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Prometeu sacudiu os braços manietados
E súplice pediu a eterna compaixão,
Ao ver o desfilar dos séculos que vão
Pausadamente, como um dobre de finados.

Mais dez, mais cem, mais mil e mais um bilião,
Uns cingidos de luz, outros ensangüentados...
Súbito, sacudindo as asas de tufão,
Fita-lhe a águia em cima os olhos espantados.

Pela primeira vez a víscera do herói,
Que a imensa ave do céu perpetuamente rói,
Deixou de renascer às raivas que a consomem.

Uma invisível mão as cadeias dilui;
Frio, inerte, ao abismo um corpo morto rui;
Acabara o suplício e acabara o homem.

Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:
"Quem me dera que eu fosse aquela loira estrela
Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!"
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:

"Pudesse eu copiar-te o transparente lume,
Que, da grega coluna à gótica janela,
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela"
Mas a lua, fitando o sol com azedume:

"Mísera! Tivesse eu aquela enorme, aquela
Claridade imortal, que toda a luz resume"!
Mas o sol, inclinando a rútila capela:

"Pesa-me esta brilhante auréola de nume...
Enfara-me esta luz e desmedida umbela...
Por que não nasci eu um simples vaga-lume?"...

Sei de uma criatura antiga e formidável,
Que a si mesma devora os membros e as entranhas
Com a sofreguidão da fome insaciável.

Habita juntamente os vales e as montanhas;
E no mar, que se rasga, à maneira de abismo,
Espreguiça-se toda em convulsões estranhas.

Traz impresso na fronte o obscuro despotismo;
Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,
Parece uma expansão de amor e de egoísmo.

Friamente contempla o desespero e o gozo,
Gosta do colibri, como gosta do verme,
E cinge ao coração o belo e o monstruoso.

Para ela o chacal é, como a rola, inerme;
E caminha na terra imperturbável, como
Pelo vasto areal um vasto paquiderme.

Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo
Vem a folha, que lento e lento se desdobra,
Depois a flor, depois o suspirado pomo.

Pois essa criatura está em toda a obra:
Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto;
E é nesse destruir que as suas forças dobra.

Ama de igual amor o poluto e o impoluto;
Começa e recomeça uma perpétua lida,
E sorrindo obedece ao divino estatuto.
Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida.

Sabes tu de um poeta enorme
Que andar não usa
No chão, e cuja estranha musa,
Que nunca dorme,

Calça o pé, melindroso e leve,
Como uma pluma,
De folha e flor, de sol e neve,
Cristal e espuma;

E mergulha, como Leandro,
A forma rara
No Pó, no Sena, em Guanabara
E no Escamandro;

Ouve a Tupã e escuta a Momo,
Sem controvérsia,
E tanto ama o trabalho, como
Adora a inércia;

Ora do f'uste, ora da ogiva,
Sair parece;
Ora o Deus do ocidente esquece
Pelo deus Siva;

Gosta do estrépito infinito,
Gosta das longas
Solidões em que se ouve o grito
Das arapongas;

E, se ama o lépido besouro,
Que zumbe, zumbe,
E a mariposa que sucumbe
Na flama de ouro,

Vaga-lumes e borboletas,
Da cor da chama,
Roxas, brancas, rajadas, prestas,
Não menos ama

Os hipopótamos tranqüilos,
E os elefantes,
E mais os búfalos nadantes
E os crocodilos,

Como as girafas e as panteras,
Onças, condores,
Toda a casta de bestas-feras
E voadores.

Se não sabes quem ele seja
Trepa de um salto,
Azul acima, onde mais alto
A águia negreja;

Onde morre o clamor iníquo
Dos violentos,
Onde não chega o riso oblíquo
Dos fraudulentos;

Então, olha de cima posto
Para o oceano,
Verás num longo rosto humano
Teu próprio rosto.

E hás de rir, não do riso antigo,
Potente e largo,
Riso de eterno moço amigo,
Mas de outro amargo,

Como o riso de um deus enfermo
Que se aborrece
Da divindade, e que apetece
Também um termo...

MUNDO INTERIOR


Ouço que a natureza é uma lauda eterna
De pompa, de fulgor, de movimento e lida,
Uma escala de luz, uma escala de vida
      De sol á infima luzerna.

Ouço que a natureza, — a natureza externa, —
Tem o olhar que namora, e o gesto que intimida
Feiticeira que ceva uma hydra de Lerna
      Entre as flôres da bella Armida.

E comtudo, se fecho os olhos, e mergulho
Dentro em mim, vejo á luz de outro sol, outro abysmo
Em que um mundo mais vasto, armado de outro orgulho,

Róla a vida immortal e o eterno cataclismo,
E, como o outro, guarda em seu ambito enorme,
Um segredo que attrae, que desafia — e dorme.

O CORVO


(EDGAR POE)


         Em certo dia, á hora, á hora
         Da meia-noite que apavora,
Eu, cahindo de somno e exausto de fadiga,
         Ao pé de muita lauda antiga,
      De uma velha doutrina, agora morta,
      Ia pensando, quando ouvi á porta
      Do meu quarto um soar devagarinho,
         E disse estas palavras taes:
«É alguem que me bate á porta de mansinho;
         «Ha de ser isso e nada mais.»

         Ah! bem me lembro! bem me lembro!
         Era no glacial Dezembro;
Cada braza do lar sobre o chão reflectia
         A sua ultima agonia.

      Eu, ancioso pelo sol, buscava
      Saccar d’aquelles livros que estudava
      Repouso (em vão!) á dôr esmagadora
         D’estas saudades immortaes
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora,
         E que ninguem chamará mais.

         E o rumor triste, vago, brando
         Das cortinas ia acordando
Dentro em meu coração um rumor não sabido
         Nunca por elle padecido.
      Emfim, por applacal-o aqui no peito,
      Levantei-me de prompto, e: «Com effeito,
      (Disse) é visita amiga e retardada
         «Que bate a estas horas taes.
«É visita que pede á minha porta entrada:
         «Ha de ser isso e nada mais.»

         Minh’alma então sentiu-se forte;
         Não mais vacillo e d’esta sorte
Fallo: «Imploro de vós, — ou senhor ou senhora,
         «Me desculpeis tanta demora.
      «Mas como eu, precisado de descanço,
      «Já cochilava, e tão de manso e manso
      «Batestes, não fui logo, prestemente,
         «Certificar-me que ahi estaes.»
Disse; a porta escancaro, acho a noite somente,
         Sómente a noite, e nada mais.

         Com longo olhar escruto a sombra,
         Que me amedronta, que me assombra,

E sonho o que nenhum mortal ha já sonhado,
         Mas o silencio amplo e calado,
      Calado fica; a quietação quieta;
      Só tu, palavra unica e dilecta,
      Lenora, tu, como um suspiro escasso,
         Da minha triste boca saes;
E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;
         Foi isso apenas, nada mais.

         Entro co’ a alma incendiada.
         Logo depois outra pancada
Sôa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ella:
         «Seguramente, ha na janella
      «Alguma cousa que sussura. Abramo
      «Eia, fôra o temor, eia, vejamos
      «A explicação do caso mysterioso
         «D’essas duas pancadas taes.
«Devolvamos a paz ao coração medroso,
         «Obra do vento e nada mais.»

         Abro a janella, e de repente,
         Vejo tumultuosamente
Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias.
         Não despendeu em cortezias
      Um minuto, um instante. Tinha o aspecto
      De um lord ou de uma lady. E prompto e recto
      Movendo no ar as suas negras alas,
         Acima vôa dos portaes,
Trepa, no alto da porta, em um busto de Pallas;
         Trepado fica, e nada mais.

         Diante da ave feia e escura,
         Naquella rigida postura,
Com o gesto severo, — o triste pensamento
         Sorriu-me alli por um momento,
      E eu disse: «Ó tu que das nocturnas plagas
      «Vens, embora a cabeça nua tragas,
      «Sem topete, não és ave medrosa,
         «Dize as teus nomes senhoriaes;
«Como te chamas tu na grande noite umbrosa?»
         E o corvo disse; «Nunca mais.»

         Vendo que o passaro entendia
         A pergunta que lhe eu fazia,
Fico attonito, embora a resposta que dera
         Difficilmente lh’a entendera.
      Na verdade, jamais homem ha visto
      Cousa na terra semelhante a isto:
      Uma ave negra, friamente posta
         N’um busto, acima dos portaes,
Ouvir uma pergunta e dizer em resposta
         Que este é seu nome: «Nunca mais.»

         No emtanto, o corvo solitario
         Não teve outro vocabulario,
Como se essa palavra escassa que alli disse
         Toda a sua alma resumisse.
      Nenhuma outra proferiu, nenhuma,
      Não chegou a mexer uma só pluma,
      Até que eu murmurei: «Perdi outr’ora
         Tantos amigos tão leaes!

«Perdeirei tambem este em regressando a aurora.»
         E o corvo disse: «Nunca mais!»

         Estremeço. A resposta ouvida
         É tão exacta! é tão cabida!
«Certamente, digo eu, essa é toda a sciencia
         «Que elle trouxe da convivéncia
      «De algum mestre infeliz e acabrunhado
      «Que o implacavel destino ha castigado
      «Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga,
         «Que dos seus cantos usuaes
«Só lhe ficou, na amarga e ultima cantiga,
         «Esse estribilho: «Nunca mais.»

         Segunda vez, nesse momento,
         Sorriu-me o triste pensamento;
Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo;
         E mergulhando no velludo
      Da poltrona que eu mesmo alli trouxera
      Achar procuro a lugubre chimera,
      A alma, o sentido, o pavido segredo
         Daquellas syllabas fataes,
Entender o que quiz dizer a ave do medo
         Grasnando a phrase: — Nunca mais.

         Assim posto, devaneando,
         Meditando, conjecturando,
Não lhe fallava mais; mas, se lhe não fallava,
         Sentia o olhar que me abrazava.
      Conjecturando fui, tranquillo, a gosto,
      Com a cabeça no macio encosto

      Onde os raios da lampada cahiam
         Onde as tranças angelicaes
De outra cabeça outr’ora alli se desparziam,
         E agora não se esparzem mais.

         Suppuz então que o ar, mais denso,
         Todo se enchia de um incenso,
Obra de seraphins que, pelo chão roçando
         Do quarto, estavam meneando
      Um ligeiro thuribulo invisivel;
      E eu exclamei então: «Um Deus sensivel
      «Manda repouso á dor que te devora
         «D’estas saudades immortaes.
«Eia, esquece, eia, olvida essa extincta Lenora.»
         E o corvo disse: «Nunca mais.»

         «Propheta, ou o que quer que sejas!
         «Ave ou demonio que negrejas!
«Propheta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno
         «Onde reside o mal eterno,
      «Ou simplesmente naufrago escapado
      «Venhas do temporal que te ha lançado
      «N’esta casa onde o Horror, o Horror profundo
         «Tem os seus lares triumphaes,
«Dize-me: existe acaso um balsamo no mundo?»
         E o corvo disse: «Nunca mais.»

         «Propheta, ou o que quer que sejas!
         «Ave ou demonio que negrejas!
«Propheta sempre, escuta, attende, escuta, attende!
         «Por esse céu que alem se estende,

      «Pelo Deus que ambos adoramos, falla,
      «Dize a esta alma se é dado inda escutal-a
      «No Eden celeste a virgem que ella chora
         «Nestes retiros sepulchraes,
«Essa que ora nos ceus anjos chamam Lenora!»
         E o corvo disse: «Nunca mais.»

         «Ave ou demonio que negrejas!
         «Propheta, ou o que quer que sejas!
«Cessa, ai, cessa! clamei, levantando-me, cessa!
         «Regressa ao temporal, regressa
      «Á tua noite, deixa-me commigo.
      «Vae-te, não fique no meu casto abrigo
      «Pluma que lembre essa mentira tua.
         «Tira-me ao peito essas fataes
«Garras que abrindo vão a minha dor já crua.»
         E o corvo disse: «Nunca mais.»

         E o corvo ahi fica; eil-o trepado
         No branco marmore lavrado
Da antiga Pallas; eil-o immutavel, ferrenho.
         Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
      Um demonio sonhando. A luz cahida
      Do lampeão sobre a ave aborrecida
      No chão espraia a triste sombra; e fóra
         D’aquellas linhas funeraes
Que fluctuam no chão, a minha alma que chora
         Não sai mais, nunca, nunca mais!


PERGUNTAS SEM RESPOSTA


Venus Formosa, Venus fulgurava
No azul do céu da tarde que morria,
Quando á janella os braços encostava
         Pallida Maria.

Ao ver o noivo pela rua umbrosa,
Os longos olhos avidos enfia,
E fica de repente côr de rosa
         Pallida Maria.

Correndo vinha no cavallo baio,
Que ela de longe apenas distinguia,
Correndo vinha o noivo, como um raio...
         Pallida Maria!

Trez dias são, trez dias são apenas,
Antes que chegue o suspirado dia,

Em que elles porão termo ás longas penas...
         Pallida Maria!

De confusa, naquelle sobressalto,
Que a presença do amado lhe trazia,
Olhos accesos levantou ao alto
         Pallida Maria.

E foi subindo, foi subindo acima
No azul do céu da tarde que morria,
A ver se achava uma sonora rima...
         Pallida Maria!

Rima de amor, ou rima de ventura,
As mesmas são na escala da harmonia.
Pousa os olhos em Venus que fulgura
         Pallida Maria.

E o coração, que de prazer lhe bate,
Acha no astro a fraterna melodia
Que á natureza inteira dá rebate...
         Pallida Maria.

Maria pensa: «Tambem tu, decerto,
«Esperas ver, neste final do dia,
«Um noivo amado que cavalga perto,
         «Pallida Maria?»

Isto dizendo, subito escutava
Um estrepito, um grito e vozeria,

E logo a frente em ancias inclinava
         Pallida Maria.

Era o cavallo, rabido, arrastando
Pelas pedras o noivo que morria;
Maria o viu e desmaiou gritando...
         Pallida Maria!

Sobem o corpo, vestem-lhe a mortalha,
E a mesma noiva, semi-morta e fria,
Sobre elle as folhas do noivado espalha.
         Pallida Maria!

Cruzam-se as mãos, na derradeira prece
Muda que o homem para cima envia,
Antes que desça á terra em que apodrece.
         Pallida Maria!

Seis homens tomam do caixão fechado
E vão leval-o á cova que se abria;
Terra e cal e um responso recitado...
         Pallida Maria

Quando, trez soes passados, rutilava
A mesma Venus, no morrer do dia,
Tristes olhos ao alto levantava
         Pallida Maria.

E murmurou: «Tens a expressão do goivo,
«Tens a mesma roaz melancholia;

«Certamente perdeste o amor e o noivo,
         «Pallida Maria?»

Venus, porém, Venus brilhante e bella,
Que nada ouvia, nada respondia,
Deixa rir ou chorar n’uma janela

         Pallida Maria.

TO BE OR NOT TO BE


(SHAKESPEARE)


Ser ou não ser, eis a questão. Acaso
É mais nobre a cerviz curvar aos golpes
Da ultrajosa fortuna, ou já lutando
Extenso mar vencer de acerbos males?
Morrer, dormir, não mais. E um somno apenas,
Que as angustias extingue e á carne a herança
Da nossa dor eternamente acaba,
Sim, cabe ao homem suspirar por elle.
Morrer, dormir. Dormir? Sonhar, quem sabe!
Ai, eis a duvida. Ao perpetuo somno,
Quando o lodo mortal despído houvermos,
Que sonhos hão de vir? Pesal-o cumpre.
Essa a razão que os luctuosos dias
Alonga do infortunio. Quem do tempo
Soffrer quizera ultrajes e castigos,

TO BE OR NOT TO BE


(SHAKESPEARE)


Ser ou não ser, eis a questão. Acaso
É mais nobre a cerviz curvar aos golpes
Da ultrajosa fortuna, ou já lutando
Extenso mar vencer de acerbos males?
Morrer, dormir, não mais. E um somno apenas,
Que as angustias extingue e á carne a herança
Da nossa dor eternamente acaba,
Sim, cabe ao homem suspirar por elle.
Morrer, dormir. Dormir? Sonhar, quem sabe!
Ai, eis a duvida. Ao perpetuo somno,
Quando o lodo mortal despído houvermos,
Que sonhos hão de vir? Pesal-o cumpre.
Essa a razão que os luctuosos dias
Alonga do infortunio. Quem do tempo
Soffrer quizera ultrajes e castigos,

Injurias da oppressão, baldões do orgulho,
Do mal prezado amor choradas maguas,
Das leis a inercia, dos mandões a affronta,
E o vão desdem que de rasteiras almas
O paciente merito recebe,
Quem, se na ponta da despida lamina
Lhe acenára o descanço? Quem ao pezo
De uma vida de enfados e miserias
Quereria gemer, se não sentira
Terror de alguma não sabida cousa
Que aguarda o homem para lá da morte,
Esse eterno paiz mysterioso
D’onde um viajor sequer ha regressado?
Este só pensamento enleia o homem;
Este nos leva a supportar as dores
Já sabidas de nós, em vez de abrirmos
Caminho aos males que o futuro esconde,
E a todos acovarda a consciencia.
Assim da reflexão á luz mortiça
A viva côr da decisão desmaia;
E o firme, essencial commettimento,
Que esta ideia abalou, desvia o curso,
Perde-se, até de acção perder o nome.

Vem, vem das águas, mísera Moema,
Senta-te aqui. As vozes lastimosas
Troca pelas cantigas deleitosas,
Ao pé da doce e pálida Coema.

Vós, sombras de Iguaçu e de Iracema,
Trazei nas mãos, trazei no colo as rosas
Que o amor desabrochou e fez viçosas
Nas laudas de um poema e outro poema.

Chegai, folgai, cantai. É esta, é esta
De Lindóia, que a voz suave e forte
Do vate celebrou, a alegre festa.

Além do amável, gracioso porte,
Vede o mimo, a ternura que lhe resta.
Tanto inda é bela no seu rosto a morte

SUAVE MARI MAGNO


Lembra-me que, em certo dia,
Na rua, ao sol de verão,
Envenenado morria
         Um pobre cão.

Arfava, espumava e ria,
De um riso espurio e bufão,
Ventre e pernas sacudia
         Na convulsão.

Nenhum, nenhum curioso
Passava, sem se deter,
         Silencioso,

Junto ao cão que ia morrer,
Como se lhe désse gozo
         Ver padecer.

A MOSCA AZUL


Era uma mosca azul, azas de ouro e granada,
         Filha da China ou do Indostão,
Que entre as folhas brotou de uma rosa encarnada,
         Em certa noite de verão.

E zumbia, e voava, e voava, e zumbia
         Refulgindo ao clarão do sol
E da lua, — melhor do que refulgiria
         Um brilhante do Grão-Mogol.

Um poleá que a viu, espantado e tristonho,
         Um poleá lhe perguntou:
«Mosca, esse refulgir, que mais parece um sonho,
         Dize, quem foi que t’o ensinou?»

Então ella, voando, e revoando, disse:
         — «Eu sou a vida, eu sou a flor

«Das graças, o padrão da eterna meninice,
         «E mais a gloria, e mais o amor.»

E elle deixou-se estar a contemplal-a, mudo,
         E tranquillo, como um faquir,
Como alguem que ficou deslembrado de tudo,
         Sem comparar, nem reflectir.

Entre as azas do insecto, a voltear no espaço,
         Uma cousa lhe pareceu
Que surdia, com todo o resplendor de um paço
         E viu um rosto, que era o seu.

Era elle, era um rei, o rei de Cachemira,
         Que tinha sobre o collo nú
Um immenso collar de opala, e uma saphyra
         Tirada do corpo de Vischnu.

Cem mulheres em flôr, cem nayras superfinas,
         Aos pés delle, no liso chão,
Espreguiçam sorrindo as suas graças finas,
         E todo o amor que tem lhe dão.

Mudos, graves, de pé, cem ethiopes feios,
         Com grandes leques de avestruz,
Refrescam-lhes de manso os aromados seios,
         Voluptuosamente nus.

Vinha a gloria depois; — quatorze reis vencidos,
         E enfim as páreas triumphaes

De trezentas nações, e os parabens unidos
         Das coroas occidentaes.

Mas o melhor de tudo é que no rosto aberto
         Das mulheres e dos varões,
Como em agua que deixa o fundo descoberto,
         Via limpos os corações.

Então elle, estende a mão callosa e tosca,
         Affeita a só carpintejar,
Com um gesto pegou na fulgurante mosca,
         Curioso de a examinar.

Quiz vel-a, quis saber a causa do mysterio.
         E, fechando-a na mão, sorriu
De contente, ao pensar que alli tinha um imperio,
         E para casa se partiu.

Alvoroçado chega, examina, e parece
         Que se houve nessa occupação
Miudamente, como um homem que quizesse
         Dissecar a sua illusão.

Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ella,
         Rota, baça, nojenta, vil,
Succumbiu; e com isto esvaiu-se-lhe aquella
         Visão fantastica e subtil.

Hoje, quando elle ahi vae, de aloé e cardamomo
         Na cabeça, com ar taful,
Dizem que ensandeceu, e que não sabe como
         Perdeu a sua mosca azul.

21 de outubro de 1739

Antônio, a sapiência da Escritura
Clama que há para a humana criatura
Tempo de rir e tempo de chorar,
Como há um sol no ocaso, e outro na aurora.
Tu, sangue de Efraim e de Issacar,
Pois que já riste, chora.

Gosto de ver-te, grave e solitário,
Sob o fumo de esquálida candeia,
Nas mãos a ferramenta de operário,
E na cabeça a coruscante idéia.

E enquanto o pensamento delineia
Uma filosofia, o pão diário
A tua mão a labutar granjeia
E achas na independência o teu salário.

Soem cá fora agitações e lutas,
Sibile o bafo aspérrimo do inverno,
Tu trabalhas, tu pensas, e executas

Sóbrio, tranqüilo, desvelado e terno,
A lei comum, e morres, e transmutas
O suado labor no prêmio eterno.

Esta musa da pátria, esta saudosa
Niobe dolorida,
Esquece acaso a vida,
Mas não esquece a morte gloriosa.

E pálida, e chorosa,
Ao Tejo voa, onde no chão caída
Jaz aquela evadida
Lira da nossa América viçosa.

Com ela torna, e, dividindo os ares,
Trépido, mole, doce movimento
Sente nas frouxas cordas singulares.

Não é a asa do vento,
Mas a sombra do filho, no momento
De entrar perpetuamente os pátrios lares.

ALENCAR


Hão de annos volver, — não como as neves
De alheios climas, de geladas cores;
Hão de os annos volver, mas como as flôres,
Sobre o teu nome, vividos e leves...

Tu, cearense musa, que os amores
Meigos e tristes, rusticos e breves,
Da indiana escreveste, — ora os escreves
No volume dos patrios esplendores.

E ao tornar este sol, que te ha levado,
Já não acha a tristeza. Extincto é o dia
Da nossa dor, do nosso amargo espanto.

Porque o tempo implacavel e pausado,
Que o homem consumiu na terra fria,
Não consumiu o engenho, a flôr, o encanto...

CAMÕES


I


Tu quem és? Sou o seculo que passa.
Quem somos nós? A multidão fremente.
Que cantamos? A gloria resplendente.
De quem? De quem mais soube a força e a graça.

Que cantou elle? A vossa mesma raça.
De que modo? Na lyra alta e potente.
A quem amou? A sua forte gente.
Que lhe deram? Penuria, ermo, desgraça.

Nobremente soffreu? Como homem forte.
Esta immensa oblação?... É-lhe devida.
Paga?... Paga-lhe toda a adversa sorte.

Chama-se a isto? A gloria appetecida.
Nós, que o cantamos?... Volvereis á morte.
Elle, que é morto?... Vive a eterna vida.


II


Quando, transposta a lugubre morada
Dos castigos, ascende o florentino
Á região onde o clarão divino
Enche de intensa luz a alma nublada,

A saudosa Beatriz, a antiga amada,
A mão lhe estende e guia o peregrino,
E aquelle olhar ethereo e cristallino
Rompe agora da palpebra sagrada.

Tu, que tambem o Purgatorio andaste,
Tu, que rompeste os circulos do Inferno,
Camões, se o teu amor fugir deixaste,

Ora o tens, como um guia alto e superno
Que a Natercia da vida que choraste
Chama-se Gloria e tem o amor eterno.

III


Quando, torcendo a chave mysteriosa
Que os cancellos fechava do Oriente,
O Gama abriu a nova terra ardente
Aos olhos da companha valorosa,

Talvez uma visão resplandecente
Lhe amostrou no futuro a sonorosa
Tuba, que cantaria a acção famosa
Aos ouvidos da própria e extranha gente.

E disse: «Se já n’outra, antiga edade,
«Troya bastou aos homens, ora quero
«Mostrar que é mais humana a humanidade.

«Pois não serás heroe de um canto fero,
«Mas vencerás o tempo e a immensidade
«Na voz de outro moderno e brando Homero.»


IV


Um dia, junto á foz de brando e amigo
Rio de extranhas gentes habitado,
Pelos mares asperrimos levado,
Salvaste o livro que viveu comtigo.

E esse que foi ás ondas arrancado,
Já livre agora do mortal perigo,
Serve de arca immortal, de eterno abrigo,
Não só a ti, mas ao teu berço amado.

Assim, um homem só, naquelle dia,
Naquelle escasso ponto do universo,
Lingua, historia, nação, armas, poesia,

Salva das frias mãos do tempo adverso.
E tudo aquillo agora o desafia.
E tão sublime preço cabe em verso.

Esse que as vestes ásperas cingia,
E a viva flor da ardente juventude
Dentro do peito a todos escondia;

Que em páginas de areia vasta e rude
Os versos escrevia e encomendava
A mente, como esforço de virtude;

Esse nos rios de Babel achava,
Jerusalém, os cantos primitivos,
E novamente aos ares os cantava.

Não procedia então como os cativos
De Sião, consumidos de saudade,
Velados de tristeza, e pensativos.

Os cantos de outro clima e de outra idade
Ensinava sorrindo às novas gentes
Pela língua do amor e da piedade.

E iam caindo os versos excelentes
No abençoado chão, e iam caindo
Do mesmo modo as místicas sementes.

Nas florestas os pássaros, ouvindo
O nome de Jesus e os seus louvores,
Iam cantando o mesmo canto lindo.

Eram as notas como alheias flores
Que verdejam no meio de verduras
De diversas origens e primores.

Anchieta, soltando as vozes puras,
Achas outra Sião neste hemisfério,
E a mesma fé e igual amor apuras.

Certo, ferindo as cordas do saltério,
Unicamente contas divulgá-la
A palavra cristã e o seu mistério.

Trepar não cuidas a luzente escala
Que os heróis cabe e leva à clara esfera
Onde eterna se faz a humana fala.

Onde os tempos não são esta quimera
Que apenas brilha e logo se esvaece,
Como folhas de escassa primavera.

Onde nada se perde nem se esquece,
E no dorso dos séculos trazido
O nome de Anchieta resplandece
Ao vivo nome do Brasil unido.

SONETO DE NATAL


Um homem, — era aquella noite amiga,
Noite christã, berço do Nazareno, —
Ao relembrar os dias de pequeno,
E a viva dança, e a lepida cantiga,

Quiz transportar ao verso doce e ameno
As sensações da sua edade antiga,
Naquella mesma velha noite amiga,
Noite christã, berço do Nazareno.

Escolheu o soneto... A folha branca
Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,
A penna não acode ao gesto seu.

E, em vão lutando contra o metro adverso,
Só lhe saiu este pequeno verso:
«Mudaria o Natal ou mudei eu?»

Mal que se espalha o terror e que a ira celeste
Inventou para castigar
Os pecados do mundo, a peste, em suma, a peste,
Capaz de abastecer o Aqueronte num dia
Veio entre os animais lavrar;
E, se nem tudo sucumbia,
Certo é que tudo adoecia.
Já nenhum, por dar mate ao moribundo alento,
Catava mais nenhum sustento,
Não havia manjar que o apetite abrisse,
Raposa ou lobo que saísse
Contra a presa inocente e mansa,
Rola que à rola não fugisse,
E onde amor falta, adeus, folgança.
O leão convocou uma assembléia e disse:
"Sócios meus, certamente este infortúnio veio
A castigar-nos de pecados.
Que, o mais culpado entre os culpados
Morra por aplacar a cólera divina.
Para a comum saúde esse é, talvez, o meio.
Em casos tais é de uso haver sacrificados;
Assim a história no-lo ensina.
Sem nenhuma ilusão, sem nenhuma indulgência,
Pesquisemos a consciência.
Quanto a mim, por dar mate ao ímpeto glutão,
Devorei muita carneirada.
Em que é que me ofendera? em nada.
E tive mesmo ocasião
De comer igualmente o guarda da manada.
Portanto, se é mister sacrificar-me, pronto.
Mas, assim como me acusei,
Bom é que cada um se acuse, de tal sorte
Que (devemos querê-lo, e é de todo ponto
Justo) caiba ao maior dos culpados a morte".
"Meu senhor, acudiu a raposa, é ser rei
Bom demais; é provar melindre exagerado.
Pois então devorar carneiros,
Raça lorpa e vilã, pode lá ser pecado?
Não. Vós fizestes-lhes, senhor,
Em os comer, muito favor.
E no que toca aos pegureiros,
Toda a calamidade era bem merecida,
Pois são daquelas gentes tais
Que imaginaram ter posição mais subida
Que a de nós outros animais".
Disse a raposa, e a corte aplaudiu-lhe o discurso.
Ninguém do tigre nem do urso,
Ninguém de outras iguais senhorias do mato,
Inda entre os atos mais daninhos,
Ousava esmerilhar um ato;
E até os últimos rafeiros,
Todos os bichos rezingueiros,
Não eram, no entender geral, mais que uns santinhos.
Eis chega o burro: "Tenho idéia que no prado
De um convento, indo eu a passar, e picado
Da ocasião, da fome e do capim viçoso,
E pode ser que do tinhoso,
Um bocadinho lambisquei
Da plantação. Foi um abuso, isso é verdade".
Mal o ouviu, a assembléia exclama: "Aqui del-rei!"
Um lobo, algo letrado, arenga e persuade
Que era força imolar esse bicho nefando,
Empesteado autor de tal calamidade;
E o pecadilho foi julgado
Um atentado.
Pois comer erva alheia! ó crime abominando!
Era visto que só a morte
Poderia purgar um pecado tão duro.
E o burro foi ao reino escuro.
Segundo sejas tu miserável ou forte
Áulicos te farão detestável ou puro.

DANTE


(Purgatorio, canto XXV.)


Acabára o ladrão, e, ao ar erguendo
As mãos em figas, deste modo brada:
«Olha, Deus, para ti o estou fazendo!»

E desde então me foi a serpe amada,
Pois uma vi que o collo lhe prendia,
Como a dizer: «não falarás mais nada!»

Outra os braços na frente lhe cingia
Com tantas voltas e de tal maneira
Que elle fazer um gesto não podia.

Ah! Pistoia, por que n’uma fogueira
Não ardes tu, se a mais e mais impuros,
Teus filhos vão nessa mortal carreira?


Eu, em todos os circulos escuros
Do inferno, alma não vi tão rebellada,
Nem a que em Thebas resvalou dos muros.

E elle fugiu sem proferir mais nada.
Logo um centauro furioso assoma
A bradar: « Onde, aonde a alma damnada? »

Maremma não terá tamanha somma
De reptis quanta vi que lhe ouriçava
O dorso inteiro desde a humana coma.

Junto á nuca do monstro se elevava
De azas abertas um dragão que enchia
De rogo a quanto alli se approximava.

« Aquelle é Caco, — o Mestre me dizia, —
Que, sob as rochas do Aventino, ousado
Lagos de sangue tanta vez abria

« Não vae de seus irmãos acompanhado
Porque roubou malicioso o armento
Que alli pascia na campanha ao lado,

« Hercules com a maça e golpes cento,
Sem lhe doer um decimo ao nefando,
Poz remate a tamanho atrevimento. »

Elle falava, e o outro foi andando.
Na emtanto embaixo vinham para nos
Trez espíritos que só vimos quando

Atroára este grito: « Quem sois vós? »
Nisto a conversa nossa interrompendo
Elle, como eu, no grupo os olhos pôz.

Eu não os conheci, mas succedendo,
Como outras vezes succeder é certo,
Que o nome de um estava outro dizendo,

« Cianfa aonde ficou? » Eu, por que esperto
E attento fosse o Mestre em escutal-o,
Puz sobra a minha boca o dedo aberto.

Leitor, não maravilha que acceital-o
Ora te custe o que vás ter presente,
Pois eu, que o vi, mal ouso acredital-o.

Eu contemplava-os, quando uma serpente
De seis pés temerosa se lhe atira
A um dos tres e o colhe de repente.

Co’ os pés do meio o ventre lhe cingira,
Com os os da frente os braços lhe peava,
E ambas as faces lhe mordeu com ira.

Os outros dous ás coxas lhe alongava,
E entre ellas insinua a cauda que ia
Tocar-lhe os rins e dura os apertava.

A hera não se enrosca nem se enfia
Pela arvore, como a horrivel féra
Ao peccador os membros envolvia.

Como se fossem derretida cera,
Uma só vulto, uma côr iam tomando,
Quaes tinham sido nenhum delles era.

Tal o papel, se o fogo o vae queimando,
Antes de negro estar, e já depois
Que o branco perde, fusco vae ficando.

Os outros dous bradavam: « Ora pois,
Agnel, ai triste, que mudança é essa?
Olha que ja não és nem um nem dois! »

Faziam ambas uma só cabeça,
E na unica face um rosto mixto,
Onde eram dois, a apparecer começa.

Dos quatro braços dous restavam, e isto,
Pernas, coxas e o mais ia mudado
N’um tal composto que jamais foi visto.

Todo o primeiro aspecto era acabado;
Dous e nenhum era a cruel figura,
E tal se foi a passo demorado.

Qual cameleão, que variar procura
De sebe ás horas em que o sol esquenta,
E correndo parece que fulgura,

Tal uma curta serpe se apresenta,
Para o ventre dos dous corre accendida,
Lívida e côr de um bago de pimenta.

E essa parte por onde foi nutrida
Tenra creança antes que á luz saisse,
N’um delles morde, e cae toda estendida.

O ferido a encarou, mas nada disse;
Firme nos pés, apenas bocejava,
Qual se de febre ou somno alli caisse.

Frente a frente, um ao outro contemplava,
E á chaga de um, e á boca de outro, forte
Fumo saia e no ar se misturava.

Cale agora Lucano a triste morte
De Sabello e Nasidio, e attento esteja
Que o que lhe vou dizer é de outra sorte.

Cale-se Ovidio e neste quadro veja
Que, se Arethusa em fonte nos ha posto
E Cadmo em serpe, não lhe tenho inveja.

Pois duas naturezas rosto a rosto
Não transmudou, com que ellas de repente
Trocassem a materia e o ser opposto.

Tal era o accordo entre ambas que a serpente
A cauda em duas caudas fez partidas,
E a alma os pés ajuntáva estreitamente.

Pernas e coxas vi-as tão unidas
Que nem leve signal dava a juntura
De que tivessem sido divididas.

Imita a cauda bifida a figura
Que alli se perde, e a pelle abranda, ao passo
Que a pelle do homem se tornava dura.

Em cada axilla vi entrar em braço,
A tempo que iam esticando á fera
Os dous pés que eram de tamanho escasso.

Os pés de traz a serpe os retorcêra
Até formarem-lhe a encoberta parte,
Que no infeliz em pés se convertêra.

Emquanto o fumo os cobre, e de tal arte
A côr lhes muda e põe á serpe o vello
Que já da pelle do homem se lhe parte,

Um caiu, o outro ergueu-se, sem torcel-o
Aquelle torvo olhar com que ambos iam
A trocar entre si o rosto e o vel-o.

Ao que era em pé as carnes lhe fugiam
Para as fontes, e alli do que abundava
Duas orelhas de homem lhe saíam.

E o que de sobra ainda lhe ficava
O nariz lhe compõe e lhe perfaz
E o labio lhe engrossou quanto bastava.

A boca estende o que por terra jaz
E as orelhas recolhe na cabeça,
Bem como o caracol ás pontas faz.

A lingua, que era então de uma só peça,
E prestes a falar, fendida vi-a,
Emquanto a do outro se une, e o fumo cessa.

A alma, que assim tornado em serpe havia,
Pelo valle fugiu assobiando,
E esta lhe ia falando e lhe cuspia.

Logo a recente espadua lhe foi dando
E á outra disse : « Ora com Buoso mudo ;
Rasteje, como eu vinha rastejando! »

Assim na cova setima vi tudo
Mudar e transmudar; a novidade
Me absolva o estylo desornado e rudo.

Mas que um tanto perdesse a claridade
Dos olhos meus, e turva a mente houvesse,
Não fugiram com tanta brevidade,

Nem tão occultos, que eu não conhecesse
Puccio Sciancato, unica alli vinda
Alma que a fórma propria não perdesse;
O outro chóral-o tu, Gaville, ainda.

Felício amigo, se eu disser que os anos
passam correndo ou passam vagarosos
segundo são alegres ou penosos,
tecidos de afeições ou desenganos,

"Filosofia é esta de rançosos!",
dirás. Mas não há outra entre os humanos.
Não se contam sorrisos pelos danos,
nem das tristezas desabrocham gozos.

Banal, confesso. O precioso e o raro
é, seja o céu nublado ou seja claro,
tragam os tempos amargura ou gosto,

não desdizer do mesmo velho amigo,
ser com os teus o que eles são contigo,
ter um só coração, ter um só rosto.

MARIA


Maria, ha no seu gesto airoso e nobre,
Nos olhos meigos e no andar tão brando,
Um não sei quê suave que descobre,
Que lembra um grande passaro marchando.

Quero, ás vezes, pedir-lhe que desdobre
As azas, mas não peço, reparando
Que, desdobradas, podem ir voando
Leval-a ao tecto azul que a terra cobre.

E penso então, e digo então commigo:
«Ao céu, que vê passar todas as gentes
Bastem outros primores de valia.

«Passaro ou moça, fique o olhar amigo,
O nobre gesto e as graças excellentes
Da nossa cara e lepida Maria.»

A UMA SENHORA QUE ME PEDIU VERSOS


Pensa em ti mesma, acharás
         Melhor poesia,
Viveza, graça, alegria,
         Doçura e paz.

Se já dei flores um dia,
         Quando rapaz,
As que ora deu tem assaz
         Melancolia.

Uma só das horas tuas
         Valem um mez
Das almas já resequidas.

         Os soes e as luas
Creio bem que Deus os fez
         Para outras vidas.

Era Clódia a vergôntea ilustre e rara
De uma família antiga. Tez morena,
Como a casca do pêssego, deixava
Transparecer o sangue e a juventude.
Era a romana ardente e imperiosa
Que os ecos fatigou de Roma inteira
Coa narração das longas aventuras.
Nunca mais gentil fronte o sol da Itália
Amoroso beijou, nem mais gracioso
Corpo envolveram túnicas de Tiro.
Sombrios, como a morte, os olhos eram.
A vermelha botina em si guardava
Breve, divino pé. Úmida boca,
Como a rosa que os zéfiros convida,
Os beijos convidava. Era o modelo
Da luxuosa Lâmia, - aquela moça
Que o marido esqueceu, e amou sem pejo
O músico Polião. De mais, fazia
A ilustre Clódia trabalhados versos;
A cabeça curvava pensativa
Sobre as tabelas nuas; invocava
Do clássico Parnaso as musas belas,
E, se não mente linguaruda fama
Davam-lhe inspiração vadias musas.
O ideal da matrona austera e fria,
Caseira e nada mais, esse acabava.
Bem hajas tu, patrícia desligada
De preconceitos vãos, tu que presides
Ao festim dos rapazes, tu que estendes
Sobre verdes coxins airosas formas,
Enquanto o esposo, consultando os dados,
Perde risonho válidos sestércios...
E tu, viúva mísera, deixada
Na flor dos anos, merencória e triste,
Que seria de ti, se o gozo e o luxo
Não te alegrassem a alma? Cedo esquece
A memória de um óbito. E bem hajas,
Discreto esposo, que morreste a tempo.
Perdes, bem sei, dos teus rivais sem conta
Os custosos presentes, as ceatas,
Os jantares opíparos. Contudo,
Não verás cheia a casa de crianças
Loiras obras de artífices estranhos.
Baias recebe a celebrada moça
Entre festins e júbilos. Faltava
Ao pomposo jardim das lácias flores
Esta rosa de Paestum. Chega; é ela,
É ela, a amável dona. O céu ostenta
A larga face azul, que o sol no ocaso
Coos frouxos raios desmaiado tinge.
Terno e brando abre o mar o espúmeo seio;
Moles respiram virações do golfo.
Clódia chega. Tremei, moças amadas;
Ovelhinhas dos plácidos idílios,
Roma vos manda esta faminta loba.
Prendei, prendei com vínculos de ferro,
Os volúveis amantes, que os não veja
Esta formosa Páris. Inventai-lhes
Um filtro protetor, um filtro ardente,
Que o fogo leve aos corações rendidos,
E aos vossos pés eternamente os prenda;
Clódia... Mas, quem pudera, a frio e a salvo,
Um requebro afrontar daqueles olhos
Ver-lhe o túrgido seio, as mãos, o talhe,
O andar, a voz, ficar mármore frio
Ante as súplices graças? Menor pasmo
Fora, se ao gladiador, em pleno circo,
A pantera africana os pés lambesse,
Ou se, à cauda de indômito cavalo,
Ovantes hostes arrastassem César.

Coroados de rosas os convivas
Entram. Trajam com graça vestes novas
Tafuis de Itália, finos e galhardos
Patrícios da república expirante,
E madamas faceiras. Vem entre eles
Célio, a flor dos vadios, nobre moço,
E opulento, o que é mais. Ambicioso
Quer triunfar na clássica tribuna
E honras aspira até do consulado,
Mais custoso lavor não vestem damas,
Nem aroma melhor do seio exalam.
Tem na altivez do olhar sincero orgulho,
E certo que o merece. Entre os rapazes
Que à noite correm solitárias ruas,
Ou nos jardins de Roma o luxo ostentam,
Nenhum como ele, com mais ternas falas,
Galanteou, vencendo, as raparigas.

Entra: pregam-se nele cobiçosos
Olhos que amor venceu, que amor domina,
Olhos fiéis ao férvido Catulo.
O poeta estremece. Brando e frio,
O marido de Clódia os olhos lança
Ao mancebo, e um sorriso complacente
A boca lhe abre. Imparcial na luta,
Vença Catulo ou Célio, ou vençam ambos,
Não se lhe opõe o dono: o aresto aceita.

Vistes já como as ondas tumultuosas,
Uma após outra, vêm morrer à praia,
E mal se rompe o espúmeo seio àquela,
Já esta corre e expira? Tal no peito
Da calorosa Lésbia nascem, morrem
As volúveis paixões. Vestal do crime,
Dos amores vigia a chama eterna,
Não a deixa apagar; pronto lhe lança
Óleo com que a alimente. Enrubescido
De ternura e desejo o rosto volve
Ao mancebo gentil. Baldado empenho!
Indiferente aos mágicos encantos,
Célio contempla a moça. Olhar mais frio,
Ninguém deitou jamais a graças tantas.
Ela insiste; ele foge-lhe. Vexada,
A moça inclina lânguida a cabeça...
Tu nada vês, desapegado esposo,
Mas o amante vê tudo.

Clódia arranca
Uma rosa da fronte, e as folhas deita
Na taça que enche generoso vinho.
"Célio, um brinde aos amores!", diz, e entrega-lha.
O cortejado moço os olhos lança,
Não à Clódia, que a taça lhe oferece
Mas a outra não menos afamada,
Dama de igual prosápia e iguais campanhas,
E taça igual lhe aceita. Afronta é esta
Que à moça faz subir o sangue às faces,
Aquele sangue antigo, e raro, e ilustre,
Que atravessou puríssimo e sem mescla
A corrente dos tempos... Uma Clódia!
Tamanha injúria! Ai, não! mais que a vaidade,
Mais que o orgulho de raça, o que te pesa,
O que te faz doer, viciosa dama,
É ver que um rival merece o zelo
Deste pimpão de amores e aventuras.
Pega na taça o néscio esposo e bebe,
Com o vinho, a vergonha. Sombra triste,
Sombra de ocultas e profundas mágoas,
Tolda a fronte ao poeta.

Os mais, alegres,
Vão ruminando a saborosa ceia;
Circula o dito equívoco e chistoso,
Comentam-se os decretos do senado,
O molho mais da moda, os versos últimos
De Catulo, os leões mandados de África
E as vitórias de César. O epigrama
Rasga a pele ao caudilho triunfante;
Chama-lhe este: "O larápio endividado",
Aquele: "Vênus calva", outro: "O bitínio..."
Oposição de ceias e jantares,
Que a marcha não impede ao crime e à glória.

Sem liteira, nem líbicos escravos,
Clódia vai consultar armênio arúspice.
Quer saber se há de Célio amá-la um dia
Ou desprezá-la sempre. O armênio estava
Meditabundo, à luz escassa e incerta
De uma candeia etrusca; aos ombros dele
Decrépita coruja os olhos abre.
"Velho, aqui tens dinheiro (a moça fala),
Se à tua inspiração é dado agora
Adivinhar as cousas do futuro,
Conta-me..." O resto expõe. Ergue-se o velho
Súbito. Os olhos lança cobiçosos
À fulgente moeda. "Saber queres
Se te há de amar esse mancebo esquivo?"
"Sim". Cochilava a um canto descuidada
A avezinha de Vênus, branca pomba.
Lança mão dela o arúspice, e de um golpe
Das entranhas lhe arranca o sangue e a vida,
Olhos fitos no velho a moça aguarda
A sentença da sorte; empalidece
Ou ri, conforme do ancião no rosto
Ocultas impressões vem debuxar-se.
"Bem haja Vênus! A vitória é tua!
O coração da vítima palpita
Inda que morto já..."

Não eram ditas.
Estas palavras, entra um vulto... É ele?
És tu, cioso amante!

A voz lhes falta
Aos dous (contemplam-se ambos, interrogam-se);
Rompe afinal o lúgubre silêncio...

Quando o vate acabou, tinha nos braços
A namorada moça. Lacrimosa,
Tudo confessa. Tudo lhe perdoa
O desvairado amante. "Nuvem leve
Isto foi; deixa lá memórias tristes,
Erros que te perdôo; amemos, Lésbia;
A vida é nossa; é nossa a juventude".
"Oh! tu és bom!" "Não sei; amo e mais nada.
Foge o mal donde amor plantou seus lares.
Amar é ser do céu". Súplices olhos
Que a dor umedecera e que umedecem
Lágrimas de ternura, os olhos buscam
Do poeta; um sorriso lhes responde,
E um beijo sela esta aliança nova.

Quem jamais construiu sólida torre
Sobre a areia volúvel? Poucos dias
Decorreram; viçosas esperanças
Súbito renascidas, folha a folha,
Alastraram a terra. Ingrata e fria,
Lésbia esqueceu Catulo. Outro lhe pede
Prêmio à recente, abrasadora chama;
Faz-se agora importuno o que era esquivo.
Vitória é dela; o arúspice acertara.

NO ALTO


O poeta chegára ao alto da montanha,
E quando ia a descer a vertente do oeste,
         Viu uma cousa extranha,
         Uma figura má.

Então, volvendo o olhar ao subtil, ao celeste,
Ao gracioso Ariel, que de baixo o acompanha,
         N’um tom medroso e agreste
         Pergunta o que será.

Como se perde no ar um som festivo e doce,
         Ou bem como se fosse
         Um pensamento vão,

Ariel se desfez sem lhe dar mais resposta.
         Para descer a encosta
         O outro estendeu-lhe a mão.