Prologo

Nunca pensei eu que me coubesse algum dia tarefa tão difficil e tão ditosa ao mesmo tempo, qual a de prefaciar um livro como o da excelsa poetisa paulista cujo nome hoje é conhecido de todos os que se dedicam ao culto da litteratura neste paiz.

Uma injusta apreciação, concluida, e mal concluida, da minha attitude critica contra uma escriptora de talento, havia-me perfidamente creado a pequenina fama (de resto, indigna de mim) de homem selvagem que só via nas mulheres as aptidões inferiores das cozinheiras. E como o homem é de fogo para a mentira, no dizer do fabulista, fui logo definitivamente julgado e condemnado.

Ha em tudo isto uma grave injustiça.

Vivendo nessa patria que se orgulha dos nomes gloriosos de Narcisa Amalia, Adelina Vieira, Julia Lopes d’Almeida, Zalina Rolim, e Julia Cortines, eu sentia com ella esse mesmo nobre orgulho, e ninguem de boa-fé poderia acatar essa dura malevolencia contra as minhas verdadeiras opiniões.

Por isso é que a occasião de apresentar o nome da auctora dos Marmores me depara hoje um ensejo feliz de rehabilitação no conceito dos mais opiniaticos.

A tarefa que hoje desempenho, não sem o sobresalto da minha humilde condição e mesmo sem possuir a auctoridade necessaria para realçar o merito obscuro ainda e para recommendar o livro que tenho em mãos, justifica-se egualmente por boas e excellentes razões que não me é licito, um momento só, occultar. Não só os Marmores por si sós dispensam qualquer elogio antecipado ao do pubico, mas quasi todos elles já não carecem de favor; foram carinhosamente esculpidos, finamente cinzelados, para a galeria artistica da Semana, e ahi foram consagrados definitivamente pelo applauso de Araripe Junior, Lucio de Mendonça, Valentim Magalhães, Xavier da Silveira, Silva Ramos, Fontoura Xavier, Escragnolle Doria, Max Fleiuss, Luiz Rosa, Americo Moreira e eu. Deste modo, já não teria receio dos exaggeros da minha opinião individual; acha-se ella firmada pela colaboração de illustres confrades cujo criterio se eleva acima de toda a suspeita.

O nome da poetisa era acclamado; as suas producções, em manuscripto ainda quente das emoções do seu estro, crearam em torno de nós, como um vidro de perfume ao quebrar-se, uma atmosphera deliciosa de Arte e de Sentimento. E d’essa invisivel redoma, de onde uma nova alchimia tirava novos mundos, renasciam as paizagens pagãs, com os seus lacteos rios elevando murmurios ás frondes que os passavam ao céo azul, nessa ascenção de prece pantheista da terra profunda ao céo alto e luminoso.

E todos nós inquiriamos se era verdadeiramente de mulher aquelle coração energico e possante, capaz de propellir o sangue de um milhão de arterias.

Foi, pois, principalmente nas paginas da Semana que a reputação de Francisca Julia se tornou duravel, solida e indestructivel.

E quando ella vinha todos os sabbados, com o fulgor e a pontualidade de um planeta, era logo cercada da admiração e do antigo applauso com que todos nós a recebiamos. A sua poesia energica, vibrante, trazia a vehemencia de sonoridades extranhas, nunca ouvidas, uma musica nova de que as cytharas banaes do nosso Olympo nos haviam desacostumado.

A banalidade vulgar e desolante do commum das poesias escriptas outr’ora por mulheres; esses versos minados de tuberculose, de voz rouca e doentia, quasi esprimidos com o ultimo alento vital, habituaram-nos a registrar cada estréa feminina sempre com a mesma velha sigla: — Está conforme. Era como se dissessemos: — Póde baixar á enfermaria.

Mas d’essa languidez antipathica e irracional, nasceu, como devia nascer, a reacção.

Ainda ultimamente, o livro de Julia Cortines foi mais um clamor de energia contra essa tisica endemica do Parnaso.

Pois que! esses boas senhoras e essas gentis meninas, rubicundas e gordas, bonitas e risonhas, espirituosas todas e algumas até glutonas, andavam a chorar pelos cantos da casa e a morrer em cada verso?

Francisca Julia tem pouco mais de vinte annos de edade. [1] Sente-se a custo, ás vezes, nas suas producções, a ternura dos verdes annos que só a adolescencia é capaz de suggerir e realisar, porque a frieza classica dos seus versos é absoluta. Sabemos que aos 14 annos escrevia já os primeiros versos. Estreou no Estado de São Paulo e collaborou em varias outras folhas, no Correio Paulistano, no Diario Popular, no Album, e finalmente, na Semana de onde irradiou seu nome para todos os angulos do paiz.

Eis o que sei da sua curta biographia. Talvez, um dia, num livro que será extremamente curioso e suggestivo, ella nos conte a sua historia intima com aquella deliciosa linguagem, pura e desataviada de ornatos, que transpira das suas cartas.

O caracter preponderante da sua poesia é, talvez, o amor da belleza classica, tal qual a idearam os hellenos de Pericles — o sentimento abstracto e profundo do numero, do rythmo e da harmonia. Em uma palavra: — mais extasi do que paixão. Bastaria, para proval-o, esse soneto dos Argonautas que parece um baixo relevo de marmore, tal a fria correcção do desenho, soneto que é, de certo, um dos mais bellos e mais bem acabados entre os da nossa lingua.

Os argonautas

Mar fóra, eil-os que vão, cheios de ardor insano.
Os astros e o luar — amigas sentinellas,
Lançam bençams de cima ás largas caravelas
Que rasgam fortemente a vastidão do oceano.

Eil-os que vão buscar noutras paragens bellas
Infindos cabedaes de algum thesouro arcano...
E o vento austral que passa em coleras, ufano,
Faz palpitar o bojo ás retesadas velas.

Novos céos querem ver, mirificas bellezas;
Querem tambem possuir thesouros e riquezas
Como essas náos que têm galhardetes e mastros...

Ateiam-lhes a febre essas minas suppostas...
E, olhos fitos no vacuo, imploram, de mãos postas,
A aurea bençam dos céos e a protecção dos astros...

Na Musa impassivel ha identica perfeição de sonoridade; sôa-nos ao ouvido a complicação orchestral de um poema symphonico; todos os rumores são harmoniosos; e o pensamento já não é expresso pela vulgaridade da articulação e do vocabulo, mas escôa e brota da musica complexa, da fórma mesma dos versos.

Dá-me o hemistichio d’ouro, a imagem attractiva;

Versos que lembrem, com seus barbaros ruidos,
Ora o aspero rumor de um calhão que se quebra,
Ora o surdo rumor de marmores partidos.

Outras vezes, na soidão da floresta, é ainda uma sonoridade selvagem que desperta e impressiona o estro da poetisa e ella tradul-a nesse verso esguio e fremente:

„Entre as folhas sibila a estridula cigarra”

Se eu tivesse de fazer uma analyse psychologica, (de cujo horror os leitores se livrariam a tempo) diria que a sensação predominante na compleição physica e intellectual de Francisca Julia é a sensação auditiva; ella sabe tirar dos ruidos cahoticos e irregulares da natureza as vibrações isochronas e musicaes, e dá-lhes um relevo distinctivo, como um artista sabe, com o pincel, desdenhando o detalhe, distinguir as manchas do colorido geral da paizagem.

Um subsidio para essa affirmativa psychologica, bem póde ser a myopia da gentil poetisa. Á deficiencia da vista, procurou equilibrio no ouvido, com a vantagem innegavel de que a myopia natural, quando não é excessiva, é um bom elemento de educação da percepção visual na arte, por isso que facilita a visão das massas e supprime o incommodo das minucias.

E querem avaliar os leitores como essa gentil creança sabe ver a natureza?

Ponham diante dos olhos esse trecho de paizagem africana em dia de calma:

Calma em tudo. Dardeja o sol raios tranquillos...
Desce um rio, a cantar... Coalham-se á lona d’agua,
Em compacto apertão, os velhos crocodillos...

Na mesma poesia (Sonho africano) que é toda um primor de arte, encontra-se esta imagem digna de um pincel impressionista:

Eil-o em sua choupana. A lampada, suspensa
Ao tecto, oscilla; a um canto, um velho e hervado fimbo.
Entrando, porta a dentro, o sol forma-lhe um nimbo
Cor de cinabrio em torno á carapinha densa.

Na poesia De joelhos, que é uma tentativa de versos symbolicos, mysticos, ou decadistas, — a auctora tira todos os effeitos admiraveis de luz, de som e de movimento. Toda a luz do quadro só permitte ver a monja, e d’ella, a principio, os olhos altos, presos ao tecto, e depois os braços e o rosto branco; percebe-se o murmurio sonoro da reza cochichada, continua...

Reza de manso... Toda de roxo,
  A vista no tecto presa,
  Como que imita a tristeza
Daquelle cirio tremulo e frouxo...

E os dous aspectos artisticos, de luz e som, o do murmurio e o da imagem branca da monja, vão-se alternando nas estrofes:

Psalmos doridos, cantos aereos,
  Melodiosos gorgeios
  Roçam-lhe os ouvidos, cheios
De mysticismos e de mysterios...

Quanta tristeza, quanto desgosto,
  Mostra n’alma aberta e franca,
  Quando fica branca, branca,
As mãos erguidas, pallido o rosto...

  Parece estar no Outro-Mundo
De outros mysterios e de outras vidas.

Não tenho hoje hesitação alguma, quaesquer que sejam as consequencias do asserto, em affirmar que depois da geração que costumamos symbolizar nos nomes de Raymundo Corrêa, Olavo Bilac e Alberto de Oliveira, tenha apparecido um poeta que se avantaje, ou, sequer, eguale á auctora dos Marmores. Nem aqui, nem no sul, nem no norte onde agora floresce uma escola litteraria (A Padaria espiritual do Ceará) encontro um nome que se possa oppor ao de Francisca Julia.

Todos lhe são positivamente inferiores no estro, na composição e factura do verso; nenhum possue em tal grau o talento de reproduzir as bellesas classicas com essa fria severidade de fórma e de epithetos de que Heredia e Leconte deram o exemplo na litteratura francesa; nenhum jamais d’entre os mysticos e nephelibatas de Lisboa ou do Rio de Janeiro, se elevou a essa região serena do mysticismo que a poesia De joelhos nos revela com tão extraordinaria emoção.

Como traductora, Francisca Julia tem, egualmente, qualidades apreciaveis.

Contribuiu ella com alguns formosos numeros para a traducção brazileira do Intermezzo de Heine, publicada pela Semana.

Por esse tempo, um critico allemão publicou no Tagblatt [2] uma extensa apreciação sobre a traducção brazileira. Era natural que ao sr. Emilio Strauss fossem extranhas as harmonias do nosso idioma; por isso o critico foi desapiedado para com poetas da estatura de Raymundo Corrêa e de Luiz Delfino, ao passo que elevou ás nuvens poetas estimaveis mas de menos folego. O critico apenas deixa-se levar pelo criterio da traducção litteral rigorosa, o que muitas vezes conduz aos maiores absurdos; na poesia, nao só o vocabulo, mas a melodia e o rythmo são elementos eguaes de expressão, e esses ultimos elementos são tanto mais intensos quanto cresce a distancia entre a civilisação e a lingua do poeta original e a do poeta que traduz.

Analysando, com seu estreito criterio, Emilio Strauss não poude comprehender o merito das traducções de Francisca Julia.

Que a nossa poetisa póde traduzir mesmo litteralmente e com o maior rigor de fidelidade as bellezas da poesia alleman, é verdade que ninguem poderia com decencia encobrir.

No presente volume os leitores encontrarão um lied de GoetheCalma do mar — (Meeress Stille) que póde ser cotejado com o original allemão.

Os dous ultimos versos

In der ungeheuern Weite
Regel keine Welle sich

são traduzidos com rigor litteral:

Em todo o vasto mar, em parte alguma,
A mais pequena vaga se levanta.

Entretanto, não seria de todo inutil apontar á gentil poetisa os perigos e as desvantagens da paraphrase, quando se póde traduzir com a fidelidade e a elegancia que transpiram nos dous versos acima transcriptos.

Vou concluir.

Aos que vão começar a deliciosa leitura dos Marmores, peço perdão dessa palestra importuna, inculta e barbara, sem atavios de estylo, e, todavia, sem a singeleza que reclamaria o portico desse templo sumptuoso. A Machado de Assis ou a Raul Pompeia caberia essa architectura preliminar.

Mas tambem o contraste é excellente recurso para effeitos necessarios.

Sirva isso de prologo e de contraste á grandiosa belleza dos Marmores.

 

 Rio, 1 de janeiro de 1895.

 

    JOÃO RIBEIRO.

  1. Nasceu em S. Paulo aos 31 de Agosto de 1874 e é filha do sr. Miguel Luso da Silva e da exma. sra. D. Cecilia Izabel da Silva
  2. Folhetins do Tagblatt de S. Paulo, sob o titulo Eine brasilianische Heine-Meberseizung, entre 23 de junho e 3 de julho de 1894.
 

Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.


 
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.