CRÍTICA (análise e interpretação de uma obra de arte) → Texto
Do grego kriticos, composto do verbo krinein (julgar) + tekhne (técnica), a palavra "crítica", etimologicamente, significa "aptidão para julgamento", o ato de emitir opinião, apontando valores ocultos numa obra de arte, com base no "critério", a faculdade que homem tem de poder distinguir o verdadeiro do falso, o belo do feio. A atividade crítica surge junto com a Filosofia e as Artes: falamos de crítica da razão dialética, da razão pura, da razão prática, crítica literária, teatral, de cinema, esportiva etc. Perante um objeto de arte, seja ele um poema, um romance, um filme, um quadro, uma estátua, uma mulher bonita (por que não?), o homem, naturalmente, se sente tentado a analisar as partes componentes do objeto e a julgar sobre sua formosura, utilidade, conveniência, agradabilidade. O primeiro momento é chamado de "análise", consistindo no estudo dos elementos constitutivos e de suas relações entre si; o segundo é a "interpretação", onde se dá o julgamento de valor. Com base nesta distinção, os estudiosos da obra de arte literária falam de uma crítica interna ou estrutural, diferenciando-a da abordagem externa ou cultural. O primeiro tipo de abordagem se preocupa com a obra em si, independentemente do autor e da época; já a análise externa estuda os componentes ideológicos ligados ao tempo e ao espaço. Um bom crítico deve conhecer a técnica das duas formas de estudo de uma obra de arte, pois os dois métodos são complementares e não excludentes. Neste Dicionário, a análise dos elementos estruturais (o olhar por dentro) é utilizada em vários verbetes (→ Texto → Mito → Personagem → Narrativa e em outros lugares, onde se fala dos elementos constitutivos de uma obra de arte ou se interpreta um poema, uma narrativa, uma peça dramática.). Aqui apresentamos vários tipos de crítica extrínseca (o olhar de fora). Esta modalidade de abordagem do texto literário é centrípeta, no sentido de que a atividade critica parte de fora para dentro: estuda-se a biografia do autor, as condições socio-culturais que formaram sua personalidade, as escolas e movimentos literários que lhe forneceram os cânones estéticos e o complexo ideológico em que viveu. Munido destes conhecimentos, o crítico inicia a análise e a interpretação de um texto dado, visando especialmente verificar até que ponto o autor é "filho de sua época", reproduzindo as formas estéticas e o conteúdo ideológico do grupo e do movimento literário. Entre as várias modalidades deste enfoque histórico e externo da obra artística, destacamos algumas que nos parecem ter tido bastante sucesso: a critica sociológica, a crítica psicológica e outro tipo de crítica que, por falta de um nome mais apropriado, chamamos de "arquetípica".
A crítica sociológica considera a literatura, a par das outras atividades artísticas, como produto e expressão da cultura e da civilização de um povo nas diversas fases de seu desenvolvimento. A interação escritor-sociedade é proveniente dos seguintes fatores: a) o "emissor" (o escritor) é um ser socializado, que sente e vive os problemas humanos (políticos, sociais, religiosos, éticos) de seu grupo; b) o "código" (a língua) de que se serve não é um fator individual, mas institucional, coletivo, cuja função primordial não é artística, mas prática, de comunicação inter-humana; e, por mais que o escritor possa "operar" sobre a linguagem, usando-a de um modo particular, desviando-se da norma lingüística, o certo é que a parole artística só é possível a partir de uma langue; c) a "mensagem" (o texto produzido), muito embora fruto de uma individualidade poética, não é uma mônade estética: ela é determinada pelas convenções e pelos gêneros literários próprios de uma época, que são estabelecidos pela sociedade e não pelos indivíduos. Mesmo quando o artista é um renovador de formas estéticas e de conteúdos ideológicos, seu estilo peculiar só pode ser entendido a partir de um contraste com a literatura preexistente; d) o "destinatário" (o leitor), enfim, apesar de ser ficcionalmente "virtual", no ato da criação artística ele participa da mesma realidade social do escritor; quer dizer, o artista tem o intuito de atingir um público que vive os problemas estéticos e ideológicos de sua época, embora, devido ao caráter polissêmico e universalizarite da verdadeira obra de arte, esta possa ser usufruída também por leitores posteriores. A critica sociológica explora a análise destes quatro fatores e procura inserir a obra literária num contexto socio-cultural. Ela tem valor estético não quando, usando do método das ciências exatas, visa à "explicação" do fenômeno literário, buscando seus antecedentes causais na realidade socio-econômica (como costuma fazer uma vertente da crítica socialista → Marx), mas quando se preocupa com a "compreensão" da significação da obra, estabelecendo homologias entre as estruturas do universo da obra e as estruturas mentais de certos grupos sociais, segundo o método do estruturalismo genético de Lucien Goldman. No que toca especificamente o estudo do romance, por exemplo, ele apresenta a seguinte hipótese: "a forma romanesca parece-nos ser a transposição para o plano literário da vida cotidiana na sociedade individualista, nascida da produção para o mercado. Existe uma homologia rigorosa entre a forma literária do romance, tal como acabamos de definir, nas pegadas de Lukács e de Girard, e a relação cotidiana dos homens com os bens em geral e, por extensão, dos homens com os outros homens, numa sociedade produtora para o mercado". Nessa linha de pesquisa trabalha também o crítico brasileiro Antônio Cândido, que considera o fator social não apenas como "matéria" de que se serviria o artista, mas também e especialmente como um "agente de estrutura" e, então, como uma determinante do valor estético. Visto desta maneira, o fator social deixa de ser um fator puramente externo para tornar-se interno e a critica sociológica toma-se uma crítica estética. A análise de tipo sociológico encontra no estudioso alemão Erich Auerbach (Mimésis: a representação da realidade na literatura ocidental) um valioso cultor, pois ele estabelece uma estreita ligação entre o estilo do autor e a estrutura social nas obras que analisa.
A critica psicológica tem em comum com a critica sociológica o olhar para a obra de fora para dentro. Dela se diferencia, porém, por salientar mais a personalidade do escritor do que as condições sociais e o espírito da época. Ë muito antiga a concepção da arte como fruto de uma personalidade psiquicamente excepcional. Platão concebe o poeta como um indivíduo temporariamente "possesso" pela divindade: ele só pode criar nos momentos em que está "inspirado" pelos deuses. Apesar da concepção antitética de Aristóteles que considera o poeta como um ser lúcido, no pleno gozo de suas faculdades intelectuais, um "artífice" que estrutura livre e conscientemente o material poético, a teoria platônica da inspiração artística como "dom" divino impregna as concepções sobre a criação literária da cultura ocidental. O mito da "Musa" inspiradora, onipresente na épica clássica, se cristianiza na estética neoplatônica de Marsílio Ficino: as musas são substituídas pelo Espírito Santo. A gênese da obra literária, portanto, é vista como semelhante à gênese dos Livros Sagrados e o poeta é considerado um sacerdos, investido de um saber transcendental. A teoria platônica do poeta "inspirado" e a teoria aristotélica do poeta "artífice" encontram uma reformulação na oposição nietzschiana de espírito "dionisíaco" e espírito "apolíneo". Dionísio (na mitologia grega) ou Baco (na mitologia romana), fruto híbrido de um amor divino-humano, não aceito no Olimpo, errou pela terra e ensinou aos homens o cultivo da uva e a produção do vinho. Seus fiéis, Sátiros e Bacantes, durante a celebração ritual, no estado de embriaguez, sentiam-se "possessos" pelo deus e compunham seus cantos sob a inspiração direta de Dionísio. A poesia ditirâmbica é um tipo de arte produzida por pessoas "transformadas", que declinam momentaneamente de sua personalidade real. Contrastando com Dionísio, Apolo é um deus integrado no convívio celeste. Ele é o deus da luz e da ordem. A essência da beleza apolínea reside na harmonia de formas, na exata proporção das partes com o todo. O artista que se inspire em Apolo é um ser que lúcida e conscientemente constrói suas mensagens, um técnico que conhece o ofício. Outros críticos, sem se referir explicitamente às teorias de Platão e de Aristóteles acerca da gênese da criação poética ou à oposição encontrada pelo filósofo alemão F. Nietzsche entre o espírito dionisíaco e o espírito apolíneo, também fazem distinção entre um tipo de literatura fruto de espíritos estética e humanamente inconformados e um tipo de literatura produto das convenções literárias e sociais. Pensamos na oposição entre literatura "dialógica" e "monológica" de M. Bakhtine, entre fase "irônica" (Mithos do Inverno) e fase "romanesca" (Mithos do Verão) de Northrop Frye , entre escritores "apocalípticos" e escritores "integrados" de Umberto Eco. Esta dicotomia pode ser expressa pela oposição romântico vs clássico, entendendo-se estes termos não na sua concepção histórica de movimentos literários, mas como atitudes estéticas e espirituais, que enformam as várias fases da evolução artística. Neste sentido, na história da literatura, teríamos uma alternância da postura romântica e da postura clássica perante a arte e a vida. A concepção do autor "inspirado" e do autor "artífice" representaria duas "invariantes", estética e ideologicamente indicativas de valores constantes, no meio das configurações "variáveis" de que se reveste cada período literário. Mas a crítica psicológica com pretensões científicas afasta-se dessas especulações míticas ou supra-históricas e procura encontrar a gênese da criação artística na carga biopsíquica de que o autor é portador. As modernas teorias da psicanálise, quando aplicadas ao estudo da obra literária, têm substituído o pensamento antigo da inspiração como dádiva divina pela teoria da arte como neurose. A gênese do "furor" poético residiria, então, num desequilibro emocional do autor, causado ou por defeitos físicos (a cegueira de Homero, a corcunda de Leopardi, etc) ou por um desajuste psíquico (teoria dos "complexos"). O poeta seria um ser excepcional, inadaptado ao meio-ambiente, que sublimiza na arte os recalques do subconsciente, quer individual (Freud), quer coletivo ou rácico (Jung) Conforme o crítico David Daches (Posições da crítica em face da Literatura), "pode-se considerar a biografia de um autor, ilustrada pelos fatos externos de sua vida e por elementos outros, tais como cartas e documentos que tenham o caráter de confissões, e, com isso, construir uma teoria sobre a personalidade desse autor — seus conflitos, frustrações, experiências traumáticas e neuroses, ou o que quer que seja — e valer-se de tal teoria para esclarecer cada uma de suas obras" A biocrítica e a psicocrítica, centradas sobre o estudo da personalidade real do autor, têm várias falhas, fáceis de serem apontadas: a) não serviriam para a análise de obras cujo autor seja anônimo ou suas notícias biográficas escassas; b) admitem implicitamente que qualquer obra literária seja imbuída do espírito dionisíaco e possua uma ideologia revolucionária; c) confundem o "eu" do narrador com o autor, transferindo elementos do mundo real para o mundo ficcional; d) quando alcançam seu intento, conseguem apenas "explicar" a gênese da produção literária, não atingindo a compreensão da forma estética. A critica psicológica tem valor literário somente quando, da mesma forma que vimos em relação à crítica sociológica, tem o texto como objeto de pesquisa; isto é, quando as leis e os princípios da psicologia e da psicanálise são aplicados não ao estudo do autor mas das personagens ficcionais. Quer dizer, a metalinguagem crítica pode valer-se de elementos conceptuais oriundos das ciências psicológicas para explicar o comportamento de uma personagem, sua evolução emocional, suas contradições, suas idiossincrasias, suas reações ao ambiente ou o relacionamento psíquico que une ou separa os agentes ficcionais. Também as categorias do espaço e do tempo ficcional podem ser relacionadas com estados psicológicos. Pode-se até chegar à determinação da estrutura poética de um texto, utilizando apenas elementos teóricos extraídos da psicologia. Enfim, de uma forma plena ou parcial, consciente ou inconscientemente, a escolha do crítico não consiste em utilizar, ou não, a psicologia, mas em utilizar a psicologia do senso comum ou a psicologia científica, pois é impossível analisar e interpretar um texto literário sem lançar mão de processos psicológicos.
A critica arquetípica constrói seu arcabouço a partir de concepções gerais sobre a cultura e a civilização, rastejando, na história da literatura, "fases" e "modos", insistindo principalmente sobre convenções e gêneros literários e descuidando do estudo das obras em si. Pensamos nos quatro tipos de crítica propostos por Northrop Frye: a) crítica "histórica", com base na teoria dos modos (trágico, cômico e temático); b) crítica "etológica", fundamentada nos símbolos (fase literal, formal, mítica e anagógica); c) critica "arquetípica" propriamente dita, relacionada com os mitos primordiais (mito da Primavera = Comédia; do Verão = Romance; do Outono = Tragédia; do Inverno = Ironia; d) crítica "retórica", que repousa na teoria dos gêneros (Ëpos, Prosa, Drama, Lírica). A maior ressalva que pode ser feita a esse sistema crítico proposto por Northrop Frye é que ele não considera a obra de arte como uma produção individual, mas algo construído a partir de um cabedal cultural coletivo. Pensando assim, o autor da Anatomia da critica é coerente, pois na "Introdução polêmica" à sua obra afirma que a crítica é uma estrutura do pensamento autônomo em relação à arte; que não existe aprendizado direto da literatura; que o que se apreende não é literatura, mas crítica da literatura; que um poema é imitação de outros poemas, fruto de convenções e gêneros, e que, portanto, para que haja crítica, é necessário que a obra examinada seja relacionada com os dados de um quadro conceptual formado por referência indutiva a uma perspectiva do conjunto da literatura num determinado contexto histórico e espacial. Enfim, qualquer tipo de crítica está sempre condicionada aos conhecimentos e à mundividência do sujeito pensante. Mas, é sempre bom lembrar a advertência do dramaturgo Eugène Ionescu: "os críticos devem descrever, não prescrever".