MITO (história ficcional) → Mitologia → Narrativa
(Fernando Pessoa)
Etimologicamente, a palavra grega mythos significa uma história fantástica, de origem anônima e coletiva, inventada para tentar explicar fenômenos naturais ou comportamentos existenciais, anteriormente ao avanço da filosofia e das ciências. Assim, por exemplo, o povo grego primitivo, não conhecendo a natureza do raio, descarga elétrica que cai sobre a terra durante uma tempestade, imaginou ser uma seta incandescente de Júpiter, fabricada por Vulcano, o deus do fogo, que o pai dos deuses costumava lançar contra os homens para punir alguma impiedade. O mito, pois, é uma forma simples de narrativa, que brota espontaneamente do seio de um povo em seu estágio mais primitivo, tendo algumas peculiaridades:
1) O mito é uma história fantástico-religiosa: um grande estudioso do assunto, Mircea Eliade (Mito e realidade), põe em relevo o fato de que, quase todos os mitos, são histórias sobre entes sobrenaturais que povoam a imaginação dos povos. A transcendência dos protagonistas confere à história mítica o caráter da "sacralidade". É muito profundo o vínculo que une o mito à religião, sendo um produto da outra, na maioria dos casos. A narrativa mítica apresenta uma configuração divina conforme concepções antropomórficas da natureza cósmica e da vida humana. Contrariamente ao que se costuma pensar, não é Deus que cria os homens, mas são estes que criam os deuses a sua imagem e semelhança. As divindades são projeções do inconsciente coletivo, que inventa configurações transcendentais que expressam plasticamente seus desejos e seus temores.
2) O mito é uma crença-verdade: a narrativa mítica é considerada verdadeira, uma vez que o mito, depois de criado, passa a ser objeto da crença popular, especialmente nas sociedades primitivas. E isso porque os mitos tentam explicar as origens das coisas e se referem a realidades da vida cotidiana. Ele é verdadeiro porque é vivido através dos atos litúrgicos. Os rituais, ao rememorarem as façanhas realizadas pelas divindades, exercem um grande fascínio sobre os fiéis, que se sentem tomados por um poder sagrado. Com a passagem da tradição oral para a escrita, a palavra mítica adquire o caráter de dogma de fé, não admitindo contestação.
3) O mito segue uma lógica peculiar: a criação do mito é anterior à formação da consciência reflexiva. Trata-se de uma "protofilosofia", pois a resposta à pergunta do homem sobre o universo e seus fenômenos é dada não pelo pensamento conceptual, mas pela fantasia criadora de imagens. Daí a relação profunda entre mito e poesia. Podemos considerar o mito como a primeira forma poética inventada pelo homem. Como afirma o crítico Massaud Moisés, "do ponto de vista antropológico e filosófico, o mito é encarado como a palavra que designa um estágio do desenvolvimento humano anterior à história, à lógica, à arte". Segundo o psicólogo educacional Piaget, existe um estreito parentesco entre o universo do homem primitivo e o mundo da criança. Como esta, o aborígine não distingue a realidade da fantasia, a verdade do falso, o puro do maculado, o possível do impossível, o animado do inanimado. Sua mente é alheia a tais oposições. Como a criança quer dar de mamar a uma boneca, assim o homem primitivo pode considerar uma pedra como ser vivo, objeto sagrado. Da mesma forma, a categoria do tempo não apresenta a noção de evolução: a criança chora se a mãe vai embora, pois imagina o afastamento como definitivo; para o homem primitivo o tempo é fixado para sempre; as personagens míticas não envelhecem, porque, concebidas como modelos de valores eternos, não sofrem os efeitos da passagem do tempo.
4) Degradação do mito e Surgimento da arte: com a evolução da sociedade, o homem começa a pensar e a reflexão consagra o fim da inocência mítica. Dá-se a separação entre o eu, Deus e o mundo, concepções não distintas na época mítica. Uma vez perdidas as verdades coletivas e absolutas do estágio mítico, cada homem é obrigado a descobrir seus próprios valores de vida. O estado de consciência abre o caminho para o sentimento de culpa e a noção do pecado: Adão, após comer a fruta da árvore do conhecimento do bem e do mal, vê-se pela primeira vez em toda a sua nudez, e a consciência de si o faz sentir-se culpado. O mito, não mais vivido, passa a ser representado artisticamente. Com a perda da sacralidade e a conseqüente humanização do mito, dá-se a passagem das formas simples para as formas cultas. Poetas e dramaturgos aproveitam as histórias míticas para realizar obras de arte literária, assim como pintores e escultores delas tomam inspiração para seus quadros e suas estátuas. O drama litúrgico, dissociando-se do culto, dá origem ao teatro (a Tragédia grega tem suas raízes no "ditirambo", hino religioso que exaltava os feitos de Dionísio); episódios míticos constituem o material de base para a construção da epopéia primitiva na Grécia antiga (Ilíada e Odisséia); também a Lírica encontra no mito sua fonte de inspiração: lembramos o exemplo da reelaboração do mito do Etna pelo poeta Píndaro. Narra o mito que Tifão, um monstruoso gigante, por ter-se rebelado contra Júpiter, foi aprisionado sob o vulcão Etna, na Sicília. A imaginação popular acreditava que a fumaça, o fogo e a lava expelidos pelo vulcão, nos períodos de atividade, provinham do sopro inflamado do gigante. O poeta grego Píndaro, ao exaltar as vitórias do tirano Gerão sobre etruscos e cartagineses, estabelece comparações com a luta entre Júpiter e Tifão, em versos de alta liricidade.
5) Permanência do mito na cultura ocidental: com a evolução da sociedade humana pelo pensamento reflexivo e pelo progresso das ciências, o papel do mito passa a ser exercido por poetas e artistas. A estes coube lançar mão da fantasia para criar mundos imaginários, onde as aspirações do inconsciente coletivo pudessem realizar-se. O mito pode ser definido como uma "macro-metáfora", pois é a criação de uma história ficcional que estabelece parentescos entre realidades diferentes para captar parcelas de sentido do mundo; em contrapartida, qualquer texto de arte literária encerra aspectos míticos pelo concurso da imaginação que desafia a lógica existencial. Os arquétipos míticos da luta e do triunfo do princípio do bem sobre o princípio do mal se encontram na concepção do herói épico, na idealização do cavaleiro andante da novela medieval, na inspiração do romance de capa e espada e na literatura de cordel, no duelo entre o detetive e o criminoso no conto policial, na configuração do herói da ficção científica, na elaboração de fábulas e personagens da telenovela.
6) O mito nas outras áreas de conhecimento geralmente, quando falamos de mito, nos referimos à mitolgia greco-romana, sem dúvida a mais rica e a que mais influência teve sobre a cultura ocidental, por ter-se tornada "clássica", no sentido de modelar, universal. Mas é preciso relevar que a formação de mitos é uma característica própria do ser humano, encontrável em qualquer sociedade. Todo agrupamento indígena, assim como povoações de qualquer nível civilizacional, ao longo do tempo e do espaço, têm seus mitos, estritamente relacionados com seus ritos e suas religiões. Vejamos:
Na Teologia (→ Religião), o mito propriamente dito está ligado a várias concepções. Podemos distinguir os mitos que tratam da origem dos deuses, de sua hierarquia e das lutas entre eles pelo poder (Teogonia); os mitos que tentam explicar a criação do mundo e de seus elementos constitutivos: céu, terra, mar (Cosmogonia); os mitos que configuram os principais comportamentos humanos, as virtudes e os vícios, elevados à enésima potência pela imaginação popular (Politeísmo antropomórfico ou zoomórfico); os que se preocupam com o destino do homem após a morte (Escatologia).
Na Antropologia (→ Humanismo), há mitos que não têm esses aspectos de religiosidade, sendo apenas lendas, narrações folclóricas, cantos poéticos. A diferença entre o mito e a lenda pode ser encontrada na existência ou não da crença, da fé. Um mito antigo, pela perda da sua credibilidade, causada pelo avanço da ciência, que forneceu uma explicação racional a um certo fenômeno natural, se torna posteriormente uma lenda. De outro lado, o que pode ser um mito para uma sociedade que acredita num certo dogma religioso, é apenas uma lenda para outro grupo social de credo diferente. Para os antropólogos, o mito "conta" simbolicamente a maneira de ser de cada povo, precedendo e provocando o "rito", a representação plástica do objeto da crença. Segundo Claude Lévi-Stauss, pai da antropologia estrutural e autor da famosa obra sobre os mitos indígenas, Le cru et le cuit, existe uma relação combinatória entre a natureza dos mitos e os fenômenos fundamentais da vida de um povo: nascimento, morte, amor, casamento, parentesco, trabalho, doença, guerra, maneira de cobrir e alimentar o corpo, ritos religiosos ou mágicos, danças e outras formas de expressão artística.
Na Filosofia: para os pensadores que se preocupam em responder racionalmente aos grandes interrogativos da nossa existência (quem somos? de onde viemos? para onde vamos? por que vivemos?), o mito é visto como uma forma metafórica de conhecimento da realidade, uma alegoria que procura explicar de uma forma concreta, plástica, o que é transcendental, pois não está ao alcance da nossa inteligência. Assim o filósofo Platão, pelo "mito da caverna", explica as várias fases do conhecimento através de uma alegoria: o homem, que sai de uma caverna obscura e passa por diversos graus de sombra, penumbra e luz até poder olhar diretamente o Sol, representa a passagem do conhecimento do mundo físico para o mundo das idéias: da doxa, conhecimento sensível, empírico, da opinião comum, através da diánoia, conhecimento discursivo, evolutivo, se chega à noésis, evidência puramente intelectual.
Na Psicanálise (→ Psiquê), o mito se converteu em "complexo". A moderna ciência do conhecimento das profundezas da alma humana serviu-se, muitas vezes, das histórias inventadas pelo imaginário popular para tentar explicar vários desvios de comportamento. É notória a influência da leitura da peça de Sófocles, Édipo Rei, na formulação do chamado "complexo de Édipo" pelo pai da psicanálise, Sigmund Freud: na zona mais recôndita da psique, "todo menino gostaria de dormir com a mãe, a não ser que seja menina, caso em que gostaria de dormir com o pai", afirma a personagem mãe e esposa do herói. E, assim, vários mitos clássicos foram explorados por estudiosos da alma humana para explicar cientificamente o que se esconde por baixo das histórias ficcionais, aparentemente simplórias. O mesmo diga-se das histórias que se encontram na Bíblia e nos Livros Sagrados das várias religiões. Alguns estudiosos da mitologia comparada sustentam a tese de que todos os mitos têm uma origem comum (a prioridade estando, talvez, nas histórias contidas no Velho Testamento da religião judaica), adaptados a cada cultura, em lugar e época diferente. Desta forma, Prometeu seria um disfarce pagão de Moisés, Pandora de Eva e a Virgem Maria, do Novo Testamento (Cristo), seria uma adaptação cristã do mito da deusa grega Parténope. Na verdade, cada mito representa uma parcela de sentido da vida, uma atividade ou postura existencial. Encontram-se, neste dicionário, verbetes específicos sobre os mitos mais importantes da cultura greco-romana e bíblica: Édipo, Júpiter, Fedra, Apolo, Dionísio, Psiquê, Prometeu, Adão, entre outros. Aqui e agora, basta deixar claro que o mito é conatural à existência humana, estando presente na vida de cada um de nós. Ninguém vive sem seus mitos que, sob a forma de desejos ou de sonhos, nos guiam na longa viagem do nascimento até à morte. Heróis de esportes, de cinema, de teatro, de artes, de política, de setas religiosas se transformam em mitos cultuados pelo povo. Fernando Pessoa, num poema sobre Ulisses, afirma o mito é o nada que é tudo: "o nada", porque não existiu no plano histórico, mas "tudo", porque elemento cultural que deu forma a uma peculiar espiritulidade, dando até o nome à capital de Portugal ("Ulissipona", a cidade de Ulisses, por evolução fonética, deu "Lisboa").
Já na Narratologia, o vocábulo "mito" é tomado como elemento estrutural do texto literário, distinguindo-se o mito religioso, que implica numa crença cultivada por um grupo social e que está na base das várias mitologias, do mito artístico, que é uma história fantasiada por um poeta. Assim, o mito de Apolo, o deus da luz, imaginado pela totalidade do povo grego, é diferente de mito de Capitu, criação individual de Machado de Assis. Os dois tipos de mito têm em comum o fato de serem histórias "ficcionais", quer dizer, inventadas, frutos da fantasia, sem nenhuma comprovação de sua existência no mundo da realidade. Aristóteles, o primeiro teórico da Literatura, ao analisar os elementos constitutivos da Tragédia grega, chama de "mito" ao conjunto das ações que se encontram numa peça teatral, estabelecendo, então, um elo profundo entre a história religiosa e a história poética, ambas fruto da imaginação. O mito grego corresponde à Fábula dos romanos. A moderna narratologia, a vertente da Teoria da Literatura que estudo a prosa literária (→ Narrativa), usa o termo mito ou fábula como elemento estrutural do Texto. Assim, falamos de "nível fabular" ao estudarmos a construção da história ficcional. Os formalistas russos distinguem a fábula (ou mito) e a trama (ou intriga): a "fábula" seria o conteúdo factual em sua ordem cronológica; ao passo que a "trama" são as ações em sua ordem estética. E.M. Foster apresenta uma distinção levemente diferente: chama de story a seqüência de eventos ordenados temporalmente e de plot à relação causal entre os fatos narrados. Distingue o "depois" do "por causa de". Exemplificando a distinção formalista: a fábula (mito ou assunto) d’Os Lusíadas seria toda a história do povo português, desde a invenção popular da chegada do herói mítico Luso, filho do deus Baco (→ Dionísio), perpassando sucessivamente os vários reinados, até chegar à época de Dom Sebastião, dando particular ênfase à narração da grandiosa viagem de Vasco da Gama em busca do caminho marítimo para a Índia; já a trama (intriga ou entrecho) é o recorte artístico que Camões opera no material histórico, mitológico e geográfico: o início da trama apresenta os portugueses já chegados na ponta da África, onde, solicitado pelo rei de Melinde, o narrador-herói faz o retrospecto da história de Portugal, pelo artifício do flash-back. De um modo geral, a narrativa épica começa in medias res, pelo meio, enquanto a história policial ou de suspense inicia pelo fim e o conto popular pelo começo. Nesta última modalidade, a trama não se distingue da fábula, pois os fatos são contados na sua ordem cronológica, sem que haja anacronias, inversões temporais. Todo mito, fábula ou história ficcional é um conjunto de ações (→ Função) principais (núcleos) e secundárias (catálises), que formam várias seqüências narrativas elementares ou complexas, ligadas entre si, conforme a nomenclatura de outro estudioso do assunto, Claude Bremond, por "encadeamento" (uma seqüência depois de outra), por "enclave" (uma seqüência encaixada dentro de outra, antes que termina a antecedente) ou por "emparelhamento" (uma seqüência ao lado da outra, ao mesmo tempo, em paralelo). Cada seqüência narrativa é constituída de três momentos: virtualidade (a possibilidade de realizar uma ação), passagem ao ato (o processo da realização) e o resultado, que pode ser positivo (melhoramento da personagem) ou negativo (degradação). Outro aspecto a ser analisado no estudo de uma história ficcional é a diferença entre "situação" e "ação". O formalista russo Tomachevski define a fábula como "o conjunto dos acontecimentos ligados entre si que nos são comunicados no decorrer da obra". Ora, todo o mito tem um começo (situação inicial), um meio (os fatos que ocorrem) e um término (situação final). A situação inicial, como a final, é um "enunciado de estado", no sentido de que não apresenta ações, mas apenas descrições de ambiente, características de personagens, problemas a ser resolvidos. Entre o primeiro e o terceiro momento é que acontecem as ações que realizam a "transformação" entre a situação inicial e final, determinando a passagem da felicidade para a infelicidade (no caso de uma obra de teor trágico) ou vice-versa (quando o assunto é cômico). Em obras extensas (romances, novelas, poemas épicos, dramas em vários atos) podem ocorrer múltiplas situações intermediárias (inseridas entre a inicial e a final), cada qual começando e terminando uma seqüência narrativa. Importante é perceber que cada transformação, composta por um conjunto de ações, visa mudar uma situação por uma outra, oposta ou apenas diferente. Geralmente é a situação final que sugere o conteúdo principal da obra. Relevante, enfim, é o estudo das influências dos mitos nas artes plásticas, quer das imagens fixas, quer das figuras em movimento: pintura, escultura, dança, cinema, teatro, televisão acusam a presença dos vários mitos que permeiam a cultura ocidental.