LÍRICA (forma de arte e estado de espírito) → Poesia → Gênero literário → Trovadorismo
Do termo greco-romano "lyra", instrumento musical de corda, em forma de U, que os antigos usavam para acompanhar o canto e a dança, a palavra lírica, ligada à produção artística em versos, é posterior a Aristóteles (séc. IV a.C.), que chamava "mélica" (de melos, melodia), a palavra poética feita para ser cantada. Os primeiros poemas curtos (chamados de mélicos ou líricos e diferenciados dos poemas longos da produção épica, trágica e cômica) estavam relacionados com o culto religioso, sendo cantados diante dos altares ou durante as procissões e festas sagradas. Eram chamados de hinos, os mais famosos sendo o ditirambo ("aquele que nasceu duas vezes", apelido de Dionísio, parido do ventre da princesa tebana Sêmele e da coxa de Júpiter) e o pean, em honra do deus Apolo. Mas, além do sentimento religioso, a poesia lírica servia para salientar todas as atividades humanas importantes: o epinício (celebração de uma vitória esportiva), o encômio (elogio de um varão), o epitalâmio (celebração de núpcias), a elegia (canto fúnebre e sentimento de tristeza), a ode (exaltação da pátria, de um acontecimento importante, da mulher amada). Os gregos cultivaram também o gênero satírico, que chamavam de poesia jâmbica, e distinguiam a lírica "monódica" (individual) da "coral". O termo "lírico" afirmou-se ao longo do período helenístico, que abrangeu a cultura alexandrina e romana (→ Helenismo), permanecendo até hoje, confundindo-se com "poético", mesmo quando os versos começaram a ser feitos para serem escritos, recitados, publicados, lidos, e não mais apenas cantados. Émil Staiger distingue o substantivo "Lírica", como gênero literário (poema curto, de várias formas, quase todas elas ligadas entre si pelos semas da musicalidade, do canto e da dança: soneto, cantiga, balada, canção, rondó, etc.), do adjetivo "lírico", bem mais abrangente: falamos de peça teatral (Ópera lírica) ou paisagem lírica, por exemplo, para indicar um estado de espírito, uma postura perante a vida, exprimindo essencialmente um sentimento individual e intransferível de prazer, de dor, de amor, de angústia, de paixão. Ainda hoje, lírico é tomado quase como sinônimo de sentimental, emocional, romântico, algo que toca o coração mais que a razão. O crítico alemão salienta a característica principal do estilo lírico: a recordação, bem diferente da "memória". Recordar significa anular o distanciamento entre passado e presente, entre sujeito e objeto. É um "estar-no-outro". A interiorização de toda a objetividade é a essência do lírico: não estamos diante das coisas, mas nelas e elas em nos. Portanto, o subjetivo e o objetivo, como o passado e o presente, não estão diversificados na poesia lírica. Este conceito de liricidade não se encontra apenas na poesia, mas também numa paisagem ou numa atitude humana. Para sentir liricamente é necessária a existência de uma disposição anímica, que nos possibilite sermos "tomados" por algo que está em frente a nós. O clima lírico se estabelece quando, entre um poema e seu leitor, um quadro de arte e seu espectador, um panorama e seu observador, a relação de compreensão não está baseada no intelecto, mas na alma, não no conceito, mas no sentimento. Por essas considerações, temos a impressão de que o estilo lírico é inexplicável. O leitor ou o espectador não deveria se preocupar em compreender, mas apenas em fruir a beleza de um poema, de um quadro, de uma paisagem, de um estado de alma, estabelecendo-se assim uma relação simpatética entre destinador e destinatário de um objeto de arte. Tal postura epistemológica, fundamentada num subjetivismo absoluto, anula qualquer possibilidade de analise e de interpretação do poema lírico, reduzindo a poesia a algo de misterioso e de insondável. Contra esta tendência impressionista insurgem-se as modernas técnicas de analise poemática, propostas especialmente pelo Formalismo russo e pelo Estruturalismo francês, que procuram devassar o pretenso mistério da poesia. Os estudos realizados sobre a estrutura do verso, sobre o ritmo, sobre as figuras de estilo, sobre o semantismo poético, tiveram o intuito de demonstrar que também o poema lírico, a par da narrativa e da peça teatral, pode ser submetido a uma analise estrutural que, pondo em relevo os elementos constitutivos do poema e a especificidade da linguagem artística, nos ajude a compreender o sentido interno e a captar a parcela de significação da realidade que toda obra poética encerra.
A poesia lírica é intrínseca à natureza humana. Os antigos gregos manifestavam, em versos líricos, todas as atividades da vida. Mas, infelizmente, da maravilhosa produção lírica da Grécia antiga só restaram fragmentos. Os considerados importantes, pelo fato de que suas formas métricas e conteúdos ideológicos tiveram imitadores ao longo da história da lírica do Ocidente, pertencem a três grandes poetas: Safo (625–580 a.C.), a grande poetisa do amor; Píndaro (518–438 a.C.) que, em suas famosas Odes, exalta os ideais do povo grego; e Anacreonte (564–478 a.C.), cantor das alegrias da mesa (Skólia) e da cama (Erótika). A lírica de língua latina seguiu, de uma forma geral, os modelos criados pelos gregos, embora o conteúdo poemático espelhe a diferente sensibilidade do povo romano. A literatura latina apresenta quatro poetas líricos de primeira grandeza: Catulo, Horácio, Virgílio e Ovídio. Na Alta Idade Média (do século V ao XI → Medievalismo), a poesia lírica em língua latina ficou restrita quase exclusivamente ao culto da religião cristã: hinos, salmos, partes da liturgia da missa. Na Baixa Idade Média (do século XI ao XV), com a afirmação das línguas românicas, a Lírica apresenta dois filões: um, autóctone, genuinamente nacional e popular, relacionado com a vida no campo: na língua galego-portuguesa temos o exemplo das "cantigas de amigo". Outro filão, de origem culta, palaciana, surgido no sul da França, na Provença: a famosa lírica trovadoresca (→ Trovadorismo), uma poesia de escola, rebuscada, que exalta a figura da mulher idealizada. A poesia provençal fez muito sucesso, tendo sido imitada por poetas galegos, portugueses, castelhanos, italianos. Só foi destronada pela escola do "dolce stil nuovo", surgida numa região central da Itália, a Toscana, no século XIV. Poetas como Guido Guinizelli, Guido Cavalcanti, Dante Alighieri e Francesco Petrarca sentiram a necessidade de quebrar o formalismo da escola trovadoresca, fazendo com que a palavra poética fosse a real expressão do sentimento. O maior lírico da última fase da Idade Média foi Petrarca (1304–1374), primeiro grande poeta introspectivo de língua neolatina. E fez escola: o "petrarquismo" foi a moda poética que predominou na Europa até o advento do romantismo. O Renascimento, o Barroco e o Arcadismo, que formam o período clássico da cultura moderna, retomam os filões líricos da Baixa Idade Média (trovadorismo, estilnovismo, petrarquismo, bucolismo), acrescentando-lhes a imitação de formas e conteúdos da antiga poesia greco-romana, ressuscitada pelos humanistas. Entre os poetas líricos de maior destaque, citamos: Lorenzo dei Medici (1449–1492), Angelo Poliziano (1454–1494), Jacopo Sannazzaro (1453–1530), Torquato Tasso (1554–1595), Garcilaso de la Vega (1503–1536>, Luís Vaz de Camões (1524–1580), Dom Luis de Gongora y Argote (1561–1627), Francisco de Quevedo y Villegas (1580–1645), Giambattista Marino (1589–1625), John Donne (1.573–1631), Metastásio (1698–1782), Bocage (1765–1805).
O Romantismo provocou uma revolução cultural que atingiu também o gênero lírico. Em nome da liberdade de sentir e de se expressar, os poetas românticos deixaram de lado os cânones estéticos do Classicismo para dar larga vazão ao sentimento, cada qual poetizando segundo os impulsos de seu subjetivismo. Os estudiosos distinguem a lírica "quietista" dos lake’s poets, que se alimentavam de sonhos e ilusões (Novalis, Young, Keats, Wordsworth, Poe, Musset Vigny, Larnartine, Hugo), dos poetas revolucionários, que tentaram sacudir o modelo burguês da vida (Goetbe, Blake, Byron, Baudelaire). O maior poeta lírico do romantismo europeu foi o italiano Giacomo Leopardi, que com intensidade e mais bom gosto estético soube expressar o vazio existencial provocado pelo sentimento da "noia", do tédio, do desgosto face à efemeridade de qualquer tipo de prazer, personificando a insatisfação própria da época romântica. O Simbolismo revigorou o gênero lírico, após a fase do Realismo, vazio do ponto de vista propriamente poético, pois o Parnasianismo foi uma retomada da lírica clássica, buscando a perfeição formal. Aprofundando a ética romântica, os poetas simbolistas voltaram ao espiritualismo, tentando descobrir uma alma universal, algo misterioso que estabelecesse uma correspondência entre os elementos do mundo humano, animal e vegetal. Para tanto, serviram-se da metáfora sinestética, que cria associações entre sensações de campos semânticos diferentes. Os melhores poetas simbolistas foram os franceses Mallarmé, Verlaine, Rimbaud e Valéry, este último considerado o primeiro teórico da poesia modernista.
O Modernismo e a contemporaneidade apresentam vários filões líricos, difíceis de serem claramente delineados, pois oscilam entre a lucidez intelectual e o impulso anárquico. O estudioso Hugo Friedrich, no seu apurado estudo Estrutura da lírica moderna, distingue duas polaridades no complexo poético do século XX: 1) Uma lírica intelectualizada, de grande rigor formal, iniciada por Mallarmé e continuada por Valéry, pela qual a poesia deve ser "uma festa do intelecto"; 2) uma lírica formalmente livre, alógica, iniciada por Rimbaud e elevada às últimas conseqüências pelo poeta surrealista André Breton, pela qual a poesia deve ser "a derrocada do intelecto". O contraste apontado não deve ser entendido no sentido exclusivista; antes, como indicação apenas da predominância de uma tendência sobre a outra num determinado poeta. Em verdade, de uma forma geral, a tensão existente entre as forças cerebrais e o impulso anárquico pode ser observada nos melhores líricos do Modernismo. Ao crítico cabe detectar as características comuns, o que nos permite perceber a existência de uma estrutura estilística na lírica modernista e contemporânea. Quer dizer, sem prejuízo das fortes individualidades poéticas do nosso século, existe algo em comum, princípios estéticos e ideológicos semelhantes, que possibilitam a percepção de linhas de força análogas e especificas do hodierno lirismo. Ao lado da poesia figurativa, inspirada no cubismo, dos poemas surrealistas, da escritura automática, temos formas e conteúdos poemáticos tradicionais, seguindo as pegadas das estéticas clássica e romântica. Apesar dessa diversidade toda, é possível delinear uma certa unidade estilística, que tem suas raízes na lírica simbolista, cujas características seriam:
a) Antipassadismo
Talvez seja essa a característica mais comum a todos os artistas da Vanguarda. A ruptura com a tradição cultural e o desejo de criar uma nova estética encontram sua justificativa face á crise da humanidade provocada pelos horrores do entre-guerras. As duas Guerras Mundiais, de 1915–1918 e de 1939–1944, abalaram o Ocidente e levaram os intelectuais a questionar a validade da cultura: por que a civilização, se esta traz em seu bojo o ódio, a injustiça, a opressão, o genocídio? Daí a insurreição contra tudo o que é passado e a repulsa da herança cristã, clássica e romântica. Os mitos gregos e bíblicos são degradados; os símbolos coletivos, inteligíveis, são substituídos por símbolos individuais, de cada artista, sem a pretensão de serem interpretados; motivos, citações e alusões da tradição cultural são colhidas ao acaso e misturadas por montagens, sem nenhuma perspectiva histórica; enfim, o passado é feito em pedaços, destruindo-se seus limites espaciais e temporais.
b) Sugestão
Como as artes plásticas, influenciadas pela estética cubista, surrealista e abstracionista, assim a poesia da Vanguarda tende mais a sugerir do que a comunicar. A função poética da linguagem humana, que sempre procurou romper os automatismos lingüísticos para dar um novo sentido às palavras, na lírica modernista chega ao extremo da não-comunicação. A poesia deve provocar no leitor apenas uma "sugestão mágica", sem nenhuma pretensão de ser compreendida. Ela não comunica nada, apenas é. A dinâmica das imagens poéticas substitui o significado dessas imagens. Enquanto o poeta clássico quer transmitir ao leitor sentimentos provenientes da idealização da natureza cósmica ou humana, parcelas de sentido de um mundo de cultura, e o romântico as angústias do seu isolamento espiritual, o poeta moderno agride o leitor com seus versos inefáveis, alimentando-se do prazer aristocrático de não ser compreendido, de desagradar o público ledor. Talvez seja esta a resposta da arte à pretensão científica de decifrar o mistério do universo, e sua oposição à sociedade robotizada e pragmática. Daí o caráter hermético e alógico da moderna concepção da arte: o poeta trabalha com símbolos autárquicos, estranhos ao código ideológico, e explora conteúdos sonambúlicos e alucinantes.
c) Despersonalização
A crise do conceito de personalidade, pela redução do ser humano a um número, a uma matrícula, atinge também o mundo das artes. Opondo-se especialmente à poesia romântica, centrada sobre o sentimento individual, a lírica modernista prescinde da experiência vivida por um "ego", do confessionalismo, chegando a uma neutralidade suprapessoal. A própria fantasia intelectualiza-se através da ficção científica: o herói atual é dirigido pela parafernália da computação, da estatística, da cibernética, da automatização, da informática. Tal despersonalização chega até à desumanização: Marinetti, num seu "Manifesto" (→ Futurismo), afirma: "o sofrimento de um homem não é para nós mais interessante de que o sofrimento de uma lâmpada atingida pelo curto-circuito". A estilização da arte moderna leva à desvalorização da forma orgânica e à anulação de qualquer sentido humano: o significado de um objeto artístico estaria implícito na sua própria forma, enquanto desfiguradora da realidade. O valor da lírica moderna seria, então, apenas fenomenológico, pois seu conteúdo é constituído pelos próprios objetos representados: automóvel, casa, escada etc. Sob este aspecto, a poética modernista se aproxima da "escola do olhar" do nouveau roman francês.
d) Fragmentação
Um dos intuitos da arte moderna é apresentar, não a totalidade da vida, mas apenas pedaços, fragmentos da realidade. O poeta simbolista francês Rimbaud, falando da arte pictórica, afirma:
"Temos de arrancar à pintura seu hábito antigo de copiar,
para fazê-la soberana. Em vez de reproduzir os objetos,
ela deve forçar excitações mediante as linhas, as cores e os contornos
colhidos do mundo exterior, porém simplificados e dominados:
uma verdadeira magia".
Antes dele, já Baudelaire tinha falado em "decomposição" do real: a fantasia teria a função de superar o perceptível, deformando os objetos e juntando pedaços heterogêneos, colocando, por exemplo, o mar nas montanhas, coches no céu. O Cubismo de Picasso apresenta a plurifacetação de seres e objetos, permitindo sua visão através de ângulos diferentes. Na literatura, o poeta que mais utiliza a técnica da fragmentação é T. S. Eliot.
e) Figurativismo
Enquanto a pintura moderna, em sua longa caminhada do Expressionismo ao Abstracionismo, passando pelo Cubismo e pelo Surrealismo, tende cada vez mais à abolição da figura, delegando a função de representar retratos e paisagens à arte fotográfica, a poesia, inversamente, se aproxima da configuração, penetrando no campo do desenho artístico. Ultimamente, parece que as artes procuram romper suas fronteiras, buscando pontos de intersecção e trocando técnicas e materiais de composição. De Apollinaire aos concretistas brasileiros, o estrato gráfico e óptico do poema adquirem uma importância cada vez maior. As palavras, ou até sílabas ou grafemas, só adquirem sentido num contexto topográfico. A poesia, segundo essa tendência da Vanguarda, não é feita mais de frases, de versos, de palavras que façam sentido entre si, mas de sílabas cruzadas, de anagramas, de letras maiúsculas em contraste com as minúsculas, artisticamente dispostas numa página, de forma que possam ser lidas de diferentes ângulos. Até o espaço em branco pode ser indicador de sentido, dependendo da capacidade de percepção do leitor ou, melhor, do observador. Chega-se, assim, ao limite extremo da concepção de poesia apenas como "forma", da arte pela arte, do puro prazer estético.
f) Grotesco
A "estética do feio", já proposta pelo Romantismo, contesta a função opositiva do disforme e do desarmônico: o feio não é o contrário do belo, mas tem um valor intrínseco, autônomo, instituindo novos padrões estéticos. O anormal, o dissonante, o tétrico, o marginal, o diabólico, têm seu fascínio e oferecem novos materiais, altamente estimulantes para a criação artística. A concepção clássica da beleza torna-se trivial, provocando a atrofia do espírito. Face à opressão do real, a saída é procurar elementos poéticos no absurdo existencial. Servindo-se do humor negro, o artista moderno conjuga o sofrimento com o riso, o amor com a morte, o idílico com o repugnante.
g) Recursos estilísticos
No plano da expressão, a poética vanguardista lança mão de uma série de artifícios, especialmente a chamada "metáfora absoluta": o tropo estabelece entre os dois termos não apenas uma relação de comparação mas de identidade; "imagens incoerentes": o poema não apresenta momentos ideológicos seqüenciais, podendo-se inverter versos ou estrofes inteiras, predominando a arbitrariedade; "a técnica da fusão": o sentido de uma palavra se funde com o significado de um termo próximo ou se dá a transposição do que é objetivo em imagens que não existem no mundo real; o uso do "acaso" para captar pedaços de uma conversação desconexa; "as formas oximóricas": aproximação no mesmo sintagma de objetos semanticamente opostos; a alteração das funções normais das categorias gramaticais e sintáticas: substantivos sem artigos, artigo definido em lugar do indefinido, adjetivação paradoxal, inversões etc.; a semantização de elementos gráficos; o espaço em branco como significante; o uso da colagem de mensagens lingüísticas recolhidas ao acaso.