disse Ricardo, atalhando aquela volubilidade jovial, que em outra ocasião o faria rir de boa vontade.
— Espera; deixa acabar. O patife do visconde é um refinado tratante, um velhaco de tal quilate, que logo ao nascer logrou a natureza fazendo-se homem em vez da ratazana, para que ela o destinara. Mas para ter boas ideias, não há como essa gente. Aproveita a que ele te deu, que é excelente; e logra-o...
— Fábio! exclamou Ricardo com severidade.
— Que maior prazer pode ter um homem honesto do que o de “flambar” um velhaco?... Pensa nisso, que aproveitas mais o tempo do que lendo o farelório do Lobão. Até logo!
Ditas estas palavras, o peralta do rapaz ganhou a porta da escada, e desapareceu.
Havia grande banquete no palacete do Soares, à praia de Botafogo.
Era dia de anos. Guida entrava nos dezenove: o que anunciava para breve um grande acontecimento.
Sabia-se que o pai prometera deixar à filha toda a liberdade para se divertir até dezoito anos com a condição de casar-se logo depois. Chegado o dia, Guida sofismou a promessa, declarando que se deviam entender os anos completos: pois até a véspera de fazer dezenove, ela se considerava na casa dos dezoito.
— É assim que nós as moças contamos os anos, disse ela para o pai.
O pai condescendera, e a época do grande acontecimento foi prorrogada até o dia em que fizesse os dezenove anos.
Esta circunstância produzia nos convidados certa emoção como se a moça tivesse de fixar naquele dia a sua escolha.
Quando a curiosidade excitava tais abalos, imagine-se do que não sentiriam os pretendentes, receando ver de repente se desmoronar o edifício de suas fagueiras esperanças.
Corria o mês de abril.
Uma semana antes deixara a família do Soares a Tijuca, e voltara à sua residência habitual de Botafogo, onde com a passagem para o inverno já não havia a temer os grandes calores.
Não se esquecera Guida de convidar Fábio, que tinha continuado a frequentar a casa; e nessa ocasião pediu-lhe transmitisse o convite a Ricardo, porque este não voltara à Tijuca desde o passeio à Vista Chinesa.
— Ele está mal conosco? disse a moça a rir.
— Era preciso que fosse um herege, D. Guidinha.
— Pois então peça-lhe que não falte.
— Prometo trazê-lo.
Os salões enchiam-se de convidados; mas eram em geral parentes, íntimos e pessoas de pouca cerimônia, com quem o Soares não se constrangia. A festa aristocrática, à qual concorria todo o alto coturno fluminense, era o baile à noite.
Fábio acabava de entrar e aproximou-se para cumprimentar Guida.
— Seu amigo? perguntou-lhe a menina.
— Não veio, murmurou o mancebo.
No rosto gentil da filha do banqueiro pintou-se uma faceira expressão de desdém e enfado.
— Eu não devia apresentar-me aqui sem uma certidão de óbito em devida forma, acudiu Fábio em tom galhofeiro; mas ainda creio que me seria mais fácil trazer o sujeito a modo de convidado de pedra do que em carne e osso.
— Ele terá suas razões, disse a moça com indiferença.
— O que ele tem é uma sem-razão, tornou Fábio no mesmo tom.
No jantar achou-se Fábio colocado à esquerda de D. Guilhermina, como de costume. Havia entre os dois um arrufo, que já durava alguns dias.
— Sinto me tivessem reservado este lugar, que outrora era minha ambição, disse o mancebo com sentimento.
— E que hoje lhe aborrece! tornou D. Guilhermina.
— É verdade; pela certeza que tenho de a estar incomodando.
— Engana-se!
— Tem razão; uma criatura de todo indiferente não pode incomodar aqueles que nem se apercebem de sua presença.
— O senhor é muito injusto! murmurou a moça com inflexão queixosa.
— Que direi eu? será justo roubar a alma e a vida de um homem, e não conceder-lhe sequer a mínima consolação?
— Uma entrevista, só, à noite, no jardim... Se eu me prestasse a esse capricho, o senhor havia de ser o primeiro a reprovar consigo mesmo essa imprudência e a condenar-me.
— Para que fingir, D. Guilhermina? A causa, eu a conheço! Está defronte de nós!
E o olhar do moço fitou-se no Lima, sócio do conselheiro.
— Então o senhor pensa?...
— Eu não penso. É o que se ouve por toda a parte; é o que diz todo o mundo, tornou Fábio.
— Assim, o senhor também acredita?... balbuciou D. Guilhermina com lágrimas na voz.
O mancebo, comovido, receou que o soluço rompesse do seio opresso da moça.
— D. Guilhermina! exclamou com voz submissa e suplicante. Podem reparar!
— Que mal faz!... Para eles, como para o senhor, não sou uma... desgraçada?
— Para mim!
— Não confessou que também crê no que se diz por toda a parte?
— É diferente!... Pode-se ter uma afeição...
— Mas é falso!
— Assegura-me?
— Juro!
— Em vez do juramento, dê uma prova.
— Qual deseja?
— A que eu lhe pedi.
D. Guilhermina hesitou.
— Quer me perder em vez de salvar-me? disse a senhora com a voz repassada de tristeza.
— Não quero prova alguma; acredito, atalhou Fábio.
Acabado o jantar, quando os convidados derramaram-se pela sala do bilhar e jardim, Fábio encontrou-se com Guida:
— O senhor há de me dizer uma cousa.
— Muitas e com o maior prazer.
— Que razão é essa pela qual o Dr. Nunes deixou de frequentar a nossa casa?
— Pois há uma razão?
— O senhor disse-me quando chegou.
— Perdão, D. Guidinha; se bem me lembro, eu disse que havia uma “sem-razão”.
— Ou isso! tornou Guida a rir.
— É muito diferente.
— E essa sem-razão não se pode saber?
— Guarda segredo?
— Inviolável.
— Eu desconfio que é o Visconde da Aljuba.
— Como? exclamou Guida na maior surpresa.
Ela não compreendia de que modo pudesse o usurário arredar a Ricardo de sua casa.
— Aí está o enigma!
— Brigou com o visconde?
— Não; briga não houve. Apenas Ricardo enxotou-o do escritório.
Guida aplaudiu com riso franco.
— Mas por quê?
— Decifre. Não lhe disse que é um enigma?
— Vamos a ver.
— O tal visconde é um especulador terrível. De tudo faz negócio. Nascimentos e óbitos, casamentos e divórcio, heranças e dotes, nada lhe escapa. Não foi debalde que ele começou por belchior! Pois o homem parece que lembrou-se de propor um dos seus “negocinhos” a Ricardo...
— Ah!...
— Paulistas, a senhora sabe como são desconfiados. Ricardo não quis ouvi-lo; mas como o homem valeu-se de seu nome... disse Fábio hesitando.
— Acabe! instou Guida com autoridade.
— Está acabado. Ricardo apanhou-o pela gola e sacudiu-o na rua, como se faz com uma barata, para não sujar as mãos.
— Creio que já decifrei. Mas vou pensar ainda, respondeu Guida com um sorriso, onde borbulhava o desprezo pela infâmia do usurário.
— Não me comprometa!
— Esteja descansado.
O Soares conversava no terraço com o Conselheiro Barros, o Barão do Saí, o Visconde da Aljuba, Nogueira e outros.
— Papai, escute!
Soares afastou-se com a filha.
— Hoje é dia de meus anos, creio que não se esqueceu?
— Tu terias o cuidado de lembrar-me?
— Entretanto ainda não me deu o presente de anos!
— Ah! E esta pulseira de esmeraldas que aí tens no braço? Aposto que nem imaginas quanto custou no Farani? Eu tenho vergonha de confessar! Cinco... Não digas que foram contos... Cinco histórias...
— Isto foi presente do banqueiro; e o pai?
— Nada de espertezas!... Eu cá sou um só; a obra não tem dois volumes. Por conseguinte deixa essa rabulice para o fisco, que reparte um homem em vários inquilinos para cobrar-lhes diversos impostos pessoais.
— Neste caso, aqui tem sua pulseira, disse Guida calcando a mola do bracelete para tirá-lo. De meu papai eu quero amor e não dinheiro.
— Bem! O que tu queres é pedir-me alguma cousa, e estás com estes rodeios. O que é?
— Faz?
— Se não for um impossível.
— Não deixe que o visconde venha à nossa casa.
— Por quê?
— Insultou-me!
— Que fez ele, Guida?
— Especulou com meu nome.
— Como sabes?
— É meu segredo.
— Tens certeza?
— Toda.
Um instante depois o Soares traçando o braço ao visconde levou-o até o quarto dos chapéus, e disse-lhe:
— Visconde, você sabe o provérbio: “Duro com duro não faz bom muro.” Nós somos dois espertalhões; não podemos embaçar-nos um ao outro; portanto cada um seu rumo. Aqui está seu chapéu.
— Isto quer dizer que me despede?
— É conforme a maneira de entender. Sou eu quem se despede de suas relações. Boa-noite.
Meia hora depois Fábio tornava à casa onde ia preparar-se para o baile.
Ao passar pela Rua da Ajuda, lembrou-se o moço de alguma cousa, que o fez retroceder o espaço de dois ou três edifícios, e penetrar em um corredor escuro. No fim havia uma escada, que chegada ao tope no primeiro andar, voltava para cima.
Subindo a correr os dois lanços, achou-se em um sótão baixo e pequeno, composto de duas peças, uma das quais abria para a escada. Estava apenas cerrada a porta; não foi preciso bater.
Ricardo escrevia à luz de uma lamparina de querosene.
Uma semana havia que Ricardo se instalara em sua nova habitação. A fortuna lhe enviara um sorriso, bem escasso ainda, que não obstante luziu como aurora na sombria perspectiva de sua existência.
Conseguira ao cabo de muita paciência a tradução de um folhetim, que lhe deixava uns setenta mil-réis por mês; e tivera uns dois processos policiais que, pagos mesquinhamente, lhe tinham metido no bolso uma nota de duzentos. Finalmente, procurando um cômodo, achara na Rua da Ajuda aquela metade de sótão mobiliado, a trinta mil-réis por mês incluída a comida; mas a dona da casa, uma senhora viúva, vendo que tratava com pessoa instruída, propôs-lhe como pagamento ensinar suas três meninas e dois rapazes; o que Ricardo prontamente aceitou.
Fábio opôs-se à mudança, na ideia de que o amigo fosse levado pelo receio de ser pesado; mas Ricardo demonstrou-lhe que daquele modo promovia seus interesses. Além de não custar-lhe o cômodo nada, senão trabalho, gênero de que tinha boa provisão, podia entre os conhecidos da viúva obter novos discípulos.
— E te sujeitas a isso? perguntara-lhe Fábio admirado.
— O trabalho honesto honra; e esse de ensinar é dos mais nobres, respondera simplesmente o paulista.
No momento em que entrava o amigo, Ricardo escrevia à sua mãe, e confirmava-lhe as boas notícias que até então apenas lhe deixara entrever, receoso de afagá-la com falaz esperança.
— Trabalhando sempre! disse o trêfego fluminense recostando-se na marquesa de vinhático.
— Estou escrevendo para São Paulo, respondeu Ricardo com uma inflexão triste na voz.
— Oh! diabo!... É verdade, amanhã sai o vapor. Espera!...
De um salto chegou-se à mesa, tomou uma pena, e escreveu no primeiro bocado de papel que achou, estas palavras:
La vita uniti
Transcorreremo.
— Toma; mete isso em tua carta!
E acendendo o charuto, voltou à marquesa, onde espichou-se cantarolando o dueto da Traviata. Passado um instante ergueu-se; olhou indeciso para Ricardo que lhe dava as costas escrevendo; passeou a esmo pelo estreito aposento, e aproximou-se da mesa:
— Queres um charuto?... É fazenda superfina!... Duque!... Já vês que para fumá-los é preciso ser príncipe pelo menos. Mas o Soares, que trata este mundo de resto, abarrota com eles aquela súcia acostumada ao trabuco de vintém! Fazia dó ver como atolavam as mãos nas bandejas de prata dourada!... Toma, não queres provar?
— Deita-o aí, respondeu Ricardo metendo a carta na capa, e pondo-lhe o sobrescrito.
Secou-se a musa ao Fábio com aquela indiferença do amigo; deu outra vez algumas voltas pela casa, e afinal decidiu-se:
— Podes ouvir-me um instante?
— Acabada esta carta; é a de Luísa e Bela.
Fábio fez um trejeito de homem pilhado na esparrela.
— Podes falar.
— Sem preâmbulos. Queres fazer tua felicidade?
— Para isso trabalho eu há dez anos.
— Pois não é preciso mais trabalhar: basta que estendas a mão.
— Achaste a lâmpada de Aladino, e me queres fazer presente dela?
— Não; mas descobri que o anel da Guida que é mais precioso do que o de Giges, foi feito para teu dedo. Ah! assim me servisse ele!
— Já te pedi que não repitas esse gracejo.
— Não estou gracejando; falo sério, mais sério que a burra de bronze de teu futuro escritório. A Guida gosta de ti, acabei de convencer-me hoje.
— Não suspeites da pureza de uma menina sisuda, e com má intenção, disse Ricardo abrindo um livro para cortar a conversa.
— Assim recusas! Quando a riqueza e a felicidade te procuram e vêm tirar-te desta boceta que por uma metáfora atrevida e arriscada, como dizia o Padre Fidélis, chamam sótão, e onde vives empalado, tu a enxotas como uma importuna? E não te lembras de tua mãe, de tua irmã, dos teus, sobre quem se derramaria a tua felicidade como um benefício do céu?... És um egoísta, Ricardo!
Ricardo ergueu-se.
— É pena realmente que o anel não sirva em teu dedo, Fábio! Pois tu não hesitarias em sacrificar-te para a felicidade de todos nós, inclusive a de Luísa!
— Sem dúvida!
— Ao menos tens o mérito da franqueza, tornou Ricardo com ironia repassada de desgosto.
— Ora! Tu não me pareces um advogado da corte! Não há estudante de São Paulo que não saiba ao terceiro ano o que é um caso de força maior, e quais são os seus efeitos jurídicos. Pois, meu caro Ricardo, um dote de um milhão com a perspectiva de outro por herança, em matéria de amor não é só força maior, é uma fatalidade.
— Vejo que aproveitaste bem teu curso!
— Se eu que amo Luísa, e estou na obrigação de amá-la toda a vida, salvo o caso de força maior, a esquecesse para casar-me aí com qualquer outra moça, seria decerto um ingrato, um monstro de perfídia. Mas sendo para casar sem amor, por cálculo, com uma boneca do valor de um milhão, daria um exemplo sublime sacrificando a paixão aos ditames da razão. Os heróis da história e da fábula são todos feitos por esse modo. O coração fica intacto; e dentro dele, como a lâmpada do santuário, arde sempre o primeiro e eterno amor. Eis como eu penso.
— E Luisinha pensará do mesmo modo?
— Deve, porque me ama.
— A razão é original!
— Julgo-a por mim. Sabes que amo tua irmã. Pois bem; aparecesse um casamento milionário para ela, e eu seria o primeiro a dizer-lhe: “Luísa, eu não sou o nec plus ultra dos homens; mas um pobre mortal com algumas qualidades e muitos defeitos. Como eu, se encontram aí pelas ruas às dúzias. Um milionário porém, meu anjo, é uma espécie rara, um animal exótico, um fenômeno social; vale a pena dar a gente um molho de esperanças que afinal murcham como o alecrim, para ter o prazer de possuí-lo.”
— Não me admira essa linguagem da parte de um homem que ama à tua maneira.
— É outro ponto em que discordamos. Tu tens a fidelidade do frade, eu a do soldado; tu foges, eu combato. Quando um homem conta à mulher amada suas conquistas e as seduções que sacrificou à sua beleza, ela deve ter legítimo orgulho.
— Guarda o teu espírito para o baile, Fábio; não o estejas esperdiçando nesta cela, onde só cabem as tristezas e preocupações da vida. Melhor farias se me respondesses seriamente a uma pergunta.
Fábio calou-se surpreso da severidade do olhar de Ricardo.
— Donde te vem o dinheiro que despendes nesta vida de luxo?
— Ora! Uma ninharia!
— Vês; tu coras e evitas responder-me.
— Emprestaram-me.
— Quem?... Ela?
— Ricardo!... Que ideia fazes de mim?
— Desculpa-me!... Conheço teu caráter; mas no mundo em que andas agora, é tão fácil um deslumbramento, um eclipse!...
— Tens razão! Prometo abandonar semelhante vida... Irei ao baile desta noite porque estou obrigado.
— Vai e diverte-te, disse Ricardo, que desejava apagar no espírito do amigo o travo de sua injusta suspeita.
— Não queres vir também?
— Tenho muito que fazer.
E despediram-se.
Estamos em junho.
Às onze horas saía Ricardo de seu escritório, já melhor situado, na Rua do Rosário, e dirigia-se à casa da Relação, onde dava audiência a 3.ª Vara Municipal.
Tratava-se de um processo-crime importante: uma falsificação de firma. O negociante, vítima da fraude, tinha procurado Ricardo para incumbi-lo de promover a acusação com energia, pois era mister um exemplo.
Por avanço de honorários deixara-lhe sobre a mesa naquela manhã um conto de réis.
Não era este o primeiro cliente importante que o jovem paulista vira aparecer-lhe de repente. De um lado chegavam propostas, que exigiam para resolvê-las um jurisconsulto, ou pelo menos um provecto advogado. Do outro, minutas de contratos e escrituras. Sentia Ricardo, que seu nome granjeava entre os comerciantes um favor, que não sabia explicar.
Agora mesmo, descendo a Rua do Ouvidor, perscruta ele debalde a causa do conceito que subitamente adquirira como advogado na corte, onde tantos existem e tão ilustres.
Não podia atribuir o fato ao seu mérito, ou à voga artificial que se arranja por meio de anúncios, e até de escândalos. Também não se oferecera para advogado de alguma beneficência estrangeira, com o fim de captar a clientela dos sócios.
Lembrava-se de ter visto muitos desses novos clientes em casa do Soares; e quis supor um instante fosse tudo efeito da amizade de Fábio, que naturalmente falava naquela roda a seu respeito com o entusiasmo do costume.
Mas não tardava em repelir essa suposição. Ricardo tinha experiência e sabia que a palavra sincera e convencida é pedra solta e não edifica neste país; é preciso pôr-lhe um cimento: o medo, a comodidade, o lucro, a paixão, etc.
Quando, fatigado de excogitar em vão, punha o ânimo à larga, espraiando a vista pela Praça de São Francisco de Paula, aonde saía naquele instante, deu com os olhos em Guida. Diante dele acabava de parar uma meia vitória, tirada por duas mulas possantes.
O lacaio, saltando da almofada, em vez de correr a abrir a portinhola, foi tirar questão com o cocheiro de uma diligência, que impedia a vitória de chegar à boca da Rua do Ouvidor.
— Psiu, olá, patrão, deu fundo aí?
— O largo é bem grande, respondeu o outro empoleirado.
— Não vê que é o carro do Sr. Comendador Soares? retorquiu o moleque com a insolência do lacaio de um milionário.
— É melhor que os outros?... Se tem muito dinheiro, guarde-o, que passa-se muito bem sem ele.
— Dobre a língua, sô atrevido, gritou o moleque pronto a saltar-lhe às bochechas.
D. Paulina e a filha debalde chamavam o pajem, receando que a rezinga desse em briga. Guida porém julgou que o mais expedito era descerem ali mesmo, fazendo cessar a causa da altercação e obrigando o lacaio a acompanhá-las.
Reclinou para abrir a portinhola, mas Ricardo antecipara-se:
— É o Dr. Nunes, mamãe!
Apearam-se as duas senhoras e receberam os cumprimentos do moço.
— Ora estimei muito encontrá-lo, disse D. Paulina com a sua habitual singeleza. Quero fazer um presente ao Soares; mas ele não gosta que lhe deem cousas de luxo, que não tenham utilidade. Incomoda-se!
— Acho-lhe razão! disse Ricardo por delicadeza e para mostrar interesse na conversa.
— E eu não lhe acho nenhuma, acudiu Guida voltando-se; um presente é uma lembrança, e não um fornecimento de víveres, roupa ou qualquer outro necessário.
Ricardo fitou a moça para conhecer-lhe pelo rosto se fora sua intenção dar-lhe uma lição de urbanidade; mas ela dobrava distraída o canto da Rua do Ouvidor, deixando sozinha a mãe.
— Disse-me o Bastos que a Notre Dame tem camisas de homem muito bonitas. Quero ver o seu gosto. Vamos, é perto.
Lembrou-se o advogado da inquirição; mas tinha meia hora e o recurso do tílburi. Condescendeu, pois; tanto mais que seria pouco delicado deixar ali só no meio da rua a mulher do banqueiro, sem a filha que desaparecera, e o pajem que ainda grazinava com o cocheiro.
— Com muito prazer, minha senhora, ainda que não me posso demorar muito.
— É um instante!
Entraram na Rua do Ouvidor, onde Guida os esperava.
— Há tanto tempo que o senhor não aparece, sr. doutor; está mal conosco?
— As minhas ocupações, D. Paulina, não me permitem.
— O Sr. Dr. Nunes trabalha muito, mamãe! observou Guida voltando-se.
— Seu amigo gosta mais de se divertir. Como vai ele?... Ah! aqui estão as camisas.
E D. Paulina mostrou a Ricardo a vidraça da Notre Dame, onde se viam as caixas de camisas francesas com toda a sorte de punhos e colarinhos.
A casa da Notre Dame é uma espécie de secretaria da moda fluminense; há naquele ministério do luxo diversas seções, e diretorias, melhor regidas talvez do que a dos correios, dos telégrafos, e outras.
D. Paulina e Ricardo entraram na sala da roupa branca, lingerie; e apesar da condescendência do advogado, disposto a conformar-se plenamente com a escolha de D. Paulina, para mais depressa libertar-se, um quarto de hora foi consumido no cotejo, nas indecisões, e mil rodeios, com que as senhoras costumam deliberar em conselho de estado pleno sobre a magna questão da compra de uma fita, por exemplo.
Durante esse tempo, Guida na próxima repartição, a das sedas, soierie, fazia desmoronar-se, a um aceno da ponteira de seu chapelinho de sol, as rimas de caixas e pacotes, que atopetavam os armários.
Tinha prazer em ver se desdobrarem assim aquelas ondas de seda e veludo; em contemplar as galas da moda, examinar as mais esplêndidas seduções do luxo, e sentir-se calma e indiferente.
— Não me agrada!
Esse dito desdenhoso, o repetia ela de cada vez que afeitavam-lhe diante dos olhos um corte de nobreza rutilando aos toques da luz, os nimbos da tarlatana orvalhados de pingos de cristal, ou os flocos da gaze de Chambery flutuando como nuvens d'ouro.
Debalde os caixeiros excediam-se na lábia francesa, com a qual não compete nem o puff inglês, nem o humbug americano.
Foi impossível excitar na moça a cobiça por qualquer das últimas novidades e fantasias da moda.
— Quero comprar alguma cousa, para não dar-lhes trabalho à toa.
Nesse momento aproximaram-se D. Paulina, e Ricardo que vinha despedir-se.
— Já vai? perguntou a moça com indiferença.
— Se me permite!... Devo achar-me às onze horas na Relação.
— Ah! o senhor já sabe? acudiu a moça pondo-se a contraluz de um rico vestido de gorgorão para ver-lhe o efeito: o Visconde da Aljuba não frequenta mais a nossa casa. Qual acha mais bonito, o azul ou o verde?... Este?... É também o meu gosto.
Voltou-se para o caixeiro:
— Mande-me este a Comaitá.
Depois tornou a Ricardo:
— Como algumas pessoas não gostavam de encontrar-se com ele... por isso lhe previno.
— Eu nunca lhe dei atenção.
— Ah! pensei.
— É verdade, acudiu D. Paulina. O senhor há de jantar conosco sábado. Não falte; promete?
— Terei esse prazer, disse Ricardo.
— Mas olhe que é segredo.
— Ah! é um banquete político?
— É uma conspiração, observou Guida.
Saindo de Notre Dame, não viu Ricardo duas pessoas recostadas no guarda-vidraças de metal dourado.
Eram o Visconde da Aljuba e o Dr. Nogueira, que enfiando os olhos pela vidraça, acompanhavam os movimentos da Guida, fazendo a propósito algumas observações.
— O farsola é capaz de lograr-nos! dizia o visconde designando Ricardo.
— Já lhe tomei o pulso, respondeu o Nogueira com a peculiar jactância: está muito calouro ainda!
— E a sua candidatura, como vai? É uma cousa que havia de ajudá-lo muito.
— As cousas estão bem dispostas, mas sem algum dinheiro...
O visconde pulou à semelhança dum martelinho de piano, quando lhe tocam na tecla:
— Não creia nisso. Eleição, meu doutor, é o governo que a faz; o mais são petas. Quando ele perde, é de propósito para pregar o mono a certos sujeitos. Se o senhor tem o governo por si, deite-se a dormir, não precisa de mais nada; se não o tem, perde seu tempo e seu cobre. É cuidar noutra cousa.
— Não é tanto assim...
Nesse momento saíra Ricardo da loja.
— Chegou a sua vez, disse o visconde ao Nogueira empurrando-o amigavelmente. Vá engambelar a rapariga. Ande, ponha pra fora toda a sabença e desbanque-me o tal bonifrate! Eh! eh!...
E trinando o seu riso em falsete, o Aljuba lá se foi a trote miudinho, rua acima, para o escritório.
Entretanto cismava Ricardo no segredo do jantar para que fora convidado; e dois dias depois, na manhã de sábado, ainda ocupava-se com esse capricho de senhoras, muito inclinado a abster-se do convite, apesar de o haver aceitado por delicadeza.
Achou porém em seu espírito boas razões, que o dispuseram; e às quatro horas da tarde apeava do tílburi no palacete de Botafogo.
A reunião era mais numerosa que de costume. Além dos infalíveis, notava-se grande número de capitalistas e negociantes, a creme da praça. Aí estavam todos os nossos conhecidos, menos o Visconde da Aljuba.
Havia na sala a atmosfera moral que se forma pela expectativa e curiosidade do desconhecido. Os amigos encontrando-se inquiriam da novidade e perdiam-se em conjeturas acerca da reserva com que se tinham feito os convites, do segredo recomendado, e da surpresa que sem dúvida estava preparada para o banquete.
Sintoma bem significativo da importância dessa reunião, que sob a aparência de festa ocultava talvez um acontecimento, era a presença de D. Leonarda Torres, a avó materna de Guida, ou a “avozinha” como a chamava a menina.
A mãe de D. Paulina, velha de sessenta anos, nunca aparecia na sociedade; o defeito de uma perna proveniente de reumatismo gotoso, e o gênio a retinham constantemente em casa.
Nesse dia, Guida conseguira arrancá-la de seu retiro para fazê-la assistir à festa. E o que não obteria a gentil menina da velha, que morria-se de amores por ela?
À chegada de Ricardo, Guida o levou para junto da velha, sentada à parte em uma cadeira de roldanas:
— Avozinha, aqui lhe trago uma pessoa para conversar. É o Dr. Nunes.
— É médico? perguntou a velha.
— Não, respondeu Guida sorrindo-se por adivinhar o pensamento da avó, que era falar de seus achaques. Mas é filho de São Paulo.
— Está bom!
— Fale-lhe de sua terra! disse Guida voltando-se para Ricardo. Ela passou lá muitos anos, quando menina; e ainda tem saudades.
— Ah! morou em São Paulo algum tempo? disse Ricardo. Na capital mesmo?
— No Brás. Não conhece a casa de D. Belmira de Leme Torres?
— Muito; minha família e a sua visitam-se.
— Pois estimo bem. É minha prima.
— Agora, disse Guida alisando os cabelos brancos da velha, não se há de aborrecer mais. Tem quem a distraia; não é assim?
E deixou os dois em conversa.
De todas as pessoas da sala nenhuma estava tão desnorteada, como ficou o Soares que ao voltar do escritório para o jantar caseiro e o repouso da sesta, encontrou o palacete em festa, cheio de amigos com quem decerto não contava achar-se naquele dia.
— Que história é esta? perguntou o banqueiro que tudo levava em ar de brincadeira. Querem ver que o Aljuba espalhou que eu ia pôr-me ao fresco, e vocês pelo seguro vieram cercar-me a casa? Finórios!... Também tu, conselheiro! Vieste agarrar o teu velho camarada!
— Que dizes?... Não vão bem os teus negócios? acudiu o Barros amornando a sua fria e pachorrenta gravidade. Bem sabes que até onde eu puder!...
Soares abraçou-o com efusão, mas logo afogou esse impulso na perene galhofa:
— Estás sonhando, meu velho! Nunca me correram tanto à feição os negócios, como depois que o farsola do visconde me anda a agourar. Tu sabes, praga de urubu... Mas deveras que vieram vocês fazer? Quem os chamou cá?
— É boa! Pois não nos convidaste para jantar!
— Eu! Vocês querem divertir-se.
— Foi o recado que recebemos.
— Hum!... Não passa de invenções da senhora minha filha! Não resta dúvida!
O banqueiro levou o dedo à boca:
— Esperem que vou tenteá-la.
Nisto apareceu Guida:
— Sim senhor, papai, muito bonito! convida a cidade do Rio de Janeiro em peso para jantar, sem prevenir a mamãe, nem dizer a pessoa alguma! Pois isto se faz?
— Hem! estão vendo, vocês! disse o Soares disparando a rir.
— Ora não disfarce, papai. Todos estes senhores receberam seu convite, e com a recomendação de guardar segredo!
— É verdade?
— Então... Mamãe e eu íamos sair, quando começam a chegar convidados. Os senhores hão de ter paciência e desculpar. Um banquete não é um discurso, que se improvisa.
— É pena que não se possa mudar de sexo, Guida. Tu serias o primeiro banqueiro do Rio de Janeiro.
— Esse lugar já está tomado, papai.
— O jantar!... gritou o Daniel na porta.
— Brejeira! murmurou Soares fazendo cócegas nas faces de Guida.
Sentaram-se os convidados à mesa, onde o cozinheiro teve o talento de concentrar os espíritos na mais séria das preocupações da vida àquela hora crítica do jantar. Assim já poucos se lembravam que ali tinham ido para outra cousa que não fosse apreciar a boa mesa do Soares.
— Aposto que está muito curioso de saber o segredo? disse Guida a Ricardo que lhe ficava ao lado.
— Confesso que tenho alguma curiosidade; mas por um motivo que não supõe.
— E se eu adivinhar?
— Tem muitas prendas para que lhe desse mais essa a natureza.
— O senhor suspeita que o segredo é uma brincadeira, um logro.
— Pior do que isso. Antes de ter o prazer de conhecê-la, ouvi falar da anedota de um médico, que se mandou chamar de madrugada a toda a pressa para ver uma cachorrinha.
— Ah! contaram-lhe isso? tornou Guida a rir; mas sem dúvida não disseram que foi uma aposta!
— Em todo o caso...
— Papai duvidou que eu fosse capaz de fazer o doutor ir a um baile ou cousa que se lhe parecesse: eu apostei. Arranjei uma partida em nossa casa, mas com o maior segredo.
— Como o jantar de hoje.
— Tal e qual; às onze horas, quando as salas estavam cheias escrevi ao doutor, em nome de meu pai, a carta chamando-o para ver a minha querida Sofia, que estava gravemente enferma. Ele veio; levou a cousa de brincadeira; e ao retirar-se teve de sair pelas salas, pois não havia outro caminho. Aí as minhas amigas, que já estavam prevenidas, rodearam-no com muitas festas, e tanto fizeram que o velho dançou uma quadrilha para recobrar a liberdade. Eu ganhei a minha aposta e meu pai deu-me Edgard. Bem vê que lucrei com a travessura.
— Já não me admira que faça tantas.
— Fiz; tinha dezesseis anos apenas; é verdade que, se não as faço ainda hoje, não é por falta de vontade, mas por acanhamento. Já tenho dezenove e contudo ainda me sinto menina.
Nesse momento ergueu-se comovido o Barão do Saí.
— Meus senhores, vou fazer um brinde.
Compreenderam todos como por uma repercussão moral que era chegado o momento da explicação; e abriu-se profundo silêncio.
Guida e Clarinha, a filha do barão, trocaram um olhar de inteligência que não passou desapercebido a Ricardo.
O barão propôs a saúde nestes termos:
— Ao meu velho amigo Soares, ao homem honrado que se fez por seu trabalho, e a quem o povo despachou comendador por aclamação, antes que Sua Majestade houvesse por bem nomeá-lo. Aqui está o decreto.
O velho com gesto solene abriu o pergaminho, onde se via uma assinatura de quatro contos de réis; as outras eram bagatela.
Ao mesmo tempo D. Clarinha, a filha do barão, prendia ao peito do Soares a venera da Rosa cravejada de brilhantes.
Patenteou-se o segredo; e as explicações correram ao redor da mesa.
Uma semana havia que no Jornal do Comércio começara a aparecer uma mofina concebida nestes termos:
COMENDADOR CHENCHÉM
Um marreco bem conhecido na praça, por suas especulações e trapaças, assentou de fazer-se comendador de meia-cara. O título “soa” e não custa cinco “res” ou réis.
O banqueiro, quando lhe mostraram o jornal, riu-se:
— São as unhas do tratante do Aljuba... Não resta dúvida.
— É um desaforo! diziam-lhe os amigos.
— Pois eu tomo a cousa às avessas. É uma fineza, que ele me faz diferençando-nos.
Quem mais se incomodou com o caso foi o Barão do Saí, que no maior segredo tratou de comprar a comenda para seu velho amigo, a fim de malograr a vil mofina. D. Paulina e Guida, de combinação com ele, prepararam a surpresa, a cujo desfecho acabamos de assistir.
Muitos dos convivas não se tinham apercebido da mofina, pela indiferença com que passam os olhos por essa arena da imprensa, onde se esgrime, de envolta com ideias e sentimentos nobres, toda a casta de paixão.
Valeu-lhes o Benício, que ninguém jamais apanhou desprevenido.
Submergindo a mão pelas profundezas do bolso, tirou dois ou três retalhinhos de jornal: eram exemplares da mofina que tinha o cuidado de cortar cada dia para apresentá-la cheio de pesar e indignação a quantos encontrava, aproveitando a ocasião para fazer o pomposo elogio de seu íntimo amigo, o Soares, que, isto é dele, “metia no chinelo todos os comendadores havidos e por haver”.
— A mofina?... Querem ver o desaforo?... Aqui está, essa pouca-vergonha! dizia o homem serviçal obsequiando aos vizinhos.
Erguera-se o Soares:
— Meus amigos. Isto nada vale por si, disse com o chasco habitual, pondo o dedo na venera; nada, nem como comenda, nem como joia. Como “comenda”, é uma “encomenda”, que já não “recomenda” ninguém. Como joia, eu tenho no coração do meu velho João, e dos amigos aqui presentes, um diamante de melhor água e quilate do que qualquer destes. Mas a intenção, essa é um tesouro; é a alma de um homem honrado e amigo dedicado.
Sentiu-se que o Soares estava comovido.
— Guida, minha filha, vem cá. Toma esta joia; ela te há de servir de broche. Em teu colo todos hão de admirá-la; e tu podes ter orgulho, minha filha, de adornar-te com a probidade de teu pai!
Guida lançou os braços ao pescoço do Soares.
Romperam os aplausos. A comoção era geral. Havia na reunião a eletricidade moral dos espíritos em ebulição, que só esperam uma centelha, para se inflamarem. A cena aí estava aberta; desenhada a situação; faltava só a palavra eloquente, que a exprimisse.
Algumas vozes proferiram o nome do Dr. Nogueira, como o homem do momento. Ele hesitou: não tinha previsto o lance; podia arriscar a sua reputação; era mais prudente deixar-se ficar na penumbra desdenhosa de seu incontestável talento.
Foi então que Ricardo exaltando-se com aquela cena onde vibravam as cordas mais nobres e generosas do coração, ergueu-se num assomo de entusiasmo, e sua voz sonora, palpitando aos impulsos do sentimento, arrebatou a atenção geral.
Trila o piano. As notas frescas, brilhantes e vivazes de um romance de Schubert se escapam em enxames pelas janelas, voluteando, como os coleiros que esvoaçam pelo jardim, entre os ramos floridos dos resedás.
Eram onze horas.
Mrs. Trowshy, sentada junto à mesa carregada de livros, mapas e outros objetos, espera gravemente que Guida se resolva a começar a lição; mas a menina inteiramente embebida na execução da música, nem se lembra da mestra.
— Allons, Guida.
Afinal conhecendo, depois de três advertências inúteis, que perdia seu tempo, aproximou-se do piano, e abriu o livro da música sobre a estante, para evitar que a discípula tocasse de cor.
Guida levantou-se logo do tamborete; e a mestra pensando que ela cedia-lhe o lugar para vê-la tocar a peça e corrigir algum engano, sentou-se ao piano e executou, com o maior escrúpulo, a linda composição de Schubert.
Mas Guida que ela supunha à sua beira, acompanhando atenta sua lição, estava bem sentada à mesa, onde abrira a sua caixa de tintas e coloria uma aquarela, mas a seu modo, pintando a folhagem de encarnado, os bois e carneiros de verde, e a água de amarelo.
Dando a mestra por falta da discípula a seu lado, tornou à mesa para observar a pintura da moça:
— What horror!... exclamou ela espantada com o disparate das cores.
— A senhora não tem bom gosto, Mrs. Trowshy, disse Guida. Não sabe apreciar a originalidade!
A inglesa disparou a rir, passando com extrema volubilidade do horror à gargalhada:
— How funny!... How funny!...
— Não se ria, Mrs. Trowshy! Isto que a senhora está vendo é uma obra-prima! Que vigor de colorido! Que tons brilhantes!... Os versos de certos poetas, se fosse possível pintá-los, saíam assim.
A mestra divertida com a travessura da menina, tomou tão vivo interesse, que segundo o seu costume entrou logo em colaboração. Mas Guida não estava de veia nesse dia, pois abandonando-lhe o pincel e a cadeira, esqueceu aquele divertimento e foi à cata de outro.
Deu duas voltas pela saleta, sem lembrar-se de cousa em que esperdiçasse o tempo, porque de lição, não queria ela saber naquele dia, e tinha resolvido na sua fantasia um sueto.
No fim de contas foi Sofia quem deu o tema para a nova travessura. Sentou-a Guida em uma cadeira defronte de si, com as patas dianteiras erguidas; e abrindo seu costureiro de pau-cetim embutido de ébano, dispôs-se a cortar para a felpuda cachorrinha um vestido de cauda à Pompadour, com dois tremendos pufos.
— Que está fazendo, Guida?
— O enxoval para Sofia. É verdade: ainda não lhe comuniquei o seu próximo casamento com um gentledog que está apaixonadíssimo do seu dote!
Nesse momento Soares apareceu à porta e chamou:
— Guida!
— Papai ainda não foi para o escritório?...
— Chegaram visitas, quando ia sair, e trouxeram umas novidades que te hão de interessar!
— Ah! são figurinos? perguntou Guida ocultando sob um remoque a súbita emoção.
— É outra espécie de novidade.
Travando-lhe da mão, Soares levou-a até o gabinete, e aí fê-la sentar perto dele na sua secretária.
— Lembras-te da conversa que tivemos aqui neste mesmo lugar há perto de quatro anos?
— Era tão criança então!... Se ainda hoje sou! atalhou Guida gentilmente.
— Esperta! acudiu Soares beliscando-lhe o beiço; já estás preparando a retirada!
— Ah! então é um ataque? Foi bom prevenir-me!
— Pois defende-te! Essa conversa, que tivemos há quatro anos, veio, recordo-me bem, por causa do susto que te causaram, com a invenção de que eu ia te casar antes de um mês com o Bastos.
— Susto que ainda me faz estremecer, observou em aparte Guida.
— Então eu te prometi duas cousas: primeira, que antes de completares dezoito anos, eu não te falaria nem por sombras em casamento; segunda, que tu mesma, de tua livre vontade e a teu gosto, escolherias um marido.
— Disso me lembro perfeitamente, e o trago bem guardado; pois é a maior prova do bem que me quer e da confiança que tem em sua filha.
— Ela merece tudo e mais, tornou Soares; mas a essas duas obrigações contraídas por mim correspondiam duas cláusulas a que de teu lado te submeteste.
— Vamos a ver.
— De tua parte, me prometeste que em completando os dezoito anos farias logo tua escolha; e no caso de não concordar eu, por estar um de nós enganado, te sujeitarias durante um ano às provas a que eu submetesse o escolhido, para conhecer-lhe o caráter e arrancar a minha ou a tua ilusão. Foi isto?
— Literalmente.
— Bem. Os dezoito anos se completaram há perto de três meses: e a escolha?... Está feita?
— Não, papai!
— E quando se faz?
— Quando aparecer aquele a quem eu devo escolher. Não posso inventar um noivo, papai! Tenho eu culpa se todos esses que me cercam nos bailes, e me perseguem com sua corte, me são indiferentes? Se nenhum desperta em mim a menor emoção, que se pareça com a afeição terna e pura da mulher por seu marido? Se os acho banais e ridículos, e me fazem rir, quando não me aborrecem?
— Eis aí, replicou Soares; tu dizes que não podes inventar um noivo, no que eu plenamente concordo; e entretanto não cuidas de outra cousa senão desse invento. Fantasiaste como toda a moça um homem à tua ideia, como não se encontra neste mundo; e cotejando os outros de carne e osso com o teu exemplar, os achas a todos uns bonecos sem graça.
— Não é isto, papai; não sou romântica; bem ao contrário; se há cousa ridícula para mim, é o ideal desses heróis de romance que sabem tudo, podem tudo, e tudo adivinham. Para uma pobre moça como eu, seria um traste bem incômodo. O que desejo é um homem de caráter nobre, que me ame, e por quem eu sinta verdadeira estima e afeição, para desculpar seus defeitos e não ver suas fraquezas. Parece que não peço muito!
— Mas, Guida, até agora não pudeste encontrar este homem? Em nossa casa vem a flor do Rio de Janeiro; e se falta alguém, é porque assim o queres. Bastava uma palavra tua. Tu frequentas os melhores bailes, conheces toda a sociedade escolhida da corte.
— Ainda é cedo! disse Guida.
— Cedo!... Agora vive-se depressa, minha filha; essa palavra quase que está eliminada do vocabulário da época. Dezoito anos é a mocidade da mulher, como os cinquenta e cinco que já estão cá, são a velhice do homem. Amanhã pode ser tarde para nós ambos.
— Deixe-se dessas ideias, papai!
— Há quinze dias, me pediste para romper com o visconde por andar ele especulando com teu nome. Não me quiseste dizer de quem se tratava. Ontem me avisaram de um infame ajuste feito entre ele e o Nogueira, sob a garantia de teu dote.
— Eu já sabia, disse Guida.
— Tu sabias, sim; mas pensa qual deve ser a minha tristeza lembrando-me que te posso deixar só no mundo, à mercê de semelhantes infâmias. Se fosses pobre, a tua virtude bastava para defender-te; mas rica!... Serias o prêmio da especulação, a vítima das trapaças, o alvo de todas as ambições, que te disputariam como um privilégio de bondes, ou um monopólio d'água. Não te horroriza esta ideia, e não avalias das inquietações de teu pai?
Guida reclinou sobre a mão a fronte pensativa e Soares ergueu-se ao impulso da comoção que o abalava:
— Essa imensa riqueza, que me invejam, de que me serve, pois em vez de garantir, compromete o futuro de minha filha? Se com um milhão, dois, tudo quanto possuo, pudesse criar um homem digno de ti...
— Não se aflija! disse Guida meigamente passando-lhe a mão ao pescoço. Prometo escolher.
— Sério?... E quando?...
— Em um mês.
— Deus te abençoe, como eu, e te inspire.
O pai estreitou a filha ao coração.
— Mas, tornou Soares de súbito, é por tua vontade!
— Inteiramente!
— Sem constrangimento!
— Nenhum.
— Vou descansado.
Guida acompanhou o pai até o portão, onde o esperava o carro para levá-lo ao escritório. Pelo caminho folgavam os dois como camaradas de colégio ao sair da aula em véspera de feriado.
Ficando só, a moça foi esconder-se a um recanto do jardim, em um nicho de trepadeiras; e aí ficou cismando cerca de uma hora. A mágoa que disfarçara em presença do pai, derramava-lhe agora no lindo semblante uma doce tinta de melancolia.
À tarde Guida lembrou-se de ir ver a avó no Andaraí.
Aí vivia D. Leonarda retirada na chácara, onde nascera, no meio de uma récua de crioulas e um bando de moleques de todos os topes e de todas as cores. Aquela criação pululava e crescia à mangalaça, como bezerros do sertão sem freio e sem educação.
D. Leonarda, desde que a serviam nos poucos misteres para os quais bastava uma criada diligente, deixava a troça das mucamas na mais completa liberdade, até nove horas, em que punha-as todas, mães e avós de filhos, debaixo de chave, como donzelas recatadas; e nessa conta tinha-as a todas, crendo realmente enjeitados pelas vizinhanças os moleques que lhe enchiam a casa.
Além da sua perna e das contas do seu procurador, D. Leonarda não se ocupava doutra cousa senão dos moleques, de coser para eles, distribuir-lhes um vintém para cocada, e ensinar-lhes a rezar.
Quando o carro de Guida parou na frente da chácara, correu ao portão o enxame de moleques e a troça das mucamas, gritando e saltando para festejar a chegada da menina.
Era sempre assim.
A entrada de Guida na casa da avó produzia o mesmo efeito que um sol de abril rompendo a bruma depois de uma manhã de chuva, ou para empregar imagem menos rústica e poética, o de uma música de batalhão passando em rua escusa e retirada.
O rancho das raparigas e moleques corria ao portão. D. Leonarda, a coxear, arrastava-se com o arrimo de uma bengala até a porta, onde acabava de aparecer. Não se pinta a expressão de júbilo que afogava o semblante da velhinha, com as alvíssaras da chegada de Guida.
Para a velha, aquela criança era todo o amor, como toda a alegria; ou antes, a criança era ela, que se deixava acalentar pelas carícias e meiguices da neta; e bebia-lhe nos lábios mimosos o doce riso que ainda iluminava-lhe as faces pálidas, e o prazer que lhe orvalhava as tristezas e achaques da velhice.
Subiu Guida ligeiramente os degraus da escada de pedra e apertou nos braços a avó, beijando-lhe os cabelos brancos e amimando-a com a graça que espargia-se em seu menor gesto, mas com uma ternura, que mui rara transpirava, como perfume de flor cerrada, a qual só recende na soledade.
Entretanto Mrs. Trowshy, ao descer do carro, como de costume tapou os ouvidos com as mãos para tornar-se impenetrável à algazarra da molecada, e soltando um esplêndido brrrrrr da genuína escola inglesa, foi acabá-lo numa cadeira de balanço da saleta, onde arreou-se como uma bala de algodão no bojo dum saveiro.
— Há que tempo, ingrata! disse a velha.
— Oh! avozinha! Não tinha com quem vir! Mrs. Trowshy andava com os seus faniquitos.
Depois de ter acarinhado a seu gosto a avozinha, Guida levou-a na sua cadeira de roldanas para o vão da janela que abria sobre o jardim, e aí de joelhos sobre a ponta do banquinho, o busto reclinado ao braço da poltrona, começou a falar baixinho ao ouvido da velha com extrema vivacidade. Dir-se-ia que receava encontrar-se com suas próprias palavras, pois as despedia mui depressa, e às escondidas.
Algumas vezes parava para observar a fisionomia de D. Leonarda, onde através do embevecimento que lhe causava a voz querida, espontava uma leve surpresa.
— Como há de ser? perguntou a velha uma vez.
— Escute, respondeu Guida.
E tomando entre as mãos a cabeça da velha com um gesto gracioso, conchegou-a a seus lábios, no intento de tornar ainda mais íntima e reservada essa confidência, que, se não roseava-lhe a face nívea e imaculada, alvoroçava-lhe os espíritos, a arder nos olhos e a arfar no seio.
— Pois sim! disse a velha dando-lhe um beijo. Arranja tudo.
Guida chamou um pajem:
— Vá à casa do Sr. Benício, sabe?
— É o procurador de sinhá velha?
— Esse mesmo. Dize-lhe que venha falar com avozinha amanhã à noite sem falta.
— Sim, nhanhã Guida.
— Então vens amanhã? perguntou a velha contente.
— Por força!
Meio-dia.
Abrasa o sol a rechã onde se desdobra o bairro do Andaraí, precintado por um cordão de montanhas que lhe interceptam a passagem das brisas do largo.
É um desses dias de verão, que chofram de repente no meio de frias temporadas como vedetas ou postos avançados do estio a explorar as névoas do inverno, e fazer experiências no barômetro dos calos e reumatismos dos velhos fluminenses.
Um tílburi para no portão da chácara de D. Leonarda; e dele apeia-se um mancebo trajado com a severa elegância, que revela o espírito superior, irisado pelo prisma brilhante da imaginação, mas contido pelo recato da dignidade.
No fim do curto passeio de murtas apareceu um negrinho que dobrava o outão de casa; logo após outro pirralho, e outro, até que formou-se uma pinha dos tais diabretes.
O mancebo caminhou a eles para confiar a um o seu cartão de visita; mas não tinha dado três passos, que a alcateia alvoriçou, dispersando-se pelo terreiro afora e escondendo-se por trás da casa.
Abrira-se porém a porta de entrada, e apareceu no patamar uma mucama:
— O senhor é Sr. Doutor Ricardo?
— Ricardo Nunes, confirmou o advogado.
— Pode entrar.
Achando-se o mancebo na sala de visitas, extensa peça, embora um tanto estreita, com cinco janelas rasgadas sobre o jardim, cujas ramadas lhe cobriam as portadas de verdes sanefas, por onde de envolta com a fragrância do jasmim coava-se a luz, peneirada no crivo das folhas e roseada pelo reflexo dos lilases.
Esta sombra luminosa, como a chamara Mílton, derramava no aposento uma tinta de serena e doce quietude, que repassava a alma de um indefinível enlevo, especialmente ao surdir-se das torrentes de um sol tropical. Sentou-se o mancebo à espera, com alguma curiosidade de conhecer ao justo o fim de sua vinda ali.
Dois dias antes lhe aparecera no escritório o obsequioso Sr. Benício; depois dos usuais oferecimentos, sacara do bolso as três clássicas e enormes carteiras, colocara-as diante de si em cima da mesa, esvaziara dois dos profundíssimos bolsos, tornara a atopetá-los baldeando a carga da direita para a esquerda, e afinal depois de toda essa pesquisa como não a faria melhor a polícia aduaneira, desenterrou das cavernas de uma algibeira uma nota de que deu leitura ao advogado:
— “Dr. Ricardo de Melo Nunes, advogado. Escritório, Rua do Rosário n.º 27.” É isto?
— Deve ser! respondeu Ricardo a rir, senão o senhor cá não chegaria.
— Eu cá trago estas cousas em ordem, tornou o amanuense; e acabou de ler a nota. — “Negócio de D. Leonarda.”
Depois dessa formalidade explicou o Benício ao mancebo que a sogra do Soares o incumbira de pedir-lhe o favor de achar-se em sua casa terça-feira ao meio-dia em ponto, para na qualidade de advogado aconselhá-la em negócio importante e até mesmo arranjar certos papéis necessários.
Assegurou Ricardo que as ordens de D. Leonarda seriam cumpridas; e ali estava exato no dia e hora que lhe fora designado. Viera o mancebo com certa emoção incompreensível, que ainda naquele momento não pudera dominar ao todo, e menos assinar-lhe a causa.
Atribuía à curiosidade. Que lhe queria a senhora? Teria ele de penetrar nos segredos de sua vida? Pretendia a velha incumbi-lo de redigir seu testamento? Ia ele tornar-se o confidente de alguma dessas dissensões intestinas que às vezes lavram no seio das famílias?
Abriu-se a porta; e Guida apareceu em companhia de Mrs. Trowshy.
A moça trajava nesse dia com extrema simplicidade. Estava toda de branco, e a alvura de suas vestes de cambraia sob a nívea cútis dava-lhe a serena transparência da luz mate. Sua bela estátua parecia flutuar nesse éter diáfano onde brilhavam com vivo fulgor os olhos negros e as tranças opulentas de seus cabelos. O lábio talvez pálido em outro semblante menos puro, no seu era folha de rosa nadando em leite; e por ele perpassava um sorriso merencório como deve ser a pétala aveludada da flor quando se despede da luz, de que embebia-se.
Ao vê-la entrar na sala como uma doce visão de manhã de abril, Ricardo, imaginação de artista, com o culto da forma e o entusiasmo do belo, não pôde conter os raptos de seu espírito; e esteve por alguns momentos no enlevo da admiração.
— Está cansado de esperar? disse Guida saudando o advogado.
Feitos os cumprimentos, Mrs. Trowshy foi sentar-se na outra parte da sala, no vão duma janela, com um volume de Dickens. Os dois moços ficaram onde estavam, Guida no sofá, e Ricardo na cadeira do lado.
— Minha avó está arranjando sua papelada. Talvez se demore, e por isso incumbiu-me de uma cousa bem difícil; distrair-lhe a impaciência.
— A senhora dispensa o cumprimento? perguntou Ricardo gracejando.
— Decerto; cumprimentos a esta hora entre o advogado e seu cliente... Porque eu estou aqui representando minha avó. Não é verdade?
— Assim o entendo; e eu não seria advogado se não houvera aprendido a fundo a paciência; além de que, não tenho pressa. Consagrei o dia de hoje à Sr.a D. Leonarda.
— Então não lhe incomoda esperar?
— De modo algum; antes me dá o prazer...
— Ai! ai!... que lá se vai o advogado.
— É verdade!
— Estimo bem que não estivesse aflito por ir-se, porque minha avó é muito vagarosa, coitada, tão doente; e eu não sabia como fazer-lhe passar desapercebido esse tempo. O piano... Se ainda tivesse cordas, podia tocar-lhe o Capenga não Forma. Mrs. Trowshy quando se agarra com seu romance, ninguém conte com ela. Então Dickens!
— É o seu autor favorito?
Acenou a moça que sim.
Não estava Guida, essa manhã, no seu natural, que era uma doce jovialidade, salpicada às vezes de ironia, e outras de meiga afabilidade. Em seu vulto perpassavam, como na face cristalina de um lago, as mutações do pensamento.
Ao entrar tinha ela a atitude séria e concentrada, porém ao mesmo tempo decidida e serena, de quem atravessa um momento difícil da vida, mas arrima-se, para transpô-lo, a uma resolução inabalável.
A conversa tirou-a dessa reserva, sem contudo dissipar-lhe de todo na fronte a sombra da preocupação. Buscou reassumir o seu gentil e gárrulo sorriso, mas a harmonia e a graça dessa mimosa expressão ressentia-se de uma ligeira crispação. As fibras nervinas desse delicado organismo, alguma forte comoção as tinha percutido.
Agora, em meio de um gracejo, deixava-se colher por súbita distração, como se o pensamento, transformado em uma borboleta, lhe fugisse pela janela a farfalhar entre as flores do jardim; mas, a ser assim, depressa achara a ideia que buscava, pois tornou logo à conversa.
— Dickens?... É o autor de sua paixão, disse afinal confirmando o aceno, e com uma ligeira confusão.
Delicadamente Ricardo fingia observar Mrs. Trowshy, para não se mostrar apercebido do enleio da moça.
— Gosta dos romances ingleses? perguntou Guida.
— Poucos tenho lido. A literatura francesa nos invadiu; e por algum tempo foi nosso único fornecedor de ideias. Das outras apenas conhecíamos as obras-primas, os grandes poetas. Ultimamente já entramos em comércio com outras literaturas; mas a mim falta-me o tempo e o gosto.
— Alguns acham os romances ingleses muito insípidos.
— É natural. Somos uma raça tão diversa! Eles hão de achar os nossos extravagantes.
— Oh! quanto a extravagância, quero contar-lhe o desfecho de um que li há tempos; creio que é de... Não me lembro! disse Guida com certo assomo nervoso.
Fitou a moça os olhos nas grinaldas que pendiam da janela, acompanhando o volutear de um colibri que chupava o mel das flores. Deste modo não se podia cruzar o seu olhar com o do advogado.
— O título... não me lembro. Era uma moça, filha de um banqueiro muito rico. Quanto à descrição, imagine o senhor, que sabe desenhar: o romancista a dá como bonitinha; não era nenhum primor; bem longe disso.
— Aí está-se revelando a escola inglesa, observou Ricardo.
Riu-se Guida maliciosamente da observação do moço, e continuou:
— O pai tinha declarado à filha quando ela tornou-se moça, que a não constrangiria, mas ao contrário lhe deixava plena liberdade para escolher um marido; contanto que chegando aos dezoito anos se casasse. Também é inglês, não lhe parece?
— Genuíno.
— Vai ver o resto. Chegou a moça aos dezoito anos; e completou os dezenove. O pai exige o cumprimento da promessa.
— E ela casa-se! exclamou Ricardo com vivacidade, levado por estranho impulso.
Retraiu-se porém o moço; e desfolhou dos lábios um irônico sorriso. Guida, que deixara suspensa um instante a exclamação do moço, continuou galanteando:
— O senhor quer precipitar o desenlace. Não seja tão sôfrego. Ouça; temos muito tempo. Avozinha não vem tão cedo.
Guida parecia recobrar sua habitual isenção e garridice:
— O pai exigiu o casamento; mas a moça não tinha escolhido.
— Ah!
— E não só não tinha, como não podia escolher. A ninguém amava; não conhecia um homem por quem sentisse as doces emoções, os estremecimentos, que fazem a felicidade conjugal. Donde provinha isto, não sabia explicar o romancista, e menos eu. Não teria coração essa moça, ou se lhe havia cegado? Era isso efeito da educação, ou da sociedade em que vivia, cercada de galanteios ridículos, de cálculos vis, e de grosseiras afeições? Pode ser que sucedesse à alma da moça o mesmo que a um botão de cacto, quando há tempestade: chocha e não abre em flor. Pode ser!
— Mais tarde. Quem sabe! disse Ricardo sorrindo.
— É a minha...
Atalhou-se Guida em cujas faces espontava um vislumbre de púrpura. Ricardo olhava-a com emoção.
— “É minha esperança”, repetiu Guida pausadamente. Assim disse a moça, uma vez que lhe acudiu esse mesmo pensamento. Mas os dezoito anos eram passados; fugia o tempo, e seu pai que a amava extremosamente, afligia-se com a ideia de a deixar só no mundo à mercê da especulação. Reconheceu a moça que era forçoso o sacrifício; e não hesitou em jogar seu destino ao azar, para sossego de quem morria-se por ela. Escolheu.
Ricardo recolheu-se todo em si como se tivesse de assistir a uma importante revelação.
— Não careceu escolher, continuou Guida. Conhecia um moço, que fora algumas vezes à sua casa; tinha plena confiança em seu caráter e na sua educação. Era um homem probo e delicado. Podia confiar-lhe o seu destino. A primeira vez que o encontrou, confessou-lhe tudo; disse-lhe que, se não lhe tinha afeição, ou nunca a teria por ninguém, ou só ele a podia inspirar.
Guida que falava sôfrega, moderou-se.
— “Se pois não lhe repugna aceitar a mão de uma mulher nestas condições, e pensa que ela vale a pena de arriscar a sua independência, o senhor me salva da maior humilhação.” Eis o que ela disse, concluiu Guida.
Os olhares dos dois moços se encontraram e fugiram-se:
— Não considera extravagante este procedimento? disse Guida rindo, para disfarçar a emoção.
— Está fora do comum; é novo, excepcional, como as circunstâncias que o determinaram; mas não há nele que repreender. Admiro a energia e espírito dessa moça, que em tão difícil conjuntura de sua vida, não sucumbiu à debilidade de seu sexo e teve coragem para decidir ela mesma e deliberadamente de sua sorte. Surpreende-me esta iniciativa, que atribuo à educação; e ainda assim parece difícil de vê-la produzir-se na vida real.
— Pois há de ver, disse Guida a meia voz.
— Como?
— Mas o senhor que aprova o procedimento da moça, no caso de ser a pessoa por ela escolhida, o que responderia?
— Eu não podia ser essa pessoa, disse gravemente Ricardo.
— Por quê? perguntou Guida com afã.
— O homem a quem essa moça se dirigiu estava livre; podia dispor de seu coração e de sua vida!
— Ah!
Descaiu-lhe à Guida, a fronte abatida. Ricardo olhou-a um instante com uma ternura melancólica. Depois, reclinando-se para não arrancá-la à sua posição, fez-lhe a confidência de sua vida em breves palavras:
— É uma afeição de infância. Brincamos juntos, e aprendemos a amar-nos. Esperava formar-me, mas tendo falecido meu pai, fiquei único arrimo de uma família pobre e endividada. Meu tio, o pai de Bela, adiou o nosso casamento, apelando para minha honra. Que futuro reservava eu para sua filha, pobre também? Parti para a corte; vim pedir ao trabalho os recursos indispensáveis para desempenhar a velha casa onde mora minha mãe, e que é nosso único patrimônio.
— E é preciso muito dinheiro? perguntou Guida com interesse. Quanto?
— Acanho-me de falar-lhe dessas particularidades.
— Não adquiri esse direito fazendo-lhe minha confidência? tornou a moça com meiga exprobração.
— Tem razão.
E Ricardo completou a breve história de sua vida; e contou-lhe, como o faria à sua mãe, as ânsias dos seis longos meses passados no Rio de Janeiro, os desânimos que tantas vezes dele se apoderavam; até lhe escaparam as mágoas causadas pela volubilidade de Fábio, e os receios pela ventura de Luísa, sacrificada com tamanha ingratidão.
— Avozinha está-se demorando. Com licença, vou saber a causa, disse Guida.
Ficando só na sala, pois Mrs. Trowshy continuava ausente, em Inglaterra onde se passa a ação do romance que lia, buscou Ricardo compenetrar-se da realidade dos fatos em que tomara parte, e não o pôde. Seu espírito, ainda atônito pela estranheza do episódio em que se envolvera imprevistamente sua existência, não recobrara a reflexão: tudo quanto podia no meio da surpresa, era recordar-se.
A espera foi breve. D. Leonarda veio finalmente à sala, acompanhada por Guida.
— Aqui tem os papéis, senhor doutor, disse a velha depois dos cumprimentos usuais, e volvendo a miúdo os olhos para Guida. Quero que examine bem para ver quem tem direito, porque não desejo questões, sobretudo com vizinhos.
— É então uma questão de limites? perguntou o advogado.
— Não sei... É isso mesmo, respondeu a velha corrigindo-se ao aceno da menina.
— O senhor me permite? Eu lhe explico. O vizinho da esquerda pretende apoderar-se de um pedaço de terreno, que foi sempre de minha avó. O senhor doutor leva os papéis, para examiná-los; depois dará sua opinião. Não é melhor, avozinha?
— Eu acho que é! disse a velha batendo com a cabeça.
Na ocasião de se despedirem disse Guida ao advogado, em cujo semblante não se apagara a tinta de melancolia que derramara a cena anterior:
— Não se aflija. O romance que eu lhe contei, acaba alegre.
E para confirmar o dito, o seu lindo semblante banhou-se em um riso feiticeiro.
Logo depois que Ricardo saiu, mandou Guida preparar o carro para voltar à sua casa.
— Então está decidido? perguntou a velha ao ouvido da menina.
— Ainda não, avozinha. Ficou para outro dia.
— Ora! fez a velha com um gesto displicente.
No carro Mrs. Trowshy, que também era curiosa, indagou nestes termos do êxito da conferência a que assistira de parte.
— Que disse o advogado? Ganha o processo?
— Está perdido, respondeu Guida a rir.
— Não é possível.
— Completamente.
— Oh! que pena!
Chegando a Botafogo às três e meia, esperou Guida na saleta que seu pai voltasse do escritório, para receber o beijo que lhe costumava dar na face, em retribuição das festas e carinhos com que era acolhido.
— Que milagre; está-me nascendo uma rosa entre os meus jasmins! exclamou o Soares reparando no vislumbre de púrpura que roseava a face da moça.
— Há de ser do calor; cheguei do Andaraí.
— Ah! e como vai a avozinha?
— Na mesma.
Subiu o Soares ao sobrado brincando com a filha, que ria-se das pilhérias do pai, e tornava-lhe os folguedos e as meiguices com o mesmo contentamento.
No topo da escada separaram-se.
Foi ao entrar no seu toucador, que o esto d'alma rompeu, como a onda por muito tempo comprimida. A moça levou as mãos ao seio que arfava a estalar com a ânsia, e caiu sobre o leito, escondendo o rosto nas fronhas de cambraia, comprimindo nas almofadas os crebros soluços.
No seu desespero, espedaçou o vestido que a estringia como uma fôrma de bronze, e arremessou para longe de si os trapos da seda. Sobre as espáduas nuas desdobraram-se as cascatas dos opulentos cabelos negros, com que ela envolveu o colo e os seios, conchegando-se com um gesto pudico.
Afinal saltaram-lhe as lágrimas ardentes dos olhos, que logo debulharam-se em pranto abundante. Foi serenando a violenta comoção, que subvertera os seios dessa alma; e Guida ergueu-se a custo, abatida pelo abalo que sofrera, mas surpresa e atônita da crise que de repente a acometera.
Apoiando sobre a almofada a curva do braço mimoso, reclinou a face na mão, e ficou pensativa:
— Será isso o amor? perguntou a si mesma.
E entrando de novo em si, penetrando nos refolhos d'alma, sentindo vibrarem novas cordas no seu coração, e derramar-se no íntimo uma luz que nunca até aquele dia resplandecera em seus sonhos de menina e moça, Guida compreendeu que era realmente amor, essa agitação indefinível que perturbara sua vida serena e tranquila.
A alegria inefável, o júbilo que teve, não os podem conceber aqueles que nunca duvidaram de si, nem jamais em horas de desânimo se tiveram por deserdados do coração. Parecia à moça que outra vida, não essa de flor ou de passarinho que vivera, mas a da poesia e da paixão, a vida da mulher, acabava de surgir para ela naquele instante.
Estas lágrimas aljofradas, que seus dedos mimosos estalavam nas faces, eram os orvalhos de uma aurora. Raiasse ela embora entre os abalos de uma tormenta, era bem-vinda; era a luz criadora, o raio celeste, que afinal luzia em sua alma.
O espírito de Guida não se demorou na ideia da impossibilidade de seu amor. Que valia isso na história de sua existência, senão um pequeno acidente material? O grande acontecimento era o despertar de seu coração virgem e indiferente, era a revolução que se acabava de consumar em seu organismo, selando enfim a infância.
A magia das novas e deliciosas sensações que iam acordando em seu ser, o infindo prazer de se lhe povoarem de flores, de magnificências, de harmonias e perfumes, o ermo ingrato e sáfaro que poucos momentos antes assolava sua alma, a possuíam tanto e tão intimamente, que não bastavam as forças de sua natureza para essa ventura suprema de sentir-se outra e saciar-se dessa nova existência, ainda não vivida.
Eram horas do jantar.
Vestiu-se a moça rapidamente, com a costumada simplicidade, mas sem o esmero costumado, para o qual não havia tempo. Entretanto nunca o seu bom-gosto combinou melhor o traje, nem este realçou-lhe tanto a beleza nativa, como naquela tarde.
Mas o encanto desse vestuário não estava no delicado padrão do simples vestido de organdi, e na forma elegante e original do penteado. O que a ornava era sobretudo o brilho suave dos olhos, a meiga auréola da fronte, o sorriso delicioso dos lábios, e a graça inefável do gesto.
Essa beleza até agora mimosa, gentil e garrida, tinha trocado o seu lirismo pela brilhante epopeia do coração. Já não é o colibri borboleteando entre as flores, ou o raio de luz irisando-se na gota de orvalho. Agora é a mulher; é o anjo, que agita as asas de fogo, com os olhos no céu e a voragem a seus pés.
— Como estás bonita! exclamou Soares vendo a filha.
— Ela sempre foi! disse D. Paulina.
— Sempre; mas hoje!...
— Foi o passeio! disse Guida com um sorriso, que era um enlevo de graça.
— O passeio... repetiu o banqueiro. Não duvido.
E fitou o olhar vivo e perscrutador na filha, cujo enleio velou-a com uma encantadora expressão de melindre que lhe dava um encanto irresistível.
Depois do jantar, desceu Guida ao jardim, e percorrendo lentamente as alamedas, seus olhos acariciavam as flores, que dantes a deleitavam apenas como as fitas e outros enfeites.
Lembrou-se da flor rústica da Tijuca, a que Ricardo dera o nome de “Sonhos d'ouro”. Havia o jardineiro trazido mudas, que arranjara em um alegrete, ao lado da casa. Não tivera a moça ainda a curiosidade de ver a planta, depois da sua volta a Botafogo.
Nessa tarde, porém, apertaram-lhe as saudades. Não tinha flores o arbusto, que só em novembro cobre-se de botões; alisou-lhe a moça com a mão as folhas glabras, afagou-as com o olhar; e tamanha era a efusão de ternura, que teve ímpetos de beijá-las, e arrancando uma, colou-a aos lábios ardentes.
Pungiu-lhe o coração uma dor viva e intensa, como o cravar de uma lâmina. Recordou-se da primeira vez que vira Ricardo; e compreendeu então o arroubo e veemência de sua alma na contemplação da florinha agreste.
— Ele amava!... balbuciou Guida. Lembrava-se de Bela!...
E invejou a felicidade de sua rival, sem contudo querer-lhe mal. Ao contrário, sentia curiosidade de conhecê-la; e acreditava que havia de ter-lhe amizade.
Durante alguns dias viveu Guida no embevecimento de sua paixão. Sentava-se ao piano, e escolhia as músicas ternas e sentimentais, que tocava com muita alma e expressão. As notas, que tantas vezes tinham ressoado a seus ouvidos apenas como agradável harmonia, feriam-lhe agora as cordas mais íntimas, e percutiam todo o seu organismo, como uma vibração elétrica.
Outras vezes esquecia-se a cismar, com os olhos engolfados no azul do céu, onde rutilavam as primeiras estrelas; ou enlevada a contemplar uma flor, cujos perfumes derramavam-se dentro d'alma com uma fragrância celeste, e cujo matiz aveludado afagava-lhe a vista, como um beijo da luz.
Não raro se tingiam esses devaneios de uma sombra de melancolia, quando o espírito da moça voltava-se para o futuro e o via tão esplêndido submergir-se em um abismo inexorável, o impossível.
Mas amava, sentia-se viver no seu amor; e o pensamento, recolhendo-se a esse limbo suave de sua nova existência, esquecia o mundo, o tempo, a sorte, para embeber-se de felicidade e exaurir-se nesse gozo supremo da paixão.
Foi Soares quem a arrancou a esse longo êxtase.
Uma tarde que ela cismava no jardim, o pai viu-a da janela, e foi-lhe ao encontro com ar brincão:
— Ai, minha sonsinha!... Temos novidade, hem! E não me queres dizer?
— O que, papai? perguntou Guida arrancada à sua cogitação.
— Como disfarça! Pediste um mês para escolher; mas creio que estes olhinhos andaram mais depressa. Nessa idade eles pulam... Desconfiei logo; quando te vi pelos cantos, toda sorumbática, percebi. O bichinho está fazendo artes lá no coraçãozinho da minha Guida. Não é verdade?
Estas palavras brincadas, e envoltas na ternura risonha do pai, retalharam a alma da moça. No meio do enlevo de seu amor, quando não vivia senão desse afeto, por ele e para ele, vinha surpreendê-la a realidade e reclamar sua existência, para votá-la ao mais atroz dos sacrifícios, que pode sofrer a mulher: para atá-la como a um poste de infâmia, ao homem a quem ela despreza.
— Adivinhei, confessa. Tu já escolheste.
— Já, papai, disse com veemência; infelizmente já; mas aquele a quem amo, não me pode amar.
— Ora! fez o Soares com o sorriso de um homem que sabe quanto pode.
Guida abanou a cabeça:
— Não, é impossível! Todo o dinheiro do mundo não bastaria para comprar-me a felicidade.
— Quem é ele? perguntou Soares, sentindo apoderar-se de si o desânimo da filha.
Contou Guida ao pai a simples história de seu amor, botão que desabrochara recentemente em flor, ainda impregnado de vivos perfumes.
— Estava resolvida a casar-me já para seu sossego e tranquilidade, papai; a saudade, que eu teria de minha vida de solteira, me havia de pagar com usura a felicidade de o ver contente.
— Guida! exclamou o velho enternecendo-se.
— Mas com esta afeição, não posso, papai; o sacrifício excede minhas forças. Parece-me que me insultaria a mim mesma, casando-me com outro homem. Seria uma degradação...
— Não falemos mais disso, minha filha!
— Deixe-me esquecer, deixe-me sufocar esse coração que eu julgava morto, e que reanimou-se por meu mal. Daqui a um ano terá passado.
— Tudo o que tu quiseres, respondeu Soares, contanto que não fiques triste. Brinca, diverte-te bem. Inventa novas travessuras. Ainda que me custem muito dinheiro, muito... Para que prestará ele, se não for para te distrair?
— Há uma cousa que, eu sinto, me havia de fazer muito bem, disse Guida timidamente.
— O que é?
— Ele é pobre... Sua felicidade depende de vinte contos... Eu daria meus alfinetes...
— Criança. Não estou eu aqui? A dificuldade, desconfio que será obter dele que aceite...
— É verdade.
Nesse momento parou um carro ao portão; e com pouco apareceram D. Guilhermina e o marido.
— Havemos de achar um meio; pensa tu de teu lado, que eu não me descuidarei.
O banqueiro foi ao encontro do conselheiro e subiu com ele à varanda, enquanto D. Guilhermina passeava no jardim com Guida.
Depois de algumas voltas pelo jardim, as duas amigas sentaram-se em um banco de grama, próximo ao gradil da rua, onde enramava-se uma trepadeira de flores escarlates.
Houve na conversa breve pausa. D. Guilhermina espreitava disfarçadamente pelos claros do gradil; e Guida com o sobrolho levemente rugado parecia refletir observando distraída o gesto da amiga.
— Sabe, D. Guilhermina, esse moço... o Dr. Nunes..., disse Guida com indiferença.
— O amigo do Fábio?
— Está justo para se casar com uma prima em São Paulo.
— E anda por aqui divertindo-se?
— Que injustiça! Veio na esperança de ganhar alguma cousa para pagar as dívidas da mãe, e casar-se então; porque a noiva é tão pobre como ele.
— Coitadinha!
— E não é muito o dinheiro de que precisam. Vinte contos apenas!
— Não é qualquer bagatela, Guida!
— Ora! Você não gasta mais do que isso por ano?
— Sim; mas em minha posição!...
— Pois esse dinheiro que nós deitamos fora em vestidos, joias e luxo durante um ou dois anos, bastava para fazer a felicidade de tanta gente e por toda a vida.
— Que gente?
— O Ricardo tem uma irmã, D. Luisinha, que também está para casar com o amigo...
Guida sentindo a inquisição suspeitosa do olhar de D. Guilhermina, disfarçou a colher uma flor e concluiu:
— Com o Fábio!
— Ah!... Quem lhe disse? exclamou a mulher do Barros mordendo os beiços.
— O Dr. Nunes!
— Não sabia que estava tão íntimo com você, Guida!
— Eu o estimo pelas suas qualidades e sisudez.
Erguera-se D. Guilhermina, e a pretexto de olhar para a rua, afastou-se um momento para dominar a comoção produzida pelas palavras da amiga, e que no primeiro instante contida, a estava sufocando.
De seu lado favorecendo-lhe os desejos, Guida aproximara-se da casa, fingindo que a chamavam; mas realmente para deixar a outra em liberdade.
Quando de novo se encontraram, os olhos de D. Guilhermina estavam magoados, e as faces conservavam a marugem das lágrimas. Guida que se teria rido um mês antes, compreendeu aquela dor e respeitou-lhe a mudez, mostrando-se inteiramente alheia.
— Eu, se pudesse, disse Guida reatando a conversa, teria um prazer imenso fazendo-os felizes e realizando de repente os seus lindos sonhos!... Deve a gente sentir-se no céu, quando faz-se instrumento da graça e misericórdia de Deus!...
O profundo sentimento que ressumbrava nestas palavras de Guida, o fervor de seu gesto e o esplendor que iluminou seu lindo perfil, surpreenderam D. Guilhermina que fitou admirada o rosto da amiga; a cintilação dessa luz que manava do coração, filtrou-lhe n’alma; ela compreendera.
— Também eu! murmurou corando.
— Pois ajude-me!
— Como?
— É preciso conhecer as particularidades da família... O Dr. Nunes, se eu lhe perguntar, desconfiará e com certeza há de recusar, mas o Fábio...
— Ele nunca me falou na família do Ricardo.
— Porque não lhe tocou nisso.
— Hei de perguntar-lhe!
— Talvez ele apareça aqui esta tarde.
— Não deve tardar... Isto é, creio que ele vem, corrigiu a tempo a moça com vexame.
Mas Guida não fez reparo; e afastou-se na direção do gradil, olhando para a rua através dos recortes da folhagem. Momentos depois voltou pressurosa ao lugar onde ficara D. Guilhermina triste e pensativa:
— Aí está ele.
Efetivamente chegava Fábio ao portão; e avistando as senhoras ao atravessar o jardim, foi-lhes ao encontro.
Depois dos cumprimentos e banalidades usuais, Guida trocando com a amiga um olhar de inteligência, procurou um disfarce para deixá-la só com o Fábio.
— O senhor nunca me disse que seu amigo Ricardo tinha uma irmã? foram as primeiras palavras que D. Guilhermina dirigiu ao moço, interrogando-lhe a fisionomia com o olhar.
Ficou passado o Fábio. Apesar de sua leviandade, evitava com o maior cuidado tocar no que tinha relação com sua vida de São Paulo, pelo receio de divulgar o seu ajuste de casamento com Luisinha.
Imagine-se pois do atordoado que estaria, vendo a pessoa de quem mais desejava esconder essas particularidades, tão ao corrente, e sentindo assim evaporar-se de repente o seu castelo encantado.
— Não sabia que a senhora tomava tanto interesse por meu amigo! respondeu o moço buscando uma evasiva nessa ponta de ciúme.
— Mais do que o senhor pensa, e tanto que desejo pedir-lhe certas informações a respeito dele.
— A mim!
— Sem dúvida. Não é o senhor amigo íntimo do Dr. Nunes?
— Por isso mesmo, deve compreender quanto as suas palavras me fazem sofrer.
— Não vejo motivo. Conheço uma pessoa, que, sendo infeliz no seu casamento, consola-se quando pode fazer a felicidade dos que se amam.
Vinham estas palavras envoltas em um suspiro e perfumadas de suave melancolia.
— E recusa fazer a minha, quando sabe a paixão com que a adoro!
— Essa pessoa soube, não sei como, que o Ricardo tinha um casamento ajustado em São Paulo com uma moça a quem ama; mas sua felicidade depende de uma soma necessária para o pagamento de certas dívidas...
— Sua felicidade dependia de um escrúpulo. Hoje nem isso!...
— Deixe-me acabar. O que eu desejo que o senhor me diga, pois está no segredo da família, é o modo de pagar essas dívidas, sem que seu amigo saiba, nem desconfie, senão depois de tudo acabado. Assim não haverá mais impedimento à felicidade dele...
A voz da bela senhora afogou-se na reticência de uma lágrima.
— E à sua! disse afinal com emoção. O senhor poderá casar-se com aquela a quem ama, Luísa, não é o nome?...
O primeiro assomo de Fábio foi a negativa; mas à sua alma, nobre no meio da volubilidade e extravagância da mocidade folgazã, repugnou essa apostasia de sua primeira afeição.
— Eu amo Luisinha, confesso; mas também a amo, D. Guilhermina, e com paixão!
— Essa paixão é impossível.
— Porque a senhora a despreza.
— Eu devo-lhe as únicas alegrias de minha vida, condenada a um triste desencanto. Deixe-me guardar estas recordações doces e puras dos dias passados; não devemos envenená-las com um crime que faria a infelicidade de duas pessoas e a nossa.
Fábio travara da mão da senhora e a beijava. D. Guilhermina retirando-a enternecida, chamou a amiga para romper o a sós que a estava comovendo:
— Guida!...
— Cruel!...
— Ainda não satisfez o meu pedido sobre a dívida de seu amigo.
— Oh! isso é fácil. O pai de Ricardo deixou a chácara hipotecada na casa bancária de Gavião Peixoto pela quantia de dez ou doze contos de réis; mas com os juros já monta a dívida a vinte. Desembaraçada a casa, podia D. Benvinda viver com a família modestamente, sem pesar sobre o filho.
— O senhor me há de dar por escrito uma lembrança de tudo isto, com os nomes...
— Para quê? tornou o moço com escrúpulo.
— Já lhe disse.
— Para apressar o casamento de Ricardo com Bela?... Mas é inútil.
— Deveras? perguntou D. Guilhermina lançando um olhar para Guida que se aproximava.
— Foi uma surpresa! Ontem, quando menos esperava, recebeu Ricardo uma carta de São Paulo. Abriu; era de Bela, que lhe participava seu casamento com o Lemos, outro primo.
Ouviu Guida essa notícia, ao aproximar-se; e vacilou com a emoção que abalou o seu talhe esbelto. Felizmente passava naquele momento por uma estátua de bronze representando Flora, cujo pedestal lhe serviu de apoio e também de refúgio para esconder a alteração do gesto, pois Fábio colocado do lado oposto não podia perceber-lhe o vulto.
Notando o soçobro da amiga, a arfagem violenta do seio, que se expandira com o ímpeto d'alma, e a contração do rosto ao esforço da vontade a reprimir o grito que rompia do seio, D. Guilhermina voltou-se para o outro lado, o que obrigava o moço a imitá-la, desviando assim os olhos da estátua.
— O que dizia a carta? perguntou a mulher do Barros.
— Não devia ter dado a notícia, disse Fábio arrependido; mas como sempre se havia de saber...
— Decerto. Que mal faz?
— Quanto à carta, não posso. Ricardo não me perdoaria.
— Essa é a confiança que lhe mereço? disse D. Guilhermina queixosa.
— Se fosse meu, não hesitaria. Mas este segredo não me pertence.
— E pertencia-me a mim a afeição que lhe dei?
— Direi, com uma condição.
— Por negócio, dispenso.
E a moça deu ao talhe uma lânguida inflexão que era o irresistível condão de sua beleza.
— Pois bem, à senhora eu conto, disse o moço correndo o olhar em torno.
Guida, já sobre si, tivera o cuidado de colher a cauda do vestido e ocultar-se por detrás do pedestal de bronze, de modo que Fábio não se apercebeu de sua presença.
— Pode falar, disse D. Guilhermina. Ninguém nos ouve.
— A carta era muito curta. Bela dizia a Ricardo que, não podendo fazer sua felicidade, cedia aos desejos do pai aceitando o esposo que ele tinha escolhido.
— E o Ricardo, como recebeu a notícia?
— Tem sentido muito. Ele amava sinceramente a prima; era uma afeição de infância.
— Mas há de consolar-se.
— Que remédio!
— Os homens esquecem depressa!
— As injustiças que lhes fazem aquelas a quem adoram.
— Há de ver que daqui a um mês o Ricardo amará outra.
— Duvido, disse Fábio. Eu o conheço; é dessas almas concentradas, onde tudo, afeição, ideia, lembrança, cria raiz funda. É preciso tempo!
— Veremos!
Deixara D. Guilhermina cair essa palavra do lado da estátua, afastando-se para deixar a Guida retirar-se sem que a percebesse Fábio. Aproveitou a moça o momento, e deu uma volta para encontrar-se mais longe com os dois.
Ao tomar pela alameda que prolonga-se com o gradil, viu uma pessoa que entrava o portão e que dirigindo-se à escada de mármore, parou de repente em meio caminho.
Reconheceu Ricardo, e notou sua perturbação; no gesto e olhar traía-se a perplexidade do espírito. Após breve luta, voltou ele sobre os passos; e saindo novamente o portão, afastou-se apressado para o lado de São Clemente.
Teve Guida ímpetos de chamá-lo; mas faltou-lhe o ânimo. Já não possuía a sua antiga isenção.
Chegaram D. Guilhermina com Fábio:
— Sabe quem passou por aqui? disse Guida com uma voz que apesar do esforço tremia: seu amigo.
— Ricardo?
Acenou Guida que sim, fitando um olhar fagueiro em D. Guilhermina.
— Por que não vai chamá-lo? disse a mulher do conselheiro a Fábio. Se ele soubesse que o senhor estava aqui, com certeza entrava.
— Maçado como anda?
— É bom que se distraia, disse a senhora, e voltou-se para Guida:
— O Dr. Nunes teve um desgosto.
— Ah!
— Mas não quer que se saiba, acudiu Fábio.
— Esteja descansado, que ninguém vai tocar-lhe nisso. Não se demore.
— De que lado tomou?
— Seguiu para São Clemente, respondeu Guida.
Fábio saiu naquela direção. A pequena distância encontrou o amigo, que naturalmente já vinha de volta, pois não tardou que as duas moças, através da folhagem, os avistassem a ambos, passando em frente ao gradil.
Em um irresistível assomo de júbilo, Guida abraçou a D. Guilhermina, que retribuiu-lhe afetuosamente a carícia, murmurando:
— Você pode ser feliz!
Sentiu Guida o egoísmo de sua alegria, e apagou com um beijo o sorriso triste que abrira nos lábios da amiga.
Na linda várzea do Brás, onde se desdobra um dos mais pitorescos arrabaldes da capital de São Paulo, há uma chácara extensa, cujos terrenos bordam a margem esquerda da estrada de ferro.
A casa é grande, abarracada, ao gosto paulista, e já bem antiga. Cercam-na vastas hortas e largos tabuleiros de flores.
No mesmo dia em que Ricardo recusava a mão de Guida, por volta de seis horas da tarde estavam reunidas várias pessoas na varanda daquela casa, em volta da mesa de jantar, onde acabavam de colocar dois castiçais com velas de estearina.
A senhora idosa, de agradável parecer e porte refeito, que sentava-se à cabeceira da mesa, era a mãe de Ricardo, D. Benvinda. Com as mãos cruzadas ao peito, no trespasse do lenço vermelho que trazia aos ombros, escutava com religiosa atenção a leitura de uma carta.
A seu lado estava uma linda moça, tipo dessa beleza plástica e serena, que distingue as paulistas, e à qual só falta um nada da petulância que têm as fluminenses às vezes em demasia. Era Bela, essa moça; e ao vê-la no repouso de sua formosura correta e imaculada, compreendia-se o culto de Ricardo que tinha em alto grau o sentimento artístico.
A Bela seguia-se Luisinha, e depois os irmãos e irmãs. Era a fisionomia de Ricardo, reproduzida sete vezes, em traços mais indecisos; neste perfil, com a suavidade do contorno feminino; naquele, com a alacridade da travessura infantil.
Em dias de chegada de paquete, como esse, Bela que morava perto da matriz, vinha passar a tarde com a tia, para receber notícias da corte, e ouvir as longas cartas que Ricardo escrevia com recados para todos, especialmente para ela.
Acabava Juca, um dos filhos de D. Benvinda, de chegar do correio, trazendo duas cartas, uma delas bastante volumosa e portulada com um batalhão de estampilhas. Pelo sobrescrito conheceu logo a velha que a do filho era a mais pequena.
Abriu-a, e disse com um suspiro ao passá-la à Luisinha para ler:
— Tão curta!
— É mesmo! repetiu Luisinha com a doce voz arrastada. Ele que sempre escreve tanto!
A carta continha apenas estas palavras:
Minha boa e querida mãe.
De prevenção e à pressa lhe envio estas linhas. Estou ocupado com um trabalho importante, que devo concluir até amanhã; e receio me roube o tempo que eu destino para conversar com aqueles a quem amo.
Mas trabalhando, não tenho eu sempre vivas em minha alma, para dar-lhe coragem, a sua imagem, minha querida mãe, a de Bela, de Luisinha,
de todos aqueles por cuja felicidade eu rogo a Deus todos os dias?
Abençoe-me, querida mãe; e dê a Bela o santo beijo que eu de longe não posso receber.
Seu filho
Ricardo
18 de agosto 1871.
Quando Luisinha terminou a leitura da breve carta, duas lágrimas rolavam pelas faces de D. Benvinda, que parecia absorvida na imagem do filho ausente. Bela se erguera, e enxugando com o lenço de cambraia as faces da velha, dobrou os joelhos para receber na fronte o beijo de Ricardo, ungido pela bênção materna.
Entretanto Luisinha voltava de todos os lados a carta volumosa, em cujo sobrescrito reconhecera admirada a letra de Fábio, o qual raras vezes escrevia e sempre de afogadilho, por desencargo de consciência.
— E esta é de Fábio? perguntou D. Benvinda.
— Não sei, respondeu Luisinha vermelha como lacre. Creio que é.
— Basta ver a letra, disse Bela.
— Desta vez desforrou-se! observou D. Benvinda contando as laudas da carta que tinha aberto. Toma, Luisinha; vamos ver o palavreado do rapaz. Já estou-me rindo!
— Leia você, Bela, murmurou Luisinha com as faces a arderem.
Era o costume. As duas noivas trocavam a vez nessa leitura.
A carta de Fábio era uma garrulice de estroina, mas não destituída de chiste e boas lembranças.
Suprimidos os nomes próprios, e metida em meia dúzia de colunas, aquela prosa caseira e do cote, podia bem gozar das honras do folhetim, e não teria que invejar aos mais asseados e domingueiros que aí aparecem.
Ao escrever essa carta passava o noivo de Luisinha por um desses momentos de plenitude moral, em que o espírito, como o coração, transbordam, e carecem de vazar a afluência de vida. Durante seis meses fartara-se de prazeres, divertira-se a não poder mais, gozara do mundo, era amado por uma mulher bonita e do grande tom. Estava cheio.
Retido em casa à espera de uma resposta que devia trazer-lhe dinheiro, o moço lembrou-se, para disfarçar a impaciência, de escrever à sua futura sogra, e começou neste belo teor:
Minha futura mãe e respeitável senhora.
Há tempos recebi uma carta sua em que me perguntava como ia na advocacia. Deixei passar alguns meses, antes de responder, para dar-lhe uma informação mais segura.
Agora posso dizer-lhe tudo que há a tal respeito e não é muito. O nosso Ricardo está com um escritório já bastante acreditado; tem clientes magníficos; e vai ganhando sofrivelmente. Eu só apareço lá, de longe em longe, para não espantar a caça; mas vou-lhe mandando as causas que posso. Sou um jornal vivo; mas jornal de sala, que é mais aristocrático, e mais barato.
Neste gosto continuava a carta, que Bela ia lendo no meio das risadas de D. Benvinda e dos muxoxos de Luisinha. Chegou, porém, um ponto, em que redobrara a atenção das três senhoras:
A Bela deve estar orgulhosa do noivo que tem. Se ela soubesse até que ponto Ricardo a ama!... Ele, estou certo que nada lhe dirá; mas eu é que
não sou caixeta de segredos; e este me está fazendo cócegas.
Aí vai, no ouvido, de cochicho, que não o ouça uma certa sonsinha, cujo pecado é a curiosidade.
— Isto é com Luisinha! disse D. Benvinda.
— É o que ele sabe me dizer.
Imagine-se a curiosidade com que foi ouvido o trecho seguinte, que leu Bela com a voz palpitante de emoção:
Há aqui na corte uma moça, que é a rainha da moda; chama-se Guida; é filha de um homem que não sabe quanto possui; tem dezenove anos e muito espírito; a respeito de beleza e elegância, não se fala; é o tipo; ninguém a excede.
Imagine quantos sujeitinhos andam-lhe arrastando a asa, apaixonados ao mesmo tempo pelos olhos pretos e os milhões amarelos dessa peregrina formosura.
Todo o alto coturno comercial, político, literário, inscreveu-se neste concurso; e cada um espera que lhe toque o anel.
Mas ela não faz caso de nenhum destes pretendentes;
e o seu fraco é por um certo advogado paulista, que nem dá fé das provocações, tão voltado anda para essas bandas da ínclita Pauliceia, onde lhe ficaram os olhos e o coração.
Bastava-lhe querer para em pouco tempo estar senhor de uma riqueza colossal e marido da mais bonita moça do Brasil, já se sabe, depois das duas que não é preciso mencionar. Mas ele sacrifica tudo à constância.
— É bem meu filho! interrompeu D. Benvinda com assomo de orgulho materno.
É verdade que não é ele o único; pois também outra pessoa tem sofrido sem pestanejar o fogo rolante dos mais feiticeiros olhos do Rio de Janeiro; mas, etc., etc., etc., etc., o resto pelo seguinte vapor.
Terminada a leitura, quando Luisinha e a mãe se inclinaram para acariciar Bela e regozijar-se com ela por mais essa prova do profundo amor de Ricardo, viram, ao retirar-lhe o papel ainda aberto diante dos olhos, que tinha o rosto banhado de lágrimas.
— Está chorando, Bela! exclamou Luisinha.
— É de felicidade, menina; também eu tenho os olhos cheios d'água, disse D. Benvinda.
Desde criança, de envolta ainda com os brincos da infância, começara Bela a amar Ricardo, com a efusão de uma alma que se entrega sem reservas de todo e para sempre. Estava em sua natureza querer com esse abandono de si mesma, sem pedir nem esperar retribuição.
Quando Ricardo formou-se, não lhe permitindo as apertadas circunstâncias da família realizar desde logo seu casamento, Bela resignou-se a esperar, com plácida confiança, e possuída da inalterável convicção de fazer a felicidade daquele que a amava.
Frequentes vezes insistiu seu pai em convencê-la da necessidade de casar-se com o Felício Lemos, outro primo seu, também formado, que desde a infância a disputava a Ricardo, mas preterido sempre. Aos reiterados pedidos, opunha a moça uma repulsa doce, magoada, quase súplica, mas inflexível. Ela julgava-se um bem de Ricardo; acreditava que Deus a reservara para fazer a ventura desse coração, que ela admirava. Não discutia pois, não se defendia; refugiava-se no seu amor.
Ao ler a carta de Fábio, no meio do espanto que produzia-lhe o tom leviano do estouvado a profanar as cousas mais santas, pela primeira vez uma dúvida cruel traspassou-lhe a alma. “Não era ela a única mulher do mundo que podia fazer a felicidade de Ricardo? Havia para esse homem outra ventura, outro futuro, outra existência, além da que lhe devia dar o seu amor?”
Com o soçobro causado por essa primeira percussão d'alma, arrasaram-se-lhe os olhos de lágrimas sem que ela mesma soubesse por que chorava. Assim, quando ouviu a explicação que D. Benvinda deu a seu pranto, disse com um sorriso contrafeito:
— Há de ser de alegria mesmo!
Momentos depois recolhia-se Bela à sua casa, e achou na sala o pai, o Dr. Lopes, em companhia do Felício Lemos.
— Estávamos falando em você, Bela, disse o pai que dobrava um papel.
— Meu tio! Vm.cê prometeu-me que não contaria a Bela, disse o Lemos com exprobração.
— Mas é necessário que ela saiba, para perder a ilusão em que vive; portanto dispense-me da palavra que lhe dei.
— Perdão, meu tio, eu o respeito muito, mas neste ponto não devo condescender. Bela pode suspeitar que são meios empregados para demovê-la de sua resolução.
— Todos sabem que você é incapaz disso.
— Embora; não quero ser portador de más novas.
— Mas o que é, meu pai? perguntou Bela. Alguma notícia triste?
— Eu lhe digo. Ao passo que você espera com uma constância nunca desmentida ao homem a quem prefere sem razão, o ingrato lá na corte está tratando de arranjar um casamento rico.
— Ricardo? disse Bela com sublime confiança. É impossível, meu pai.
O Dr. Lopes desdobrou a carta que tinha em mão e apresentou-a à filha.
— Ainda duvida? Pois leia, Bela!
— O senhor me compromete, disse Felício com reproche, afastando-o do lado da janela.
Surpresa, e cerrado o coração de pressentimentos, correu Bela os olhos pelo papel.
A carta escrita ao Felício por um colega da corte, repetia os boatos da Rua do Ouvidor que davam Ricardo como pretendente assíduo da filha do banqueiro Soares, e o preferido entre todos pela moça.
— Então? perguntou o Dr. Lopes à filha quando esta acabou de ler.
— Ricardo não falta à sua palavra, meu pai.
E deitando a carta sobre a mesa, recolheu-se à alcova.
— Breve se há de desenganar! exclamou o pai irritado com aquela cega confiança.
Decorreu uma semana, durante a qual a alma de Bela, como um vaso de jaspe onde a custo filtra a essência, levou a embeber-se dos acontecimentos, que vieram perturbar o sereno remanso da sua vida de amor e saudades.
Outra vez chegou o correio; mas nesse dia a moça não foi como de costume para a casa da tia esperar cartas; e desculpou-se com uma enxaqueca, esse grande recurso diplomático das mulheres. Por volta de ave-maria trouxeram-lhe da parte de D. Benvinda uma carta.
De longe, apenas a viu na mão do portador, Bela adivinhou que era de Ricardo.
À frouxa luz do crepúsculo, recostada à ombreira da janela, com os olhos úmidos e a alma tomada de um indefinível sobressalto, leu a moça as palavras afetuosas que lhe dirigia o noivo.
Minha querida Bela.
Deus ouviu suas preces, as preces de um anjo, e abençoou os meus esforços.
Breve estaremos reunidos e para sempre. Viveremos na pobreza, a que a sorte nos condena; mas não é só a opulência que tem o direito de ser feliz neste mundo; ao contrário, muitas vezes ela não acha no meio de seu luxo um instante da alegria que enche a casinha do pobre.
Teremos de passar ainda por grandes provanças, minha querida Bela; não devo iludi-la. A vida
é difícil para aqueles que trilham a áspera vereda, e não se deixam arrastar pelas brilhantes equipagens, que passam cobrindo-os de pó!
Não me assusta a luta; conto, para dar-me coragem, com o nosso amor, que tem sido e há de ser o conforto de minha vida.
Às vezes perdido neste turbilhão da corte, minha querida Bela, têm-me vindo também a mim sonhos d'ouro, castelos encantados como fazem todos que têm imaginação. A riqueza que para certos indivíduos não passa de uma indigestão de dinheiro, é na mão de quem a compreende um dom sublime, quase celeste, porque transmite ao homem um influxo da Providência: enxuga as lágrimas da miséria, fortalece a virtude vacilante, e anima os nobres cometimentos.
Mas eu os espanco, a esses silfos tentadores, que agitam sussurrando suas asas de ouro, e me refugio nos meus sonhos de amor. Sob as tuas brancas asas, meu anjo da guarda, estou com Deus; e posso desafiar o mundo. Seu para sempre. Ricardo.
Soavam trindades na torre fronteira da matriz.
Ajoelhou-se Bela para rezar a ave-maria. As andorinhas esvoaçavam pela fachada da igreja, retalhando os ares com voos intermitentes. Já caía a noite quando duas se encontraram diante da janela, beijando-se com alegres chilidos, que assustaram a moça.
Ainda Bela não tinha rezado, tão absorvida estava em seus pensamentos.
No dia em que Ricardo recusara a mão de Guida, espontaneamente oferecida, chegou à casa de volta de Andaraí, atordoado ainda pelo procedimento singular, como pela decisão de caráter dessa moça.
Eram três horas.
O jantar o esperava, e durante ele, a conversa com a dona da casa e a tagarelice das crianças o distraíram da preocupação que trazia e à qual desejava arrancar o espírito.
À tarde, fumando um charuto e sentado à janela do sótão donde avistava as verdes encostas de Santa Teresa e mais longe o Corcovado, o moço deixou-se ir à discrição do pensamento que o levava para os acontecimentos daquela manhã. Não tardou o envolvesse um desses castelos encantados de que falava na carta a Bela.
Imaginou-se outro homem, que não ele. Um moço pobre, de alguma inteligência, lutando corajosamente com a sorte, mas sem o vínculo de uma afeição, que o prendesse para sempre. Caminhava curvado ao peso do trabalho, quando uma voz celeste o chama. Ergue os olhos, e vê descer das nuvens a moça mais gentil, deslumbrante de beleza, cintilando graça e espírito que lhe diz:
“Minha alma é virgem e pura, como o sorriso de que Deus a formou. Nunca amei: não sei que mistério é esse da criação. Ensinai-me vós a amar; acordai em mim as doces emoções dessa felicidade que eu não conheço. A linguagem dos anjos que eu falava no céu é doce; mas quero aprender em vossos lábios outra linguagem mais suave e maviosa, a que entende o coração. Eu sou a flor que nasce, cheia de fragrância, que toda guardei para derramar em vosso seio: colhei-me.”
E o moço ficava enlevado a admirar a esplêndida formosura, não podendo crer que Deus houvesse formado aquela sublime criatura e a conservasse imaculada no regaço do céu, para enviá-la de repente a ele, como um anjo, que o inundasse de felicidade. Mas interrompendo um instante o afã, ajoelhava para admirar a peregrina imagem.
“Erguei-vos, dizia-lhe a moça. Meu senhor não há de calcar o pó da terra. Tenho riquezas sem conta para dar-lhe. Quero ser querida em um palácio, entre as magnificências do luxo, cercada de tudo quanto seduz e deslumbra. Quero ser amada assim para que, no meio de todos esses esplendores, ele só busque meus olhos, só deseje meu sorriso.”
Desfraldando as asas, a imaginação de Ricardo bordou sobre o gracioso tema um desses arabescos orientais, cheios de encantamentos e fascinações, como são os contos árabes.
Quando ele surpreendeu-se no meio desse devaneio, teve um remordimento; e para fugir aos enlevos da fantasia, asilou-se nas recordações das puras afeições da família e dos santos amores de sua infância.
Tomou a pena e escreveu a Bela a carta que esta lera à janela, na hora da ave-maria; depois conversou longamente com sua mãe, em duas folhas de papel, renovando as reminiscências dos tempos que tinham passado juntos em São Paulo antes da separação.
No dia seguinte recomeçou Ricardo a lida do escritório; e o trabalho, que é o mais forte detersivo do coração, apagou os vestígios da alucinação que sofrera. Todavia, quando alguma circunstância lhe recordava Guida, sentia-se o mancebo tomado por um terror indizível, e estremecia com a ideia de cair outra vez no sonho, ou antes no pesadelo d'ouro, que já uma vez fizera presa nele.
Antes de findar a semana, estando Ricardo em seu escritório, recebeu do carteiro sua correspondência de São Paulo. Dentro da carta de D. Benvinda, que dava notícias de todos os seus, achou uma de Bela; e guardou-a para a ler em casa, a sós, sem risco de o interromperem.
Avalia-se do espanto de Ricardo ao ler estas poucas linhas:
Meu primo.
Um pressentimento, que não engana, diz-me que sou um obstáculo em sua vida; e portanto o meu dever é afastar-me para que você possa livremente seguir a brilhante carreira que lhe prometem seus talentos e virtudes.
Outra, mais prendada e escolhida por Deus, fará sua felicidade, oferecendo-lhe toda a sorte de alegrias e encantos, que eu não poderia dar, eu que apenas tenho um coração. Esse o acompanhará de longe com seus votos; e creia, meu primo, que outros não haverá mais ardentes pela sua ventura.
Desde que nos separamos, meu querido pai insta para que aceite uma união, que ele sempre desejou. Ocultei-lhe este segredo de família para não afligi-lo, em compensação de tantos sacrifícios que você aí sofria só; era justo que tomasse para mim unicamente essa contrariedade.
Enquanto me julguei necessária à sua felicidade, tive forças para resistir a meu pai; agora
faltam-me, e também o direito de opor-me à sua vontade, e recusar o destino traçado por ele, quando outro não me resta, nem eu tenho mais que esperar do mundo.
Quando receber esta carta, já estará partido o vínculo que nos unia; pois vou dar a meu pai o consentimento que me pede há tanto tempo.
Sua prima e amiga
Isabel Lopes
20 de agosto 1871.
Por diversas vezes, Ricardo retrocedeu ao princípio da carta e releu os períodos, para compenetrar-se do pensamento, que exprimiam essas palavras. A surpresa e pasmo produzidos por tão inesperado teor tinham-lhe embotado a compreensão; com os olhos fitos no papel, havia momentos em que não via as letras, ou vendo-as, não sabia soletrá-las.
Passado o primeiro abalo, quando o mancebo pôde coligir as ideias e refletir sobre o caso, sua mente procurou naturalmente a explicação do estranho acontecimento; e certo de a ter encontrado, deleitou-se em passá-la e repassá-la no espírito.
Foi um consolo.
Para Ricardo a carta de Bela não era senão um engenhoso meio de justificar sua ingratidão e perfídia. Cansada de esperar, a moça de coração volúvel, resolvera casar com o Felício Lemos, que além de arranjado, estava à mão.
A indignação do mancebo, a revolta do seu caráter em face de tal procedimento, sobrepujou a mágoa de se ver esquecido, e a dor de perder as mais doces ilusões de sua vida.
— E foi por essa mulher, que eu recusei um coração virgem, e o futuro mais brilhante que podia sonhar em meus arroubos de imaginação!
À noite Ricardo saiu à procura de Fábio, a quem encontrou na Rua do Ouvidor. Conseguiu trazê-lo à casa, para mostrar-lhe a carta de Bela, e vazar em seio amigo a exuberância de sua alma.
Fábio informou-se do que havia, tratou o ocorrido com a sua habitual leviandade, consolando Ricardo dessa insignificante derrota, que às vezes, dizia ele, era o princípio dos mais esplêndidos triunfos.
— Vem dar um passeio comigo ao Carceler. Um sorvete e um charuto de Havana, são os melhores específicos para esses achaques. O primeiro apaga um incêndio mais chibantemente do que o coronel dos bombeiros; o segundo desfaz em fumo a paixão a mais descabelada. Ontem ouvindo o Rossi, fiz esta reflexão, que tem escapado aos mais profundos pensadores: Se Otelo fumasse, não estrangulava Desdêmona, e Shakespeare não poderia escrever aquela cena sublime do final; ficaria reduzido ao soco-inglês.
Não ouvia Ricardo as pilhérias do amigo, nem deu fé quando ele, no meio da sua parolice, eclipsou-se pela escada do sótão, para ir pautear pela calçada do Carceler e Rua do Ouvidor, na esperança de encontrar a mulher do Conselheiro Barros.
No dia seguinte, recordando o golpe que na véspera sofrera, e estava ainda aberto dentro n'alma, teve Ricardo uma veleidade, um desejo, um impulso... Ver Guida. Para quê? Sob que pretexto? Em que intuito? Nem ele o sabia; nem lembrou-se de inquirir de si próprio; pois logo repeliu essa ideia como uma extravagância do espírito.
Durante as horas do trabalho, a agitação da cidade, o movimento dos negócios, o rumor das ruas, distraíram o moço. À tarde, porém, a lembrança que despontara pela manhã, tornou-se em necessidade imperiosa: e ele não pôde resistir.
Deixou-se levar à toa, como um batel que voga ao fluxo das águas. Chegando à Praia de Botafogo, apeou-se do bonde e seguiu a pé até o portão do palacete. Foi depois de entrar, que se lhe apresentou a estranheza do passo.
Só a convite, e de longe em longe, viera à casa do Soares; nunca tinha frequentado as reuniões de todas as noites, nem mesmo as partidas semanais do banqueiro. Que explicação tinha pois essa visita avulsa e sem causa?
O resultado da reflexão foi sair apressadamente, receoso de que o vissem. Não tinha porém dado cem passos, que já se arrependera de não haver realizado o primeiro intento, e moderou o andar, pensando em retroceder.
Avistou Fábio que saía nessa ocasião; foi-lhe ao encontro. Aí estava o pretexto da visita.
— Vi-te passar. Estava em casa do Soares no jardim; vem comigo; passaremos lá a noite.
— Tens razão, respondeu Ricardo apertando-lhe a mão. Neste momento preciso muito daquele gramo de loucura, com que o poeta manda temperar o juízo; e que realmente é o melhor sal da razão, pois a preserva de corromper-se.
Começava o crepúsculo.
Apesar da sombra que já havia no jardim, sobretudo onde copava o arvoredo, perceberam as duas moças a profunda alteração da fisionomia de Ricardo, não que estivessem descompostas suas feições, mas havia nelas a impressão digna e fria da dor vencida após uma luta heroica.
Guida envolveu em seu olhar compassivo o rosto do mancebo e murmurou dentro d'alma:
— Como ele a amava!...
Entretanto D. Guilhermina procurava reanimar a conversa:
— É um milagre, vê-lo, já não digo em nossa casa, porque a não ser uma visita de cartão, não lhe merece mais; mas aqui! Nem passando lembrou-se de entrar.
— Tenho desculpa, minha senhora. Falta-me o tempo.
— Agora não a tem!
— Agora, por quê? perguntou Ricardo volvendo um olhar suspeitoso para Fábio, que se eclipsou.
Guida estremeceu; e D. Guilhermina mordendo o beiço com um riso malicioso, afastou-se do lado que tomara o Fábio, tanto para evitar um novo lapso, como para deixar os dois em liberdade.
Apoderou-se de Guida um enleio invencível, quando se viu a sós com Ricardo, no jardim; e mais crescia sua perturbação com o silêncio do moço, que de seu lado também parecia tomado de súbito constrangimento.
Nesse momento, as salas iluminadas derramaram sobre o jardim o clarão das janelas; e um murmúrio de vozes na entrada anunciou a chegada das visitas habituais, que vinham passar a noite em casa do Soares.
— É melhor entrarmos, disse Guida; e correu ao encontro de Clarinha, que passava com o Barão do Saí.
Ricardo a acompanhou de longe, e instantes depois procurava nas conversas e burburinhos da sala, aquele grão de sal de que ele carecia para serenar a sua tristeza.
Mais de uma vez chegou-se para a filha do banqueiro com intenção de lhe dirigir a palavra; mas alguma força oculta o tolhia, que afastava-se, disfarçando o primeiro movimento.
Não escapou a Guida esta perplexidade. Convencida de que Ricardo lhe desejava falar, mas retraía-se na presença das pessoas que a cercavam, afastou-se um instante da roda das moças e cavalheiros a pretexto de ir ao interior; na volta chegou-se ao piano, e demorou-se em escolher uma peça para tocar.
Ricardo, recostado nesse momento ao vão de uma janela, foi talvez a única pessoa que seguiu os movimentos da moça; repetidos impulsos teve de aproximar-se, enquanto ela folheava o álbum, e não chamava a atenção ferindo as teclas do instrumento.
Guida colocou o livro na estante, e afastando o banco com a ponta do pé, volveu os olhos para Ricardo. Encontrando os dele, sentiu expandirse a alma, que veio abrir-se em flor num sorriso fagueiro.
Esperou ainda um momento e sentou-se. Debaixo de seus dedos mimosos cantaram as teclas a súplica maviosa do dueto final de Romeu, escrito por Vaccai:
Vieni, ah! vieni,
Mio bene, mia speme;
Fugiamo insiemi,
Amor ci condurra.
Ricardo não ouviu as notas, como não vira o sorriso.
Vexado de que lhe surpreendesse a moça o olhar ansioso, dissimulara, com intenção de aproximar-se logo depois, como atraído pela música.
Com efeito assim fez, mas ao mesmo tempo que ele, chegava Clarinha, o Guimarães, e todo o enxame de adoradores cercava o piano, levando o advogado a arredar-se, o que aliás fez de bom grado.
Pouco depois era meia-noite. As famílias se retiravam; D. Paulina com a filha as foram acompanhar até o portão, como de costume, por fineza aos hóspedes e por passeio.
Guida, de braço com Mrs. Trowshy, aproximou-se de Ricardo:
— Como está a noite serena! disse a moça. Havemos de ter uma bonita manhã para ir a Andaraí, Mrs. Trowshy.
— E a lição de harpa?
— Que tem isso?
Voltou-se para Ricardo:
— É verdade! Quando leva aqueles papéis à avozinha? Creio que ela precisa deles.
— Já devia ter ido... Talvez amanhã.
— Eu a prevenirei para esperá-lo.
Este curto diálogo passou desapercebido no meio do gorjeio das moças que se despediam.
No dia seguinte, às onze horas e meia, chegou Ricardo no Andaraí.
Achou na sala de visitas D. Leonarda recostada no sofá; Guida sentada a seus pés na almofada, desenhava à aquarela sobre uma mesinha de charão para divertir a avó; e Mrs. Trowshy fazia “frivolidade” (frivolité).
Guida estava triste.
A efusão de alegria que tivera na véspera ao ver Ricardo, quando já o sabia desobrigado da promessa que o separava dela, essa primeira expansão de sua alma desvanecera-se mais tarde, durante a vigília.
Como uma gota de fel, caiu-lhe do espírito no coração uma ideia, que a amargurou. O afã com que Ricardo aproximava-se dela, logo depois da decepção, e sem dar tempo à alma não já de esquecer, mas de acalmar-se, não estava revelando o plano de uma vingança ou de um cálculo sôfrego?
Esteve a não ir ao Andaraí; mas pensou que o melhor era não demorar essa crise de sua vida.
Viera; não com a alma cheia de enlevos e ternuras como a tinha na véspera quando tocava Romeu, porém no desencantamento de um coração que sente fanar-se ao morno bafo do aquilão, a primeira bonina, que apenas começava a florir.
Desculpou-se o advogado da demora na restituição dos papéis; elogiou a aquarela de Guida, o que levou a conversa para os desenhos de Ricardo e as recordações do verão passado na Tijuca. Falou-se da beleza das pitorescas montanhas, dos encantos de sítios tão aprazíveis; e uma doce tinta de saudade ressumbrava nessa conversa de passatempo.
Depois de um quarto de hora ou mais, vendo Ricardo que não havia mutação de cena, e perdendo a esperança de uma longa e íntima efusão, como ali tivera Guida com ele vinte dias antes, ergueu-se com intenção de sair.
— O senhor ainda não viu a chácara da avozinha? É muito bonita.
— Qual! disse a velha. Já foi, agora está maltratada.
— Quer dar um passeio? perguntou a moça.
— Com muito gosto! respondeu Ricardo.
— Vamos, Mrs. Trowshy.
A mestra estava pronta sempre para passear.
Querendo facilitar a Ricardo a entrevista, que ele desejava, e sentindo ao mesmo tempo vexame de achar-se de todo a sós com o mancebo, Guida escolhera o passeio, que lhe deixava toda liberdade de movimentos para dissimular as emoções e interromper a conversa a propósito.
O bando de moleques disparou adiante, como um rebanho de cabritos, quando o soltam do redil pela manhã, e espalhou-se pela chácara, a pretexto de apanhar frutas para a nhanhã Guida, mas realmente para as comerem eles e fazerem mil diabruras.
Mrs. Trowshy, que despedira da cancela pela rua afora, como bala de canhão, e lá se fora em passo de carabineiro inglês assaltando um reduto, depois de três voltas sentara-se esbaforida à sombra de uma jaqueira, a debulhar um cacho de uvas para refrescar-se.
Em frente da jaqueira passava uma rua de mangueiras, por onde vinham Guida e Ricardo a par, em um silêncio que os embaraçava a ambos; mas nenhum queria rompê-lo com banalidades, receando afastar o momento da confidência e talvez impedi-lo.
Animou-se Ricardo afinal:
— Lembra-se do que me disse aqui nesta casa, há quase um mês, quando nos despedimos? Que seu romance acabava alegre.
— É verdade! respondeu Guida. Eu disse e...
A moça conteve-se, receando lhe escapasse o segredo das lágrimas que tinham orvalhado seu amor ao nascer.
Ricardo esperou um instante, mas vendo que o silêncio ia outra vez envolvê-los, continuou:
— Pois o meu acabou triste, bem triste.
— Conte-me, disse Guida com bondade.
— Não vale a pena. Uma afeição de infância, que lutou anos contra a adversidade para ser traída e ludibriada no momento em que lhe sorria a esperança! Quem dá valor a estas futilidades do coração? concluiu o mancebo em tom amargo.
— Compreendo quanto deve doer a perda de uma ilusão, observou a moça.
— Não é a perda de uma ilusão, mas a ruína de minha vida inteira. O coração está morto; é uma terra sáfara onde não brotará nunca mais a flor de uma afeição. E é esta a maior felicidade que Deus me pode conceder ainda neste mundo!
Volveu Guida um olhar tímido e queixoso.
— Por quê?
— Amar outra vez? Seria martírio incessante. Não me animaria jamais a oferecer àquela a quem eu amasse os destroços de uma vida despedaçada pela traição, os sobejos de uma alma devorada pela dúvida. Oh! não! Se isso acontecesse por minha desgraça, eu havia de adorá-la em silêncio, no mais recôndito de minha consciência, quando não conseguisse arrancar do coração esse espinho doloroso.
Com a fronte inclinada e o seio palpitante, escutava Guida as palavras de Ricardo, que as proferia com o olhar vago, receando pousá-lo no semblante da moça. Timidamente observou:
— Não conheço os mistérios do coração. Mas penso que não pode haver maior júbilo do que seja esse de reviver um coração morto, de apagar um passado triste, e criar para aquele a quem se... estima, uma nova existência!
— Quantos encontram no mundo um anjo como esse? perguntou Ricardo.
Guida não respondeu.
— Quando recebi a carta, que deu o golpe à minha vida, a princípio não pude entender. Pensei estar louco. Li e reli; aquilo excedia minha compreensão. Enfim a certeza penetrou-me como um raio, e senti-me como arremessado do alto de um rochedo, que me dilacerara a alma. Reneguei tudo quanto respeitava; descri das cousas mais santas; cheguei a duvidar de minha mãe!... Era a vertigem; a dor veio depois, e atroz. Carecia de um coração amigo, com quem desabafasse. Aqui só tinha Fábio; mas com ele era profanar a minha desgraça. Lembrei-me da senhora. Talvez não devesse; mas acreditei que me havia de compreender.
— Não se enganou.
— E, não sei por que, tinha um pressentimento de que isso me havia de fazer bem: e fez. Estas poucas palavras que trocamos restituíram a calma a meu espírito. Sentia vacilar-me a razão a modo de ébrio; parecia-me que a consciência faltava-me, como a terra embaixo dos pés; e agora estou outra vez seguro de mim; perdi as ilusões e as crenças, mas conservo a possessão do eu; já não receio que uma paixão ou um vício me arrebate na correnteza como às alforrecas, que o mar lança à praia.
— Mostre-me a carta! murmurou Guida.
— Aqui a tem; eu a trouxe pensando que desejasse vê-la.
Recebeu Guida o papel com a mão trêmula, e procurou o abrigo de uma mangueira, cujo grosso tronco a escondia, para ler sem despertar a curiosidade da mestra. Ricardo voltou-se para não vexá-la.
Estava a moça comovida e palpitante. Aquele momento ia decidir de seu destino; e era preciso que ela tivesse ainda uma vez a energia de curvar a fortuna a seu império, e vencer ela mesma, de iniciativa própria, os obstáculos.
Sua alma superior compreendia agora o assomo confuso, obscuro, travado de hesitações e arrojos, que desde a véspera impelia Ricardo para ela, sôfrego de abrir-lhe o coração. O fenômeno que o mancebo não podia bem discernir em sua própria consciência, ela o penetrava com a luz pura de seu nobre coração.
Com as mãos apertadas ao seio para recalcar a efusão de seu júbilo, murmurou consigo:
— Ele me ama, sem o pensar. Quando viu-se livre, lembrou-se que nada o separava de mim. Mas eu sou rica e o mundo não acredita que se possa amar uma mísera criatura de carne, de preferência a uma barra de ouro!... Ricardo duvidou de si; ele mo disse há pouco; julgou-se arrastado para mim, não pelo afeto, mas pelo interesse. Então revoltando-se contra si mesmo, em vez de me dizer: — “Sou livre, aceito” — ao contrário, procura cavar um abismo que o separe para sempre de mim, a fim de não sucumbir à tentação. Não pode mais amar? Pertence à outra para sempre? Pois bem! Assim é que eu o quero, para afastá-lo tanto desse pesadelo, vivido sem mim, que não se lembre de ter jamais amado a outra mulher.
Estes pensamentos não os alinhou Guida em palavras na mente, mas desenhavam-se como figuras de painel iluminadas de repente por um jacto de luz. Também não duraram senão o tempo de abrir a carta de Bela, que a moça amarrotara entre as mãos, quando comprimira a arfagem do seio.
Leu Guida uma e duas vezes. Na segunda, sua mão caiu-lhe desfalecida. Compreendera tudo: divisara naquele papel mudo o pensamento de Bela como perscrutara pouco antes o segredo do advogado através de suas palavras confusas.
Dobrou a moça a carta enquanto se dominava e aproximou-se de Ricardo:
— Bela o ama, como eu pressinto que havia de amar, se Deus não me houvesse retirado sua graça.
— E esta carta?
— É uma sublime abnegação. Bela acreditou que era ela quem o condenava à pobreza e à obscuridade. Enganaram-na decerto, asseverando que o senhor tinha outra afeição; fez o que devia: renunciou à sua felicidade para não sacrificar aquele a quem ama.
Ricardo abriu a carta que a moça lhe restituíra, e leu-a de novo. Ali estava a alma de Bela, a santidade daquele coração em todo o esplendor. Fora preciso que a palavra pura e nobre de Guida lhe dissipasse a névoa dos olhos para que ele visse.
Erguendo os olhos, pousou-os brandamente no rosto de Guida.
— A senhora que lê no coração de Bela, inspire-me! Que devo fazer?
Guida voltou-se e colheu uma folha de avenca, nas fendas de um velho muro. Era um disfarce para ocultar o soluço que rompia-lhe o seio.
— O seu dever. Bela espera a resposta; é ela que vai decidir de sua sorte. Vá, vá a São Paulo e...
Pareceu que a voz de Guida afogava-se num soluço. Ricardo olhou, e viu-a sorrindo acabar a frase:
— E seja feliz!
A moça foi ter com Mrs. Trowshy e instantes depois, terminado o passeio, retirava-se Ricardo.
— Ela não pode amar-me!... pensou o moço em caminho para a cidade. E eu... eu tenho medo de amá-la!
Dois dias depois partia o vapor de Santos. Ir a São Paulo, como lhe dissera Guida, foi ideia em que não se demorou o ânimo do advogado; não o permitia o escritório, nem o estado de seu espírito. Resolveu porém escrever a Bela em termos que a demovessem da suspeita de não ser amada, como o fora sempre.
— Serei eu quem me sacrifique à sua felicidade.
No momento de pôr a pena no papel corou: nunca poderia escrever o que não sentisse; não falou a linguagem do coração, mas a da razão.
Bela.
A vida é uma cousa bem séria, que não se deve fazer tema de caprichos e arrufos.
Amamo-nos desde a infância, e juramos unir-nos para sempre. Pertencemo-nos pois um ao outro, e nada neste mundo a não ser a violência pode jamais separar-nos.
Vi em sua carta uma suspeita, que não devia demorar-se em seu espírito. Considero-me seu marido perante Deus; e conheço meu dever.
Adeus, etc.
Ricardo.
Esta carta fria e austera ainda mais confirmou Bela na convicção de que já não era amada como o fora outrora. Documento do nobre caráter de Ricardo, tinha a secura do pergaminho.
Contudo a moça não precipitou o desfecho do drama íntimo de sua vida, e deixou escoar-se o tempo, até que decorridos uns três meses e insistindo seu pai em favor do Felício, arrancou-lhe o consentimento para essa união.
Depois da entrevista de Andaraí, Guida e Ricardo encontraram-se frequentemente na sociedade.
O advogado, cujo escritório rendia para lhe permitir mais que a decência, sem sacrifício de alguma economia, procurava nas salas e reuniões o sossego de espírito que não encontrava em seu gabinete de trabalho, e nos passeios solitários pela calada da noite.
Não via Guida sem emoção; e se não cedia à atração que a gentil menina exercia sobre ele, também não a evitava como anteriormente, quando o acaso os aproximava. Ao contrário, nessas ocasiões, se alguma circunstância não o vinha distrair, ou se a moça não se afastava, ele se esquecia com ela em alguma dessas conversas cintilantes, que lembrava-lhe o seu passeio à Vista dos Chins.
Não se falava porém mais entre eles da matéria sentimental; esse capítulo estava cancelado. Nenhum se animava a folheá-lo.
Como um homem, que tem consciência de sua força, e conta com uma vontade inflexível para sofrear os mais veementes impulsos, Ricardo permitia-se aquele inocente devaneio, que lhe caía nos seios d'alma como orvalho celeste. Não tinha receio de trair-se; e pois bebia o doce cordial como um enfermo, que precisa restaurar as forças.
Sabia retrair-se a tempo, e afastar a taça dos lábios, quando sentia a primeira névoa da ebriedade desse amor impossível, que ele rejeitara, mas que não podia extirpar.
De seu lado Guida, se algumas vezes cedia ao embevecimento dessas conversações, não despia a reserva com que tratava ultimamente a Ricardo: reserva que era não somente o pudor de sua afeição, como o receio de afagar um amor condenado, que devia morrer desconhecido, como tinha vivido.
Assim decorreram três meses.
A notícia do casamento de Bela, que se realizou em poucos dias, produziu nas relações de Guida e Ricardo uma alteração sensível.
A princípio a moça deixou-se influir por um assomo de altivez. Entendeu que não devia aceitar o sacrifício de Bela, por lhe parecer humilhante. Preferia matar seu amor, sufocá-lo no seio, a profaná-lo em um casamento frio, e rejeitado por outra.
Mais tarde, mudou completamente. Não vendo Ricardo, adivinhou que era a dor da perda de Bela que o afastava dela, e teve ciúmes. Outra vez sentiu o impulso generoso de disputar esse nobre coração ao desânimo e à descrença, de povoar com seu imenso amor o deserto daquela alma assolada pela desgraça.
Ricardo porém sucumbira ante a perda irreparável da mulher a quem amara; e só então conheceu a profundeza do golpe que sofrera. Por muito tempo ele pertenceu exclusivamente à mágoa que enlutara sua vida e à saudade do passado amor.
Quando Guida o viu, desfigurado e pálido, respeitou a santidade dessa dor, e aprendeu nela a resignar-se.
A continuação de se tratarem frequentemente, depois de gastas as primeiras expansões da mútua, mas não correspondida afeição, tornou-os ao cabo de algum tempo indiferentes. Encontravam-se já sem emoção, como sem enleio.
No verão passado Guida passou em Petrópolis os dois meses de mais forte calor. O pai deixou-lhe a escolha; ela não quis a Tijuca, de que tanto gostava anteriormente.
Nessa ocasião espalhou-se a notícia de estar justo o casamento de Guida com o Bastos. O Soares interpelado riu-se; e Guida já não respondeu às perguntinhas das amigas com um remoque, segundo o seu costume.
Grande mudança se tinha operado no corretor. O Soares uma vez depois do jantar enfiara-lhe o braço, e lhe dissera brincando:
— Meu caro Bastos, o que seduz as borboletas são as flores e não os frutos. Já tens bastante dinheiro. Trabalha menos, e agrada mais.
— De que modo?
— Vês esta pedrinha? disse o Soares apontando para um seixo reluzente entre a areia do passeio. Foi a correnteza d'água que a poliu; atira-te na corrente dos homens. A massa é boa, por força que há de sair alguma cousa.
Saiu um homem elegante, de bom-senso e inteligência elevada, que, embora não dado a estudos teóricos, pôde desenvolver-se com acerto e superioridade em qualquer assunto.
O Guimarães foi à Europa gastar a herança do pai; e o Nogueira, atordoado com a dissolução inesperada que lhe gorou a candidatura, vai-se consolando na advocacia administrativa da sua dupla derrota, a política e a matrimonial.
Mrs. Trowshy anda muito contente com a esperança de voltar breve à Inglaterra na companhia de Guida, a qual naturalmente logo depois do seu casamento fará uma viagem à Europa.
Fábio casou-se: mora em São Paulo, e tem um projeto de estrada de ferro para Santo Amaro, primitiva colônia alemã, onde se faz boa manteiga fresca, igual à de Petrópolis. Já requereu o privilégio, e conta ganhar uma centena de contos, para vir gozar da corte, de que tem saudades.
O Visconde da Aljuba, consta que anda arranjando um escritor para zurzir o autor deste livro, por tê-lo copiado tão ao vivo; portanto prepare-se o público para ler as rajadas que não tardam a aparecer por aí em estilo de níquel.
Informaram-me também que o Sr. Benício já foi à cocheira do Porto, examinar o mais rico dos cupês de gala, a fim de estar preparado para encomendá-lo apenas se marque o dia do casamento de Guida.
Por seu gosto não seria Bastos o noivo; pois o bom do amanuense não perdeu ainda o teiró que tomara ao corretor pela concorrência ativa que este lhe fazia antigamente no artigo das encomendas. Mas, quando se tratava de obsequiar, não havia sacrifício que fizesse recuar o heroico Sr. Benício.
Assim terminaram estes “sonhos d'ouro”, tão parecidos com outros que a cada instante por aí acendem e se apagam, como os arrebóis da tarde.
FIM
Ilmo. Sr. Garnier.
Se ainda não tirou a lume a segunda parte dos Sonhos d'Ouro, peço-lhe o favor de mandar imprimir o incluso pós-escrito que leva a última notícia de nossos personagens.
Amigo e atento venerador
SÊNIO.
S. C. 6 setembro, 1872
Há quinze dias teve Ricardo de assistir a uma vistoria, em questão de terras, para o lado de Jacarepaguá.
Na volta lembrou-se de visitar D. Joaquina, a quem não via desde muito. Achou a casinha e a dona no mesmo estado: velhas como as deixara, mas contentes e sossegadas.
A tia de Fábio recebeu o advogado com muita festa e agasalho; perguntou notícias do sobrinho e da nova sobrinha; e pediu a Ricardo que lhes mandasse muitas e muitas recomendações, quando escrevesse.
Eram duas horas. Já D. Joaquina tinha jantado; mas havia carne assada e improvisou-se uma fritada, que Ricardo aceitou de bom grado, para ter o prazer de passar com a velha o resto da tarde. O advogado comeu com apetite; e não trocaria o copo d'água cristalina, que bebeu depois do melado, pelo mais esquisito champanha.
— O senhor é que ainda não quis casar? disse D. Joaquina, preparando-lhe uma chávena de café.
— Creio que fiquei para tio, disse Ricardo sorrindo.
— Qual!... A dificuldade é encontrar aí algum peixãozinho que lhe ponha feitiço; como um que veio aqui outro dia.
— Não tenha receio, trago uma figa, duas figas, que me livram do quebranto, tornou Ricardo no mesmo tom.
— Deixe ver, disse a velha.
— Estão lá dentro, no coração.
A velha riu-se. E o advogado acendendo o charuto saiu a dar uma volta de passeio a pé, enquanto se ia buscar ao pasto o Galgo, que naturalmente andava também matando saudades, pois desde muito tempo residia na corte à Travessa do Espírito Santo n.º 19, cocheira do Viana.
Tomou Ricardo pelo mesmo caminho em que à primeira vez o encontramos, e não tinha dado vinte passos que as recordações de outros tempos surgiram para envolvê-lo como o aparato de uma cena armada de improviso.
Ouviu tropel de animal; reconheceu o Galgo; viu passar Fábio; trocou palavras com ele; perdeu-se entre os tufos do arvoredo; sentiu o sobressalto que tivera outrora, despertado por um riso argentino; e contemplou com entusiasmo de artista, e um enlevo que então não sentira, o gracioso vulto da gentil amazona.
Depois correram as vistas; novas cenas sucediam-se; e a imaginação as povoava de recordações vivazes, que entretanto pareciam extintas.
Este volver ao passado incomodava Ricardo, que pensou escapar-lhe fugindo àquele sítio.
Ao voltar uma curva descobriu duas senhoras, que se aproximavam lentamente pelo mesmo caminho; e qual não foi o seu espanto reconhecendo Guida acompanhada de Mrs. Trowshy.
Desde certo tempo a saúde de Guida se alterara. Não se queixava, nem tinha mesmo incômodo ou mal determinado. Perdera a alegre vivacidade; e sentia invadi-la um abatimento indefinível. Sua vida nos meses últimos não era mais do que um lento delíquio; parecia-lhe que estava desmaiada. As flores, se é que têm sensibilidade, devem experimentar uma impressão igual quando murcham.
Ultimamente o desfalecimento chegara a ponto de inquietar a família; os médicos receitaram as duas panaceias do costume, o casamento e o campo. Pobres dos médicos! Queixam-se deles. Ah! se tivessem na sua farmacopeia certas drogas preciosas, como o amor, a ambição, a glória, que de curas milagrosas não fariam!
Quando se tratou de escolher o arrabalde, Guida pediu a Tijuca; não que ela esperasse tirar proveito para a saúde. Bem longe disso; era um desejo recôndito de rever aqueles sítios, e saciar-se das reminiscências que eles guardavam. Matassem embora essas árvores, como a mancenilha; queria embriagar-se de seus perfumes.
Lembrava-se da Africana que vira representar ultimamente; e invejava aquela morte, ela que dois anos antes, naquelas mesmas montanhas, zombava de Safo, a mais ilustre entre as mártires do amor.
Guida trajava naquela tarde um vestido cinzento e, sobre ele, um casaco preto guarnecido de marta. A alvura imaculada de seu rosto destacava-se nesse trajo escuro, entre os negros cabelos, com uma lividez que assustava: parecia o perfil de uma estátua em alabastro.
Reconhecendo Ricardo, teve a moça uma violenta comoção, e tomou para suster-se o braço da mestra, que atribuiu o choque a susto e debilidade da moléstia.
— Não sabia que estava na Tijuca, disse Ricardo.
— Viemos há oito dias.
— Ela tem andado doente; o doutor mandou tomar ares, disse Mrs. Trowshy em português arrevesado.
— Há de fazer-lhe bem a Tijuca, tornou Ricardo.
— À saúde?... perguntou Guida.
E abanou a cabeça desfolhando um triste sorriso. Foi então que Ricardo reparou no estado de abatimento da moça. O talhe, tão esbelto e grácil, retraía-se como o cálix do lírio-do-vale quando fana-se, e os olhos de embaciados, só intercadentes, como o trepidor da estrela, rutilavam para desferir lampejo febril.
Não se concebe a comiseração que sentiu Ricardo notando aquele deperecimento lento de uma beleza, que ele vira tão esplêndida. Lágrimas umedeceram-lhe os olhos; e teve impulso de ajoelhar-se aos pés da mártir, sacrificada ao paganismo social.
Lembrou-se da conversa que tivera com a moça dois anos antes, pouco distante daquele sítio. Guida era uma das vítimas desse martirológio da família, que poucos sabem e ninguém compreende. Nascera rica; educaram-na para a opulência; e a grandeza a sufocava.
Havia um meio de salvar-se; era esfarfalhar sua alma pelas salas em afeições efêmeras; tornar-se a moça da moda, faceira, namorada, perseguida e disputada por um enxame de adoradores. A dignidade inata fechou-lhe essa válvula do coração.
Guida o guardara virgem e intacto para o seu primeiro amor; porém este não o encontrara no mundo. Por quê? Não havia um homem que a merecesse? Guida estimava o homem, mais do que ele valia, porém na pureza do ideal; por isso os indivíduos da espécie lhe pareciam escorços, senão caricaturas.
— Por que não sou eu o homem que ela sonha, disse Ricardo; por que não me deu o Criador um raio do fogo sagrado para reanimar esta vida que se extingue, para reter na terra esta bela mulher que se está transformando em anjo?
Guida sentara-se à beira do caminho, numa leiva coberta de relva, e acompanhava o recorte das nuvens com o olhar mórbido, que às vezes se eclipsava sob os longos cílios e volvia rápida e sutilmente ao rosto de Ricardo.
— Deve passear! disse Ricardo para romper o silêncio.
— Ela não gosta mais de sair como dantes, observou Mrs. Trowshy.
— Fatiga-me tanto! tornou Guida. Já três vezes viemos para este lado; e ainda não pude chegar até a outra volta.
— Quando estiver mais forte.
— Tenho tanta vontade! Mas hoje hei de ir; já descansei. Venha conosco! disse pousando o olhar súplice no semblante do moço.
Não era longe a volta a que a moça desejava chegar.
— Lembra-se? perguntou a Ricardo. Aqui nos encontramos pela primeira vez.
— Não esqueceu?
— E a nossa flor... Ainda estará no mesmo lugar?
Ricardo rompeu o arvoredo, e procurou:
— Aqui está ela!
Guida aproximou-se.
O arbusto, reverdecido com as águas do inverno, começava a florescência. Nas pontas dos renovos germinavam já os lindos cálices de nácar, com os pingos d'ouro.
Roçou Guida as mãos pelas folhas glabras do arbusto como para sentir-se acariciada pelo doce frolido:
— Sonhos d'ouro! murmurou.
— É verdade! exclamou Ricardo sorrindo.
— Nem se lembrava! disse Guida com leve exprobração.
— Não culpe a pobre florinha, se o vento da tempestade a mirrou e cobriu de pó, tornou Ricardo apanhando os secos despojos da passada floração.
— Estes morreram, murmurou Guida olhando as flores murchas, mas vão renascer. E os meus?...
A voz da moça expirou nos lábios, e exalou-se em um suspiro:
— Os meus nasceram aqui também, porém morreram para sempre!
Ergueu Ricardo surpreso os olhos, e viu o semblante da moça banhado em lágrimas.
— Guida! exclamou ele.
E cingiu-lhe a cintura com o braço para ampará-la, porque a via desfalecer.
— Eu queria morrer aqui! balbuciou ela descaindo-lhe a fronte ao ombro de Ricardo, e reclinando o talhe ao peito onde conchegou-se hirta, sem movimento.
Mudo e estático, Ricardo não sabia o que fizesse; não tinha forças para separar de si o corpo desfalecido, nem ousava observar-lhe o semblante, temendo ver nele a máscara da morte.
Foi rápido o lance, e durou enquanto Mrs. Trowshy, que duas vezes investira com o arvoredo, mas fora repelida por causa de sua rotundidade, fazia volta para aproximar-se.
— Guida! repetiu Ricardo aflito.
A moça ergueu a fronte e engolfando-se no olhar que banhou o rosto do mancebo, sorriu.
— Cuidei que morria... e era feliz!
Ricardo pousou um beijo casto na fronte da moça.
— Há de viver!
— Para quem?...
— Para mim!
— Por ele e para ele, meu Deus! disse ela ajoelhando com as mãos erguidas ao céu.
— What!... gritou a mestra vendo Guida naquela posição.
Ergueu-se Guida com um sorriso:
— Estava agradecendo a Deus a bênção que me enviou.
E abraçando-a com efusão, cobriu-a de beijos.
— Child! Dear child!... exclamava a inglesa esmagando as lágrimas nos olhos.
À última hora.
O casamento de Guida com Ricardo efetua-se qualquer destes dias.
O Bastos consolou-se com a sociedade que lhe deu o Soares em sua casa bancária.
O Benício anda em uma dobadoura: da modista para o Carceler, da florista para a cocheira. Ninguém lhe encomendou cousa alguma; mas ele se julgaria desonrado se não tomasse parte ativa no grande acontecimento.
FIM DO FIM
Os Sonhos D'ouro
Suscitou este livro, recentemente publicado, duas censuras ao distinto folhetista do Diário do Rio.
Nada aproveita mais à propagação das boas letras do que seja a crítica leal e inspirada pelo sentimento artístico. A mim deleitam os certames literários.
Argúi o ilustrado crítico de personagens estrangeiros as duas figuras principais do romance.
"Guida, a jovem caprichosa e aristocrática, Ricardo, o homem dos devaneios e do orgulho intelectual, são tipos naturais da nossa sociedade íntima, tão franca e democrática?"
Eis sob a forma da interrogação a primeira censura.
Antes de tudo, não disse o autor que ia esboçar os seus personagens pelo prisma da vida íntima. Bem ao contrário, os apresenta ele a maior parte das vezes fora da intimidade da família, em passeio ou na convivência de pessoas estranhas.
Feita esta observação, entro com a crítica.
Por que razão não apresentará nossa sociedade, a mundana ou a íntima, o tipo de uma menina caprichosa e aristocrática?
Não há capricho no Brasil?
Aqui as rosas são, como dizia Mílton das do Éden, sem espinhos (without thorn)?
Também será deserdada de toda superioridade esta raça brasileira, a ponto de não sentirem os espíritos elevados quaisquer assomos da aristocracia natural que não vem da linhagem, mas de alguma preeminência social, chame-se esta dinheiro, talento ou posição?
Desconhece a vida fluminense quem negar a existência do que se chama entre nós a "alta sociedade", embora sem o esplendor do grand monde em Paris e da high life em Londres.
Se o ilustrado crítico chegasse à janela da sua tipografia em um dia de festa, veria passar-lhe diante dos olhos não uma, senão muitas moças mais caprichosas e aristocráticas do que a Guida.
Mas onde está a aristocracia de Guida?
Não nos diz o ilustrado crítico, e pois força-nos a conjeturar, o que será longo e fastidioso. Podia forrar-nos a esse trabalho apontando os fatos.
Estará a aristocracia de Guida no passear na Tijuca em cavalo do Cabo? Em trazer roupão de caxemira e luvas de peau de Suède? Em Ter uma governanta e criado estrangeiro para acompanhá-la?
Creio que a sociedade fluminense em peso protestaria contra semelhante apoucamento de nossa corte. Não é preciso ser filha de capitalista para ter semelhante tratamento.
Talvez que o severo crítico sentisse o ressaibo de estrangeirismo no fato de trazer Guida em sua carteira uma nota de cinqüenta mil-réis para fazer com ela uma esmola disfarçada por uma travessura.
Se ainda não desapareceu em todas as zonas da sociedade fluminense o tempo do "papai me dá um vintém", não é menos certo que um melhor princípio de educação doméstica já condenou aquela tacanha e mesquinha inquisição familiar, que excedia-se em preparar a massa dos hipócritas, dos avaros e dos perdulários.
É indispensável habituar um homem desde criança a lidar com esse tóxico perigoso, que se chama dinheiro; do contrário corre o inexperiente o risco de embriagar-se com ele; e essa embriaguez produz em de dous efeitos: o delirium tremens da prodigalidade, ou o idiotismo da avareza.
Atualmente é comum das famílias ricas terem as filhas seus alfinetes, e nas pobres, quando as posses dos pais não chegam para essa verba, as moças laboriosas formam com os seus trabalhos de agulha os pequenos pecúlios, com que vão acudindo às exigências do toucador, sem a necessidade e o vexame de estarem a cada instante importunando os pais com o pedido de dinheiro para uma fita, um grampo, um crochete. (Deixem passar essa aclimação que é irmã do colchête, melhor do que crochê.)
Que resta da inculcada aristocracia de Guida?
Uns desperdícios feitos pela moça, que dava chocolate a comer ao seu cavalo e mandava-o lavar com vinho em vez de aguardante.
Estas e outras extravagâncias não são ditas pelo autor, mas referidas por uma das personagens, em cujas palavras ele por certo não jura. Bastava este simples reparo para não se tomar a rigor aquelas coisas, dando ao contrário o desconto à exageração habitual dessa murmuração social que serve de tema às palestras.
Mas prescinda-se da atenuação. Em um país onde tanto se esbanja com extravagâncias, onde homens sérios queimam centenas de contos em baboseiras, não se concebe que a filha de um banqueiro pudesse ter quejando capricho? Será necessário ir às sociedades da velha fidalguia para encontrar exemplos dessas dissipações?
Ao contrário, o traço brasileiro está aí se revelando. Desses caprichos não se lembraria Guida se, apesar de rica, não se ocupasse com os arranjos de casa e não tivesse as chaves da despensa.
Passemos a Ricardo.
Em que é que os devaneios e o orgulho intelectual repugnam com a sociedade brasileira, aponto de não poderem germinar em seu seio?
Não nos disse a crítica e era o essencial.
Neste país dos trópicos, onde a própria natureza devaneia nas cambiantes da luz, no capricho das formas, nos contrastes do belo; nestas naturezas meridionais de imaginação vagabunda, cismar será acaso uma aberração?
O orgulho da inteligência também não vinga nesta terra onde ele se ostenta todos os dias desde o legítimo brio do talento laborioso até a fofa vaidade da "suficiência" lerda e obesa, que refocila na reputação mal ganha?
Nem um nem outro destes dois senões tinha-os Ricardo que entretanto, como homem ou como personagem, não estava isento de defeitos.
Longe de ser o "homem dos devaneios", Ricardo é o homem prático, preocupado dos interesses positivos da vida, compenetrado de sua grave responsabilidade como chefe de uma família não pequena e paupérrima que tem nele o único arrimo.
Professa a advocacia, donde espera tirar recursos; luta com uma corajosa tenacidade contra as dificuldades do tirocínio. Nas horas de lazer não faz verso, desenha, como eu costumo fazer às vezes, à toa e por desfastio, sem nunca ter aprendido; e confesso que esses grosseiros empastes me divertem.
Aí vai esse neologismo, feito com a nossa mobília cá de casa (do verbo empastar) para traduzir o pastiche, que os franceses trouxeram do italiano pasticcio.
Quanto a orgulho de inteligência, é coisa de que o moço não tinha nem sombras. Em suas palavras não há uma alusão à sua capacidade; não trai aspirações literárias nem políticas; não sonha com a glória. Sua preocupação é, para o coração, o amor da família e a afeição de uma moça; para a razão, a posse de vinte contos, necessária para assegurar o bem-estar dos seus.
São dois colegas que de passagem e em ocasiões diversas fazem alusão "a seu talento"; pois ele o tinha, se o autor não se enganou em dar o nome a alguma dessas fosforescências que usurpam aí pelo mundo esse título.
Creio ter exaurido a primeira pecha de estrangeirismo; e se alonguei-me foi pelo sistema da crítica, incômodo e laborioso para o autor, que deseja defender o seu livro, pois, além da tarefa de arcar com a habilidade do crítico, é obrigado a adivinhar-lhe os motivos.
Tachando as duas personagens principais de estrangeiras, deu a entender que destoavam da nossa "sociedade franca e democrática".
Mas não será franca e democrática a sociedade onde se passam as cenas do romance? Onde dois moços pobres e desconhecidos são convidados a jantar, logo depois de rápido conhecimento, feito pela manhã em um encontro? Onde a fidalguia é representada por titulares de carregação, como um barão que foi tropeiro, um visconde que foi belchior, e um conselheiro que tem casa de consignações?
Uma observação ainda.
No romance de costumes, e não sei se os Sonhos d'ouro podem levar tão alto suas pretensões, nem todas as personagens são tipos, nem todas figuram na "comédia social", de que o autor aproveita um ato ou um trecho.
As principais na grande parte dos casos são atores no drama, que formam o esqueleto do livro, e lhe tecem o enredo, fibra vital dessa espécie de obra cujo fim é antes de tudo o conto, a fábula, que pretende o espírito e o deleita.
Divaguem como queiram os modernos discípulos de Aristóteles: aquele é o escopo do romance, o mais não passa de acessórios e ornatos, às vezes é certo, de tão subido preço, que sobrepujam o todo, como os diamantes de que se bordam as vestes.
Nem Guida, nem Ricardo são tipos, mas caracteres formados pelas nossas condições sociais, idiossincrasias, como outras que aí estão se reproduzindo ao infinito, sob a influência de um concurso qualquer de circunstâncias.
A diferença entre um tipo e um caráter não careço de a determinar, pois não a ignora o ilustrado crítico. O tipo é moral; o caráter é psicológico. Este só contraste basta: dá-nos ela outra importante aferição. O tipo forma-se exteriormente pelo molde social; o caráter é uma criação espontânea, que se produz internamente pelas modalidades da consciência.
O marinheiro, o soldado, o estudante, o advogado, etc., são tipos de maior ou menor relevo. O avaro, o egoísta, o ambicioso, são caracteres que variam como as folhas de uma árvore e os logaritmos de uma mesma forma natural.
Fazendo aplicação destes prolegômenos da crítica a nossas personagens, não será difícil discernir o que pertence ao caráter e o que ao tipo, em cada uma delas.
Em Guida a altivez do gênio, a elegância fidalga, os caprichos dissipadores, a isenção da alma, tudo isto é do caráter, no qual sente-se a leve impressão da educação inglesa. O que há de típico nessa figura é a forma de que se revestem suas travessuras, a garrulice brasileira desse lábio malicioso, o impulso de caridade que se expande traquinando, o modo por que apesar da riqueza vive sem luta no meio de uma sociedade que lhe não convém.
Em Ricardo o caráter revela-se nos escrúpulos de probidade e no pudor da pobreza, que os afasta dos círculos onde arrota-se ouro, não por orgulho ou inveja, mas pelo recato da dignidade.
O homem que não jantou, curte sua fome em casa e não vai espiar a mesa farta dos ricos, sob pena de ser um mendigo de casaca. A vida é um banquete, onde nem todos são convivas, como disse com lúgubre ironia o infeliz Gilbert; porém muitos ficam à porta.
Ricardo pensava por esta forma; se bem, se mal, é o que a crítica filosófica devia decidir, mas absteve-se.
A profissão de advogado, única esperança de decente ganha-pão para ele que não tinha proteções, nem se encaminhara a outras profissões igualmente independentes, como o comércio e a indústria; as recordações de S. Paulo e as amizades e os amores ali tecidos com as noitadas do tempo de estudante; o tom da amizade escolástica e fraternal que o liga a Fábio; o seu modo de viver; eis o que há de típico em Ricardo, e não o viu o ilustre crítico por estar sob o domínio de uma prevenção.
Havemos de chegar a ela, a seu tempo.
Sênio
11 de setembro de 1872