Anexo:Imprimir/Eu (Augusto dos Anjos, 1912)

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Augusto dos Anjos
 
 
Rio de Janeiro — 1912

Á MEMORIA DE MEU PAE

 

Á minha Mãe — Cordula C. R. dos Anjos

Á minha Mulher — Esther Fialho R. dos Anjos

Á minha filhinha — Gloria

Aos meus irmãos

Monologo de uma Sombra


«Sou uma Sombra! Venho de outras éras,
Do cosmopolitismo das monéras.
Polypo de reconditas reintrancias,
Larva do cháos tel ùrico, procedo
Da escuridão do cósmico segredo,
Da substancia de todas as substancias!

A symbiose das coisas me equilibra.
Em minha ignóta mónada, ampla, vibra
A alma dos movimentos rotatórios.
E é de mim que decorrem, simultaneas,
A saúde das forças subterraneas
E a morbidez dos sêres illusórios!

Pairando acima dos mundanos tectos,
Não conheço o accidente da Senectus
— Esta universitaria sanguesuga
Que produz, sem dispendio algum de virus,
O amarellecimento do papyrus
E a miseria anatómica da ruga!

Na existencia social, possuo uma arma
— O metaphysicismo de Abhidharma —
E trago, sem brahmánicas tesouras,
Como um dorso de azémola passiva,
A solidariedade subjectiva
De todas as especies soffredoras.

Com um pouco de saliva quotidiana
Mostro meu nojo á Natureza Humana.
A podridão me serve de Evangelho...
Amo o esterco, os residuos ruins dos kiosques
E o animal inferior que urra nos bosques
É com certeza meu irmão mais velho!

Tal qual quem para o proprio tumulo olha,
Amarguradamente se me antolha,
Á luz do americano plenilunio,
Na alma crepuscular de minha raça
Como uma vocação para a Desgraça
E um tropismo ancestral para o infortunio.

Ahi vem sujo, a coçar chagas plebéas,
Trazendo no deserto das idéas
O desespero endémico do inferno,
Com a cara hirta, tatuada de fuligens,
Esse mineiro doido das origens,
Que se chama o Philosopho Moderno!

Quiz comprehender, quebrando estereis normas,
A vida phenoménica das Fórmas,
Que, iguaes a fogos passageiros, luzem...
E apenas encontrou na idéa gasta
O horror dessa mechanica nefasta,
A que todas as coisas se reduzem!

E hão de achál-o, amanhã, bestas agrestes,
Sobre a esteira sarcóphaga das pestes
A mostrar, já nos ultimos momentos,
Como quem se submette a uma xarqueada,
Ao clarão tropical da luz damnada,
O espolio dos seus dedos peçonhentos.

Tal a finalidade dos estames!
Mas elle viverá, rôtos os liames
Dessa estranguladora lei que aperta
Todos os aggregados pereciveis,
Nas etherisações indefiniveis
Da energia intra-atómica liberta!

Será calor, causa úbiqua de gozo,
Raio X, magnetismo mysterioso,
Chimiotaxia, ondulação aérea,
Fonte de repulsões e de prazeres,
Sonoridade potencial dos sêres,
Estrangulada dentro da materia!

E o que elle foi: claviculas, abdomen,
O coração, a bocca, em synthese, o Homem,
— Engrenagem de visceras vulgares —
Os dedos carregados de peçonha,
Tudo coube na logica medonha
Dos apodrecimentos musculares!

A desarrumação dos intestinos
Assombra! Vêde-a! Os vermes assassinos
Dentro daquella massa que o humus come,
Numa glutoneria hedionda, brincam,
Como as cadellas que as dentuças trincam
No espasmo physiologico da fome.

E’ uma trágica festa emocionante!
A bacteriologia inventariante
Toma conta do corpo que apodrece.
E até os membros da familia engulham,
Vendo as larvas malignas que se embrulham
No cadaver malsão, fazendo um s.

E foi então para isto que esse doudo
Estragou o vibrátil plasma todo,
A’ guisa de um fakir, pelos cenóbios?!.
Num suicidio graduado, consumir-se,
E após tantas vigilias, reduzir-se
A’ herança miseravel dos micróbios!

Est’outro agora é o satyro peralta
Que o sensualismo sodomista exalta,
Nutrindo sua infamia a leite e a trigo.
Como que, em suas céllulas vilissimas,
Ha estratificações requintadissimas
De uma animalidade sem castigo.

Brancas bacchantes bebedas o beijam.
Suas artèrias hircicas latejam,
Sentindo o odor das carnações abstémias,
E á noite, vai gozar, ébrio de vicio,
No sombrio bazar do meretricio,
O cuspo aphrodisiaco das femeas.

No horror de sua anómala nevrose,
Toda a sensualidade da symbiose,
Uivando, á noite, em lúbricos arroubos,
Como no babylonico sansára,
Lembra a fome incoercivel que escancára
A mucosa carnivora dos lobos.

Soffrego, o monstro as victimas aguarda.
Negra paixão congénita, bastarda,
Do seu zooplasma ophidico resulta.
E explode, igual á luz que o ar accommette
Com a vehemencia mavórtica do ariete
E os arremessos de uma catapulta.

Mas muitas vezes, quando a noite avança,
Hirto, observa atravez a tenue trança
Dos filamentos fluidicos de um halo
A dextra descarnada de um duende,
Que, tacteando nas ténebras, se estende
Dentro da noite má, para agarral-o!

Cresce-lhe a intra-cephálica tortura,
E de su’alma na caverna escura,
Fazendo ultra-epilépticos esforços,
Acorda, com os candieiros apagados,
Numa choreographia de damnados,
A familia alarmada dos remorsos.

E’ o despertar de um povo subterraneo!
E’ a fauna cavernicola do craneo
— Macbeths da pathológica vigilia,
Mostrando, em rembrandtescas télas várias,
As incestuosidades sanguinarias
Que elle tem praticado na familia.

As allucinações tactis pullulam.
Sente que megatherios o estrangulam.
A aza negra das moscas o horrorisa;
E autopsiando a amarissima existencia
Encontra um cancro assiduo na consciencia
E tres manchas de sangue na camisa!

Míngua-se o combustivel da lanterna
E a consciencia do satyro se inférna,
Reconhecendo, bebedo de somno,
Na propria ancia dyonisica do gozo,
Essa necessidade de horroroso,
Que é talvez propriedade do carbono!

Ah! Dentro de toda a alma existe a prova
De que a dôr como um dartro se renova,
Quando o prazer barbaramente a ataca.
Assim tambem, observa a sciencia crúa,
Dentro da ellipse ignivoma da lua
A realidade de uma esphera opáca.

Somente a Arte, esculpindo a humana magua,
Abranda as rochas rigidas, torna agua
Todo o fogo tellurico profundo
E reduz, sem que, emtanto, a desintégre,
A’ condição de uma planicie alegre,
A aspereza orográphica do mundo!

Próvo desta maneira ao mundo odiento
Pelas grandes razões do sentimento,
Sem os methodos da abstrusa sciencia fria
E os trovões gritadores da dialéctica,
Que a mais alta expressão da dôr esthética
Consiste essencialmente na alegria.

Continúa o martyrio das creaturas:
— O homicidio nas viellas mais escuras,
— O ferido que a hostil gléba atra escarva,
— O ultimo solilóquio dos suicidas —
E eu sinto a dor de todas essas vidas
Em minha vida anónyma de larva!»

Disse isto a Sombra. E, ouvindo estes vocábulos,
Da luz da lua aos pállidos venábulos,
Na ancia de um nervosissimo enthusiasmo,
Julgava ouvir monótonas corujas,
Executando, entre caveiras sujas,
A orchestra arripiadora do sarcasmo!

Era a elégia pantheista do Universo,
Na podridão do sangue humano immérso,
Prostituido talvez, em suas bases.
Era a canção da Natureza exhausta,
Chorando e rindo na ironia infausta
Da incoherencia infernal d’aquellas phrases.

E o turbilhão de taes phonémas acres
Trovejando grandiloquos massácres,
Ha-de ferir-me as auditivas portas,
Até que minha ephémera cabeça
Reverta á quietação da tréva espessa
E á pallidez das photosphéras mortas!

Agonia de um Philosopho


Consulto o Phtah-Hotep. Leio o obsoleto
Rig-Veda. E, ante obras taes, me não consolo.
O Inconsciente me assombra e eu nelle rólo
Com a eólica fúria do harmatan inquieto!

Assisto agora á morte de um insecto!
Ah! todos os phenómenos do sólo
Parecem realisar de polo a polo
O ideal de Anaximándro de Mileto!

No hieratico areopágo heterogeneo
Das idéas, percorro como um genio
Desde a alma de Hɶckel á alma cenobial!

Rasgo dos mundos o velário espesso;
E em tudo, igual a Gɶthe, reconheço
O imperio da substancia universal!

O Morcêgo


Meia noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcêgo! E, agora, vêde:
Na bruta ardencia organica da sêde,
Morde-me a guéla igneo e escaldante môlho.

«Vou mandar levantar outra parêde.»
— Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o tecto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rêde!

Pégo de um pau. Esforços faço. Chego
A tocal-o. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcêgo!
Por mais que a gente faça, á noite, elle entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!

Psychologia de um Vencido


Eu, filho do carbono e do ammoniaco,
Monstro de escuridão e rutilancia,
Soffro, desde a epigénesis da infancia,
A influencia má dos signos do zodiaco.

Profundissimamente hypocondriaco,
Este ambiente me causa repugnancia.
Sobe-me á bocca uma ancia análoga á ancia
Que se escapa da bocca de um cardiaco.

Já o verme — este operario das ruinas —
Que o sangue pôdre das carnificinas
Come, e á vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roêl-os,
E ha de deixar-me apenas os cabellos,
Na frialdade inorganica da terra!

A Ideia


 
De onde ella vem?! De que materia bruta
Vem essa luz que sobre as nebulosas
Cáe de incógnitas cryptas mysteriosas
Como as estalactites duma gruta?!

Vem da psychogenética e alta luta
Do feixe de moléculas nervosas,
Que, em desintegrações maravilhosas,
Delibera, e depois, quer e executa!

Vem do encephalo absconso que a constringe,
Chega em seguida ás cordas do larynge,
Tisica, tenue, minima, rachitica.
 
Quebra a força centripeta que a amarra,
Mas, de repente, e quasi morta, esbarra
No mulambo da lingua paralytica!

O Lázaro da Patria


Filho pôdre de antigos Goytacazes,
Em qualquer parte onde a cabeça ponha,
Deixa circumferencias de peçonha,
Marcas oriundas de úlceras e anthrazes.

Todos os cynocéphalos vorazes
Cheiram seu corpo. A’ noite, quando sonha,
Sente no thorax a pressão medonha
Do bruto embate ferreo das tenazes.

Mostra aos montes e aos rigidos rochedos
A hedionda elephantiasis dos dedos.
Ha um cansaço no Cosmos.     Anoitece.

Riem as meretrizes no Casino,
E o Lázaro caminha em seu destino
Para um fim que elle mesmo desconhece!

Idealisação da
Humanidade Futura


Rugia nos meus centros cerebrais
A multidão dos seculos futuros
— Homens que a herança de impetos impuros
Tornára ethnicamente irracionaes! —

Não sei que livro, em lettras garrafaes,
Meus olhos liam! No humus dos monturos,
Realisavam-se os partos mais obscuros,
Dentre as genealogias animaes!

Como quem esmigálha protozoarios
Metti todos os dedos mercenarios
Na consciencia daquella multidão.

E, em vez de achar a luz que os Céus inflama,
Somente achei moléculas de lama
E a mosca alegre da putrefacção!

Soneto
 
Ao meu primeiro filho nascido morto com 7 mezes incompletos. 2 Fevereiro 1911.
 

Aggregado infeliz de sangue e cal,
Fructo rubro de carne agonisante,
Filho da grande força fecundante
De minha bronzea trama neuronial,

Que poder embryológico fatal
Destruiu, com a synergia de um gigante,
Em tua morphogénese de infante
A minha morphogénese ancestral?!

Porção de minha plásmica substancia,
Em que logar irás passar a infancia,
Tragicamente anonymo, a feder?!

Ah! Possas tu dormir, féto esquecido,
Pantheisticamente dissolvido
Na noumenalidade do não ser!

Versos a um Cão


 
Que força poude, adstricta a embryões informes,
Tua garganta estupida arrancar
Do segredo da céllula ovular
Para latir nas solidões enormes?!

Esta obnoxia inconsciencia, em que tu dormes,
Sufficientissima é, para provar
A incógnita alma, avoenga e elementar
Dos teus antepassados vermiformes.

Cão! — Alma de inferior rhapsôdo errante!
Resigna-a, ampara-a, arrima-a, affaga-a, acóde-a
A escala dos latidos ancestraes

E irá assim, pelos séculos, adiante,
Latindo a exquisitissima prosódia
Da angustia hereditaria dos seus paes!

O Deus-Verme


Factor universal do transformismo,
Filho da teleológica materia,
Na superabundancia ou na miseria,
Verme — é o seu nome obscuro de baptismo.

Jamais emprega o acérrimo exorcismo
Em sua diaria occupação funerea,
E vive em contubernio com a bactéria,
Livre das roupas do anthropomorphismo.

Almoça a podridão das drupas agras,
Janta hydrópicos, roe visceras magras
E dos defuntos novos incha a mão.

Ah! Para elle é que a carne pôdre fica,
E no inventario da materia rica
Cabe aos seus filhos a maior porção!

Debaixo do Tamarindo


 
No tempo de meu Pae, sob estes galhos,
Como uma véla funebre de cêra,
Chorei billiões de vezes com a canceira
De inexorabilissimos trabalhos!

Hoje, esta arvore, de amplos agasalhos,
Guarda, como uma caixa derradeira,
O passado da Flóra Brazileira
E a paleontologia dos Carvalhos!

Quando pararem todos os relogios
De minha vida, e a voz dos necrologios
Gritar nos noticiarios que eu morri,

Voltando á patria da homogeneidade,
Abraçada com a propria Eternidade
A minha sombra ha de ficar aqui!

As Scismas do Destino

I

Recife. Ponte Buarque de Macedo.
Eu, indo em direcção á casa do Agra,
Assombrado com a minha sombra magra,
Pensava no Destino, e tinha medo!

Na austéra abóbada alta o phósphoro alvo
Das estrellas luzia. O calçamento
Saxeo, de asphalto rijo, atro e vidrento,
Copiava a polidez de um cráneo calvo.

Lembro-me bem. A ponte era comprida,
E a minha sombra enorme enchia a ponte,
Como uma pelle de rhinoceronte
Estendida por toda a minha vida!

A noite fecundava o ovo dos vicios
Animaes. Do carvão da treva immensa
Cahia um ar damnado de doença
Sobre a cara geral dos edificios!

Tal urna hórda feroz de cães famintos,
Atravessando uma estação deserta,
Uivava dentro do eu, com a bocca aberta,
A matilha espantada dos instinctos!

Era como si, na alma da cidade,
Profundamente lubrica e revôlta,
Mostrando as carnes, uma besta solta
Soltasse o bérro da animalidade.

E aprofundando o raciocinio obscuro,
Eu vi, então, á luz de aureos reflexos,
O trabalho génésico dos sexos,
Fazendo á noite os homens do Futuro.

Livres de microscopios e escalpellos,
Dansavam, parodiando saraus cynicos,
Billiões de centrosomas apollinicos
Na camara promiscua do vitellus.

Mas, a irritar-me os glóbos oculares,
Apregoando e alardeando a côr nojenta,
Fetos magros, ainda na placenta,
Estendiam-me as mãos rudimentares!

Mostravam-me o apriorismo incognoscivel
Dessa fatalidade egualitaria,
Que fêz minha familia originaria
Do antro daquella fábrica terrivel!

A corrente atmospherica mais forte
Zunuia. E, na ignea crostra do Cruzeiro,
Julgava eu ver o funebre candieiro
Que ha de me allumiar na hora da morte.

Ninguem comprehendia o meu soluço,
Nem mesmo Deus! Da roupa pelas bréchas,
O vento bravo me atirava fléchas
E applicações hyemaes de gelo russo,

A vingança dos mundos astrónomicos
Enviava á terra extraordinaria faca,
Posta em rija adhesão de gomma lacca
Sobre os meus elementos anatómicos.

Ah! Com certeza, Deus me castigava!
Por toda a parte, como um réu confesso,
Havia um juiz que lia o meu processo
E uma forca especial que me esperava!

Mas o vento cessára por instantes
Ou, pelo menos, o ignis sapiens do Orco
Abafava-me o peito arqueado e porco
Num nucleo de substancias abrazantes.

E’ bem possivel que eu um dia cégue.
No ardor desta lethal tórrida zona,
A côr do sangue é a côr que me impressiona
E a que mais neste mundo me persegue!

Essa obsessão chromática me abate.
Não sei porque me vêm sempre á lembrança
O estomago esfaqueado de uma creança
E um pedaço de viscera escarláte.

Quizéra qualquer coisa provisória
Que a minha cerebral caverna entrasse,
E até ao fim, cortasse e recortasse
A faculdade aziaga da memoria.

Na ascensão barométrica da calma,
Eu bem sabia, anciado e contrafeito,
Que uma população doente do peito
Tossia sem remedio na minh’alma!

E o cuspo que essa hereditária tosse
Golphava, á guisa de acido residuo,
Não era o cuspo só de um individuo
Minado pela tisica precóce.

Não! Não era o meu cuspo, com certeza
Era a expectoração putrida e crassa
Dos bronchios pulmonares de uma raça
Que violou as leis da Natureza!

Era antes uma tosse úbiqua, estranha,
Igual ao ruido de um calháo redondo
Arremessado no apogêo do estrondo,
Pelos fundibularios da montanha!

E a saliva daquelles infelizes
Inchava, em minha bocca, de tal arte,
Que eu, para não cuspir por toda a parte,
Ia engolindo, aos poucos, a hemoptisis!

Na alta allucinação de minhas scismas,
O microcosmos liquido da gotta
Tinha a abundancia de uma arteria rôta,
Arrebentada pelos aneurismas.

Chegou-me o estado maximo da magua!
Duas, tres, quatro, cinco, seis e sete
Vezes que eu me furei com um canivete,
A hemoglobina vinha cheia de agua!

Cuspo, cujas caudaes meus beiços regam,
Sob a fórma de minimas camándulas,
Bemditas sejam todas essas glándulas,
Que, quotidianamente, te segrégam!

Escarrar de um abysmo n’outro abysmo,
Mandando ao Céu o fumo de um cigarro,
Ha mais philosophia neste escarro
Do que em toda a moral do christianismo!

Porque, si no orbe oval que os meus pés tocam
Eu não deixasse o meu cuspo carrasco,
Jamais exprimiria o acerrimo asco
Que os canálhas do mundo me provocam!

II

Foi no horror dessa noute tão funerea
Que eu descobri, maior talvez que Vinci,
Com a força visualistica do lynce,
A falta de unidade na materia!

Os esqueletos desarticulados,
Livres do acre fedôr das carnes mortas,
Rodopiavam, com as brancas tibias tortas,
N’uma dança de numeros quebrados!

Todas as divindades malfazejas,
Siva e Ahriman, os duendes, o Yn e os trasgos,
Imitando o barulho dos engasgos,
Davam pancadas no adro das igrejas.

Nessa hora de monólogos sublimes,
A companhia dos ladrões da noite,
Buscando uma taverna que os acoite,
Vae pela escuridão pensando crimes.

Perpetravam-se os actos mais funestos,
E o luar, da côr de um doente de ictericia,
Illuminava, a rir, sem pudicicia,
A camisa vermelha dos incestos.

Ninguem, de certo, estava ali, a espiar-me,
Mas um lampeão, lembrava ante o meu rosto,
Um suggestionador olho, ali posto
De proposito, para hypnotisar-me!

Em tudo, então, meus olhos distinguiram
Da miniatura singular de uma aspa,
A’ anatomia minima da caspa,
Embryões de mundos que não progrediram!

Pois quem não vê ahi, em qualquer rua,
Com a fina nitidez de um claro jorro,
Na paciencia budhista do cachorro
A alma embryonaria que não continúa?!

Ser cachorro! Ganir incomprehendidos
Verbos! Querer dizer-nos que não finge,
E a palavra embrulhar-se no larynge,
Escapando-se apenas em latidos!

Despir a putrescivel fórma tosca,
Na atra dissolução que tudo invérte,
Deixar cahir sobre a barriga inerte
O appetite necróphago da mosca!

A alma dos animaes! Pégo-a, distingo-a,
Acho-a nesse interior duello secreto
Entre a ancia de um vocábulo completo
E uma expressão que não chegou á lingua!

Surprehendo-a em quatrilliões de corpos vivos,
Nos anti-peristálticos abalos
Que produzem nos bois e nos cavallos
A contracção dos gritos instinctivos!

Tempo viria, em que, daquelle horrendo
Cháos de corpos orgánicos disformes.
Rebentariam cerebros enormes,
Como bolhas febris de agua, fervendo!

Nessa épocha que os sabios não ensinam,
A pedra dura, os montes argillosos
Creariam feixes de cordões nervosos
E o neuroplasma dos que raciocinam!

Almas pygméas! Deus subjuga-as, cinge-as
Á imperfeição! Mas vem o Tempo, e vence-o,
E o meu sonho crescia no silencio,
Maior que as epopéas carolingias!

Era a revolta trágica dos typos
Ontogénicos mais elementares,
Desde os foraminiferos dos mares
Á grey lilliputiana dos polypos.

Todos os personagens da tragédia,
Cansados de viver na paz de Budha,
Pareciam pedir com a bocca muda
A ganglionaria céllula intermédia.

A planta que a canicula ignea tórra,
E as coisas inórganicas mais nullas
Apregoavam encéphalos, medullas
Na alegria guerreira da desfórra!

Os protistas e o obscuro acervo rijo
Dos espongiarios e dos infusorios
Recebiam com os seus orgãos sensorios
O triumpho emocional do regozijo!

E apezar de já ser assim tão tarde,
Aquella humanidade parasita,
Como um bicho inferior, berrava, afflicta,
No meu temperamento de covarde!

Mas, reflectindo, a sós, sobre o meu caso,
Vi que, igual a um amneota subterraneo,
Jazia atravessada no meu cráneo
A intercessão fatidica do atrazo!

A hypothese genial do microzyma
Me estrangulava o pensamento guapo,
E eu me encolhia todo como um sapo
Que tem um pezo incómmodo por cima!

Nas agonias do delirium-tremens,
Os bebedos alváres que me olhavam,
Com os copos cheios esterilisavam
A substancia prolifica dos semens!

Enterravam as mãos dentro das guélas,
E sacudidos de um tremor indómito
Expelliam, na dôr fórte do vomito,
Um conjuncto de gosmas amarellas.

Iam depois dormir nos lupanares
Onde, na gloria da concupiscencia,
Depositavam quasi sem consciencia
As derradeiras forças musculares.

Fabricavam dest’arte os blastodermas,
Em cujo repugnante receptáculo
Minha perscrutação via o espectaculo
De uma progénie idiota de palermas.

Prostituição ou outro qualquer nome,
Por tua causa, embóra o homem te acceite,
E’ que as mulheres ruins ficam sem leite
E os meninos sem pae morrem de fome!

Porque ha de haver aqui tantos enterros?!
Lá no «Engenho» também, a morte é ingrata..
Ha o malvado carbúnculo que mata
A sociedade infante dos bezerros!

Quantas moças que o tumulo reclama!
E após a podridão de tantas moças,
Os pòrcos espojando-se nas poças
Da virgindade reduzida á lama!

Morte, ponto final da ultima scéna,
Fórma diffusa da matéria imbelle,
Minha philosophia te repelle,
Meu raciocinio enorme te condemna!

Deante de ti, nas cathedraes mais ricas,
Rolam sem efficacia os amulêtos
Oh! Senhora dos nossos esqueletos
E das caveiras diarias que fabrícas!

E eu desejava ter, numa ancia rara,
Ao pensar nas pessôas que perdera,
A inconsciencia das máscaras de cêra
Que a gente prega, com um cordão, na cara!

Era um sonho ladrão de submergir-me
Na vida universal, e, em tudo immérso,
Fazer da párte abstracta do Universo,
Minha morada equilibrada e firme!

Nisto, peor que o remorso do assassino,
Reboou, tal qual, num fundo de caverna,
Numa impressionadora voz interna,
O echo particular do meu Destino:

III

«Homem! por mais que a Idéa desintegres,
Nessas perquisições que não têm pausa,
Jamais, magro homem, saberás a causa
De todos os phenómenos alegres!

Em vão, com a bronca enxada árdega, sondas
A esteril terra, e a hyalina lampada ôca,
Trazes, por perscrutar (oh! sciencia louca!)
O conteúdo das lagrimas hediondas.

Negro e sem fim é esse em que te mergulhas
Lugar do Cosmos, onde a dôr intrene
É feita como é feito o kerosene
Nos reconcavos húmidos das hulhas!

Porque, para que a Dor perscrutes, fôra
Mister que, não como és, em synthese, antes
Fosses, a reflectir teus semelhantes,
A propria humanidade soffredôra!

A universal complexidade é que Ella
Comprehende. E si, por vezes, se divide,
Mesmo ainda assim, seu todo não reside
No quociente isolado da parcella!

Ah! Como o ar immortal a Dôr não finda!
Das papillas nervosas que ha nos tactos
Veio e vai desde os tempos mais transactos
Para outros tempos que hão de vir ainda!

Como o machucamento das insomnias
Te estraga, quando toda a estuada Idéa
Dás ao soffrego estudo da nymphéa
E de outras plantas dicotyledoneas!

A diaphana agua alvissima e a hórrida áscua
Que da ignea flamma bruta, estriada, espirra;
A formação molecular da myrrha,
O cordeiro symbolico da Paschoa;

As rebelladas cóleras que rugem
No homem civilisado, e a elle se prendem
Como ás pulseiras que os mascates vendem
A adherencia teimosa da ferrugem;

O orbe feraz que bastos tojos acres
Produz; a rebellião que, na batalha,
Deixa os homens deitados, sem mortalha,
Na sangueira concreta dos massacres;

Os sanguinolentissimos chicotes
Da hemorrhagia; as nodoas mais espessas,
O achatamento ignóbil das cabeças,
Que ainda degráda os povos hottentótes;

O Amor e a Fome, a féra ultriz que o fojo
Entra, á espera que a mansa victima o entre,
— Tudo que géra no materno ventre
A causa physiologica do nojo;

As pálpebras inchadas na vigilia,
As aves moças que perderam a aza,
O fogão apagado de uma casa,
Onde morreu o chefe da familia;

O trem particular que um corpo arrasta
Sinistramente pela via-ferrea,
A crystallisação da massa térrea,
O tecido da roupa que se gasta

A agua arbitrária que hiúlcos caules grossos
Carrega e come; as negras fórmas feias
Dos arachnideos e das centopeias,
O fogo-fatuo que illumina os ossos;

As projecções flammivomas que offuscam,
Como uma pincelada rembrandtesca,
A sensação que uma coalhada fresca
Transmitte ás mãos nervosas dos que a buscam;

O antagonismo de Typhon e Osiris,
O homem grande opprimindo o homem pequeno,
A lua falsa de um paraseleno,
A mentira meteórica do arco-iris;

Os terremotos que, abalando os solos,
Lembram paióes de polvora explodindo,
A rotação dos fluidos produzindo
A depressão geológica dos polos;

O instincto de procrear, a ancia legitima
Da alma, affrontando ovante aziagos riscos,
O juramento dos guerreiros priscos
Mettendo as mãos nas glandulas da victima;

As differenciações que o psychoplásma
Humano soffre na mania mystica,
A pezada oppressão caracteristica
Dos 10 minutos de um accesso de asthma;

E, (comquanto contra isto odios regougues)
A utilidade funebre da corda
Que arrasta a rêz, depois que a rêz engorda,
Á morte desgraçada dos açougues.

Tudo isto que o terraqueo abysmo encerra
Fórma a complicação desse barulho
Travado entre o dragão do humano orgulho
E as forças inorganicas da terra!

Por descobrir tudo isto, embalde cansas!
Ignoto é o germen dessa força activa
Que engendra, em cada céllula passiva,
A heterogeneidade das mudanças!

Poeta, féto malsão, creado com os succos
De um leite máu, carnivoro asqueroso,
Gerado no atavismo monstruoso
Da alma desordenada dos malucos;

Ultima das creatúras inferiores
Governada por atomos mesquinhos,
Teu pé mata a uberdade dos caminhos
E esterilisa os ventres geradores!

O áspero mal que a tudo, em torno, trazes,
Análogo é ao que, negro e a seu turno,
Traz o ávido phyllóstomo nocturno
Ao sangue dos mammiferos vorazes!

Ah! Por mais que, com o espirito, trabalhes
A perfeição dos seres existentes,
Has de mostrar a carie dos teus dentes
Na anatomia horrenda dos detalhes!

O Espaço — esta abstracção spencereana
Que abrange as relações de co-existencia
É só! Não tem nenhuma dependencia
Com as vertebras mortaes da especie humana!

As radiantes ellipses que as estrellas
Traçam, e ao espectador falsas se antolham
São verdades de luz que os homens olham
Sem poder, no entretanto, comprehendel-as.

Em vão, com a mão corrupta, outro ether pedes
Que essa mão, de esqueleticas phalanges,
Dentro dessa agua que com a vista abranges,
Tambem prova o principio de Archimedes!

A fadiga feroz que te esbordôa
Ha de deixar-te essa medonha márca,
Que, nos corpos inchados de anasárca,
Deixam os dedos de qualquer pessoa!

Nem terás no trabalho que tiveste
A misericordiosa toalha amiga,
Que affaga os homens doentes de bexiga
E enxuga, á noite, as pústulas da peste!

Quando chegar depois a hora tranquilla,
Tu serás arrastado, na carreira,
Como um cepo inconsciente de madeira
Na evolução orgánica da argilla!

Um dia comparado com um millenio
Seja, pois, o teu ultimo Evangelho.
É a evolução do novo para o velho
E do homogeneo para o heterogeneo!

Adeus! Fica-te ahi, com o abdomen largo
A apodrecer!   És poeira, e embalde vibras!
O corvo que comer as tuas fibras
Ha de achai nellas um sabor amargo!»

IV

Calou-se a voz. A noite era funesta.
E os queixos, a exhibir trismos damnados,
Eu puxava os cabellos desgrenhados
Como o rei Lear, no meio da floresta!

Maldizia, com apóstrophes vehementes,
No stentor de mil linguas insurrectas,
O convencionalismo das Pandectas
E os textos máus dos códigos recentes!

Minha imaginação atormentada
Paría absurdos.   Como diabos juntos,
Perseguiam-me os olhos dos defuntos
Com a carne da esclerótica esverdeada

Seccára a chlorophylla das lavouras.
Igual aos sostenidos de uma endeixa,
Vinha-me ás cordas glótticas a queixa
Das collectividades soffredoras.

O mundo resignáva-se invertido
Nas forças principaes do seu trabalho.
A gravidade era um principio falho,
A anályse espectral tinha mentido!

O Estado, a Associação, os Municipios
Eram mortos. De todo aquelle mundo
Restava um mecanismo moribundo
E uma teleologia sem principios.

Eu queria correr, ir para o inférno,
Para que, da psychê no occulto jogo,
Morressem suffocadas pelo fogo
Todas as impressões do mundo externo!

Mas a Terra negava-me o equilibrio.
Na Natureza, uma mulher de luto
Cantava, espiando as árvores sem fructo,
A canção prostituta do ludibrio!

Budhismo Moderno


Tome, Dr., esta tesoura, e.    córte
Minha singularissima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia rôa
Todo o meu coração, depois da morte?!

Ah! Um urubú pousou na minha sorte!
Tambem, das diatomáceas da lagôa
A cryptógama cápsula se esbrôa
Ao contacto de bronca dextra forte!

Dissolva-se, portanto, minha vida
Igualmente a uma céllula cahida
Na aberração de um ovulo infecundo;

Mas o aggregado abstracto das saudades
Fique batendo nas perpetuas grades
Do ultimo verso que eu fizer no mundo!

Sonho de um Monista


Eu e o esqueleto esquálido de Eschylo
Viajávamos, com uma ancia sybarita,
Por toda a pro-dynamica infinita,
Na inconsciencia de um zoóphito tranquillo.

A verdade espantosa do Prothylo
Me aterrava, mas dentro da alma afflicta
Via Deus — essa mónada exquisita —
Coordenando e animando tudo aquillo!

E eu bemdizia, com o esqueleto ao lado,
Na gutturalidade do meu brado,
Alheio ao velho cálculo dos dias,

Como um pagão no altar de Proserpina,
A energia intra-cósmica divina
Que é o pai e é a mãe das outras energias!

Solitario


Como um fantasma que se refugia
Na solidão da natureza morta,
Por traz dos ermos tumulos, um dia,
Eu fui refugiar-me á tua porta!

Fazia frio e o frio que fazia
Não era esse que a carne nos conforta.
Cortava assim como em carniçaria
O aço das facas incisivas corta!

Mas tu não vieste ver minha Desgraça!
E eu sahi, como quem tudo repelle,
— Velho caixão a carregar destroços —

Levando apenas na tumbal carcassa
O pergaminho singular da pelle
E o chocalho fatidico dos ossos!

Mater Originalis


Forma vermicular desconhecida
Que estacionaste, misera e mofina,
Como quasi impalpavel gelatina,
Nos estados prodrómicos da vida;

O hierophante que leu a minha sina
Ignorante é de que és, talvez, nascida
Dessa homogeneidade indefinida
Que o insigne Herbert Spencer nos ensina.

Nenhuma ignota união ou nenhum nexo
A’ contingencia orgánica do sexo
A tua estacionaria alma prendeu.

Ah! de ti foi que, autónoma e sem normas,
Oh! Mãe original das outras fórmas,
A minha fórma lugubre nasceu!

O Lupanar


Ah! Porque monstruosissimo motivo
Prenderam para sempre, nesta rêde,
Dentro do angulo diédro da parede,
A alma do homem polygamo e lascivo?!

Este logar, moços do mundo, vêde:
E’ o grande bebedouro collectivo,
Onde os bandalhos, como um gado vivo,
Todas as noites, vêm matar a sêde!

E’ o aphrodistico leito do hetaïrismo,
A antecámara lúbrica do abysmo,
Em que é mister que o genero humano entre,

Quando a promiscuidade aterradora
Matar a ultima força geradora
E comer o ultimo ovulo do ventre!

Idealismo


Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!
O amor na Humanidade é uma mentira.
E’. E é por isto que na minha lyra
De amores futeis poucas vezes falo.

O amor! Quando virei por fim a amal-o?!
Quando, si o amor que a Humanidade inspira
E’ o amor do sybarita e da hetaïra,
De Messalina e de Sardanapálo?!

Pois é mister que, para o amor sagrado,
O mundo fique immaterialisado
— Alavanca desviada do seu fulcro —

E haja só amizade verdadeira
Duma caveira para outra caveira,
Do meu sepulchro para o teu sepulchro?!

Ultimo Crédo


Como ama o homem adúltero o adulterio
E o ebrio a garrafa toxica de rhum,
Amo o coveiro — este ladrão commum
Que arrasta a gente para o cemiterio!

E’ o transcendentalissimo mysterio!
E’ o nous, é o pneuma, é o ego sum qui sum,
E’ a morte, é esse damnado numero Um
Que matou Christo e que matou Tiberio!

Creio, como o philósopho mais crente,
Na generalidade decrescente
Com que a substancia cósmica evolúe.

Creio, perante a evolução immensa,
Que o homem universal de amanhã vença
O homem particular que eu hontem fui!

O Caixão Phantastico

 

Célere ia o caixão, e, nelle, inclusas,
Cinzas, caixas craneanas, cartilagens
Oriundas, como os sonhos dos selvagens,
De aberratorias abstracções abstrusas!

Nesse caixão íam talvez as Musas,
Talvez meu Pae! Hoffmannicas visagens
Enchiam meu encéphalo de imagens
As mais contradictorias e confusas!

A energia monistica do Mundo,
A’ meia noite, penetrava fundo
No meu phenomenal cerebro cheio.

Era tarde! Fazia muito frio.
Na rua apenas o caixão sombrio
Ia continuando o seu passeio!

Solilóquio de um Visionario

 

Para desvirginar o labyrintho
Do velho e metaphysico Mysterio,
Comi meus olhos crús no cemiterio,
Numa anthropophagia de faminto

A digestão desse manjar funereo
Tornado sangue transformou-me o instincto
De humanas impressões visuaes que eu sinto,
Nas divinas visões do incola ethereo!

Vestido de hydrogenio incandescente,
Vaguei um seculo, improficuamente,
Pelas monotonias sideraes.

Subi talvez ás maximas alturas,
Mas, si hoje volto assim, com a alma ás escuras,
É necessario que inda eu suba mais!

A um Carneiro Morto

 

Misericordiosissimo carneiro
Esquartejado, a maldição de Pio
Decimo caia em teu algoz sombrio
E em todo aquelle que fôr seu herdeiro!

Maldito seja o mercador vadio
Que te vender as carnes por dinheiro,
Pois, tua lã aquece o mundo inteiro
E guarda as carnes dos que estão com frio!

Quando a faca rangeu no teu pescoço,
Ao monstro que espremeu teu sangue grosso
Teus olhos — fontes de perdão — perdoaram!

Oh! tu que no Perdão eu symboliso,
Si fosses Deus, no Dia de Juizo,
Talvez perdoasses os que te mataram!

Vozes da Morte

 

Agora, sim! Vamos morrer, reunidos,
Tamarindo de minha desventura,
Tu, com o envelhecimento da nervura,
Eu, com o envelhecimento dos tecidos!

Ah! Esta noite é a noite dos Vencidos!
E a podridão, meu velho! E essa futura
Ultra-fatalidade de ossatura,
A que nos acharemos reduzidos!

Não morrerão, porém, tuas sementes!
E assim, para o Futuro, em differentes
Florestas, valles, selvas, glebas, trilhos,

Na multiplicidade dos teus ramos,
Pelo muito que em vida nos amamos,
Depois da morte, inda teremos filhos!

Insania de um Simples

 

Em scismas pathológicas insanas,
É-me grato adstringir-me, na hierarchia
Das formas vivas, á categoria
Das organisações liliputianas;

Ser similhante aos zoóphytos e ás lianas,
Ter o destino de uma larva fria,
Deixar emfim na cloáca mais sombria
Este feixe de céllulas humanas!

E emquanto arremedando Eólo iracundo,
Na orgia heliogabálica do mundo,
Ganem todos os vicios de uma vez,

Apraz-me, adstricto ao triangulo mesquinho
De um delta humilde, apodrecer sosinho
No silencio de minha pequenez!

Os Doentes

 

I

Como uma cascavel que se enroscava,
A cidade dos lázaros dormia.
Somente, na metropole vasia,
Minha cabeça autónoma pensava!

Mordia-me a obsessão má de que havia,
Sob os meus pés, na terra onde eu pizava,
Um figado doente que sangrava
E uma garganta de orphã que gemia!

Tentava comprehender com as conceptivas
Funcções do encephalo as substancias vivas
Que nem Spencer, nem Hœckel comprehenderam...

E via em mim, coberto de desgraças,
O resultado de billiões de raças
Que ha muitos annos desappareceram!

II

Minha angustia feroz não tinha nome.
Ali, na urbe natal do Desconsôlo,
Eu tinha de comer o ultimo bolo
Que Deus fazia para a minha fome!

Convulso, o vento entoava um pseudo-psalmo.
Contrastando, entretanto, com o ar convulso
A noite funccionava como um pulso
Physiologicamente muito calmo.

Cahiam sobre os meus centros nervosos,
Como os pingos ardentes de cem vélas,
O uivo desenganado das cadellas
E o gemido dos homens bexigosos.

Pensava! E em que eu pensava, não perguntes!
Mas, em cima de um tumulo, um cachorro
Pedia para mim agua e soccorro
A’ commiseração dos transeuntes!

Bruto, de errante rio, alto e hórrido, o urro
Reboava. Além jazia aos pés da serra,
Creando as superstições de minha terra,
A queixada especifica de um burro!

Gordo adubo da agreste urtiga brava,
Benigna agua, magnanima e magnifica,
Em cuja álgida uncção, branda e beatifica
A Parahyba indigena se lava!

A manga, a ameixa, a amendoa, a abobora, o alamo
E a camara odorifera dos sumos
Absorvem diariamente o ubérrimo humus
Que Deus espalha á beira do teu thálamo!

Nos de teu curso desobstruidos trilhos,
Apenas eu comprehendo, em quaesquer horas,
O hydrogenio e o oxygenio que tu choras
Pelo fallecimento dos teus filhos!

Ah! Somente eu comprehendo, satisfeito,
A incógnita psychê das massas mortas
Que dormem, como as hervas, sobre as hortas,
Na esteira egualitaria do teu leito!

O vento continuava sem cansaço
E enchia com a fluidez do eólico hyssópe
Em seu fantasmagorico galope
A abundancia geometrica do espaço.

Meu ser estacionava, olhando os campos
Circumjacentes. No Alto, os astros miudos
Reduziam os Ceus sérios e rudos
A uma epiderme cheia de sarampos!

III

Dormia em baixo, com a promiscua vestia
No embotamento crasso dos sentidos,
A communhão dos homens reunidos
Pela camaradagem da molestia.

Feriam-me o nervo optico e a retina
Aponevroses e tendões de Achilles,
Restos repugnantissimos de bilis,
Vomitos impregnados de ptyalina.

Da degenerescencia ethnica do Arya
Se escapava, entre estrepitos e estouros,
Reboando pelos seculos vindouros,
O ruido de uma tosse hereditaria.

Oh! desespero das pessoas tisicas,
Adivinhando o frio que ha nas lousas,
Maior felicidade é a destas cousas
Submettidas apenas ás leis physicas!

Estas, por mais que os cardos grandes rocem
Seus corpos brutos, dores não recebem;
Estas dos bacalhaus o oleo não bebem,
Estas não cospem sangue, estas não tossem!

Descender dos macacos catarrhineos,
Cahir doente e passar a vida inteira
Com a bocca junto de uma escarradeira,
Pintando o chão de coágulos sanguineos

Sentir, adstrictos ao chimiotropismo
Erótico, os microbios assanhados
Passearem, como innumeros soldados,
Nas cancerosidades do organismo!

Falar somente uma linguagem rouca,
Um portuguez cansado e incomprehensivel,
Vomitar o pulmão na noite horrivel
Em que se deita sangue pela bocca!

Expulsar, aos bocados, a existencia
Numa bacia automata de barro,
Allucinado, vendo em cada escarro
O retrato da propria consciencia!

Querer dizer a angustia de que é pábulo,
E com a respiração já muito fraca
Sentir como que a ponta de uma faca,
Cortando as raizes do ultimo vocabulo!

Não haver therapeutica que arranque
Tanta oppressão como si, com effeito,
Lhe houvessem sacudido sobre o peito
A machina pneumatica de Bianchi!

E o ar fugindo e a Morte a arca da tumba
A erguer, como um chronómetro gigante,
Marcando a transição emocionante
Do lar materno para a catacumba!

Mas vos não lamenteis, magras mulheres,
Nos ardôres damnados da febre héctica,
Consagrando vossa ultima phonética
A uma recitação de miseréres.

Antes levardes ainda uma chimera
Para a garganta omnivora das lages
Do que morrerdes, hoje, urrando ultrajes
Contra a dissolução que vos espera!

Porque a morte, resfriando-vos o rosto,
Consoante a minha concepção vesánica,
É a alfandega, onde toda a vida orgánica
Ha de pagar um dia o ultimo imposto!

IV

Começára a chover. Pelas algentes
Ruas, a agua, em cachoeiras desobstruidas,
Encharcava os buracos das feridas,
Alagava a medulla dos Doentes!

Do fundo do meu trágico destino,
Onde a Resignação os braços cruza,
Sahia, com o vexame de uma fusa,
A magua gaguejada de um cretino.

Aquelle ruido obscuro de gagueira
Que a noite, em sonhos mórbidos, me acórda,
Vinha da vibração bruta da córda
Mais recondita da alma brasileira!

Aturdia-me a tétrica miragem
De que, naquelle instante, no Amazonas,
Fedia, entregue a visceras glutonas,
A carcassa esquecida de um selvagem.

A civilisação entrou na tába
Em que elle estava. O genio de Colombo
Manchou de opprobrios a alma do mazombo,
Cuspiu na cóva do morubichaba!

E o indio, por fim, adstricto á ethnica escória,
Recebeu, tendo o horror no rosto impresso,
Esse achincalhamento do progresso
Que o annullava na critica da Historia!

Como quem analysa uma apostema,
De repente, acordando na desgraça,
Viu toda a podridão de sua raça
Na tumba de Iracema!.

Ah! Tudo, como um lúgubre cyclone,
Exercia sobre elle acção funesta
Desde o desbravamento da floresta
Á ultrajante invenção do telephone.

E sentia-se peor que um vagabundo
Microcéphalo vil que a especie encerra,
Desterrado na sua propria terra,
Diminuido na chrónica do mundo!

A hereditariedade dessa pécha
Seguiria seus filhos. Dóra em diante
Seu povo tombaria agonisante
Na lucta da espingarda contra a flécha!

Veio-lhe então como á femea veem antojos,
Uma desesperada ancia improficua
De estrangular aquella gente iniqua
Que progredia sobre os seus despojos!

Mas, deante a xantochroide raça loura,
Jazem, caladas, todas as inubias,
E agora, sem difficeis nuanças dubias,
Com uma clarividencia aterradora,

Em vez da prisca tribu e indiana tropa
A gente deste seculo, espantada,
Vê sómente a caveira abandonada
De uma raça esmagada pela Europa!

V

Era a hora em que arrastados pelos ventos,
Os fantasmas hamleticos dispersos
Atiram na consciencia dos perversos
A sombra dos remorsos famulentos.

As mães sem coração rogavam pragas
Aos filhos bons. E eu, roido pelos medos,
Batia com o pentagono dos dedos
Sobre um fundo hypothético de chagas!

Diabolica dynámica damninha
Opprimia meu cerebro indefeso
Com a força onerosissima de um peso
Que eu não sabia mesmo de onde vinha.

Perfurava-me o peito a aspera púa
Do desanimo negro que me prostra,
E quasi a todos os momentos mostra
Minha caveira aos bebedos da rua.

Hereditariedades polytypicas
Punham na minha bocca putrescivel
Interjeições de abracadabra horrivel
E os verbos indignados das Philippicas.

Todos os vocativos dos blaphemos,
No horror daquella noite monstruosa,
Maldiziam, com voz stentorosa,
A peçonha inicial de onde nascemos.

Como o que havia na ancia de conforto
De cada ser, ex: o homem e o ophidio,
Uma necessidade de suicidio
E um desejo incoercível de ser morto!

Naquella angustia absurda e tragi-comica
Eu chorava, rolando sobre o lixo,
Com a contorsão neurotica de um bicho
Que ingeriu 30 grammas de nux-vomica.

E, como um homem doido que se enforca,
Tentava, na terraquea superficie,
Consubstanciar-me todo com a immundicie,
Confundir-me com aquella coisa pórca!

Vinha, ás vezes, porém, o anhelo instavel
De, com o auxilio especial do osso masseter
Mastigando homoeomerias neutras de ether
Nutrir-me de materia imponderavel.

Anhelava ficar um dia, em summa,
Menor que o amphyoxus e inferior á tenia,
Reduzido á plastidula homogenea,
Sem differenciação de especie alguma.

Era (nem sei em synthese o que diga)
Um velhissimo instincto atavico, era
A saudade inconsciente da monéra
Que havia sido minha mãe antiga!

Com o horror tradicional da raiva côrsa
Minha vontade era, perante a cóva,
Arrancar do meu proprio corpo a prova
Da persistencia trágica da força.

A pragmatica má de humanos usos
Não comprehende que a Morte que não dorme
É a absorpção do movimento enorme
Na dispersão dos atomos diffusos.

Não me incommoda esse ultimo abandono.
Si a carne individual hoje apodrece.
Amanhã, como Christo, reapparece
Na universalidade do carbono!

A vida vem do ether que se condensa,
Mas o que mais no Cosmos me enthusiasma
É a esphera microscópica do plasma
Fazer a luz do cerebro que pensa.

Eu voltarei, cançado da ardua liça,
Á substancia inórganica priméva,
De onde, por epigénesis, veio Eva
E a stirpe radiolar chamada Actissa!

Quando eu fôr misturar-me com as violetas,
Minha lyra, maior que a Biblia e a Phédra,
Reviverá, dando emoção á pedra,
Na acustica de todos os planetas!

VI

Á algida agulha, agora, alva, a saraiva
Cahindo, análoga era. Um cão agora
Punha a atra lingua hydrophoba de fóra
Em contracções myológicas de raiva.

Mas, para além, entre oscillantes chammas,
Acordavam os bairros da luxuria.
As prostitutas, doentes de hematuria,
Se extenuavam nas camas.

Uma, ignobil, derreada de cansaço,
Quasi que escangalhada pelo vicio,
Cheirava com prazer no sacrificio
A lepra má que lhe roia o braço!

E ensanguentava os dedos da mão nivea
Com o sentimento gasto e a emoção pobre,
Nessa alegria barbara que cobre
Os saracoteamentos da lascivia.

De certo, a perversão de que era prêza
O sensorium daquella prostituta
Vinha da adaptação quasi absoluta
Á ambiencia microbiana da baixeza!

Emtanto, virgem fostes, e, quando o ereis,
Não tinheis ainda essa erupção cutanea,
Nem tinheis, victima ultima da insania,
Duas mammarias glándulas estereis!

Ah! Certamente, não havia ainda
Rompido, com violencia, no horizonte,
O sol malvado que seccou a fonte
De vossa castidade agora finda!

Talvez tivesseis fome, e as mãos, em balde,
Estendestes ao mundo, até que, a tôa,
Fostes vender a virginal corôa
Ao primeiro bandido do arrabalde.

E estais velha! — De vós o mundo é farto,
E hoje, que a sociedade vos enxota,
Somente as bruxas negras da derrota
Frequentam diariamente vosso quarto!

Promettem-vos (quem sabe?!) entre os cyprestes
Longe da mancebia dos alcouces,
Nas quietudes nirvanicas mais
O noivado que em vida não tivestes!

VII

Quasi todos os lutos conjugados,
Como uma associação de monopólio,
Lançavam pinceladas pretas de oleo
Na architectura archaica dos sobrados.

Dentro da noite funda um braço humano
Parecia cavar ao longe um poço
Para enterrar minha illusão de moço,
Como a bocca de um poço artesiano!

Atabalhoadamente pelos beccos,
Eu pensava nas coisas que perecem,
Desde as musculaturas que apodrecem
A’ ruina vegetal dos lyrios seccos.

Scismava no proposito funéreo
Da mosca debochada que fareja
O defunto, no chão frio da egreja,
E vai depois leval-o ao cemiterio!

E esfregando as mãos magras, eu, inquieto,
Sentia, na craneana caixa tôsca,
A racionalidade dessa mosca,
A consciencia terrivel desse insecto!

Regougando, porém, argots e aljamias,
Como quem nada encontra que o perturbe,
A energumena grey dos ebrios da urbe
Festejava seu sabbado de infamias.

A estática fatal das paixões cégas,
Rugindo fundamente nos neuronios,
Puxava aqnelle povo de demonios
Para a promiscuidade das adégas.

E a ebria turba que escáras sujas masca,
A’ falta idiosyncrasica de escrupulo,
Absorvia com gaudio absintho, lúpulo
E outras substancias toxicas da tasca.

O ar ambiente cheirava a acido acético,
Mas, de repente, com o ar de quem empesta,
Appareceu, escorraçando a festa,
A mandibula inchada de um morphetico!

Saliencias polymórphicas vermelhas,
Em cujo aspecto o olhar perspicuo prendo,
Punham-lhe num destaque horrendo o horrendo
Tamanho aberratorio das orelhas.

O facies do morphético assombrava!
— Aquillo éra uma negra eucharistia,
Onde minh’alma inteira surprehendia
A Humanidade que se lamentava!

Era todo o meu sonho, assim, inchado,
Já podre, que a morphéa miseravel
Tornava ás impressões tactis, palpavel,
Como se fosse um corpo organisado!

VIII

Em torno a mim, nesta hora, estryges vôam,
E o cemiterio, em que eu entrei adrede,
Dá-me a impressão de um boulevard que fede,
Pela degradação dos que o povoam.

Quanta gente, roubada á humana cohorte,
Morre de fome, sobre a palha espessa,
Sem ter, como Ugolino, uma cabeça
Que possa mastigar na hora da morte;

E nùa, após baixar ao cháos budhista,
Vem para aqui, nos braços de um canalha,
Porque o madapolão para a mortalha
Custa 1$200 ao logista!

Que resta das cabeças que pensaram?!
E afundado nos sonhos mais nefastos,
Ao pegar num milhão de miolos gastos,
Todos os meus cabellos se arripiaram.

Os evolucionismos bemfeitores
Que por entre os cadaveres caminham,
Iguaes a irmães de caridade, vinham
Com a podridão dar de comer ás flôres!

Os defuntos então me offereciam
Com as articulações das mãos inermes,
Num prato de hospital, cheio de vermes,
Todos os animaes que apodreciam!

É possivel que o estomago se afoite
(Muito embora contra isto a alma se irrite)
A cevar o anthropophago appetite,
Comendo carne humana, á meia noite!

Com uma illimitadissima tristeza,
Na impaciencia do estomago vasio,
Eu devorava aquelle bôlo frio
Feito das podridões da Natureza!

E hirto, a camisa suada, a alma aos arrancos,
Vendo passar com as tunicas obscuras,
As escaveiradissimas figuras
Das negras deshonradas pelos brancos;

Pisando, como quem salta, entre fardos,
Nos corpos nús das moças hottentotes
Entregues, ao clarão de alguns archotes,
A sodomia indigna dos moscardos;

Eu maldizia o deus de mãos nefandas
Que, transgredindo a egualitaria regra
Da Natureza, atira a raça negra
Ao contubernio diario das quitandas!

Na evolução de minha dôr grotesca,
Eu mendigava aos vermes insubmissos
Como indemnisação dos meus serviços,
O beneficio de uma cóva fresca.

Manhã. E eis-me a absorver a luz de fóra,
Como o incola do pólo artico, ás vezes,
Absorve, após a noite de seis mezes,
Os raios calorificos da aurora.

Nunca mais as gotteiras cahiriam
Como propositaes settas malvadas,
No frio matador das madrugadas,
Por sobre o coração dos que soffriam!

Do meu cerebro á absconsa taboa rasa
Vinha a luz restituir o antigo credito,
Proporcionando-me o prazer inédito,
De quem possue um sol dentro de casa.

Era a volupia funebre que os ossos
Me inspiravam, trazendo-me ao sol claro,
Á apprehensão physiologica do faro
O odôr cadaveroso dos destroços!

IX

O inventario do que eu já tinha sido
Espantava. Restavam só de Augusto
A forma de um mammifero vetusto
E a cerebralidade de um vencido!

O genio procreador da especie eterna
Que me fizera, em vez de hyena ou lagarta,
Uma sobrevivencia de Siddhartha,
Dentro da phylogénese moderna;

E arrancara milhares de existencias
Do ovario ignobil de uma fauna immunda,
Ia arrastando agora a alma infecunda
Na mais triste de todas as fallencias.

Um céu calamitoso de vingança
Desaggregava, despota e sem normas,
O adhesionismo biontico das fórmas
Multiplicadas pela lei da herança!

A ruina vinha horrenda e deleteria
Do subsolo infeliz, vinha de dentro
Da materia em fusão que ainda ha no centro,
Para alcançar depois a periphéria!

Contra a Arte, oh! Morte, em vão teu odio exerces!
Mas, a meu ver, os saxeos prédios tortos
Tinham aspectos de edificios mortos,
Decompondo-se desde os alicerces!

A doença era geral, tudo a extenuar-se
Estava. O Espaço abstracto que não morre
Cansára.     O ar que, em colonias fluidas, corre,
Parecia também desaggregar-se!

Os pródromos de um tétano medonho
Repuxavam-me o rosto.     Hirto de espanto,
Eu sentia nascer-me nalma, emtanto,
O começo magnifico de um sonho!

Entre as fórmas decrépitas do povo,
Já batiam por cima dos estragos
A sensação e os movimentos vagos
Da cellula inicial de um Cósmos novo!

O lethargo larvário da cidade
Crescia. Igual a um parto, numa furna,
Vinha da original treva nocturna
O vagido de uma outra Humanidade;

E eu, com os pés atolados no Nirvana,
Acompanhava, com um prazer secreto,
A gestação daquelle grande féto,
Que vinha substituir a Especie Humana!

Aza de Côrvo


Aza de côrvos carniceiros, aza
De mau agouro que, nos doze mezes,
Cobre ás vezes o espaço e cobre ás vezes
O telhado de nossa propria casa...

Perseguido por todos os revezes,
É meu destino viver junto a essa aza,
Como a cinza que vive junto á braza,
Como os Goncourts, como os irmãos siamezes!

É com essa aza que eu faço este soneto
E a industria humana faz o panno preto
Que as familias de luto martyrisa.

É ainda com essa aza extraordinaria
Que a Morte — a costureira funeraria —
Coze para o homem a ultima camisa!

Uma Noite no Cairo


Noite no Egypto. O ceu claro e profundo
Fulgúra. A rua é triste. A Lua Cheia
Está sinistra, e sobre a paz do mundo
A alma dos Pharaós anda e vagueia.

Os mastins negros vão ladrando á lua...
O Cairo é de uma formosura archaica.
No angulo mais recondito da rua
Passa cantando uma mulher hebraica.

O Egypto é sempre assim quando anoitece!
Ás vezes, das pyramides o quêdo
E atro perfil, exposto ao luar, parece
Uma sombria interjeição de medo!

Como um contraste áquelles miseréres,
Num kiosque em festa a alegre turba grita,
E dentro dançam homens e mulheres
Numa agglomeracão cosmopolita,

Tonto do vinho, um saltimbanco da Asia,
Convulso e rôto, no apogêu da furia,
Executando evoluções de razzia
Solta um brado epileptico de injuria!

Em derredor duma ampla mesa preta
— Ultima nota do connubio infando —
Veem-se dez jogadores de roleta
Fumando, discutindo, conversando.

Resplandece a celeste superficie.
Dorme soturna a natureza sabia...
Em baixo, na mais proxima planicie,
Pasta um cavallo esplendido da Arabia.

Vaga no espaço um sylpho solitario.
Trôam kinnors! Depois tudo é tranquillo...
Apenas, como um velho stradivario,
Soluça toda a noite a agua do Nilo!

O Martyrio do Artista


Arte ingrata! E comquanto, em desalento,
A órbita ellipsoidal dos olhos lhe arda,
Busca exteriorisar o pensamento
Que em suas phronetaes céllulas guarda!

Tarda-lhe a Idéa! A Inspiração lhe tarda!
E eil-o a tremer, rasga o papel, violento,
Como o soldado que rasgou a farda
No desespero do ultimo momento!

Tenta chorar e os olhos sente enxutos!...
É como o paralytico que, á mingua
Da propria voz e na que ardente o lavra

Febre de em vão falar, com os dedos brutos
Para falar, puxa e repuxa a lingua,
E não lhe vem á bocca uma palavra!

Duas Estrophes

 
(Á memoria de João de Deus)

Ahi ciechi! il tanto affaticar che giova?
Tulti torniamo alla gran madre antica
E il nostro nome oppena si ritrova

Petrarca

 

A queda do teu lyrico arrabil
De um sentimento portuguez ignoto
Lembra Lisbôa, bella como um brinco,
Que um dia no anno tragico de mil
E setecentos e cincoenta e cinco,
Foi abalada por um terremoto!

A agua quieta do Tejo te abençôa.
Tu representas toda essa Lisbôa
De glorias quasi sobrenaturaes,
Apenas com uma differença triste,
Com a differença que Lisbôa existe
E tu, amigo, não existes mais!

O Mar, a Escada e o Homem


«Olha agora, mammifero inferior,
«Á luz da epicurista ataraxia,
«O fracasso de tua geographia
«E do teu escaphandro esmiuçador!

«Ah! jamais saberás ser superior,
«Homem, a mim, comquanto ainda hoje em dia,
«Com a ampla hélice auxiliar com que outr’ora ia
«Voando ao vento o vastissimo vapor,

«Rasgue a agua hórrida a nau árdega e singre-me!»
E a verticalidade da Escada ingreme:
«Homem, já transpuzeste os meus degraus?!»

E Augusto, o Hercules, o Homem, aos soluços,
Ouvindo a Escada e o Mar, cahiu de bruços
No pandemonio aterrador do Cháos!

Decadencia

 

Iguaes ás linhas perpendiculares
Cahiram, como crueis e hórridas hastas,
Nas suas 33 vértebras gastas
Quasi todas as pedras tumulares!

A frialdade dos circulos polares,
Em successivas actuações nefastas,
Penetrara-lhe os proprios neuroplastas,
Estragára-lhe os centros medullares!

Como quem quebra o objecto mais querido
E começa a apanhar piedosamente
Todas as microscopicas particulas,

Elle hoje vê que, após tudo perdido,
Só lhe restam agora o ultimo dente
E a armação funeraria das claviculas!

Ricordanza della mia Gioventú

 

A minha ama de leite Guilhermina
Furtava as moedas que o Doutor me dava.
Sinhá-Mocinha, minha Mãe, ralhava.
Via naquillo a minha propria ruina!

Minha ama, então, hypocrita, affectava
Susceptibilidades de menina:
«— Não, não fôra ella! —” E maldizia a sina,
Que ella absolutamente não furtava.

Vejo, entretanto, agora, em minha cama,
Que a mim somente cabe o furto feito...
Tu só furtaste a moeda, o oiro que brilha

Furtaste a moeda só, mas eu, minha ama,
Eu furtei mais, porque furtei o peito
Que dava leite para a tua filha!

A um Mascarado


Rasga esta máscara optima de sêda
E atira-a á arca ancestral dos palimpsestos...
É noite, e, á noite, a escándalos e incestos
É natural que o instincto humano accêda!

Sem que te arranquem da garganta quêda
A interjeição damnada dos protestos,
Has de engulir, igual a um porco, os restos
Duma comida horrivelmente azêda!

A successão de hebdómadas medonhas
Reduzirá os mundos que tu sonhas
Ao microcòsmos do ovo primitivo...

E tu mesmo, após a ardua e atra refréga,
Terás somente uma vontade céga
E uma tendencia obscura de ser vivo!

Vozes de um Tumulo


Morri! E a Terra — a mãe commum — o brilho
Destes meus olhos apagou!.. Assim
Tantalo, aos reaes convivas, num festim,
Serviu as carnes do seu proprio filho!

Porque para este cemiterio vim?!
Porque?! Antes da vida o angusto trilho
Palmilhasse, do que este que palmilho
E que me assombra, porque não tem fim!

No ardor do sonho que o phronéma exalta
Construi de orgulho enea pyramide alta...
Hoje, porém, que se desmoronou

A pyrámide real do meu orgulho,
Hoje que apenas sou materia e entulho
Tenho consciencia de que nada sou!

Contrastes


A antíthese do novo e do obsoléto,
O Amor e a Paz, o Odio e a Carnificina,
O que o homem ama e o que homem abomina,
Tudo convem para o homem ser completo!

O angulo obtuso, pois, e o angulo recto,
Uma feição humana e outra divina
São como a exhymenina e a endhymenina
Que servem ambas para o mesmo féto!

Eu sei tudo isto mais do que o Ecclesiastes!
Por juxtaposição destes contrastes,
Junta-se um hemispherio a outro hemispherio,

Ás alegrias juntam-se as tristezas,
E o carpinteiro que fabrica as mezas
Faz tambem os caixões do cemiterio!

Gemidos de Arte


I


Esta desillusão que me acabrunha
É mais traidora do que o foi Pilatos!...
Por causa disto, eu vivo pelos mattos,
Magro, roendo a substancia córnea da unha.

Tenho estremecimentos indecisos
E sinto, haurindo o tépido ar sereno,
O mesmo assombro que sentio Parphéno
Quando arrancou os olhos de Dyonisos!

Em gyro e em redemoinho em mim caminham
Rispidas maguas estranguladoras,
Taes quaes, nos fortes fulcros, as tesouras
Bronzeas, tambem gyram e redemoinham.

Os pães — filhos legitimos dos trigos —
Nutrem a geração do Odio e da Guerra...
Os cachorros anonymos da terra
São talvez os meus unicos amigos!

Ah! Porque desgraçada contingencia
Á hispida aresta saxea aspera e abrupta
Da rocha brava, numa ininterrupta
Adhesão, não prendi minha existencia?!

Porque Jehovah, maior do que Laplace
Não fez cahir o tumulo de Plinio
Por sobre todo o meu raciocinio
Para que eu nunca mais raciocinasse?!

Pois minha Mãe tão cheia assim daquelles
Carinhos, com que guarda meus sapatos,
Porque me deu consciencia dos meus actos
Para eu me arrepender de todos elles?!

Quizera antes, mordendo glabros talos,
Nabuchodonosor ser no Pau d’Arco,
Beber a acre e estagnada agua do charco,
Dormir na mangedoura com os cavallos!

Mas a carne é que é humana! A alma é divina.
Dorme num leito de feridas, goza
O lodo, apalpa a úlcera cancerosa,
Beija a peçonha, e não se contamina!

Ser homem! escapar de ser abôrto!
Sahir de um ventre inchado que se anoja,
Comprar vestidos pretos numa loja
E andar de luto pelo pae que é morto!

E por trezentos e sessenta dias
Trabalhar e comer! Martyrios juntos!
Alimentar-se dos irmãos defuntos,
Chupar os ossos das alimarías!

Barulho de mandibulas e abdomens!
E vem-me com um despreso por tudo isto
Uma vontade absurda de ser Christo
Para sacrificar-me pelos homens!

Soberano desejo! Soberana
Ambição de construir para o homem uma
Região, onde não cuspa lingua alguma
O oleo rançoso da saliva humana!

Uma região sem nodoas e sem lixos,
Subtrahida á hediondez de infimo casco,
Onde a forca feroz coma o carrasco
E o olho do estuprador se encha de bichos!

Outras constellações e outros espaços
Em que, no agúdo gráu da ultima crise,
O braço do ladrão se paralyse
E a mão da meretriz caia aos pedaços!

 

II

 

O sol agora é de um fulgor compacto,
E eu vou andando, cheio de chamusco,
Com a flexibilidade de um mollusco,
Humido, pegajoso e unctuoso ao tacto!

Reunam-se em rebellião ardente e accesa
Todas as minhas forças emotivas
E armem ciladas como cobras vivas
Para despedaçar minha tristeza!

O sol de cima espiando a flora moça
Arda, fustigue, queime, corte, morda!
Deleito a vista na verdura gorda
Que nas hastes delgadas se balouça!

Avisto o vulto das sombrias granjas
Perdidas no alto... Nos terrenos baixos,
Das laranjeiras eu admiro os cachos
E a ampla circumferencia das laranjas.

Ladra furiosa a tribu dos podengos.
Olhando para as pútridas charnécas
Grita o exercito avulso das marrécas
Na humida cópa dos bambús verdoengos.

Um passaro alvo artifice da teia
De um ninho, salta, no árdego trabalho,
De arvore em arvore e de galho em galho,
Com a rapidez duma semi-colcheia.

Em grandes semi-circulos aduncos,
Entrançados, pelo ar, largando pellos,
Vôam á similhança de cabellos
Os chicotes finissimos dos juncos.

Os ventos vagabundos batem, bolem
Nas arvores. O ar cheira. A terra cheira
E a alma dos vegetaes rebenta inteira
De todos os corpusculos do pollen.

A camara nupcial de cada ovario
Se abre. No chão collêa a lagartixa.
Por toda a parte a seiva bruta esguicha
Num extravasamento involuntario,

Eu, depois de morrer, depois de tanta
Tristeza, quero, em vez do nome — Augusto,
Possuir ahi o nome dum arbusto
Qualquer ou de qualquer obscura planta!

 

III

 

Pelo accidentadissimo caminho
Faisca o sol. Nédios, batendo a cauda,
Urram os bois. O céo lembra uma lauda
Do mais incorruptivel pergaminho.

Uma atmosphera má de incommoda hulha
Abafa o ambiente. O aziago ar morto a morte
Féde. O ardente calor da areia forte
Racha-me os pés como se fosse agulha.

Não sei que subterranea e atra voz rouca,
Por saibros e por cem concavos valles,
Como pela avenida das Mappales,
Me arrasta á casa do finado Tôca!

Todas as tardes a esta casa venho.
Aqui, outr’ora, sem conchego nobre,
Viveu, sentiu e amou este homem pobre
Que carregava cannas para o engenho!

Nos outros tempos e nas outras eras,
Quantas flôres! Agora, em vez de flôres,
Os musgos, como exoticos pintores,
Pintam caretas verdes nas tapéras.

Na bruta dispersão de vitreos cacos,
A dura luz do sol resplandecente,
Tropega e antiga, uma parede doente
Mostra a cara medonha dos buracos.

O cupim negro bróca o ámago fino
Do tecto. E traça trombas de elephantes
Com as circumvoluções extravagantes
Do seu complicadissimo intestino.

O lodo obscuro trepa-se nas portas.
Amortoadas em grossos feixes rijos,
As lagartixas dos esconderijos
Estão olhando aquellas coisas mortas!

Fico a pensar no Espirito disperso
Que unindo a pedra ao gneiss e a arvore á creança,
Como um annel enorme de alliança,
Une todas as coisas do Universo!

E assim pensando, com a cabeça em brazas
Ante a fatalidade que me opprime,
Julgo ver este Espirito sublime,
Chamando-me do sol com as suas azas!

Gosto do sol ignivomo e iracundo
Como o reptil gosta quando se molha
E na atra escuridão do ares, olha
Melancolicamente para o mundo!

Essa alegria immaterialisada,
Que por vezes me absorve, é o obolo obscuro,
É o pedaço já pôdre de pão duro
Que o miseravel recebeu na estrada!

Não são os cinco mil milhões de francos
Que a Allemanha pediu a Jules Favre.
É o dinheiro coberto de azinhavre
Que o escravo ganha, trabalhando aos brancos!

Seja este sol meu ultimo consolo;
E o espirito infeliz que em mim se encarna
Se alegre ao sol, como quem raspa a sarna,
Só, com a misericordia de um tijolo!...

Tudo emfim a mesma órbita percorre
E as boccas vão beber o mesmo leite
A lamparina quando falta o azeite
Morre, da mesma fórma que o homem morre.

Subito, arrebentando a horrenda calma,
Grito, e se grito é para que meu grito
Seja a revelação deste Infinito
Que eu trago encarcerado na minh’alma!

Sol brazileiro! Queima-me os destroços!
Quero assistir, aqui, sem pae que me ame,
De pé, á luz da consciencia infame,
A carbonisação dos proprios ossos!

 
Pau d’Arco,—4-5-1907.

Versos de Amor

A um poeta eròtico

 

Parece muito doce aquella canna.
Descásco-a, provo-a, chupo-a... Illusão trêda!
O amor, poeta, é como a canna azêda,
A toda a bocca que o não prova engana.

Quiz saber que era o amor, por experiencia,
E hoje que, emfim, conheço o seu conteúdo,
Pudéra eu ter, eu que idolátro o estudo,
Todas as sciencias menos esta sciencia!

Certo, este o amor não é que, em ancias, amo
Mas certo, o egoista amor este é que acinte
Amas, opposto a mim. Por conseguinte
Chamas amor aquillo que eu não chamo.

Opposto ideal ao meu ideal conservas.
Diverso é, pois, o ponto outro de vista
Consoante o qual, observo o amor, do egoista
Modo de ver, consoante o qual, o observas.

Porque o amor, tal como eu o estou amando,
É espirito, é ether, é substancia fluida,
É assim como o ar que a gente péga e cuida,
Cuida, entretanto, não o estar pegando!

É a transubstanciação de instinctos rudes,
Imponderabilissima e impalpavel
Que anda acima da carne miseravel
Como anda a garça acima dos açudes!

Para reproduzir tal sentimento
Daqui por diante, attenta a orelha cauta,
Como Marsyas — o inventor da flauta —
Vou inventar tambem outro instrumento!

Mas de tal arte e especie tal fazêl-o
Ambiciono, que o idioma em que te eu falo
Possam todas as linguas declinal-o
Possam todos os homens comprehendel-o!

Para que, emfim, chegando á ultima calma
Meu pôdre coração rôto não role,
Integralmente desfibrado e molle,
Como um sacco vasio dentro d’alma!

 

Pau d’Arco — Agosto — 1907.

Sonetos


I

A meu Pae doente

Para onde fores, Pae, para onde fôres,
Irei tambem, trilhando as mesmas ruas.
Tu, para amenisar as dôres tuas,
Eu, para amenisar as minhas dores!

Que cousa triste! O campo tão sem flores,
E eu tão sem crença e as arvores tão nuas
E tu, gemendo, e o horror de nossas duas
Maguas crescendo e se fazendo horrores!

Maguaram-te, meu Pae?! Que mão sombria,
Indifferente aos mil tormentos teus
De assim maguar-te sem pezar havia?!

— Seria a mão de Deus?! Mas Deus emfim
É bom, é justo, e sendo justo, Deus,
Deus não havia de maguar-te assim!

 

II

A meu Pae morto.

Madrugada de Treze de Janeiro.
Rezo, sonhando, o officio da agonia.
Meu Pae nessa hora junto a mim morria
Sem um gemido, assim como um cordeiro!

E eu nem lhe ouvi o alento derradeiro!
Quando acordei, cuidei que elle dormia,
E disse á minha Mãe que me dizia:
«Acórda-o»! deixa-o, Mãe, dormir primeiro!

E sahi para ver a Natureza!
Em tudo o mesmo abysmo de belleza,
Nem uma nevoa no estrellado veu.

Mas pareceu-me, entre as estrellas floreas,
Como Elias, num carro azul de glorias,
Ver a alma de meu Pae subindo ao Ceu!

III

Pôdre meu Pae! A Morte o olhar lhe vidra.
Em seus lábios que os meus lábios osculam
Micro-organismos fúnebres pullulam
Numa fermentação gorda de cidra.

Duras leis as que os homens e a hórrida hydra
A uma só lei biologica vinculam,
E a marcha das moléculas regulam.
Com a invariabilidade da clepsydra!

Podre meu Pae! E a mão que enchi de beijos
Roida toda de bichos, como os queijos
Sobre a meza de orgiacos festins!..

Amo meu Pae na atómica desordem
Entre as boccas necróphagas que o mordem
E a terra infecta que lhe cobre os rins!

Depois da Orgia
 

O prazer que na orgia a hetaira goza
Produz no meu sensorium de bacchante
O effeito de uma túnica brilhante
Cobrindo ampla apostema escrophulosa!

Troveja! E anhélo ter, soffrega e anciosa,
O systema nervoso de um gigante
Para soffrer na minha carne estuante
A dor da força cósmica furiosa.

Apraz-me, emfim, despindo a ultima alfaia
Que ao commercio dos homens me traz presa,
Livre deste cadeado de peçonha,

Similhante a um cachorro de atalaia
A’s decomposições da Natureza,
Ficar latindo minha dor medonha!

A Arvore da Serra


— As arvores, meu filho, não têm alma!
E esta arvore me serve de empecilho.
É preciso cortal-a, pois, meu filho,
Para que eu tenha uma velhice calma!

— Meu pai, porque sua ira não se acalma?!
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus pôz almas nos cedros... no junquilho.
Esta arvore, meu pai, possue minh’alma!

— Disse — e ajoelhou-se, numa rogativa:
«Não mate a arvore, pai, para que eu viva!»
E quando a arvore, olhando a patria serra,

Cahiu aos golpes do machado bronco,
O moço triste se abraçou com o tronco
E nunca mais se levantou da terra!

Vencido


No auge de atordoadora e ávida sanha
Leu tudo, desde o mais pristino mytho,
Por exemplo: o do boi Apis do Egypto
Ao velho Niebelungen da Allemanha.

Accommettido de uma fébre estranha
Sem o escándalo phónico de um grito,
Mergulhou a cabeça no Infinito,
Arrancou os cabellos na montanha!

Desceu depois á gleba mais bastarda,
Pondo a aurea insignia heráldica da farda
A vontade do vomito plebeu..

E ao vir-lhe o cuspo diário á bocca fria
O vencido pensava que cuspia
Na céllula infeliz de onde nasceu.

 
Parahyba, 1909.

O Corrupião


Escaveirado corrupião idiota,
Olha a atmosphera livre, o amplo ether bello,
E a alga cryptógama e a usnea e o cogumelo,
Que do fundo do chão todo o anno brota!

Mas a ancia de alto voar, de á antiga rota
Voar, não tens mais! E pois, preto e amarello,
Pões-te a assobiar, bruto, sem cerebello
A gargalhada da ultima derrota!

A gaiola aboliu tua vontade.
Tu nunca mais verás a liberdade!.
Ah! Tu somente ainda és egual a mim.

Continúa a comer teu milho alpiste.
Foi este mundo que me fez tão triste,
Foi a gaiola que te pôz assim!

Noite de um Visionario


Numero cento e tres. Rua Direita.
Eu tinha a sensação de quem se esfóla
E inopinadamente o corpo atóla
Numa poça de carne liquefeita!

— “Que esta allucinação tactil não cresça!”
— Dizia; e erguia, oh! ceu, alto, por vêr-vos,
Com a rebeldia acerrima dos nervos
Minha atormentadissima cabeça.

É a potencialidade que me eleva
Ao grande Deus, e absorve em cada viagem
Minh’alma — este sombrio personagem
Do drama pantheistico da treva!

Depois de dezeseis annos de estudo
Generalisações grandes e ousadas
Traziam minhas forças concentradas
Na comprehensão monistica de tudo.

Mas a aguadilha pútrida o hombro inérme
Me aspergia, banhava minhas tibias,
E a ella se alliava o ardor das syrtes lybias,
Cortando o melanismo da epiderme.

Ahrimánico genio destructivo
Desconjunctava minha autónoma alma
Esbandalhando essa unidade calma,
Que fórma a coherencia do ser vivo.

E eu sahi a tremer com a lingua grossa
E a volição no cumulo do exicio,
Como quem é levado para o hospicio
Aos trambolhões, num canto de carroça!

Perante o inexoravel ceu accêso
Aggregações abióticas espúrias,
Como uma cara, recebendo injurias,
Recebiam os cuspos do desprezo.

A essa hora, nas telluricas reservas,
O reino mineral americano
Dormia, sob os pés do orgulho humano,
E a cimalha minúscula das hervas.

E não haver quem, integra, lhe entregue,
Com os ligamentos glótticos precisos,
A liberdade de vingar em risos
A angustia millenaria que o persegue!

Bolia nos obscuros labyrinthos
Da fertil terra gorda, humida e fresca,
A infima abscondita e grotesca
Da familia bastárda dos helminthos.

As vegetalidades subalternas
Que os serenos nocturnos orvalhavam,
Pela alta frieza intrinseca, lembravam
Toalhas molhadas sobre as minhas pernas.

E no estrume fresquissimo da gleba
Formigavam, com a simplice sarcóde,
O vibrião, o ancylóstomo, o colpóde
E outros irmãos legitimos da amœba!

E todas essas fórmas que Deus lança
No Cosmos, me pediam, com o ar horrivel,
Um pedaço de lingua disponivel
Para a philogenetica vingança!

A cidade exhalava um pôdre báfio:
Os annuncios das casas de commercio,
Mais tristes que as elégias de Propércio,
Pareciam talvez meu epitaphio.

O motor teleológico da Vida
Parára! Agora, em diástoles de guerra,
Vinha do coração quente da terra
Um rumor de materia dissolvida.

A chimica feroz do cemiterio
Transformava porções de atomos juntos
No oleo malsão que escorre dos defuntos,
Com a abundancia de um geyser deletério.

Dedos denunciadores escreviam
Na lugubre extensão da rua preta
Todo o destino negro do planeta,
Onde minhas moleculas soffriam.

Um necróphilo mau forçava as lousas
E eu — coetaneo do horrendo cataclysmo —
Era puxado para aquelle abysmo
No rodomoinho universal das cousas!

Allucinação á beira-mar


Um medo de morrer meus pés esfriava.
Noite alta. Ante o tellurico recórte,
Na diuturna discordia, a equorea cohorte
Atordoadoramente ribombava!

Eu, ególatra scéptico, scismava
Em meu destino!... O vento estava forte
E aquella mathematica da Morte
Com os seus numeros negros, me assombrava!

Mas a alga usufructuaria dos oceanos
E os malacopterygios subrachianos
Que um castigo de especie emmudeceu,

No eterno horror das convulsões maritimas
Pareciam tambem corpos de victimas
Condemnadas á Morte, assim como eu!

Vandalismo


Meu coração tem cathedraes immensas
Templos de priscas e longinquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a alleluia virginal das crenças.

Na ogiva fulgida e nas columnatas
Vertem lustraes irradiações intensas
Scintillações de lampadas suspensas
E as amethystas e os florões e as pratas.

Como os velhos Templarios medievaes
Entrei um dia nessas cathedraes
E nesses templos cláros e risonhos...

E erguendo os gládios e brandindo as hástas,
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus proprios sonhos!

 

Pau d’Arco — 1904

Versos Intimos


Vês?! Ninguem assistiu ao formidavel
Enterro de tua ultima chimera.
Somente a Ingratidão — esta panthera —
Foi tua companheira inseparavel!

Acostuma-te á lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miseravel,
Mora, entre féras, sente inevitavel
Necessidade de tambem ser féra.

Toma um phosphoro. Accende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a vespera do escarro,
A mão que affaga é a mesma que apedreja.

Si a alguem causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te affaga,
Escarra nessa bocca que te beija!

 
Pau d’Arco — 1901

Vencedor


Toma as espadas rutilas, guerreiro,
E á rutilancia das espadas, toma
A adaga de aço, o gladio de aço, e doma
Meu coração — extranho carniceiro!

Não pódes?! Chama então presto o primeiro
E o mais possante gládiador de Roma.
E qual mais prompto, e qual mais presto assoma,
Nenhum poude domar o prisioneiro.

Meu coração triumphava nas arenas.
Veio depois um domador de hyenas
E outro mais, e, por fim, veio um athleta,

Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem...
E não poude domal-o emfim ninguem,
Que ninguem doma um coração de poeta!

 

Pau d’Arco — 1902

A Ilha de Cypango


Estou sósinho! A estrada se desdobra
Como uma immensa e rutilante cobra
De epiderme finissima de areia
E por essa finissima epiderme
Eis-me passeiando como um grande verme
Que, ao sol, em plena podridão, passeia!

A agonia do sol vae ter começo
Caio de joelhos, tremulo... Offereço
Preces a Deus de amor e de respeito
E o Occaso que nas aguas se retrata
Nitidamente reproduz, exacta,
A saudade interior que ha no meu peito...

Tenho allucinações de toda a sorte...
Impressionado sem cessar com a Morte
E sentindo o que um lazaro não sente,
Em negras nuanças lugubres e aziagas
Vejo terribilissimas adagas,
Atravessando os ares bruscamente.

Os olhos volvo para o ceu divino
E observo-me pygmeu e pequenino
Atravez de minusculos espelhos.
Assim, quem deante duma cordilheira,
Pára, entre assombros, pela vez primeira,
Sente vontade de cahir de joelhos!

Sôa o rumor fatidico dos ventos,
Annunciando desmoronamentos
De mil lagedos sobre mil lagedos...
E ao longe sôam tragicos fracassos
De heroes, partindo e fracturando os braços
Nas pontas escarpadas dos rochedos!

Mas de repente, num enleio doce,
Qual se num sonho arrebatado fosse,
Na ilha encantada de Cypango tombo,
Da qual, no meio, em luz perpetua, brilha
A arvore da perpetua maravilha,
Á cuja sombra descansou Colombo!

Foi nessa ilha encantada de Cypango,
Verde, affectando a forma de um losango,
Rica, ostentando amplo floral risonho,
Que Toscanelli viu seu sonho extincto
E como succedeu a Affonso Quinto
Foi sobre essa ilha que extingui meu sonho!

Lembro-me bem. Nesse maldito dia
O genio singular da Fantasia
Convidou-me a sorrir para um passeio...
Iriamos a um paiz de eternas pazes
Onde em cada deserto ha mil oasis
E em cada rocha um crystallino veio.

Gozei numa hora seculos de affagos,
Banhei-me na agua de risonhos lagos
E finalmente me cobri de flores...
Mas veio o vento que a Desgraça espalha
E cobriu-me com o panno da mortalha,
Que estou cozendo para os meus amores!

Desde então para cá fiquei sombrio!
Um penetrante e corrosivo trio
Anesthesiou-me a sensibilidade
E a grande golpes arrancou as raizes
Que prendiam meus dias infelizes
A um sonho antigo de felicidade!

Invoco os Deuses salvadores do erro.
A tarde morre. Passa o seu enterro!...
A luz descreve zigzags tortos
Enviando á terra os derradeiros beijos.
Pela estrada feral dous realejos
Estão chorando meus amores mortos!

E a treva occupa toda a estrada longa...
O Firmamento é unia caverna oblonga
Em cujo fundo a Via-lactea existe.
E como agora a lua cheia brilha!
Ilha maldita vinte vezes a ilha
Que para todo o sempre me fez triste!

 

Pau d’Arco — 1904

Mater

 

Como a chrysalida emergindo do ovo
Para que o campo flórido a concentre,
Assim, oh! Mãe, sujo de sangue, um novo
Ser, entre dôres, te emergiu do ventre!

E puzeste-lhe, haurindo amplo deleite,
No labio roseo a grande têta farta
— Fecunda fonte desse mesmo leite
Que amamentou os éphebos de Sparta. —

Com que avidez elle essa fonte suga!
Ninguem mais com a Belleza está de accordo,
Do que essa pequenina sanguesuga,
Bebendo a vida no teu seio gordo!

Pois, quanto a mim, sem pretenções, comparo,
Essas humanas cousas pequeninas
A um biscuit de quilate muito raro
Exposto ahi, á amostra, nas vitrinas.

Mas o ramo fragilimo e venusto
Que hoje nas debeis gemmulas se esboça,
Ha de crescer, ha de tornar-se arbusto
E álamo altivo de ramagem grossa.

Clara, a atmosphera se encherá de aromas,
O Sol virá das epochas sadias.
E o antigo leão, que te esgotou as pomas,
Ha de beijar-te as mãos todos os dias!

Quando chegar depois tua velhice
Batida pelos barbaros invernos,
Relembrarás chorando o que eu te disse,
Á sombra dos sycomoros eternos!

 
Pau d’Arco, 1905.

Poema Negro

A Santos Netto

 

Para illudir minha desgraça, estudo.
Intimamente sei que não me illudo.
Para onde vou (o mundo inteiro o nota)
Nos meus olhares funebres, carrego
A indifferença estupida de um cego
E o ar indolente de um chinez idiota!

A passagem dos seculos me assombra.
Para onde irá correndo minha sombra
Nesse cavallo de electricidade?!
Caminho, e a mim pergunto, na vertigem:
— Quem sou? Para onde vou? Qual minha origem?
E parece-me um sonho a realidade.

Em vão com o grito do meu peito impreco!
Dos brados meus ouvindo apenas o echo,
Eu torço os braços numa angustia douda
E muita vez, á meia noite, rio
Sinistramente, vendo o verme frio
Que ha de comer a minha carne toda!

É a Morte — esta carnivora assanhada —
Serpente má de lingua envenenada
Que tudo que acha no caminho, come...
— Faminta e atra mulher que, a 1 de Janeiro,
Sae para assassinar o mundo inteiro,
E o mundo inteiro não lhe mata a fome!

Nesta sombria analyse das cousas,
Corro. Arranco os cadaveres das lousas
E as suas partes pôdres examino...
Mas de repente, ouvindo um grande estrondo,
Na podridão daquelle embrulho hediondo
Reconheço assombrado o meu Destino!

Surprehendo-me, sosinho, numa cova.
Então meu desvario se renova...
Como que, abrindo todos os jazigos,
A Morte, em trajos pretos e amarellos,
Levanta contra mim grandes cutellos
E as baionetas dos dragões antigos!

E quando vi que aquillo vinha vindo
Eu fui cahindo como um so1 cahindo
De declinio em declinio; e de declinio
Em declinio, com a gula de uma fera,
Quiz ver o que era, e quando vi o que era,
Vi que era pó, vi que era esterquilinio!

Chegou a tua vez, oh! Natureza!
Eu desafio agora essa grandeza,
Perante a qual meus olhos se extasiam...
Eu desafio, desta cova escura,
No hysterismo damnado da tortura
Todos os monstros que os teus peitos criam!

Tu não és minha mãe, velha nefasta!
Com o teu chicote frio de madrasta
Tu me açoitaste vinte e duas vezes
Por tua causa apodreci nas cruzes,
Em que pregas os filhos que produzes
Durante os desgraçados nove mezes!

Semeadora terrivel de defunctos,
Contra a aggressão dos teus contrastes juntos
A besta, que em mim dorme, acorda em berros;
Acorda, e após gritar a ultima injuria,
Chocalha os dentes com medonha furia
Como si fosse o attrito de dous ferros!

Pois bem! Chegou minha hora de vingança.
Tu mataste meu tempo de criança
E de segunda-feira até domingo,
Amarrado no horror de tua rede,
Déste-me fogo quando eu tinha sêde.
Deixa te estar, canalha, que eu me vingo!

Subito outra visão negra me espanta!
Estou em Roma. É Sexta-Feira Santa.
A treva invade o obscuro orbe terrestre.
No Vaticano, em grupos prosternados,
Com as longas fardas rubras, os soldados
Guardam o corpo do Divino Mestre.

Como as stalactites da caverna,
Cáe no silencio da Cidade Eterna
A agua da chuva em largos fios grossos...
De Jesus Christo resta unicamente
Um esqueleto; e a gente, vendo-o, a gente
Sente vontade de abraçar-lhe os ossos!

Não ha ninguem na estrada da Ripetta.
Dentro da Igreja de S. Pedro, quieta,
As luzes funeraes arquejam fracas...
O vento entoa canticos de morte.
Roma estremece! Além, num rumor forte,
Recomeça o barulho das matracas.

A desaggregação de minha Ideia
Augmenta. Como as chagas da morphéa,
O medo, o desalento e o desconforto
Paralysam-me os circulos motores.
Na Eternidade, os ventos gemedores
Estão dizendo que Jesus é morto!

Não! Jesus não morreu! Vive na serra
Da Borborema, no ar de minha terra,
Na molecula e no atomo... Resume
A espiritualidade da materia
E elle è que embala o corpo da miseria
E faz da cloaca uma urna de perfume.

Na agonia de tantos pezadelos
Uma dor bruta puxa-me os cabellos.
Desperto. É tão vazia a minha vida!
No pensamento desconnexo e falho
Trago as cartas confusas de um baralho
E um pedaço de cera derretida!

Dorme a casa. O ceu dorme. A arvore dorme.
Eu, somente eu, com a minha dor enorme
Os olhos ensanguento na vigilia!
E observo, emquanto o horror me corta a fala,
O aspecto sepulchral da austera sala
E a impassibilidade da mobilia.

Meu coração, como um crystal, se quebre;
O thermometro negue minha febre
Torne-se gelo o sangue que me abraza,
E eu me converta na cegonha triste
Que das ruinas duma casa assiste
Ao desmoronamento de outra casa!

Ao terminar este sentido poema
Onde vasei a minha dor suprema
Tenho os olhos em lagrimas immersos...
Rola-me na cabeça o cerebro ôco.
Por ventura, meu Deus, estarei louco?!
Daqui por diante não farei mais versos.

 

Parahyba — 1906

Eterna Magua

 

O homem por sobre quem cahiu a praga
Da tristeza do Mundo, o homem que é triste
Para todos os seculos existe
E nunca mais o seu pezar se apaga!

Não crê em nada, pois, nada ha que traga
Consolo á Magua, a que só elle assiste.
Quer resistir, e quanto mais resiste
Mais se lhe augmenta e se lhe afunda a chaga.

Sabe que soffre, mas o que não sabe
É que essa magua infinda assim, não cabe
Na sua vida, é que essa magua infinda

Transpõe a vida do seu corpo inerme;
E quando esse homem se transforma em verme
É essa magua que o acompanha ainda!

 

Pau d’Arco — 1904

Queixas Nocturnas

 

Quem foi que viu a minha Dor chorando?!
Saio. Minh’alma sáe agoniada.
Andam monstros sombrios pela estrada
E pela estrada, entre estes monstros, ando!

Não trago sobre a tunica fingida
As insignias medonhas do infeliz
Como os falsos mendigos de Paris
Na atra rua de Santa Margarida.

O quadro de afflições que me consomem
O proprio Pedro Americo não pinta...
Para pintal-o, era preciso a tinta
Feita de todos os tormentos do homem!

Como um ladrão sentado numa ponte
Espera alguem, armado de arcabuz,
Na ancia incoercivel de roubar a luz,
Estou á espera de que o Sol desponte!

Bati nas pedras dum tormento rude
E a minha magua de hoje é tão intensa
Que eu penso que a Alegria é uma doença
E a Tristeza é minha unica saúde!

As minhas roupas, quero até rompel-as!
Quero, arrancado das prisões carnaes,
Viver na luz dos astros immortaes,
Abraçado com todas as estrellas!

A Noite vae crescendo apavorante
E dentro do meu peito, no combate,
A Eternidade esmagadora bate
Numa dilatação exorbitante!

E eu lucto contra a universal grandeza
Na mais terrivel desesperação...
E’ a lucta, é o prelio enorme, é a rebellião
Da creatura contra a natureza!

Para essas luctas uma vida é pouca
Inda mesmo que os musculos se esforcem;
Os pobres braços do mortal se torcem
E o sangue jorra, em coalhos, pela bocca

E muitas vezes a agonia é tanta
Que, rolando dos ultimos degraus,
O Hercules treme e vai tombar no cháos
De onde seu corpo nunca mais levanta!

E’ natural que esse Hercules se estorça,
E tombe para sempre nessas luctas,
Estrangulado pelas rodas brutas
Do mechanismo que tiver mais força.

Ah! Por todos os seculos vindouros
Ha de travar-se essa batalha vã
Do dia de hoje contra o de amanhã,
Igual á lucta dos christãos e mouros!

Sobre historias de amor o interrogar-me
E’ vão, é inutil, é improficuo, em summa;
Não sou capaz de amar mulher alguma
Nem ha mulher talvez capaz de amar-me.

O amor tem favos e tem caldos quentes
E ao mesmo tempo que faz bem, faz mal;
O coração do Poeta é um hospital
Onde morreram todos os doentes.

Hoje é amargo tudo quanto eu gosto:
A benção matutina que recebo...
E é tudo: o pão que como, a agua que bebo,
O velho tamarindo a que me encosto!

Vou enterrar agora a harpa bohemia
Na atra e assombrosa solidão feroz
Onde não cheguem o echo duma voz
E o grito desvairado da blasphemia!

Que dentro de minh’alma americana
Não mais palpite o coração — esta arca,
Este relogio tragico que marca
Todos os actos da tragedia humana! —

Seja esta minha queixa derradeira
Cantada sobre o tumulo de Orpheu;
Seja este, emfim, o ultimo canto meu
Por esta grande noite brazileira!

Melancholia! Estende-me a tu’aza!
E’s a arvore em que devo reclinar-me...
Si algum dia o Prazer vier procurar-me
Dize a este monstro que eu fugi de casa!

Pau d’Arco — 1906

Insomnia

 

Noute. Da Magua o espirito noctambulo
Passou de certo por aqui chorando!
Assim, em magua, eu tambem vou passando
Somnambulo... somnambulo... somnambulo...

Que voz é esta que a gemer concentro
No meu ouvido e que do meu ouvido
Como um bemol e como um sostenido
Rola impetuosa por meu peito a dentro?!

— Por que é que este gemido me acompanha?!
Mas dos meus olhos no sombrio palco
Subito surge como um catafalco
Uma cidade ao mappa-mundi estranha.

A dispersão dos sonhos vagos reúno.
Desta cidade pelas ruas erra
A procissão dos Martyres da Terra
Desde os Christãos até Giordano Bruno!

Vejo deante de mim Santa Francisca
Que com o cilicio as tentações supplanta
E invejo o soffrimento desta Santa,
Em cujo olhar o Vicio não faisca!

Se eu pudesse ser puro! Se eu pudesse,
Depois de embebedado deste vinho,
Sahir da vida puro como o arminho
Que os cabellos dos velhos embranquece!

Porque cumpri o universal dictame!?
Pois se eu sabia onde morava o Vicio,
Porque não evitei o precipicio
Estrangulando minha carne infame?!

Até que dia o entoxicado aroma
Das paixões torpes sorverei contente?
E os dias correrão eternamente?!
E eu nunca sahirei desta Sodoma?!

Á proporção que a minha insomnia augmenta
Hieroglyphos e esphinges interrogo.
Mas, triumphalmente, nos ceus altos, logo
Toda a alvorada esplendida se ostenta.

Vagueio pela Noute decahida.
No espaço a luz de Aldebaran e de Argus
Vai projectando sobre os campos largos
O derradeiro phosphoro da Vida.

O Sol, equilibrando-se na esphera,
Restitue-me a pureza da hematose
E então uma interior metamorphose
Nas minhas arcas cerebraes se opera.

O odor da margarida e da begonia
Subitamente me penetra o olfato.
Aqui, neste silencio e neste matto,
Respira com vontade a alma camponia!

Grita a satisfação na alma dos bichos.
Incensa o ambiente o fumo dos cachimbos.
As arvores, as flores, os corimbos.
Recordam santos nos seus proprios nichos.

Com o olhar a verde periphéria abarco.
Estou alegre. Agora, por exemplo,
Cercado destas arvores, contemplo
As maravilhas reaes do meu Pau d’Arco!

Cedo virá, porém, o funerario,
Atro dragão da escura noute, hedionda,
Em que o Tedio, batendo na alma, estronda
Como um grande trovão extraordinario.

Outra vez serei pábulo do susto
E terei outra vez de, em magua immerso,
Sacrificar-me por amor do Verso
No meu eterno leito de Procusto!

 

Pau d’Arco — 1905.

Barcarola

 

Cantam nautas, choram flautas
Pelo mar e pelo mar
Uma sereia a cantar
Vela o Destino dos nautas.

Espelham-se os esplendores
Do ceu, em reflexos, nas
Aguas, fingindo crystaes
Das mais deslumbrantes côres.

E em fulvos filões doirados
Cáe a luz dos astros por
Sobre o maritimo horror
Como globos estrellados.

Lá onde as rochas se assentam
Fulguram como outros sóes
Os flammivomos pharóes
Que os navegantes orientam.

Vai uma onda, vem outra onda
E nesse eterno vaivem
Coitadas! Não acham quem,
Quem as esconda, as esconda.

Allegoria tristonha
Do que pelo Mundo vai!
Si um sonha e se ergue, outro cáe;
Si um cáe, outro se ergue e sonha.

Mas desgraçado do pobre
Que em meio da Vida cáe!
Esse não volta, esse vai
Para o tumulo que o cobre.

Vagueia um poeta num barco.
O Ceu, de cima, a luzir
Como um diamante de Ophir
Imita a curva de um arco.

A Lua — globo de louça —
Surgiu, em lucido veu.
Cantam! Os astros do Ceu
Ouçam e a Lua Cheia ouça!

Ouça do alto a Lua Cheia
Que a sereia vai fallar
Haja silencio no mar
Para se ouvir a sereia.

Que é que ella diz?! Será uma
Historia de amor feliz?
Não! O que a sereia diz
Não é historia nenhuma.

É como um requiem profundo
De tristissimos bemóes.
Sua voz é egual á voz
Das dores todas do mundo!

«Fecha-te nesse medonho
«Reducto de Maldição,
«Viajeiro da Extrema-Uncção,
«Sonhador do ultimo sonho!

«Numa redoma illusoria
«Cercou-te a gloria fallaz,
«Mas nunca mais, nunca mais
«Ha de cercar-te essa gloria!

«Nunca mais! Sê, porém, forte.
«O poeta é como Jesus!
«Abraça-te à tua Cruz
«E morre, poeta da Morte!»

— E disse e porque isto disse
O luar no Ceu se apagou.
Subito o barco tombou
Sem que o poeta o presentisse!

Vista de luto o Universo
E Deus se enlute no Ceu!
Alais um poeta que morreu,
Mais um coveiro do Verso!

Cantam nautas, choram flautas
Pelo mar e pelo mar
Uma sereia a cantar
Vela o Destino dos nautas!

Tristesas de um
Quarto Minguante

 

Quarto-Minguante! E, embora a lua o aclare,
Este Engenho Pau d’Arco é muito triste.
Nos engenhos da varzea não existe
Talvez um outro que se lhe equipare!

Do observatorio em que eu estou situado
A lua magra, quando a noite cresce,
Vista, atravéz do vidro azul, parece
Um parallelipipedo quebrado!

O somno esmaga o encéphalo do povo.
Tenho 3OO kilos no epigastro.
Dóe-me a cabeça. Agora a cara do astro
Lembra a metade de uma casca de ovo.

Diabo! não ser mais tempo de milagre!
Para que esta oppressão desappareça
Vou amarrar um panno na cabeça,
Molhar a minha fronte com vinagre.

Augmentam-se-me então os grandes medos.
O hemispherio lunar se ergue e se abaixa
Num desenvolvimento de borracha,
Variando á acção mechanica dos dedos;

Vai-me crescendo a aberração do sonho.
Morde-me os nervos o desejo doudo
De dissolver-me, de enterrar-me todo
Naquelle semi-circulo medonho!

Mas tudo isto é illusão de minha parte!
Quem sabe se não é porque não saio
Desde que, 6ª-feira, 3 de Maio,
Eu escrevi os meus Gemidos de Arte?!

A lampada a estirar linguas vermelhas
Lambe o ar. No bruto horror que me arrebata,
Como um degenerado psychopatha
Eis-me a contar o numero das telhas!

— Uma, duas, tres, quatro. E aos tombos, tonta
Sinto a cabeça e a conta perco; e, em summa,
A conta recomeço, em ancias: — Uma.
Mas novamente eis-me a perder a conta!

Succede a uma tontura outra tontura.
— Estarei morto?! E a esta pergunta extranha
Responde a Vida — aquella grande aranha
Que anda tecendo a minha desventura! —

A luz do quarto diminuindo o brilho
Segue todas as phases de um eclypse.
Começo a ver coisas de Apocalypse
No triangulo escaleno do ladrilho!

Deito-me emfim. Ponho o chapéu num gancho.
Cinco lençóes balançam numa corda,
Mas aquillo mortalhas me recorda,
E o amontoamento dos lençòes desmancho.

Vêm-me á imaginação sonhos dementes.
Acho-me, por exemplo, numa festa.
Tomba uma torre sobre a minha testa,
Caem-me de uma só vez todos os dentes!

Então dois ossos roidos me assombraram.
— «Por ventura haverá quem queira roer-nos?!
Os vermes já não querem mais comer-nos
E os formigueiros já nos desprezaram».

Figuras espectraes de boccas tronchas
Tornam-me o pesadelo duradouro.
Chóro e quero beber a agua do chôro
Com as mãos dispostas á feição de conchas.

Tal uma planta aquatica submersa,
Ante-gozando as ultimas delicias
Mergulho as mãos — vis raizes adventicias —
No algodão quente de um tapete persa.

Por muito tempo rólo no tapete.
Subito me ergo. A lua é morta. Um frio
Cahe sobre o meu estomago vasio
Como se fosse um cópo de sorvete!

A alta frialdade me insensibilisa;
O suor me ensopa. Meu tormento é infindo...
Minha familia ainda està dormindo
E eu não posso pedir outra camisa!

Abro a janella. Elevam-se fumaças
Do engenho enorme. A luz fulge abundante
E em vez do sepulchral Quarto-Minguante
Vi que era o sol batendo nas vidraças.

Pelos respiratorios tenues tubos
Dos póros vegetaes, no acto da entréga
Do matto verde, a terra resfolèga
Estrumada, feliz, cheia de adubos.

Concavo, o ceu, radiante e estriado, observa
A universal creação. Broncos e feios,
Varios reptis cortam os campos, cheios
Dos tenros tinhorões e da humida herva.

Babujada por baixos beiços brutos,
No humus feraz, hieratica, se ostenta
A monarchia da arvore opulenta
Que dá aos homens o obolo dos fructos.

De mim diverso, rigido e de rastos
Com a solidez do tegumento sujo
Sulca, em diametro, o sólo um caramujo
Naturalmente pelos mata-pastos.

Entretanto, passei o dia inquieto,
A ouvir, nestes bucólicos retiros,
Toda a salva fatal de 21 tiros
Que festejou os funeraes de Hamleto!

Ah! Minha ruina é peor do que a de Thebas!
Quizera ser, numa ultima cobiça,
A fatia esponjosa de carniça
Que os corvos comem sobre as jurubebas!

Porque, longe do pão com que me nutres
Nesta hora, oh! Vida, em que a soffrer me exhortas
Eu estaria como as bestas mortas
Pendurado no bico dos abutres!

 

Pau d’Arco, Maio — 1907

Mysterios de um Phosphoro

 

Pego de um phosphoro. Olho-o. Olho-o ainda. Risco-o
Depois. E o que depois fica e depois
Resta é um ou, por outra, é mais de um, são dois
Tumulos dentro de um carvão promiscuo.

Dois são, porque um, certo, é do sonho assíduo
Que a individual psychê humana tece e
O outro é o do sonho altruistico da especie
Que é o substractum dos sonhos do individuo!

E exclamo, ébrio, a esvasiar bácchicos odres:
— «Cinza, synthese má da podridão,
«Miniatura allegorica do chão,
«Onde os ventres maternos ficam pôdres;

«Na tua clandestina e erma alma vasta,
«Onde nenhuma lampada se accende,
«Meu raciocinio sóffrego surprehende
«Todas as fórmas da materia gasta!»

Raciocinar! Aziaga contingencia!
Ser quadrupede! Andar de quatro pés
É mais do que ser Christo e ser Moysés
Porque é ser animal sem ter consciencia!

Bebedo, os beiços na amphora infima, harto,
Mergulho, e na infima amphora, harto, sinto
O amargor especifico do absintho
E o cheiro animalissimo do parto!

E afógo mentalmente os olhos fundos
Na amorphia da cytula inicial,
De onde, por epigénese geral,
Todos os organismos são oriundos.

Presto, irrupto, atravez ovoide e hyalino
Vidro, apparece, amorpho e lúrido, ante
Minha massa encephalica minguante
Todo o genero humano intra-uterino!

É o cháos da ávita viscera avarenta
— Mucosa nojentissima de pús,
A nutrir diariamente os fétos nús
Pelas villosidades da placenta! —

Certo, o architectural e integro aspecto
Do mundo o mesmo inda é, que, ora, o que nelle
Morre, sou eu, sois vós, é todo aquelle
Que vem de um ventre inchado, infimo e infecto!

É a flor dos genealógicos abysmos
— Zooplasma pequenissimo e plebeu,
De onde o desprotegido homem nasceu
Para a fatalidade dos tropismos. —

Depois, é o ceu abscóndito do Nada.
É este acto extraordinario de morrer
Que ha de, na ultima hebdómada, attender
Ao pedido da céllula cansada!

Um dia restará, na terra instavel,
De minha anthropocéntrica matéria
Numa concava chicara funerea
Uma colher de cinza miseravel!

Abro na treva os olhos quasi cégos.
Que mão sinistra e desgraçada encheu
Os olhos tristes que meu Pae me deu
De alfinetes, de agulhas e de pregos?!

Pesam sobre o meu corpo oitenta arráteis!
Dentro um dynamo despota, sósinho,
Sob a morphologia de um moinho,
Move todos os meus nervos vibrateis.

Então, do meu espirito, em segredo,
Se escapa, dentre as ténebras, muito alto,
Na synthese acrobatica de um salto,
O espectro angulosissimo do Medo!

Em scismas philosophicas me perco
E vejo, como nunca outro homem viu,
Na amphigonia que me produziu
Nonilliões de moleculas de esterco.

Vida, mónada vil, cosmico zéro,
Migalha de albumina semi-fluida,
Que fez a bocca mystica do druida
E a lingua revoltada de Luthero;

Teus gyneceus prolificos envolvem
Cinza fetal!. Basta um phosphoro só
Para mostrar a incognita de pò,
Em que todos os seres se resolvem!

Ah! Maldito o connúbio incestuoso
Dessas affinidades electivas,
De onde chimicamente tu derivas,
Na acclamação symbiótica do gozo!

O enterro de minha ultima neurona
Desfila... E eis-me outro phosphoro a riscar,
E esse accidente chimico vulgar
Extraordinariamente me impressiona!

Mas minha crise arthritica não tarda.
Adeus! Que eu vejo emfim, com a alma vencida,
Na abjecção embryologica da vida
O futuro de cinza que me aguarda!

 

Parahyba, 1910