Contos Tradicionaes do Povo Portuguez/Litteratura dos Contos populares em Portugal


LITTERATURA

DOS

CONTOS POPULARES

EM PORTUGAL




Assim como na linguagem existem duas correntes de elaboração, uma popular ou dialectal e outra escripta, ou regularisada por uma norma grammatical, acontecendo muitas vezes desconhecerem-se estas duas correntes, ou entre-cruzarem-se por effeito de causas sociaes e historicas, o mesmo phenomeno se observa com as tradições novellescas: um grande numero de Contos persiste exclusivamente na transmissão oral do povo, que os transforma desde a primitiva concepção mythica até á simples aventura faceta ou á referencia vaga de qualquer adagio, e existe simultaneamente um outro grupo de Contos conservados por via da redacção litteraria e escriptos com uma certa intencionalidade moral ou artistica. Nem sempre estas duas correntes se communicam, havendo comtudo uma epoca em que os escriptores deram fórma litteraria aos themas tradicionaes ou os imitaram, e em que os contos escriptos por seu turno vieram a influir na imaginação popular pelo emprego da parabola na prédica religiosa e do exemplo na doutrinação concreta da moral. A universalidade dos Contos populares na tradição oral não se póde explicar historicamente; este processo compete aos Contos generalisados pela fórma litteraria, cuja transmissão se estabelece quasi de um modo chronologico e por documentos que subsistem. Huet, Sacy, Loiseleur des Longchamps, Benfey e Max-Müller, segundo os recursos da sciencia da sua epoca, fixaram os caminhos diversos por onde os Contos do Oriente fizeram a sua migração para a Europa. Provenientes de collecções litterarias, de que a mais antiga conhecida é o Pantchatantra, elles acompanham os accidentes da historia da civilisação da Europa, implantando-se no Occidente com as invasões dos Arabes, propagando-se com os ultimos lampejos do hellenismo, sendo o assumpto de redacção dos novos dialectos romanicos e dos prégadores catholicos da Edade media. A Egreja afastando os povos da Europa do contacto da civilisação greco-romana, aproveitou-se d'este fundo tradicional para actuar sobre a imaginação da gente rude, e assim as litteraturas começaram o seu desenvolvimento sobre uma base e com um destino popular. A redacção litteraria dos Contos e fabulas indianas foi provocada pela profunda revolução religiosa do Buddhismo, que batendo as abstracções metaphysicas da casta sacerdotal brahmanica e procurando os seus proselytos entre as raças inferiores e amarellas, teve de propagar-se pela exposição pittoresca dos Contos; onde quer que o Buddhismo se divulgou, ahi encontram-se os Contos como meio de propaganda. As collecções da China, como os Avadanas, e as do Thibet, resultaram d'essa crise religiosa; no rarissimo livro das Cartas do Japão (fl. 99 v.) se lê: «Ha y mais duas Seitas, que chamam Iexu e Muraçaqui. Estes são dados a meditações, tem somma d'ellas de cousas como fabulas e comparações.» Na lucta do Christianismo contra o polytheismo, e mais tarde contra o islamismo e o protestantismo a polemica religiosa fez-se á custa de contos moraes, de facil comprehensão, chamados Exemplos. Esta similaridade de crise religiosa coincidiu com o conhecimento dos Contos indianos traduzidos para arabe na côrte de Bagdad, e trazidos na invasão mussulmana da Europa occidental. Os trovadores nas suas canções, os troveiros nos seus fabliaux, os menestreis nos seus lais, secularisaram o conto com esse espirito de livre exame communicado pela civilisação dos Arabes. No periodo mais activo da organisação das sociedades modernas, no seculo XII, é que se constituiu a nacionalidade portugueza; dirigida a sua cultura pelos latinistas ecclesiasticos, os primeiros documentos litterarios em prosa foram Contos traduzidos do arabe e com uma intenção moral exclusiva. Com as correntes cultas de outros elementos medievaes, como os trovadores da Provença, os jograes francezes e menestreis bretãos, alargaram-se as fontes litterarias dos Contos, estabelecendo-se essa unanimidade de sentimento da Civilisação occidental. Indicaremos estes differentes vehiculos.

Desde o seculo XIII que se conheceu na Hespanha a collecção arabe do Kalila e Dimna, não só pela traducção castelhana do infante D. Affonso (1289), como pelo Exemplario contra enganos y peligros del mundo. Succederam-se as imitações litterarias, e a fonte litteraria apparece citada com frequencia nos poetas do principio do seculo XV, como se vê pelo Cancioneiro de Baena:

Reyne de Byrra todo su feresa,
E las falsedades de Cadyna Dyna[1]

Que mudan discordias, consejos peores
Que Dina y Çadina con su lealdad… (ib. 119.)

O nome d'esta collecção é tirado das aventuras passadas entre os dois chacaes Karataka e Damanaka, que no persa ante-islamico se abrandou na fórma Kalilak e Damnak vulgarisada pelos arabes.[2] Assim na Hespanha o chacal identificou-se com a raposa, e as aventuras do Kalila e Dymna foram designadas pela palavra gensrica de raposias:

Sea asno ó letrado por contradicion
Segunt que del dixo la sabia raposa[3]

O nosso chronista Fernão Lopes, no principio do seculo XV, emprega esta designação de raposias. É talvez por esta influencia arabe que o cyclo do Roman du Renard, que se desenvolveu na Europa com um caracter heterodoxo e hostil á egreja, não se propagou entre as nações catholicas. O velho anexim conservado por Jorge Ferreira de Vasconcellos, na Comedia Euphrosina, de 1521:

O Lobo e a Golpelha (Vulpecula)
Fizeram uma conselha

allude a um dos episodios do Roman du Renard, como este outro rifão popular:

Da pelle alheia
Grande corrêa.

A influencia arabe na peninsula foi simultaneamente popular e litteraria; Alvaro de Cordova allude ao gosto dos contos «fabellis mille suis delectamur.» Das collecções arabes passaram para os nossos documentos litterarios do seculo XIV bastantes contos intercalados no livro ascetico do Orto do Esposo, e na traducção da lenda mystica de Barlaam e Josaphat, tirada do Lalita Vistara, sendo Buddha sanctificado no christianismo. No Nobiliario do Conde Dom Pedro, o conto de Gaia é tambem nos seus episodios similhante ás narrativas arabes, das quaes persiste no gosto popular ainda a folha volante da Donzella Theodora.

A divulgação da poesia provençal veiu ajudar ao desenvolvimento da fórma litteraria dos Contos, com os Noellaires; temos um exemplo na tradição da Chuva de Maio, de que ha reminiscencias em um poeta do Cancioneiro de Resende, em Sá de Miranda e D. Francisco Manoel de Mello. Os jograes abandonavam por vezes os assumptos lyricos, e contavam fabulas ou narrativas com um intuito satyrico. O jogral Martins Moxa, que dizia:

D'estes privados non sei noellar

refere-se ás fabulas da sua classe:

Uns joglares
Sus nobles falares
Soyam dizer…

Comprehende-se o sentido d'estes versos pelo que Affonso XI dizia a Ramon Vidal, ouvindo-lhe um fabliau: «Jogral, tuas fabulas são agradaveis e formosas.» Devido talvez a esta influencia jogralesca e á propagação dos fabliaux francezes, é que os contos vieram a receber em Hespanha, embora no seculo XVI, o nome de Francias. A influencia bretã é tambem manifesta na fórma dos lais, que além do seu destino musical tinham um accentuado caracter narrativo, que veiu a desenvolver-se no cyclo da Tavola Redonda. No Nobiliario do Conde D. Pedro é onde existem os principaes vestígios dos contos bretãos; no Conto da Dama pé de cabra, lê-se: «E alguns ha em Biscaia, que disseram e dizem hoje em dia, que esta sua mãe de Enheguez Guerra, que este é o coouro de Biscaia.» Leroux de Lincy cita os Gourils, Gories ou Crious,[4] que ainda nas costas da Finisterra são chamados Courils, diabos malignos da superstição popular. No mesmo Nobiliario se encontra rapidamente narrado o conto do Rei Lear, a tradição de Merlim, e da Islavalon (Ilha do Avalon.) Um velho anexim portuguez:

Tanto vale cada um na praça
Quanto vale o que tem na caixa,

apparece-nos como um vestigio derivado d'estes versos de Roman de Brut, d'onde veiu o conto:

Tant as, tant vaux, et tant je t'aime,
Tant comme j'eus, et tant valus,
Et tant aimé et privés fus.

A tradição do Solar dos Marinhos deriva tambem d'essas lendas heraldicas fundadas na crença das fadas terrestres, como a Melusina e a Dama pé de cabra, ou do mar como as Sereias, de que falla Gil Vicente:

Vae logo as ilhas perdidas,
No mar de penas ouvinhas,
Traze trez fadas marinhas
Que sejam mui escolhidas.[5]

Martim Moxa allude a esta crença, que recebeu fórma litteraria, como a Urganda do Amadis de Gaula:

As nossas Fadas
Iradas,
Sam achegadas
Por este fadar

No Cancioneiro da Vaticana encontra-se uma allegoria satyrica da Verdade, em uma canção de Ayres Nunes que se avalia bem aproximando-a de um conto popular da Andalusia. Eis o conto: A Verdade e a Justiça foram pelo mundo mostrar-se, e como eram muito formosas, arranjaram muito dinheiro. No caminho aggregou-se-lhe a Avareza, e ella é que guardava o dinheiro. Quando resolveram voltar, a Avareza que não queria repartir o quinhão, ao passar por uma ponte baldeou a Verdade na agua, e por isso ella nunca mais appareceu no mundo. A Justiça tratou logo de castigar o crime, mas a Avareza refugiouse com a bolsa em uma egreja e nunca mais de lá saiu, e lá hade ficar até que as paredes venham abaixo.[6] Vejamos agora a sirvente de Ayres Nunes:

Porque no mundo mengou a Verdade,
punhey hum dia de a hyr buscar,
et hu per ela fui preguntar
disserom todos — Alhur a buscade;
cá de tal guisa se foy a perder,
que non podemos en novas aver,
nem já nom anda na yrmaydade.
Nos moesteyros dos frades regrados
a demandey, et disserom-m'assy:
Non busquedes vós a Verdade aqui,
cá muytos annos avemos passados
que non mor'en nosco, per boa fé,
...............................................
e d'al avemos maiores cuydados.
E em Cistel, hu Verdade soia
sempre morar, disserom-me que nom
morava hy, havia gram sazom.

nem frade d'hy já nom a conhecia;
nem o abade us'outrosy nom estar,
sol nom queria que fosse y pousar,
et anda já fora da abbadia.
Em Santyago seend'albergado
em mha pousada, chegarom romeus;
preguntey-os et disserom: Par deus,
muyto levadel-o o caminho errado;
ca se Verdade quiserdes achar
outro caminho conven a buscar
cá num sabem aqui d'ela mandado.[7]

As tradições eruditas da primeira Renascença receberam tambem uma fórma litteraria entre os latinistas ecclesiasticos; da Bibliotheca de Alcobaça subsiste ainda a traducção portugueza da Visão de Tundal, sobre cujo thema, o da descida aos infernos, Dante escreveu a Divina Comedia, tradição que os padres da Egreja tomaram do Eucrates do Philopseudes de Luciano. D'esta corrente erudita deriva essa allusão do cavallo-fada Pardallo, citado no conto da Dama pé de cabra, que é evidentemente uma fórma do Pardulus de Aristoteles. No Orto do Esposo descrevendo-se os costumes da panthera, Frei Hermenegildo de Payo Pele, introduz o conto do animal agradecido: «Aconteceu hua vez que hum homem livrou da morte os filhos d'esta besta. E este homem cayo em hua cova e a besta o tirou fóra d'ella e o poz em salvo do deserto hindo com elle muy leda e afagando-o, em guisa que parecia que lhe dava graças.»[8]

D'este cyclo erudito da primeira renascença data o conhecimento dos Gesta Romanorum em Portugal. Azurara, na Chronica da Conquista de Guiné, cita «as obras dos Romãos[9] Na Bibliotheca do rei Dom Duarte guardava-se a collecção hespanhola do Conde de Lucanor, uma traducção portugueza dos versos do Arcipreste de Hita, e da Confissão do Amante de Gower, em que receberam fórma litteraria diversos contos da Edade-media. Na côrte de Dom Duarte prevaleceu o gosto dos contos com intuito moral, chamados estorias e exemplos; na sua obra o Leal Conselheiro, cita o conto da Manta e o chocalho, que parece popular pela persistencia do anexim: «O diabo tem uma manta e um chocalho.» Acham-se ali tambem o conto allegorico das Duas Barcas e o do Filho prodigo: «e a festa que fez o padre ao filho degastador, que confessando seu desfallecimento dizia nom sou digno seer chamado teu filho…»[10] O rei Dom Duarte condemnava a leitura dos livros de contos, que ella aponta como um vicio entre a aristocracia portugueza do seculo XV: «taaes leituras aos que de semelhantes non téem boo conhecimento mais som para serem ensinados que para despender tempo ou se desenfadar com o livro d'estorias, em que o entendimento pouco trabalha por entender ou se nembrar.»[11] Fernão Lopes, o nosso grande chronista, empregava a palavra estoria no sentido de tradição, tal como ainda subsiste entre o povo. O rei Dom Duarte condemnando o uso de ouvir contos, diz: «E d'aquesta guysa erramos per este desassecego: se no tempo de orar e ouvir officios divinos, nos conselhos proveitosos, fallamentos ou desembargos, levantamos estorias, recontando longos exemplos.»[12] Gil Vicente conservou esta designação medieval:

Como diz o exemplo antigo
Que não são eguaes os dedos.

O costume de contos era tão persistente entre o povo como entre a aristocracia portugueza. As nossas seroadas e o typo dos patranheiros populares derivarão dos costumes mouriscos das zambras? As suas raizes são mais profundas, derivam da primitiva raça do occidente; na Grecia havia uma classe de mulheres chamadas paramythia encarregadas de contarem contos por officio; Guthrie descrevendo os velhos costumes da Russia, diz: «Observa-se tambem nas casas dos grandes, mulheres encarregadas de contar contos, Skaski… A sua occupação consiste em entreter suas amas até que ellas adormeçam, com contos semelhantes ás Mil e uma Noites arabes, antiquíssimo costume entre os orientaes.»[13] Conhecida a intima relação que existe entre os contos russos e os sicilianos, comprehendemos a relação que deve haver entre os Skaski russo e os Chascos ou Chascarilhos com que ainda no seculo XVII se designavam em Hespanha os Contos facetos.[14] Esse elemento mongolico que no seculo XIII propaga na Russia e no norte da Europa as ficções orientaes, é o mesmo que no occidente sob a corrente iberica produz esta similaridade de tradições e de costumes.

Usavam-se os contos, na Edade media, á meza dos principes, sob o nome de Rumor. Na descripção das festas do casamento do principe D. Affonso vem:

Depois ledos tangedores
Á meza ...........................
Fizeram fortes rumores.

Camões empregou este termo na locução: «O rumor antigo conta.» O conto do Boi Cardil parece-nos ter sido objecto de um d'estes rumores, como se deprehende dos versos latinos:

Ad mensam magni principis
Est rumor unius bovis…

Nos costumes palacianos e universatarios, o conto tomou uma grande importancia, em parte sustentado pelos moralistas catholicos, e principalmente pelo impulso da Renascença classica communicado pela Italia. Gil Vicente caracterisa este costume:

E folgam de ouvir novellas
Que durem noites e dias.[15]

Na Vida do Infante D. Duarte, cita André de Rezende este uso: «Ora, senhor, deixemos a febre e fallemos em coisa de passatempo. Comecei-lhe então a dizer patranhas, com que o tornei alegre.» O infante fingia-se doente para não dar lição ao jurisconsulto Madeira. Aqui a palavra patranha significa o conto imaginoso sem base real; empregou-a Sá de Miranda: «Não do Rei Mouro a patranha[16] E Antonio Prestes:

Podeis levar,

Comadre, que vos la conte

Patranhas de rir e folgar.[17]

Este uso domestico acha-se descripto no viver da principal aristocracia do seculo XVI: «O mesmo usava D. Joanna de Vilhena com as senhoras que a vinham visitar, dando a cada uma d'ellas algum trabalho com que se entreter; e entretanto ou lhe lia algum capitulo dos documentos que o conde tinha composto, ou lhe contava algum Exemplo ou historia santa com que adoçar o trabalho; o que fazia com tanta graça que assim D. Brites, duqueza de Coimbra e Aveiro, como todas as mais senhoras, frequentavam com gosto a escola de D. Joanna.»[18] Em um Alvará de 23 de setembro de 1538 recommenda-se ao reitor da Universidade que prohiba o contar-se contos nas lições: «Eu el-rei faço saber a vós, reverendo bispo reitor dos estudos e Universidade de Coimbra, e aos reitores que ao diante pellos tempos forem, que per quanto ás vezes acontece a lentes nas lições que lêem… se põe a contar estorias fóra da materia da lição, em que guastam o tempo sem proveito, hei por bem que o lente que cada huma das ditas cousas fezer, por cada vez perqua ho ordenado da lição d'aquelle dia…» Soropita leva mais longe a pintura d'estes costumes que influiram na litteratura novellesca portugueza: «Primeiramente, assim no tapete da obra appareceram certos aventureiros pagens da lança da tolice, cujo officio é contar contos prolixos de uns certos manganazes desencadernados, que, primeiro que preguem uma lança do que querem contar, irão cem vezes a Roma… E se vem á mão, ou por a historia não ser tão branda que se deixe facilmente conversar ou pelos seus entendimentos serem de ferro, tal que não cortarão por um queijo fresco, ao cabo de os pobres historiadores torcerem o queixo trezentas vezes e metterem toda a munição que podem para se declararem, ficam elles tão virgens do negocio como se nunca ouviram nada.»[19] Nos escriptores quinhentistas é que se encontram mais referencias aos Contos populares; Antonio Prestes cita:

É o segredo das canas
das orelhas do rei Mida.
(Autos, p. 259.)

João de Barros, na sua Grammatica, traz o celebre conto do Novellino, da interpretação do testamenteiro dar o que quizer. Em Bernardim Ribeiro vem a referencia:

A Dita e a Formosura,
Dizem patranhas antigas,
Que pelejaram um dia,
Sendo de antes mui amigas.

Jorge Ferreira de Vasconcellos, na comedia Ulyssipo, refere-se ao conto da Cendrilhon: «Pois eu tambem não quero Gatas borralheiras[20] E em Soropita: «Se não quando, fallando com referencia, appareceram por prôa as Tres Cidras do Amor[21] Gil Vicente, além do conto da Bilha de leite, traz no Auto da Floresta de enganos, a scena do Doutor Justiça Mayor, que se acha como conto nas Cem Novellas novas, n.º XVII. Em Sá de Miranda abundam as fabulas e contos, que revelam o gráo de consciencia que elle tinha do elemento tradicional na litteratura: taes são as fabulas do Rato do campo e o rato da cidade, a Chuva de maio, o Cavallo que se deixa enfreiar para vingar-se, a dos Membros e o estomago, o Mosquito e a têa de aranha, o Parto da montanha, a facecia de Diogenes, a anedocta de Apellos, o conto de Psyche, e a Cigarra e a formiga. Camões tambem descreve o costume dos nossos marinheiros, que historias mil recontam e casos referem, para se distrahirem do somno. Foi no seculo XVI que o Conto recebeu a fórma litteraria, dada por Gonçalo Fernandes Trancoso.[22] Antes de fallarmos da sua collecção, importa definir as relações com os novellistas italianos e francezes da grande epoca da Renascença ou que n'este tempo foram lidos em Portugal. Pelos Indices expurgatorios conhece-se a corrente da leitura dos livros de Novellas; no Index de 1564 prohibe-se «Boccacio, Decades, seu novella centum.» (Fl. 16, v.); esta collecção apparece anteriormente citada no Espelho de casados, do Dr. João de Barros, que diz: «João Boccacio fez muitas novellas contra as mulheres, e d'ellas diz mal no livro da Cahida dos Principes.» (Pag. 12.) No Index de 1581 cita-se como prohibidas: «Cento novelle scelte da piu nobili scriptori de la lengua vulgari, con la junta di Cento altre novelle.» (Fl. 17, v.) E adiante: «Facecia e motti e burle raccolti per M. Ludovico Domenico, e Guiejardin» (Fl. 19.) «Pecorone, di Messer Jovani Fiorentino.» (Fl. 21, v.) No Index de 1597 vêm prohibidos o Cymbalum mundi (fl. 29) de Bonaventure des Perriers, já citado no Index de 1564, e as Gesta Romanorum. As Notte piaccevoli de Straparola foram conhecidas em Portugal, como se infere de algumas novellas de Trancoso, que traduziu o conto de Griselidis do folheto italiano, sem data, La Novella di Gualtieri, traduzida da redacção portugueza por Timoneda no seu Patrañuelo.

A comprovação de um vasto campo de tradições populares no seculo XVI, explica-nos o apparecimento de Gonçalo Fernandes Trancoso, auctor dos Contos e Historias de proveito e exemplo, para o qual fômos o primeiro que chamou a attenção dos criticos europeus. A collecção de Trancoso, tambem conhecida com o titulo de Contos proveitosos, compõe-se de vinte e nove contos, derivados em grande parte de fontes tradicionaes, alguns de proveniencia popular, como o provamos em notas adiante, outros de obras eruditas. Apesar de se acharem diluidos em divagações moraes, que embaraçam as narrativas, e não obstante o estylo forçado, são importantes para alargarem a área dos estudos comparativos da Novellistica. Diremos algumas palavras da personalidade de Trancoso; era natural da provincia da Beira, tomando o appellido da localidade do seu nascimento; veiu exercer para Lisboa a profissão de mestre de humanidades, isto é, latim e rhetorica, em um tempo em que estas disciplinas não era privilegio exclusivo dos Jesuitas (1555). Nos seus contos refere-se: «Ao glorioso S. Pedro, cujo freguez sou»; d'onde se deduz que vivia na freguezia de Alfama. A data em que começou a escrever os seus Contos fixamol-a em 1544, segundo esta referencia a uma armadilha de jogo: «e elle levava comsigo duzentos e vinte reales de prata, que era isto o anno de 1544, que havia quasi tudo reales[23] No conto XIII, da primeira parte, que versa sobre o anexim do real bem ganhado, allude outra vez a esta moeda: «o qual com muito contentamento por vêr que soube escolher, lhe deu um real em dois meios, como ora costumam[24] E tambem: «metteu real e meio na mão.»[25] Estas referencias fixam irrevogavelmente a epoca em que Trancoso escrevia.

Uma das circumstancias que levaram Trancoso a proseguir na continuação dos seus Contos, foi o terror que espalhou a chamada Peste grande de Lisboa, em 1569, circumstancia que lembra a peste de Florença que determinou Boccacio á composição do Decameron. No conto IX da segunda parte, declara Trancoso este motivo: «Assi o exemplo d'este marquez, os que este anno de mil e quinhentos e sessenta e nove, a esta parte perdemos mulheres, filhos e fazenda, nos esforçaremos e não nos entristeçamos tanto, que caiamos em caso de desesperação sem comer e sem paciencia, dando oceasião a nossa morte.»[26] D'esta peste, que ainda hoje se conhece entre o povo como uma data historica, a Peste grande, subsiste uma reminiscencia na chamada Procissão da Saude, que se faz em Lisboa. Inspirado pelo fervor religioso, que succedeu ao fim da peste, Trancoso publicou logo em 1570 um opusculo das Festas mudaveis, dedicado ao Arcebispo de Lisboa. A redaccão dos Contos ficou suspensa, desde que cessou a peste: «e assim eu, ainda que tenho desejo de escrever este mez trinta historias, as ditas para desenfadamento…» A perda de quasi toda a sua familia, mulher, filhos e a falta de lições, obrigaram-o durante a tremenda crise a esses exercicios de desenfado, para se não deixar cahir em desfallecimento.

Na primeira edição dos Contos proveitosos, de 1575, de que conhecemos um exemplar unico, ignorado dos bibliographos, vem uma Carta á Rainha D. Catharina, regente de Portugal e viuva de D. João III, onde se descreve o desastre da Peste grande; n'essa Carta narra Trancoso, que lhe morrera em casa sua mulher, uma filha mais velha de vinte e quatro annos, um filho estudante e um outro filho que era menino do côro. Sob o peso da sua desgraça é que foi escrevendo os Contos; pela Carta á Rainha infere-se que Trancoso casára pouco antes de 1544; as suas relações com a Rainha, extremamente severa, dão-nos o sentido da allusão á morte do principe D. João, pae de D. Sebastião, e por ventura auctorisam a crêr que Trancoso fôra mestre de lêr no paço.

A determinação de alguns paradigmas de Trancoso, e o confronto com contos populares ainda existentes, prova-nos que elle se apropriou dos themas tradicionaes mais correntes na litteratura do seu tempo.[27] A collecção de Trancoso compõe-se de trez partes, que ficaram interrompidas pela morte do auctor; a primeira parte deve fixar-se por 1544, talvez impressa separadamente, em vista de uma edição desconhecida citada por Brunet; a segunda parte redigida em 1569 imprimiu-se em 1575, reimprimindo-se ainda em vida de Trancoso em 1585; a terceira parte, não continuada, appareceu depois da morte do auctor, publicada por seu filho Antonio Fernandes em 1596. Por uma edição que possuimos, do meado do seculo XVII conhecem-se as relações litterarias de Trancoso com o poeta Luiz Brochado, o auctor das Trovas do Moleyro. Os Contos tiveram numerosas edições nos seculos XVII e XVIII, e foram immensamente apreciados pelo povo, apparecendo citados proverbialmente nas comedias de cordel e em Filinto Elysio. Quando outras leituras se apoderaram do gosto do nosso povo, é que os Contos de Trancoso deixaram de reimprimir-se.

A inspiração tradicional que levantou a epoca dos Quinhentistas, ainda se continuou no seculo XVII nos excellentes poetas D. Francisco Manuel de Mello, e Rodrigues Lobo. Nas suas Cartas, escreve D. Francisco Manuel: «E cuida que virey a ser aquella:

Dona atrevida,
Doce na morte
E agra na vida,

que nos contam quando pequenos.»[28] Este conto ainda vive na tradição popular portugueza. Nos seus Relogios fallantes refere-se ao conto de Pedro de Malas-Artes. Nos Apologos dialogaes allude: «ou como a historia do Salsinha, em que não haveis de dizer sim nem não…»[29] Ainda existe este typo de conto, em que se não diz sim nem não, ou a que se accrescenta sempre e eu tambem. Na mesma obra refere-se ás trovas de Maria Castanha, (p. 341) que encontrámos já no começo do seculo XVI citadas no romance piccaresco hespanhol da Lozana andaluza (p. 192). Na Feira d'Anexins cita D. Francisco Manoel os Contos da Carochinha: «— Espere; contar-lhe-hei uma historia. — A da Carochinha? — Não! buscára outra mais cara, que essa é muito barata? — Pois digo-lhe que ainda com a carocha, é esta historia o feitiço das crianças.» (Op. cit., p. 8.) Nas outras suas obras metricas tem este poeta muitas fabulas dispersas, que nos explicam a superioridade artistica pela sua intuição tradicional.[30]

No seculo XVII o Conto recebia em Portugal duas poderosas influencias; Francisco Rodrigues Lobo, na Côrte na Aldeia procurava submettel-o ás regras litterarias, discriminando os seus generos e estabelecendo o modo de narral-o; por outro lado Saraiva de Sousa, no Baculo pastoral, o padre Manoel Bernardes na Floresta e Estimulo pratico limitam o Conto no destino ascetico, e Vieira na intenção moral.

No dialogo X da Côrte na Aldeia, traz Rodrigues Lobo a Historia dos amores de Aléramo e Adelasia, da qual diz um dos seus interlocutores: «poderá servir — no modo como se devem contar outras semelhantes, com boa discrição das pessoas, relação dos acontecimentos, razão dos tempos e logares, e uma pratica por parte de alguma das figuras, que mova mais a compaixão e piedade, que isto faz dobrar depois a alegria do bom successo. — Esta differença me parece que se deve fazer dos Contos para as Historias, que ellas pedem mais palavras que elles, e dão maior logar ao ornamento e concerto de rasões, levando-as de maneira que vão aperfeiçoando o desejo dos ouvintes, e os Contos não querem tanto de rhetorica, porque o principal em que consistem é na graça do que falla, e na que tem de seu a coisa que se conta.» Em applicação d'estas regras apresenta a Historia dos amores de Manfredo e Eurice, á imitação dos novellistas italianos, com divagações de estylo rhetorico, para confrontal-as com as narrativas populares «com mais bordões e moletas do que tem uma casa de romaria, porque me não escapam termos das velhas, nem remendos de descuidados, que lhe não misture.» Em seguida exemplifica o processo com uma Historia contada com o erro do costume dos ignorantes:

«Dizem que era um rey; vem este rey casou por amores com a filha de um seu vassallo; era ella tão fermosa, que podia por sua belleza ser confiada, pois por essa alcançara o ser rainha; mas sem lhe valerem esses privilegios, deu em tão ciosa, que bem á mão, não dava o marido um passo que ella não acompanhasse com as suspeitas; assim que apertavam estas tanto com ella, que jámais vivia em paz com seu gosto. Vem ella, e por vencer esta desconfiança, vai e manda secretamente chamar uma feiticeira, que n'aquella terra havia, de muita fama, em cujo engano achavam os namorados huma botica de remedios para seus males. Assim que dizia esta feiticeira por lhe vender mais cara sua diligencia, feitas algumas fingidas, meteu em cabeça á boa rainha ciosa, que o marido amava com grande extremo a uma criada sua, que ella pintou logo a mais galante, airosa, galharda e bem assombrada, que havia no paço. Quando ella aquillo ouviu, ficou (guarde-nos Deus) como uma mulher transportada e sem sangue; por maneira que prometteu áquella feiticeira que lhe faria e aconteceria se a desaffeiçoasse ao rey d'aquelles amores e empregasse n'ella todos os seus: a outra, que não queria mais que aquillo, vêde vós como ficaria contente, vem e promette á rainha que lhe daria tres aguas conficionadas, de tal maneira que huma, tanto que el rey a provasse, bebesse logo os ventos por ella, e lhe quizesse mais que o lume dos olhos com que a via; a outra, que em a rainha a bebendo, parecesse a seu marido o maior extremo da formosura, que havia no mundo; a terceira, que tanto que a dama a bebesse, a desfigurasse de maneira que a todos aborrecesse a sua vista. As palavras não eram ditas, a rainha lhe deu muitos haveres e fez grandes mercês e promessas, que muito facil é de enganar a que deseja aquillo com que lhe mentem. Vai a feiticeira d'ali a poucos dias, e traz aquellas aguas conficionadas, encarecendo muito a virtude e segredo d'ellas; mas ou porque lhe errou a tempera ou porque todas se resolvem n'estas boas obras, a mudança que ella queria houvesse na vontade e nos pareceres, lhe houverão de fazer na vida, que a peçonha, que é sempre material dos seus unguentos, penetrou de maneira, que os teve a todos tres em passamento, e a bem livrar ficaram d'ahi a poucos dias sem juizo. Inda bem a feiticeira não soube o damno que fizera, e que por não trazer a mão certa n'aquelles adubos podia vir a estado de a porem na da justiça, desappareceu. Eis senão quando, se ajuntam todos os medicos eminentes que havia no reino, e depois de muitos mezes de cura (olhay vós quantas se fariam a taes pessoas) foram pouco e pouco cobrando os sentidos e entendimento; e com a força do mal lhes cahiu a todos o cabello da cabeça, sem lhes ficar um só. E não foi tão ruim o partido, como era ter cabeça sem elle quem antes o trazia sem ella. Tornando ao meu proposito, tanto que a rainha se viu desfigurada, conhecendo o desatino que fizera, dando todas as culpas ao amor, confessou seu erro, a criada sua innocencia, e o rei sua desgraça; d'ali em diante, conformando-se com o exemplo d'aquelle successo, fizeram vida sem ciumes, que d'elles e de casamentos por amores não escapam senão com as mãos nos cabellos, ou com elles pelados.»[31]

Rodrigues Lobo continua definindo os differentes generos de Contos: «A noite… se tocou n'esta conversação o modo que havia de ter o discreto em contar uma historia, fugindo muitos vicios e bordões que os nescios tem n'ellas introduzidos, e como em dependencia d'esta materia, se fallou nos contos gallantes, que tem d'ellas muyto grande differença: pois ellas não consistem mais, que em dizer com breves e boas palavras uma cousa succedida graciosamente. São estes Contos de trez maneiras. Huns fundados em descuidos e desatentos, outros em mera ignorancia, outros em engano e subtileza. Os primeiros e segundos têm mais graça e provocam mais o riso, e constam de menos razões, porque sómente se conta o caso, dizendo o cortezão com graça propria os erros alheios. Os terceiros soffrem mais palavras, porque deve o que conta referir o como se houve o discreto com o outro que o era menos, ou que na occasião ficou mais enganado.» «Além d'estas tres ordens de contos, de que tenho fallado, ha outros muito graciosos e galantes, que por serem de descuido de pessoas, em que havia em todas as cousas de haver maior cuidado, nem são dignos de entrar em regra, nem de serem trazidos por exemplos; a geral é que o desatento, ou ignorancia, d'onde menos se espera tem maior graça. Atraz dos Contos graciosos se seguem outros de subtileza, como são furtos, enganos de guerra, outros de medos; fantasmas, esforço, liberdade, desprezo, largueza e outras semelhantes, que obrigam mais a espanto que a alegria; e postoque se devem todos contar com o mesmo termo e linguagem, se devem n'elles usar palavras mais graves que risonhas.» «Os Contos e Ditos galantes devem ser na conversação como os passamanes e guarnições nos vestidos, que não pareça que cortaram a seda para elles, senão que cahirão bem e betaram com a côr da seda ou do panno sobre que os puzeram; porque ha alguns que querem trazer o seu Conto a remo quando lhe não dão vento os com que pratica, e ainda que com outras cousas lhe cortem o fio, torna a tea e o faz comer requentado; tirando-lhe o gosto e graça que podia ter se caira a caso e proposito, que é quando se falla na materia de que elle trata, ou quando se contou outro semelhante. Assim convem muita advertencia e decoro para os dizer, outra maior se requere para os ouvir, porque ha muitos tão soffregos do Conto, ou Dito que sabem, que em o ouvindo começar a outrem ou se lhe adiantam, ou o vão ajudando a versos como se fora psalmo, o que a mim me parece notavel erro…» «tambem eu não sou de opinião, que se um homem souber muitos Contos ou Ditos de uma mesma materia que se fallou, que os traga todos ao terreiro como jogador que levou rifa de um metal, mas que deixe lugar aos outros, e que não queira ganhar o de todos, nem fazer a conversação só comsigo.» Rodrigues Lobo conhecia a collecçao hespanhola de Timoneda, El sobremesa e Alivio de Caminantes (1576), que tomava por typo:

«Antes me parecia a mim, que assim dos Contos galantes, Ditos engraçados e Apodos risonhos, se ordenasse que em uma d'estas noites, tomando um proposito, cada um contasse a elle o seu Conto, e dissesse o seu Dito: e seria um modo extremado para se tirar outro novo Alivio de Caminantes, com melhor traça que o primeiro.»[32] Na tradição popular portugueza temos encontrado contos que apparecem no Alivio de Caminantes, taes como: A mulher afogada que o marido busca indo contra a corrente do rio (n.º 1); Tudo andaremos (n.º 33); Não lhe dar com o tom (n.º 37); as Orelhas do abbade (n.º 51); Para quem canta o cuco? (n.º. 57); e o Cego que recobra o seu thesouro (n.º 49).

Nos Sermonarios e Livros asceticos do seculo XVII tão rhetorico nos paizes catholicos, é que os Contos receberam uma exclusiva intenção moral, continuando os Thesouros de Exemplos, dos prégadoras da Edade media. O livro de Francisco Saraiva de Sousa, Baculo Pastoral, é um apanhado de todas essas collecções predicaveis; ahi se encontra o conto do principe castigado pelo mestre nos seus doze condiscipulos, que por certo não veiu do Novellino (n.º XLVIII.) No Estimulo pratico do padre Manuel__PAGESEPARATOR__ Bernardes, vem o conto dos tres cegos, que conversam entre si, imitando um pouco o estylo popular. Nos prologos em verso das comedias de Simão Machado acham-se pequenos Contos tirados da tradição classica e erudita.

Apesar da profunda decadencia da Litteratura portugueza no seculo XVIII pela inintelligencia dos escriptores pelo elemento tradicional, os Contos de Trancoso continuaram a ser lidos com soffreguidão, e alguns poetas, como Filinto e Nicoláo Tolentino alludem ao grande interesse que ainda tinham os Contos populares. Na Comedia de cordel Incisão do Peraltice acham-se citados os Contos de Trancoso, e mesmo no Folheto de ambas Lisboas, n.º 25: «O dote d'ella consta de memorias, sem serem dos dedos, mas sim de Contos de Trancoso…» E Filinto Elysio, nas notas da sua traducção de Lafontaine, tambem repete: «Conta de in illo tempore: Como os Contos de Trancoso, do tempo de nossos avoengos.»[33] Este poeta ultra-classico, pela sua origem plebêa, conservava certas reminiscencias tradicionaes; assim allude a varios contos: «João Ratão e a Princesa Doninha… Sem contar outras personagens, que não é muito que me esqueçam (por mais doutrinaes que sejam) contos que ouvi contar ha mais de setenta e dois annos!»[34] «Contem-me Pelle de Asno… conto em França tão conhecido como entre nós o das Tres Cidras do Amor[35] Filinto, nas notas dispersas pelas suas Obras, á maneira de uns Tischreden, ou cavacos á mesa, faz allusões importantes á novellistica e litteratura popular: «Com o titulo da Gata Borralheira contava minha mãe a historia da Cendrilhon. E nunca minha mãe soube francez.»[36] A mãe de Filinto tinha sido uma tricana de Aveiro; pelas passagens supracitadas, vê-se que Trancoso era ainda bastante lido pelos nossos avoengos, como o confirmam as edições das Historias proveitosas, de 1710, 1722, 1734 e 1764. O gosto popular foi desviado por novas leituras, mas a predilecção do conto oral conservou-se mesmo nas classes aristocraticas em Portugal; diz Nicoláo Tolentino, alludindo aos Contos de fadas que contava á Marqueza de Alegrete:

Quando eu a teus pés contava,
Mentiroso historiador,
Ora a do Caixão de vidro,
Ora a das Cidras do Amor.

Quando os mesmos tenros annos
A tua filha contar,
Todos os dias virei
Meu officio exercitar.[37]

Em outras passagens dos seus versos allude a esta predilecção familiar:

Contando historias de Fadas
Em horas que o pae não vem,
E c'o as pernas encruzadas
Sentado ao pé do meu bem
Lhe dobo as alvas meadas.
(Ib., p. 262.)

São divertimento inutil,
São as historias de fadas
(Ib., p. 122.)

O conto não foi desprezado pela litteratura ascetica do seculo XVIII, que se apropriou de elementos de erudição; o Padre Manoel Consciencia, na Academia universal de varia erudição, traz o conto dos ladrões que foram ao Thesouro de Rampsinito, narrado por Herodoto. Encontrámol-o na tradição oral açoriana, em que um rei manda escutar pelas portas para descobrir onde se chora e assim descobrir-se a familia do morto. Ouviu-se chorar em uma casa, bateram á porta, e n'isto um dos filhos, que estava desmanchando um porco, deu com um machado n'um pé, e assim se encobriu o motivo verdadeiro por que se chorava. Na Hora de Recreyo do Padre João Baptista de Castro vem alguns contos tradicionaes, que já apparecem em collecções anteriores, como o da Quarta de leite (p. 29), a Velha que dá o que tem á filha (p. 81), o Cego e o moço comendo uvas (p. 123), o Estudante que furta a roupa do transeunte (p. 130), e o conto decameronico do Marido que confessa a mulher (p. 16). O conto do estudante que se substitue ao burro que vae á feira, e do qual se originou o adagio Quem não te conhecer que te compre, já contado pelo Bluteau, acha-se outra vez narrado na Hora de Recreyo (vol. II, p. 13).

No periodo do Romantismo, em que as Litteraturas modernas se aproximaram das suas fontes tradicionaes, tambem Garrett e Herculano sentiram a necessidade de imprimir uma feição nacional á litteratura portugueza; Herculano romantisou o conto da Dama Pé de Cabra nas suas Lendas e Narrativas, e Garrett metrificou a lenda de Gaia, do Nobiliario. Mais tarde Mendes Leal fez uma especie de magica fiabesca das Tres Cidras do Amor, com toda a inintelligencia do ultra-romantico. Era preciso fazer a transição da emoção artistica para a critica consciente; esta phase do Romantismo europeu só veiu a operar-se muito tarde em Portugal, quando a Historia litteraria recebeu um espirito philosophico, e o corpo das tradições poeticas foi explorado com intuito scientifico. No ultimo quartel do seculo XIX o Conto popular continuou a receber fórma litteraria;[38] prevaleceu, porém, a direcção scientifica, havendo já numerosas collecções em que se vão archivando as tradições portuguezas, symptoma auspicioso de uma revivescencia da nacionalidade.[39]

  1. Ed. Pidal, t. I, pag. 115.
  2. Max Müller, Essais sur la Mythologie comparée, p. 469.
  3. Canc. de Baena, ed. Pidal, I, 118.
  4. Livre des Legendes, p. 167.
  5. Obras, t. III, p. 101.
  6. Folk-lore andaluz, p. 126; R. Marin, Cantos populares españoles, t. II, p. 196.
  7. Cancioneiro portuguez da Vaticana, n.º 455.
  8. Orto do Esposo, fl. 73, v.
  9. Op. cit., ed. de Paris, p. 148.
  10. Leal Conselheiro, p. 81.
  11. Ibidem, p. 7.
  12. Op. cit., p. 192.
  13. Antiquités de Russie, p. 151.
  14. Ticknor, Hist. da Litteratura hesp., t. III, p. 25, not. 38.
  15. Obras, t. II, p. 287.
  16. Obras, p. 104. Ed. 1804.
  17. Autos, p. 426.
  18. P. Francisco da Fonseca, Evora Gloriosa, p. 627.
  19. Poesias e Prosas, p. 103.
  20. Op., fl. 14 e 32.
  21. Poesias e Prosas, p. 103.
  22. Os contos de Trancoso tornaram-se typos do genero: «Finalmente para prova do que tem dito, conta dois casos, que me parecem de Trancoso.» Frei Arsenio da Piedade, Reflex. apologeticas, p. 34.
  23. Contos, p. 153, ed. 1642.
  24. Ibidem, p. 46.
  25. Ibidem, p. 247.
  26. Ibidem, p. 208.
  27. Vid. um estudo comparativo do conto XV, da Parte I, na Harpa, e na Revista de Ethnologia e de Glottologia.
  28. Cartas, p. 671 (1649). Aqui tambem allude ao conto dos Frangãos e do Milhafre (p. 215).
  29. Op. cit., p. 260.
  30. Traz o anexim: Cantar mal e porfiar, derivado da fabula do corvo querendo cantar com a philomela, do Dialogus criaturaram, de Nicoláo de Pergamo. (Ap. Du-Méril, Hist. de la Fable, p. 152, nota.)
  31. Ibid., pag. 146.
  32. Côrte na Aldêa, Dialogo XI.
  33. Op. cit., p. 444.
  34. Ibid., p. 516.
  35. Obras, p. 324.
  36. Ibid., t. III, p. 60. Por este texto se vê a verdade da nossa interpretação do texto de Jorge Ferreira.
  37. Obras de Nicoláo Tolentino, p. 93. Ed. Castro Irmão.
  38. Ramalho Ortigão, nas suas Farpas, traz o conto do Manto do Rei, por ventura conhecido pela collecção de Andersen, mas já desde o seculo XIV vulgarisado na Peninsula pelo Conde de Lucanor, de D. João Manoel. Em um outro numero das Farpas, traz o conto do lazarento que não quer que lhe enxotem as moscas; este conto é de Esopo (coll. do Planudes) e Josepho cita-o nas Antiguidades judaicas (Livro XVIII, cap. 8) em nome de Trajano.
  39. Bibliographia dos Contos populares portuguezes:
    1. Historias de Proveito e Exemplo, de Gonsalo Fernandes Trancoso. Lisboa, Antonio Alvares, 1575. 1 vol.2.
    2. Lendas, Tradições e Contos populares portuguezes do seculo XII a XIX. 1871. (Annunciado, e só publicado em 1883.)
    3. Contos populares portuguezes, colligidos por F. A. Coelho. Lisboa, 1879. 1 vol.
    4. Portuguese Folk-Tales, collected by Consiglieri Pedroso, and translated from original Ms. by Miss Henriqueta Monteiro, with an Introduction by W. R. S. Raslton. London, 1882. 1 vol.
    Contos tradicionaes do povo portuguez, com uma Introducção e Notas comparativas, por Theophilo Braga. Porto, 1883. 2 vol. (Vid. n.º 2; mais tarde publicaremos as Lendas portuguezas.)
    5. Contos populares do Algarve, colligidos por Reis Damaso. (Annunciado nas Scenographias.)
    6. Contos populares portuguezes, colligidos por Leite de Vasconcellos. (Annunciado nas Tradições populares.)
    7. Contos de velhos e crianças, colligidos por Joaquim de Araujo. (Annunciado na Renascença.)
    8. Contos populares portuguezes, colligidos por Consiglieri Pedroso.(Ineditos.)
    9. Contos nacionaes para crianças, por F. A. Coelho. Porto, 1883, 1 vol.
    10. Romanceiro do Archipelago da Madeira, colligido por Alvaro Rodrigues de Azevedo. Funchal, 1881. (Traz contos metrificados.)