Índice
editar- Capítulo I
- Capítulo II
- Capítulo III
- Capítulo IV
- Capítulo V
- Capítulo VI
- Capítulo VII
- Capítulo VIII
- Capítulo IX
- Capítulo X
- Capítulo XI
- Capítulo XII
Posso dizer o caso, o ano e as pessoas, menos os nomes verdadeiros. Posso ainda dizer a província, que foi a do Rio de Janeiro. Não direi o município nem a denominação da fazenda. Seria exceder as conveniências sem utilidade.
Vai longe o ano; era o de 1850. A fazenda era do coronel X, digamos Xavier. Boa casa de vivenda, muitos escravos, mas pouca ordem, e produção inferior à que devia dar. O feitor, que era bom a princípio, ", como dizia o coronel aos amigos, "como diziam os amigos do coronel. Corriam algumas lendas; sussurrava-se que o fazendeiro devia certas mortes ao feitor, e daí a dependência em que estava dele. Era falso. Xavier não tinha alma assassina, nem sequer vingativa. Era duro de gênio; mas não ia além de algumas ações duras. Isso mesmo parece que afrouxava nos últimos tempos. Talvez tivesse pouca aptidão para dirigir um estabelecimento agrícola; mas os primeiros anos de propriedade desmentiam esta suposição. Foram anos prósperos, de grande trabalho e vivas esperanças. O terceiro ano confirmou algumas destas; mas o quarto foi já decadente, e os restantes vieram, ora melhor, ora pior, sem que a lavoura tornasse ao que fora. Os escravos mortos ou fugidos eram substituídos por pretos importados de contrabando, meias-caras, como se dizia. Os correspondentes da antiga corte adiantavam dinheiro. Xavier não perdeu o crédito.
Tinha perto de quarenta anos. Pertencia a uma antiga família agrícola, espalhada pelo Rio de Janeiro, Minas Gerais e S. Paulo. O pai criou-o um pouco à revelia. Já na fazenda, já na capital, aonde ele vinha muitas vezes, fazia tudo que queria e gastava à larga. O pai desejava que ele fosse doutor ou bacharel em direito; mas o filho não quis e não foi nada. Quando o velho morreu deixou-lhe a fazenda em bom estado, dinheiro nas mãos dos correspondentes, muito crédito, ordem e disciplina. Xavier tinha vinte e sete anos. Correu da corte e já achou o pai enterrado. Alguns amigos do velho, que estavam na fazenda, receberam o herdeiro com muitas provas de estima, desejos de perseverança na casa; mas o moço Xavier, ou porque eles acentuassem demasiado a afeição, ou porque se intrigassem uns aos outros, em breve tempo os pôs na rua. Parece que deles é que nasceu mais tarde a lenda das mortes mandadas cometer pelo fazendeiro.
Já ficou dito que os dois primeiros anos foram prósperos. Como a prosperidade vinha do tempo do velho, é fácil crer que continuou pelo impulso anterior. É verdade, porém, que Xavier deu todos os seus cuidados à lavoura, e juntou o esforço próprio ao que ela trazia.
Os parentes estavam satisfeitos com a conversão do moço. Um deles lançou-lhe uma patente de coronel da Guarda Nacional; e deu-lhe conselho que tomasse para si a influência política do município. Outro, um velho tio mineiro, escreveu-lhe uma carta dizendo que casasse. "
Quando a carta chegou às mãos do Xavier, estava ele jogando com um viajante que lhe pedira pousada na véspera. Não abriu a carta, não chegou a examinar a letra do sobrescrito; meteu-a no bolso e continuou a jogar. Tinha sido grande jogador, mas havia já dezoito meses que não pegava em cartas. O viajante que ali aparecera, entre outras anedotas que lhe contou, meteu algumas de jogo, e confessou que ". A ocasião, a vocação e o parceiro abriram o apetite ao jovem coronel, que convidou o hóspede a um divertimento. O hóspede trazia cartas consigo, mas não foram precisas; Xavier, posto que resolvido acabar com o vício, tinha muitos baralhos em casa.
Jogaram três dias seguidos. Xavier perdeu dois contos de réis, e despediu o hóspede com as melhores maneiras deste mundo. Sentia a perda; mas o sabor das cartas foi maior.
Foi na noite do primeiro daqueles três dias que Xavier leu os conselhos do tio mineiro para que casasse e não os achou maus. No dia seguinte de manhã tornou a pensar no assunto. Quando o hóspede se despediu, a idéia do casamento apoderou-se dele outra vez. Era uma aventura nova, e a vida de Xavier fora dada a tantas, que esta devia namorá-lo. Nenhuma ambição, curiosidade apenas. Pensou em várias moças, fez-se a seleção até que adotou a filha de um fazendeiro de S. Paulo, que ele conhecera, anos passados, com dezessete de idade; devia ir em vinte e não lhe constava que tivesse marido.
Ao vê-la, dois meses depois, Xavier estava longe de crer que a mocinha de dezessete anos fosse aquela magnífica moça de vinte. Só mais tarde soube que ela, desde os dezessete anos, ficara namorada dele. Acordos tais são próprios de novelas; nem eu poria isto aqui, se não fora a necessidade. Parecem coisas preparadas, e, entretanto, examinando-as bem, são banais e velhas. Esquecemo-nos de que os novelistas, à força de levarem para o papel os lances e situações da realidade, deram-lhe um aspecto romanesco.
Não houve obstáculos ao casamento. O velho tio mineiro foi padrinho de Xavier, e, dentro de pouco, tornava este à fazenda fluminense, acompanhado de D. Paula Xavier, sua consorte. Viagem longa e cansativa; foram naturalmente repousar. Descansemos nós também nesta pontinha de capítulo.
D. Paula não teve a lua-de-mel deliciosa que esperava. O casamento fora obra de reflexão e de conselho. Assim, o amor que adormecera nela, pouco depois de nascido, acordou espantado de tornar à realidade das coisas, e principalmente de não as reconhecer. Como Epimênides, via um mundo diverso do que deixara. Esfregou os olhos, uma e mais vezes, tudo era estranho. O Xavier de três anos passados não era este de hoje, com as suas feições duras, ora alegre, ora frio, ora turbulento — muitas vezes calado e aborrecido —, estouvado também, e trivial — sem alma, sem delicadeza. Pela sua parte, Xavier também não achou a lua-de-mel que pensava, que era um astro diferente daquele saudoso e porventura poético, vertendo um clarão de pérolas fundidas — mais ou menos isto — que a mulher sonhara achar ao pé do noivo. Queria uma lua-de-mel patusca.
Um e outro tinham-se enganado: mas estavam unidos, cumpria acomodarem-se — com a sorte. Ninguém troca o bilhete de loteria que lhe saiu branco; e se o emenda, para receber um prêmio, vai para a cadeia. O bilhete branco é o sonho; deita-se fora, e fica-se com a realidade.
Quatro meses depois de casado, Xavier teve de ir ao Rio de Janeiro, onde se demorou poucos dias; mas voltou no mês seguinte, e demorou-se mais, e afinal amiudou as viagens e dilatou as demoras. A primeira suspeita de D. Paula é que ele trazia amores, e não lhe doeu pouco; chegou a dizê-lo ao próprio marido, mas sorrindo e com brandura.
— Tolinha, respondeu ele. Pois eu agora...? Amores...? Não me faltava mais nada. Gastar dinheiro para dar com os ossos na corte, atrás de raparigas... Ora você! Vou a negócios; o correspondente é que me demora com as contas. E depois a política, os homens políticos, há idéia de fazer-me deputado...
— Deputado?
— Provincial.
— Por que não aceita?
— Eu, deputado? Tomara eu tempo para cuidar de mim. Com que, então, amores? continuou ele rindo. Você é capaz de fazer pensar nisso.
D. Paula creu no marido, estava então grávida, e punha grandes esperanças no filho ou filha que lhe nascesse. Era a companhia, a alegria, a consolação, tudo o que o casamento não lhe deu. Como se aproximasse o termo da gestação, Xavier suspendeu as viagens à capital; mas por esse tempo apareceram na fazenda uns três sujeitos, que se hospedaram por dias, e com quem ele jogou à larga. A mulher viu que ele amava as cartas. Em si o jogo não a incomodava; alguns parentes seus davam-se a essa distração, e nunca ouvira dizer que fosse pecado nem vício. O mal vinha da preocupação exclusiva. Durante aqueles oito dias, Xavier não pensou que era casado ou fazendeiro: todo ele era cartas. Sabia muitos jogos; mudava de um para outro, com o fim de dar descanso ao espírito.
— Enquanto se descansa, carrega-se pedra, dizia ele aos parceiros. Acabaram os oito dias, os hóspedes foram-se, com promessa de tornar mais tarde. Xavier, apesar de haver perdido muito, estava bonachão. Outras vezes, embora ganhasse, irritava-se. Por quê? Estados de alma que os fatos externos podiam explicar até certo ponto, mas que prendiam naturalmente com a índole do homem. Não era o dinheiro que o seduzia no jogo, mas as cartas, quase que só elas. Certo, preferia ganhar a perder — até para ter sempre com que jogar, mas era o jogo em si mesmo, as suas peripécias, os seus lances, as rodas de fortuna, a ansiedade na espera, a luta, a superstição, a fé em uma carta, a descrença em outras, todas as comoções trazem [1] o meneio delas. Quando jogava assim uma boa temporada, dia e noite, ficava farto por algum tempo. O pior é que o prazo do descanso ia diminuindo, e a necessidade vinha cada vez mais cedo.
Quando veio a hora de nascer o filho, estava Xavier em um dos estados de desejo; o acontecimento pôde distraí-lo. Já tinha em casa médico e uma comadre, um tio da mulher e duas filhas. Não faltou nada. Havia animais encilhados e pajens prontos para correr à vila próxima, a buscar o que fosse preciso. D. Paula padeceu muito, e as esperanças dissiparam-se na mais triste das realidades; o filho nasceu morto. A dor da mãe foi profunda, a convalescença longa.
Quando ficou de todo restabelecida, Xavier propôs-lhe virem ao Rio de Janeiro, passar a temporada lírica; ela aceitou, menos por gosto, menos ainda por distração, que por ceder ao pequeno acesso de ternura do marido. Com efeito, ele expediu ordens para que arranjassem casa e todas as comodidades. Vieram; Xavier assinou um camarote. D. Paula tinha aqui parentes, amigos, conhecidos; a vida teve desde logo um bom aspecto. Pela sua parte, o marido mostrava-se mais atento aos seus desejos. Era uma renascença? Ela supôs que sim e isto ajudou a fazê-la sarar da alma. Não faltava quem a cortejasse, quem a admirasse, e naturalmente, quem a invejasse, pela beleza, pela graça, pelas maneiras simples e discretas, particularmente suas. Xavier parecia tirar vaidade desse efeito geral. Seria mais um elo que os prendesse intimamente.
Entretanto, pouco depois de chegados, começaram as suas noitadas fora de casa. Da primeira vez, quando ele se recolheu (quatro horas da manhã) ainda D. Paula estava acordada, ansiosa, vestida, e atirou-se a ele, satisfeita de o ver. Sinceramente receava algum perigo; não pensou em amores nem cartas. Xavier não correspondeu à ansiedade da mulher, nem entendeu os seus receios. Respondeu-lhe irritado; disse-lhe que fizera mal em não ter dormido.
— Sou alguma criança?
— Mas, Xavier...
— Roceiro, sou; mas conheço a cidade na ponta dos dedos. Você está já com as manchas das moças da corte; não tarda algum ataque de nervos. Que choro é esse? Vá dormir, não me aborreça. Descanse, que não me perco.
A segunda noitada foi dali a três dias; D. Paula só tarde pôde dormir; acordou, quando ele chegou, mas não descerrou os olhos. Desconfiou que fossem mulheres; ele confessou-lhe, no dia seguinte, que estivera em casa de um amigo, jogando o voltarete.
— Quando demos por nós eram duas horas da noite, concluiu.
Dali em.diante, quando tinha de passar fora a noite, não saía de casa sem lhe dizer. — Vou ao voltarete. D. Paula soube que era verdade, e acostumou-se a dormir à hora da roça, porque nas noites de teatro ou de visitas, ele não deixava de a acompanhar, e dormiam naturalmente tarde.
Voltaram à corte uma e muitas vezes, até que Xavier abandonou de todo a fazenda nas mãos do administrador, e ficou a viver aqui. Por casa, entregou a mulher a si mesma e continuou a vida de sempre. Eram já passados três anos. O costume e o decoro os prendiam; nenhum deles amava o outro. Não veio nenhum filho que pudesse suprir as lacunas do amor conjugal.
Dona Paula ia ficando cada vez mais formosa. A corte aperfeiçoou os encantos naturais. No interior não tinha necessidade de observar todo o ritual elegante nem a grande variedade da moda.
Na corte, a necessidade impunha-se, e achava na alma dela excelente disposição. Gostava de andar bem, de aparecer muito, de ir a toda parte; e não lhe faltavam amigos nem parentes que a acompanhassem e lhe satisfizessem todos os desejos. Bailes, teatros, passeios, teve tudo o que quis, não lhe negando o marido dinheiro para coisa alguma. Às vezes, estremunhado do jogo, ele respondia-lhe errado:
— O baile do Vergueiro?
— Sim; é no dia 7.
— Mas o trunfo era espadas.
— Que espadas?
— Eu tinha o rei e o quatro.
— Ora, Xavier, não falo de cartas, falo do baile do Vergueiro, no dia 7 de outubro; estamos convidados.
Não pareça demais essa confusão do homem. Naturalmente, alguma partida especial, grave, luta grande, ou pelo dinheiro ou pela honra da vitória, tomara a casa do cérebro onde nenhuma outra idéia achava alojamento. Dona Paula chegava já a rir desses desconchavos. Depois, explicava o riso, e ele ria também, e referia o motivo da trapalhada. Quando ela notava que isso mesmo o aborrecia, evitava explicações. O marido era enfadonho, longo, repisava o que dizia, e achava pequeno interesse em coisas que, para ela, não valiam nada. Já lhe não importavam horas de chegada. Ele entrava de madrugada, às vezes de manhã, às seis horas e mais. Dona Paula dormia até nove, e almoçava só. Outras vezes, o jogo era em casa; mas a casa era grande, e a sala do jogo era ao fundo. Na frente ela recebia, tocava e ria. Era convenção entre ambos, em tais casos, dizer que ele estava fora.
Correu assim um ano, e mais. Dona Paula ia para vinte e seis anos, como quem sobe de esplendor em esplendor, devia ser uma daquelas mulheres que os trinta aperfeiçoam, e os quarenta não conseguem enxovalhar. Que era mais natural que a admirassem? Não lhe faltavam olhos cobiçosos, nem desejos mal sofridos. Ela saboreava-os com discrição, sem corresponder a nada, durante os primeiros tempos; mas a liberdade, o número dos adoradores, a persuasão de não perder com isso, fê-la receber agradecida e lisonjeada o culto de tanta gente. Contavam-lhe muitas conversações a seu respeito; os homens idosos, mas brincalhões, repetiam-lhe na cara, ao pé das próprias mulheres, coisas que corriam fora — nomes que lhe davam, estrela do sul, rainha das salas e outros tão banais, como esses, mas igualmente sinceros.
Conhecia meia dúzia de homens que se mostravam particularmente assíduos nos lugares a que ela fosse, e mais pertinazes em dar-lhe a entender que a queriam. Dona Paula não se alterou com o número, nem com o mal; deixou-os vir. Um deles, bacharel em direito, tinha os seus trinta anos, e a mais bela de todas as cabeças masculinas do tempo. Chamava-se João Góis. Solteiro e abastado. Era parente remoto de uma senhora que vivia na Tijuca, onde eles se falaram pela primeira vez. Dona Paula conhecia-o de o ver muitas vezes, ou no teatro ou na Rua do Ouvidor. Trazia na lembrança os longos olhos dominadores que ela evitava afrontar, por medo do duelo, de que podia sair mal ferida; apenas os via por baixo das pálpebras medrosas. Na Tijuca teve de os fitar ainda que o menos possível, e viu confirmados esses seus receios. Pensou neles, entretanto, e não sonhou com outros. Havia ainda um adorador de vinte e dois anos, olhos meigos e bons, cara sem barba, um triste buço puxado e repuxado sem chegar a bigodes. Para esse era Dona Paula a primeira paixão. Esse chorava por ela, em casa, às noites, e escrevia longas cartas para lhe mandar no dia seguinte, o que não iam nunca, porque lhe faltava tudo, portador e audácia.
Não faltava audácia a João Góis, nem portadores, se lhe fossem necessários. Em breve, estavam as relações travadas entre ele e o marido. Góis não gostava de cartas, mas sujeitava-se a jogar com Xavier nas noites em que este, por acaso, não passava fora ou não tinha os seus parceiros do costume. Dona Paula viveu cheia de temor durante as primeiras semanas; tendo brincado com fogo, aterrava-a naturalmente a idéia de o ver chegar às seias. Góis, que era audaz, era também hábil, e resolveu criar primeiramente confiança. Quando esta se estabeleceu de todo, ele declarou-se, e a batalha, se foi renhida, não foi longa; a vitória acabou completa.
Não direi compridamente os sentimentos de Dona Paula. Foram de duas ordens, mas força é confessar que o temor, última esperança da virtude, desapareceu com esta; e a cegueira que lhe trouxeram os olhos do homem fez com que ela não visse já perigos nem perdas. Não receava o marido; pode crer-se que nem recearia a opinião. Era toda do outro; podia crer-se que a paixão antiga, inspirada pelo marido desde os dezessete anos, enganara-se de porta, e que realmente só amava um homem na terra: este parente da senhora da Tijuca.
Pouco a pouco, a verdade foi transparecendo aos olhos estranhos; eles não sabiam resguardá-la, e pode ser que ele próprio o não quisesse. A vaidade não era, aliás, o elo mais forte daquele homem; realmente, o amor dele era violento; mas, a glória do vencedor crescia com a notícia da posse. A notícia foi cochichada por inveja, por gosto, por maledicência, na sala e na rua, no teatro e no baile, e tanto na palestra de peralvilhos, como entre duas mãos de voltarete dos comerciantes, à noite, nos arrabaldes. Contavam-se os indícios; pesquisava-se a vida de ambos; vinham episódios, cenas, encontros. E, posto que não fosse já preciso inventar nada, ainda se inventava alguma coisa.
Dona Paula vivia alheia às murmurações. Não sabia ler nos rostos das outras mulheres, nem lhes achou diferença apreciável no trato. Algumas, por verdadeira repulsão, afastaram-se dela, mas com tal arte e polidez, que a moça nem sentiu a separação. Demais, que separação podia já sentir em tais condições? Amigas houve que buscavam saber por direta confidência o segredo da vida de Paula; nenhuma o obteve. Uma, não menos íntima, quis puni-la pela critica e condenação genérica dos seus atos; ela não a entendeu. Que era a sociedade sem ele? Que era a virtude fora dele? Tal era o estado moral da consorte de Xavier, quando sucedeu o que lhes vou contar.
Góis teve um dia a idéia de propor a D. Paula que deixassem o Rio de Janeiro e o Brasil, e fossem para qualquer país do mundo — os Estados Unidos da América do Norte, se ela quisesse, ou qualquer recanto da Itália. A própria França, Paris, era um mundo em que ninguém mais daria com eles.
— Você hesita...
— Não hesito, respondeu D. Paula.
— Por que não me responde?
— A proposta é grave, mas não é a gravidade que me impede de responder já e já. Você sabe que irei com você ao fim do mundo, se for preciso...
— Pois eu não te proponho o fim do mundo.
— Sim; e acaso é preciso?
Góis ia a sorrir, mas suspendeu a tempo o sorriso, e fechou o rosto. D. Paula acudiu que estava por tudo; iria à China, com ele, a uma ilha deserta e inabitada...
Pleno romantismo. Góis pegou-lhe nas mãos e agradeceu-lhe a resposta. Perguntou-lhe ainda se não cedia de má-vontade, ou se era de coração, se padeceria, caso ele se fosse embora só, e a deixasse... A resposta de D. Paula foi tapar-lhe a boca; não a podia haver mais eloqüente. Góis beijou-lhe a mão.
— Deixar-me? Você pensaria acaso em semelhante coisa, se eu recusasse...?
— Talvez.
— Então é falso que...
— Não, não é falso que te amo sobre tudo neste mundo; mas tenho um coração orgulhoso, e se percebesse que preferias os teus cômodos ao nosso amor, eu preferia perder-te.
— Cala-te.
Calaram-se ambos, por alguns instantes. Ele brincava com uma das mãos dela; ela alisava-lhe os cabelos. Se indagarmo-nos em que iam pensando, acharemos que um e outro, e nada na terra para onde iriam. Góis, ao menos, só cuidou disso, passados uns dez minutos ou mais de enlevo, de devaneio, reminiscências, sonhos — e cuidou para dar à bela D. Paula uma nova causa de espanto.
— E se eu não te propuser o fim do mundo mas o princípio?
— Não entendo. O princípio?
— Sim, há de haver um princípio do mundo pois que há um fim.
— Mas explica-te.
— Se eu te propusesse simplesmente a minha casa?
D. Paula não achou que responder. A proposta era agora tão audaciosa, tão fora de um plano possível, que supôs fosse gracejo, e olhou para ele sem dizer nada. Parece que até começou a rir; mas ficou logo séria, desde que não viu no rosto dele nada que se parecesse com gracejo, nem sequer doçura. Ela já lhe conhecia a expressão da teimosia, e tinha razão para saber toda a escala dos seus atrevimentos. Ainda assim, não creu logo. Compreendia que deixassem a terra pátria para ir purgar os seus erros em algum buraco do mundo; mas sair de uma casa para outra, praticar um escândalo, gratuito, sem necessidade, sem explicação...
— Sei tudo o que estás pensando, disse-lhe ele após alguns segundos.
— Tudo?
— Então és da minha opinião.
— Que...?
— Que me propões um absurdo.
— Tudo se explica pelo amor, continuou ele. Se não achas explicação nenhuma, é que não me amaste nunca ou já não me amas...
D. Paula não teve ânimo desta vez, para tapar-lhe a boca. Abanou a cabeça, com um olhar de censura, e um jeito amargo dos lábios; foi como se não fizesse nada. Góis ergueu-se e estendeu a mão. Ela fechou-a entre as suas; obrigou-o a sentar-se, quis mostrar-lhe que a proposta era um erro, mas perdeu-se em palavras vagas e descosidas, que ele não ouviu, porque tinha os olhos na ponta dos sapatos.
Góis venceu. Poucas horas depois, tinham tudo ajustado. D. Paula sairia no sábado próximo, para a própria casa onde ele morava, em Andaraí. Parece sonho tudo isto, e a pena mal obedece à mão; a verdade, porém, é que é verdade. Para explicar de algum modo esse ato de insensatez, é preciso não esquecer que ele, sobre todas as coisas, amava o escândalo; e que ela não se sentindo presa por nenhum outro vínculo, mal sabia que se expunha. la separar-se de toda gente, fechar todas as portas, confirmar as suspeitas públicas, afrontar a opinião — tudo como se houvera nascido para outra sociedade diversa daquela em que vivia. Não desconhecia o erro e seguia o erro. A desculpa que podia ter é que havia feito a mesma coisa até agora, e ia aliviar a consciência, pelo menos, da hipocrisia.
Na sexta-feira, à tarde, Góis mandou-lhe as últimas indicações escritas. De noite foi verbalmente confirmá-las. D. Paula tinha visitas e parecia alegre, Góis ressentiu-se da alegria.
— Parece que não me sacrifica nada, pensou ele; quisera vê-la abatida, triste e até chorando... Ri, ao contrário; despede-se desta gente, como se devesse recebê-la amanhã...
Essa descoberta aborreceu-o; ele saiu sem fazer nenhuma referência ao ato do dia seguinte. D. Paula, prestes a cometer o escândalo, teve vergonha de falar dele, e os dois despediram-se como se não tivessem de ligar, poucas horas depois, os seus destinos.
No dia seguinte, Xavier acordou tarde, tendo-se recolhido tarde, na forma do costume. Indo almoçar não viu a mulher que assistia sempre ao almoço dele; perguntou se estava doente.
— Não, senhor.
— Então, por quê...?
— Está no quarto, sim, senhor.
Xavier acabou de almoçar e foi ter com ela. Achou-a atirada a um canapé, com os olhos meios cerrados, o ar abatido. Tinha dormido mal à noite, duas horas, quando muito, e interrompidamente. Não disse a causa da insônia; não referiu que a idéia de ser a última noite que passava sob o teto conjugal é que a pusera nervosa, inquieta, meia delirante. Também ele não lhe perguntou nada, se teria tido febre, ou dor de cabeça, um resfriado; deu duas voltas e pegou em um livro que viu sobre uma cadeira, um romance francês; leu duas linhas e deixou-o. Em seguida, falou do almoço, que achou detestável, e do tempo, que parecia querer mudar. Consultou o relógio, quase duas horas. Precisava consertá-lo; variava muito. Que horas tinha ela?
— Vai ver, suspirou D. Paula.
Xavier foi ao relógio de mesa — um pequeno relógio de bronze —, e achou que a diferença entre os dois era de quatro minutos. Não valia a pena alterar o seu, salvo se o dela regulava certo.
— Regula.
— Vamos ver amanhã.
E sentou-se para descansar o almoço. Contou-lhe algumas peripécias da noite. Ganhara um conto e oitocentos mil-réis, depois de ter perdido dois contos e tanto; mas o ganho e a perda eram nada. O principal foi a teima de uma carta... E pôs-se a narrar toda a história à mulher, que ouviu calada, enfastiada, engolindo a raiva, e dizendo a si mesma que fazia muito bem deixando a companhia de semelhante homem. Xavier falava com interesse, com ardor, parecia crescer, subir, à medida que os incidentes lhe saíam da boca. E vinham nomes desconhecidos, o Álvaro, dr. Guimarães, o Chico de Mattos, descrevia as figuras, os sestros as relações de uns com outros, anedota da vida de todos. Quando concluiu parecia afrontado, pediu alguma coisa; a mulher preparou-lhe um pouco de água de melissa.
— Você não quer fazer a digestão calado, disse-lhe ela.
Se ele visse bem o rosto de D. Paula, perceberia que aquela frase, proferida com um tom de repreensão branda, não correspondia ao sentimento da mulher. D. Paula, se alguma dúvida pudesse ter em fugir de casa, já não a tinha agora; via-se-lhe na cara uma expressão de asco e desprezo.
— Passou, disse ele.
Ergueu-se; ia ver uns papéis.
— Você por que não se deita um pouco, disse-lhe; veja se passa pelo sono. Eu dou ordem para que não a acordem; e a propósito, janto fora, janto com o Chico de Mattos...
— O do ás de ouro? perguntou ela com os dentes cerrados.
— Justamente, acudiu ele rindo... Que veia de sujeito! O ás de ouros...
— Já sei, interrompeu ela. Vai ver os papéis.
— Um felizardo!
E, se não falou outra vez do Chico de Mattos, contou uma anedota do Roberto, outra do Sales, outra do Marcelino. A mulher ouviu-as todas serenamente — às vezes risonha. Quando ele acabou, disse-lhe em tom amigo:
— Ora, você que tem jogado com tanta gente, só uma vez jogou comigo, há muito tempo, o ecarté... Não é ecarté que se chama aquele jogo que você me ensinou? Vamos a uma partida.
Xavier pôs-se a rir.
— Tinha graça, disse ele. Para quê?
— Há maridos que jogam com as mulheres.
— A bisca em família?.
— Não, não jogo a tentos.
— A dinheiro? Também tinha sua graça, porque o que eu ganhasse em dinheiro, pagaria depois em vestidos; mas ainda assim, pronto. Há certo interesse. Vou buscar as cartas.
Saiu e voltou com as cartas.
— Não te proponho dinheiro, disse D. Paula. Nem dinheiro nem tentos.
— Então quê? As estrelas? Os nossos lugares no céu?
— Não, a minha pessoa.
— Como? perguntou ele, espantado.
— Se eu perder, você faz de mim o que quiser; se eu ganhar, ganho a liberdade de ir para onde for da minha vontade.
— Repete.
Dona Paula repetiu a proposta.
— Aí está uma singular partida, exclamou Xavier. Se eu ganhar faço de você o que quiser...
— E se eu ganhar...
— Já.sei. Vale a pena arriscar, porque, se você perder, não sabe em que se mete. Vingarei o meu susto exemplarmente.
As mãos dela estavam quentes, os olhos brilhantes. Ele, diante de uma partida nova, nunca jogada, absurda, ficara pasmado, trêmulo. Era então...? Mas quem diabo lhe metera aquela idéia na cabeça? perguntou-lhe. E depois de um silêncio:
— Góis, naturalmente.
— Não. Por que seria esse e não outro?
— Você sabe por quê.
— Não sei nada, murmurou.
— Sei-o eu. É a grande vantagem das cartas anônimas. Três cartas anônimas contaram-me tudo. Guardei a primeira; queimei as outras, e nunca lhe disse nada, porque não adiantavam nada.
D. Paula negou ainda, por boca e por gesto; afinal, calou-se e ouviu tudo o que ele continuou a dizer. Xavier falava sem cólera. Confessou-lhe que a primeira impressão foi acerba; mas depois sarou a ferida e continuou bem. Decididamente, o jogo estava acima de tudo. Era a consolação real e única da terra e do céu. Que se jogaria no céu? D. Paula rompeu finalmente:
— Bem, concluamos, disse ela. Estão postas as condições e aceitas. Vamos às cartas.
— Uma partida em três, disse ele; quem ganhar as duas primeiras, levanta a mesa.
Baralhou as cartas, distribuiu-as e ganhou logo a primeira. Jogaram segunda. Foram à terceira, que desempatava.
— O rei, disse ele, marcando um ponto.
Jogou a primeira carta, mas não jogou segunda. Parou, as cartas caíram-lhe, fez um gesto, e, antes que a mulher pudesse ver nada, caiu redondamente no chão. D. Paula acudiu, chamou, vieram criados e um médico vizinho; Xavier estava morto. Uma congestão.
Ninguém acredita que D. Paula tivesse lágrimas para o marido. Pois teve-as — poucas, é certo — mas não deixou de as chorar; quando o cadáver saiu. No dia seguinte, a impressão passara.
Que partida jogaria, agora que fortuna a libertara de toda a obrigação? Góis visitou-a, dias depois do enterro. Não lhe falou em sair de casa; também não lhe falou de amores. D. Paula agradeceu esse respeito, não obstante a certeza que ele tinha da separação moral em que ela viveu com o marido. O respeito estendeu-se a dois meses, depois quatro; Góis fez-lhe algumas visitas, sempre frias e curtas.
Dona Paula começou a crer que ele não a amava. No dia em que esta convicção lhe entrou no coração, esperou resoluta; mas esperou em vão. Góis não voltou mais.
A dor e a humilhação de D. Paula foram grandes. Não percebeu que a liberdade e a viuvez a tornavam fácil e banal para um espírito como o do cúmplice. Teve amarguras secretas; mas a opinião pública foi em seu favor, porque imaginaram que ela o expulsara de casa, com sacrifício e para punição de si mesma.