EÇA (ficcionista português) → Realismo
"O que não contas à tua mulher,
o que não contas ao teu amigo,
conta-o a um estranho, na estalagem".
Eça de Queirós (1845–1900) é o maior escritor português da escola realista. Suas melhores obras de ficção são: O crime do padre Amaro, em que retrata a lascívia, a hipocrisia e a insensibilidade do clero de sua época; O primo Basílio, onde ataca o falso moralismo da sociedade burguesa, focalizando particularmente as causas psíquicas e ambientais que induzem a protagonista Luísa ao adultério; Os Maias, parte de um projeto inacabado de descrição da totalidade social através de romances seriados (o nome do programa era Cenas da vida portuguesa), seguindo o exemplo de Balzac. Além de romancista, Eça foi também um ótimo escritor de contos. Um deles, Singularidades de uma rapariga loura, nos servirá como exemplo de análise da narrativa realista, de que o ficcionista português foi um mestre.
Problema do narrador
O início deste conto de Eça de Queirós mostra a peculiaridade do foco narrativo empregado (→ Discurso → Narrador): o leitor vai tomar conhecimento da história ficcional do personagem Macário através de um narrador que fala em primeira pessoa, mas que não participa dos fatos narrados. Trata-se, portanto, de um narrador heterodiegético, uma personagem ad hoc, colocada no conto com a única função de transmitir ao leitor o caso de vida do protagonista da história, que o próprio Macário lhe contara. O narrador funciona, então, como intermediário entre o protagonista Macário (elemento do mundo da ficção), de quem é receptor, e o leitor virtual (elemento do mundo real), para quem é transmissor da mensagem. Essa função de elo de ligação entre o mundo imaginário e o mundo real confere ao narrador uma visão objetiva, pois sua postura é a de quem narra fatos e descreve sentimentos, acontecidos, vividos e narrados por uma terceira pessoa. O fingimento de apresentar a ficção como se fosse verdade é uma peculiaridade marcante de estilo da escola realista. A presença de Macário como primeiro narrador ocorre não só no início da narrativa, mas, volta e meia, recorre ao longo do conto, renovando constantemente a conexão da transmissão do saber entre os dois narradores e o leitor:
"Macário disse-me que nesse tempo...
Macário não pôde dar todos os pormenores ...
Era singular que Macário não se lembrava...
Macário contou-me... Mas esse caso, casto e simples, eu calo-o...
Segundo me disse Macário ..."
Nos primeiros parágrafos do conto, o narrador relata como conheceu Macário (numa estalagem da região portuguesa do Minho, durante uma viagem, numa noite de outono) e descreve as características psicossomáticas daquele que irá ser a personagem principal da narrativa: velho de sessenta anos, alto, gordo, calvo, de óculos etc. Podemos considerar este primeiro momento do conto como a situação inicial da "trama", em que o autor cria a atmosfera propícia para Macário se dispor a revelar ao desconhecido, que compartilha o quarto do albergue, o "caso" amoroso que lhe acontecera na juventude e que marcara profundamente o destino de sua vida.
Resumo da fábula
A situação inicial da "fábula", agora já no plano do enunciado (ou da história → Mito) e não mais no plano da enunciação (→ Discurso), apresenta o protagonista, moço de 22 anos, guarda-livros de um armazém de panos do tio Francisco, solteirão inveterado, na cidade de Lisboa, no ano de "1823 ou 33". A serenidade de vida deste jovem aplicado e comportado, que ainda não conhecera os prazeres do sexo, é perturbada pela vista, primeiro, de uma bela viúva de 40 anos, de cabelos pretos, e, depois, pela aparecimento da filha desta, uma bonita loira de 20 anos, que moram num sobrado fronteiriço ao armazém onde o jovem trabalha. Após cinco dias de tímido flerte, Macário se apaixona pela jovem de cabelos loiros que nas tardes se debruçava na janela. O primeiro encontro, rápido e inconseqüente, dá-se no armazém onde a viúva e a filha foram comprar mercadorias. Seguem-se mais dois encontros: um, num sarau em casa de um tabelião letrado, e outro na própria residência das Vilaça. Macário decide casar-se com Luísa e comunica esta sua determinação ao tio Francisco, que não aceita a idéia. O jovem, perdido o emprego e a residência, passa maus momentos, não sendo aceito em nenhuma outra firma comercial, pois ninguém queria desagradar o velho. Desesperado, não querendo renunciar ao amor de Luísa, Macário aceita o convite de uma firma para ir trabalhar no Cabo Verde. No além-mar, luta, se sacrifica e consegue acumular uma pequena fortuna. Voltando a Lisboa, o amigo "do chapéu de palha", que lhe arrumara o negócio no Cabo Verde, pede-lhe para ser fiador de uma grande quantia e foge com o dinheiro e a mulher de um alferes. Macário é obrigado a saldar a dívida do canalha e fica outra vez na miséria. Quando está disposto a tentar outra vez a fortuna no além-mar, vai visitar o tio Francisco que, inesperadamente, muda de idéia a seu respeito, consentindo com o casamento e dando-lhe participação na sua firma. Marcado o dia do matrimônio, Macário leva a noiva a fazer compras e Luísa rouba um anel com duas pérolas. O empregado da joalheria colhe o flagrante do furto e Macário, sem perder a calma, pede desculpas e paga a vultosa quantia correspondente ao preço do anel roubado. Chegando na esquina, o jovem abandona Luísa, chamando-a de "ladra". No dia seguinte parte para a província.
Sentido do conto
As características do Realismo, neste conto de Eça, podem ser encontradas ao nível do tema principal, ao nível da qualificação dos personagens, ao nível da descrição do ambiente (Tempo e Espaço) e ao nível da metalinguagem (→ Retórica).
Nível temático: Eça explora artisticamente o tema da "cleptomania", uma anormalidade psíquica que consiste num impulso irresistível de roubar sem necessidade. A revelação final desta "singularidade" do caráter da protagonista é precedida por vários índices: a) o uso de um leque chinês, magnífico, de grande valor, que não condizia com a posição social de Luísa, filha de uma viúva pobre; b) o desaparecimento de uma caixa de lenços da Índia, no dia em que a mãe e a filha Vilaça foram no armazém do tio Francisco com o pretexto de comprar casimiras pretas; c) o desaparecimento de uma moeda de ouro, durante uma reunião social na residência de uma família amiga. Tais indícios preparam o leitor para a compreensão do desfecho do conto, quando, com o episódio do furto do anel de pérolas, se descobre a identidade da pessoa que praticara os outros roubos. O que caracteriza a anormalidade psíquica da personagem ladra é a gratuidade do ato. Enquanto os outros furtos poderiam ser atribuídos às precárias condições econômicas das duas senhoras que viviam sem o amparo de um homem, o roubo do anel não tem uma explicação lógica, pois a jovem Luísa estava prestes a se casar com um homem abastado e não precisava furtar um objeto que o noivo lhe estava oferecendo como presente. Trata-se, portanto, não de uma necessidade, mas de uma doença, a cleptomania, fruto de uma tara. Percebemos como a estética realista cultivou a exploração de temas ligados a deficiências biopsíquicas, que fazem com que o sujeito de ações criminosas seja isentado da responsabilidade de seus atos, porque é impelido a agir por um determinismo atávico ou ambiental. Conforme a doutrina do Positivismo e do Determinismo, não existem culpas subjetivas, pois é a hereditariedade ou o meio social que induzem o ser humano aos desvios da norma de conduta.
Nível das personagens: A narrativa da época do Realismo constrói personagens de uma marcante coerência psicológica, verdadeiros "tipos", que uns teóricos chamam personagens "planos" ou "de costumes", não existindo nenhuma complexidade psíquica. Os personagens são qualificados, desde o começo, com traços identificadores e imutáveis. No conto em estudo, verificamos a presença de três personagens principais, que participam diretamente do desenvolvimento do enredo:
- 1) A personagem-título, a moça Luísa, como vimos, exerce o papel temático de cleptomaníaca. Ao nível do parecer, ela é descrita como uma jovem ingênua, pura, inocente, recatada, com características físicas que induzem o protagonista masculino e o leitor a ter dela a imagem de um ser angelical: cabelo loiro (a cor loira é a imagem simbólica da luz solar), pele fina, mão pequena etc. Mas, ao nível do ser, os sinais de seu vício predominante são evidenciados pelo contraste entre a apatia com relação ao sentimento amoroso (nos encontros noturnos com o namorado chega a ter sono) e o fascínio que sente pelos objetos de alto valor material: veja-se a atração pelo rolar da moeda de ouro em cima da mesa e o alvoroço com que examina e experimenta nos dedos os anéis na loja do ourives. É o determinismo psíquico que induz a personagem a procurar o que realmente satisfaz sua necessidade existencial.
- 2) O protagonista Macário é descrito como um jovem pertencente à "burguesia cautelosa", cuja família cultivava a velha tradição de "honra e de escrúpulo". Sentimentalmente tímido, mas prático nos negócios, inteligente, mas sem malícia, é o protótipo do jovem de princípios, honesto e de uma retidão moral inabalável. Seu tio o define muito bem como "estúpido, mas homem de bem". Estúpido, porque, deixando-se levar pela paixão amorosa, renuncia ao emprego que lhe dava segurança econômica; estúpido, porque se deixa embrulhar pelo "amigo do chapéu de palha"; estúpido, porque não compreende a doença de sua noiva, confundindo cleptomania com roubo e ameaçando de entregá-la à polícia, quando deveria procurar-lhe um médico. Homem de bem, porque vive de acordo com seu código de honra: por ter beijado Luísa, sente-se obrigado a casar com ela; por ter assinado a fiança, assume a dívida daquele que considerara seu amigo; por ter descoberto o furto da noiva, paga o preço do anel e abandona a moça, que era o motivo da sua realização existencial, condenando-se a uma perpétua e infeliz solidão.
- 3) O tio Francisco é qualificado como um velho autoritário e tirânico, solteirão e misógino. Ele exerce a função de ajudante do protagonista, com relação ao seu progresso profissional e econômico, mas de oponente, relativamente à sua aspiração ao casamento. É o único personagem que apresenta uma mudança psicológica: no fim do conto, revela a sua faceta profundamente humana, oculta pela aparência de severidade e intransigência. Sua oposição ao casamento do sobrinho, mais do que um capricho de seu autoritarismo, pode ser entendida como o desejo de preservá-lo da desgraça da união com uma mulher. A experiência do velho, conhecedor da vida, lhe faz pressentir que o sobrinho seria infeliz no seu relacionamento amoroso. A lágrima que lhe corre pela face enrugada, na noite em que faz as pazes com Macário, é a prova máxima do imenso afeto que sente pelo sobrinho, jovem "estúpido, mas homem de bem".
Nível descritivo: a representação minuciosa do ambiente, que constitui o cenário, o pano de fundo, onde os personagens agem e expõem seus sentimentos, é uma característica peculiar da escola realista e Eça, neste aspecto, é um mestre. Segundo as teorias positivistas e deterministas, o espaço (o meio) e o tempo (o momento) são fatores importantíssimos para a formação do caráter e elementos indispensáveis para a compreensão da conduta. No conto em análise, antes de todas as seqüências narrativas importantes, podemos observar o cuidado com que o autor descreve os ambientes físicos, que criam a atmosfera propícia ao acontecimento de um fato ou à revelação de um sentimento. Fazemos referência apenas a duas ocorrências, uma pertencente ao plano da enunciação (discurso), outra ao do enunciado (história): a) No início do conto, Eça prepara toda a atmosfera propícia às revelações confidenciais: a viagem de carruagem através de uma região pitoresca, a chegada numa estalagem desconhecida, o outono, a noite, o encontro de dois homens solitários, a recordação nostálgica dos tempos passados e dos lugares longínquos, a lembrança do amigo comum Peixoto, que casara em Vila Real, cidade onde os dois homens viveram parte de sua vida. Tudo isso leva Macário, velho de sessenta anos, a chorar, predispondo-o a revelar a um conhecido ocasional o episódio mais importante de seu passado. Que o ambiente era propício à revelação sentimental é declarado pelo próprio narrador que nos reconta a história de Macário, citando um antigo provérbio: "o que não contas à tua mulher, o que não contas ao teu amigo, conta-o a um estranho, na estalagem". b) O surgimento da paixão amorosa de Macário pela bela loira também é precedido pela descrição do ambiente físico, que induz o jovem a mudar o rumo de sua vida: a noite quente de julho, em que a atmosfera estava "elétrica e amorosa"; a lembrança dos cabelos negros e dos alvos braços da senhora Vilaça, que morava em frente; o som da rabeca de um vizinho; a comparação de si próprio com "os gatos sensíveis que se esfregam"; a monotonia da vida de um jovem solteiro, que ainda não tinha "sentido Vênus".
Nível metalingüístico: o envolvimento de Eça de Queirós com a escola realista faz com que, neste conto, como em outras obras, o autor evidencie, explícita ou implicitamente, referências ao movimento literário. Ao longo da narrativa, podem ser relevadas umas séries de enunciados em que o narrador denuncia sua adesão aos cânones estéticos e ideológicos do Realismo e sua ojeriza aos ideais artísticos do Romantismo. Selecionamos algumas expressões que nos parecem significativas:
"Sou naturalmente positivo e realista...
o mais matemático ou o mais crítico...
na realidade e na arte"
Ironia sobre o Romantismo aparece também aqui e acolá: quando, referindo-se a seu estado de espírito sentimental e romântico, considera que "não se pode ser mais estúpido"; quando fala dos "velhos poetas pitorescos"; quando, na figura do tabelião (homem letrado, latinista, amigo das musas, de cabelos compridos, de nariz adunco e fatal, de canudo na mão), satiriza "as primeiras audácias românticas" , em que "a poesia apossava-se vorazmente deste mundo novo e virginal de minaretes, serralhos, sultanas cor de âmbar, piratas do arquipélago, e salas rendilhadas, cheias de perfume de aloés onde paxás decrépitos acariciam leões".